terça-feira, 24 de outubro de 2017

Guiné 61/74 - P17900: As memórias revividas com a visita à Guiné-Bissau, que efectuei entre os dias 30 de Março e 7 de Abril de 2017 (11): Resumo do programa que concretizámos (António Acílio Azevedo, ex-Cap Mil)


1. Termina assim a publicação das "Memórias Revividas" com a recente visita do nosso camarada António Acílio Azevedo (ex-Cap Mil, CMDT da 1.ª CCAV/BCAV 8320/72, Bula e da CCAÇ 17, Binar, 1973/74) à Guiné-Bissau, trabalho que relata os momentos mais importantes dessa jornada de saudade àquele país irmão.

AS MINHAS MEMÓRIAS, REVIVIDAS COM A VISITA QUE EFECTUEI À GUINÉ-BISSAU ENTRE OS DIAS 30 DE MARÇO E 7 DE ABRIL DE 2017

 RESUMO DO PROGRAMA QUE CONCRETIZÁMOS (11)

01 – AS VISITAS QUE FIZEMOS

De comum acordo, ficou previamente definido que a intenção máxima de todos os colegas que se deslocaram, em viagem de saudade, à Guiné-Bissau, tinha como primeira prioridade visitar as terras ou locais por onde andaram, passaram sacrifícios e sofreram algumas agruras, nomeadamente nas alturas em que estávamos em luta directa e muitas vezes aberta com os elementos e apoiantes do PAIGC, realidade que deixou profundas marcas em muitos de nós. Cumprido este principal desejo, viajámos depois por outras paragens.
Passaram-se mais de 40 anos, mas mesmo assim, sentimos necessidade de visitar aqueles locais por passámos e onde alguns pagaram com a vida esse esforço e sacrifício que, de pouco valeu, já que aquele pedaço de chão era dos Guinéus e não dos Portugueses.

Visitámos muitos e variados locais, que iam desde pequenas povoações sediadas algures no mato, até a vilas e cidades da Guiné, tendo para nós sido importante recordar com alguma saudade esses lugares de solidão e de algum sofrimento, que muitos de nós passaram.

Encontrámos vilas e cidades, algo mais desenvolvidas do que quando lá estivemos, casos de Bissau, Gabu (ex-Nova Lamego) e Mansoa, mas infelizmente, a maioria delas está em situação mais degradante do que nos anos 60 e 70, do século passado, ouvindo nós, muitas vezes, e da boca de pessoas mais velhas, afirmações de que “naquele tempo estavam bem melhores que agora”.

Em qualquer pequena povoação de então, existia sempre um pequeno bar ou centro de encontro, onde, quanto mais não fosse, se bebiam umas cervejas e se convivia um pouco. Hoje, em muitas das vilas, nada ou quase nada existe e refiro aqui os casos de povoações, vilas e cidades como: Binar, Bissorã, Mansabá, Farim, Bafatá, Susana, Ingoré, Bula, Biambe, Cacheu, Bachile, Có, Pelundo, Nhacra…

Aquando de uma das nossas estadias em Bissau, procurámos visitar a velha Fortaleza de S. José da Amura, primitiva estrutura construída no ano de 1696, com alterações introduzidas em 1766 e edificada na parte baixa da capital guineense e ainda hoje edifício-símbolo da antiga cidade de Bissau, estando toda ela protegida por uma muralha em cantaria, com cerca de 4/5 metros de altura, de planta quadrangular abaluartada, rodeada de um fosso.

Infelizmente, não nos autorizaram a entrar e a visitar o interior desta Fortaleza, por razões que não nos explicaram apesar da nossa insistência, local este, onde segundo nos tinham informado, o PAIGC mandou construir um mausoléu em homenagem ao fundador do PAIGC, Amílcar Cabral.

Terá sido por vergonha (?!) face ao conhecimento generalizado de ter sido ali um dos locais onde fuzilaram muitos militares guineenses que estiveram ao serviço do exército português e sobre os quais os nossos “governantes” daquela época, nada fizeram para os proteger e salvar a vida?!…


02 – A DISTRIBUIÇÃO DOS MATERIAIS QUE LEVÁVAMOS

Uma das missões que também nos levou à Guiné-Bissau, foi a vertente humanitária, traduzida no transporte e posterior distribuição por diversas missões católicas e não só, de vestuário e calçado, e pelas escolas de material escolar, que os destinatários receberam com imensa alegria, atitude que se compreende pelas grandes carências que toda a Guiné sente e sofre.

Aqui um grande agradecimento às entidades portuguesas, em particular à TAP, permitindo que cada um de nós pudesse transportar duas malas/sacos/volumes, cada um com o peso máximo de 23 quilos, o que possibilitou que num desses volumes apenas levássemos os materiais que lá pretendíamos deixar e entregar, e no outro as nossas coisas e mais algo que completasse os tais 23 quilos. Claro que estando o tempo quente, o peso da nossa bagagem pessoal, não deveria pesar, em média, mais de 10/12 quilos, o que facilitou maiores dádivas transportadas.


03 – OS CONTACTOS PREVIAMENTE EFECTUADOS

Através dos contactos privilegiados e prévios que os colegas Moutinho e Rebola fizeram porque já lá tinham ido várias vezes, foi facilitada a missão aos restantes colegas, quer no que diz respeito à marcação do local de alojamento, quer para podermos ter acesso a alguns dos pontos mais importantes que pretendíamos visitar, nomeadamente aqueles onde houvesse necessidade de autorização prévia das autoridades guineenses.

O nosso muito obrigado à preciosa colaboração do Dr. João Maria Goudiaby, que além de médico, no Hospital Padre Américo, em Penafiel, é amigo pessoal de alguns dos colegas que se deslocaram à Guiné-Bissau e que connosco almoça, várias vezes, às quartas-feiras no Restaurante Milho-Rei, em Matosinhos, elemento que nos ajudou a abrir algumas portas, de entre as quais saliento e deixo aqui registado, com muita estima e consideração, a do Palácio da Presidência da República da Guiné-Bissau, de que é actual Presidente o seu cunhado, Dr. José Mário Vaz.


 04 – AS VISITAS PROGRAMADAS

Na continuidade do que já referi no ponto 01, os locais a visitar foram ordenados, não só em função das áreas geográficas onde eles se situavam, mas também tendo em atenção tentar rentabilizar o melhor possível os jeeps em que cada grupo de 4 pessoas se deslocavam, procurando desenhar um circuito rodoviário que melhor se coordenasse com a vontade de todos esses colegas e com o estado do pavimento.

Para isso, e semanas antes de embarcarmos, começámos por dividir o território da Guiné-Bissau em várias quadrículas, que contemplassem as áreas que a cada um de nós mais interessava visitar, mas também procurando escolher os eixos rodoviários com melhor piso e que cobrissem cada um dos sectores selecionados.

Por coincidência dos 13 colegas que compunham o grupo que no dia 30 de Março de 2017 rumou à Guiné-Bissau, a grande maioria tinha prestado o serviço militar nas regiões do norte e do centro do território, o que facilitou a visita aos locais que pretendíamos.

A capital Bissau, o Cacheu, Canchungo (ex-Teixeira Pinto), Bula Binar, Bissorã, no norte e Mansoa, Mansabá, Farim, Bafatá e Gabú (ex-Nova Lamego), no centro e leste, foram por isso os lugares mais privilegiados das nossas visitas.


05 – O CLIMA LOCAL DURANTE QUE ENCONTRAMOS

Com duas épocas perfeitamente distintas, o clima da Guiné-Bissau é quente e húmido durante os meses de Maio a Novembro, em que chove quase todos os dias, e seco, mas não tão quente, entre Novembro e Maio, período este, durante o qual, diria eu, nunca chove.

Acrescentaria que durante o período da época das chuvas, o teor de calor húmido chega a ser tão elevado que, mal acabamos de tomar um duche, estamos logo a transpirar de novo, obrigando-nos a novo duche, nem que fosse da própria chuva que caísse.

Não era fácil a adaptação a um novo clima, naturalmente bem diferente daquele que em Portugal estamos habituados, não só pelas diferentes latitudes existentes entre estes dois Países, mas também pela orografia e até tipo de vegetação, que em cada um deles existe.

Estas diferenças, obrigavam-nos a um esforço suplementar, principalmente nos primeiros tempos da nossa passagem pela antiga colónia portuguesa da Guiné, situação agravada pelas deslocações que fazíamos, porque a maioria dos caminhos, denominados como “picadas”, provocavam-nos um desgaste, muito mais acentuado no período das chuvas, com caminhos enlameados, ou nas zonas de bolanha que os militares, embora constrangidos, eram obrigados a atravessar nas suas missões de rotina para a defesa e vigilância dos aquartelamentos e das tabancas edificadas nas zonas que lhe eram envolventes.


06 – O PAÍS QUE ENCONTRÁMOS

Como começámos a nossa visita por Bissau, estamos em posição de afirmar que encontrámos uma capital que nos mostrava diferentes espaços, perfeitamente contrastantes uns com os outros, opiniões mais reforçadas, se atendermos à realidade que conhecia por lá ter estado nos já longínquos anos de 1973/1974.

Pelo lado positivo, reconheço a existência de novas e bonitas zonas habitacionais, de novas vias de comunicação, como a avenida que do Aeroporto nos conduz à antiga Praça do Império e aos meios de transporte muito mais modernos e eficazes.

Em contrapartida, o lado negativo continua a ser maioritário em todo o território guineense, sendo, no caso de Bissau, evidente a degradação da antiga Avenida do Império (actual Avenida Amílcar Cabral), bem como de toda a sua zona ribeirinha, em especial a Avenida Marginal e sobretudo o abandono a que foram deixadas a quase totalidades das antigas casas coloniais, fenómeno para mim anormal em quase todo o território da Guiné-Bissau, de que o maior exemplo é o estado de total desleixo em que encontrámos o antigo Hospital Militar, onde, segundo nos informaram, logo após a instauração da independência, todo o equipamento cirúrgico foi roubado e/ou destruído!!

Idêntico exemplo foi-nos dado a observar em relação às antigas instalações militares que em diferentes locais ocupámos, todas elas em ruína evidente e sem sinais de recuperação à vista, para qualquer utilização benéfica para as populações locais.

Do interior do País e com honrosas excepções, tudo está pior que no tempo da dita guerra colonial. Vilas ou cidades como Bula, Canchungo (ex-Teixeira Pinto), Cacheu, Bissorã, Mansabá, Farim e Bafatá, localizadas em zonas que em bem conheci, encontram-se muito mais degradadas, onde não existe uma boa rua asfaltada e a maioria das casas estão arruinadas, não se encontrando em muitas delas, um café ou um restaurante!!

Em termos de boas vias de comunicação, salvaguardo as estradas de Canchungo ao Cacheu, de Canchungo a Bissorã, passando por Bula e Binar, e a de Mansoa a Farim, que passa junto a Mansabá e a de Mansoa a Gabu.


Bissau: Uma das actuais e apresentáveis ruas de Bissau, onde, fugindo à regra, uma boa parte dos antigos edifícios coloniais  foram preservados. Repare-se no piso da rua que no tempo colonial era asfaltado, mas que agora e quando chove, se transforma em lamaçal!


07 – A BELEZA DE ALGUNS LOCAIS E EDIFÍCIOS VISITADOS

Nesta breve descrição, será justo salientar, em Bissau, o Palácio da Presidência da República e toda a sua zona envolvente, a extensa e bonita avenida, que do Aeroporto nos conduz à zona central de Bissau, via onde se encontram construídos alguns dos principais edifícios da cidade, como o Palácio do Governo, a Assembleia Nacional Popular e algumas embaixadas, a Sé Catedral e a zona de Santa Luzia, onde, em nossa opinião, se encontra o Hotel Azaalai, a melhor unidade hoteleira de Bissau.

Fora de Bissau, destacamos as grandiosas obras de engenharia das elegantes pontes sobre o Rio Mansoa, em João Landim (Ponte Amílcar Cabral) e a Ponte sobre o Rio Cacheu, em S.Vicente, entre as vilas de Bula e do Ingoré.

Em termos territoriais, destacamos a bonita cidade de Gabú (ex-Nova Lamego), situada no leste da Guiné-Bissau, já próxima da fronteira com o território da Guiné-Conakry e a pequena mas ainda alindada vila de Mansoa e talvez alguns pormenores da antiga bonita cidade Bafatá.


08 – AS RECORDAÇÕES POR MIM VIVIDAS

Consegui concretizar uma vontade que tinha em visitar terras que, em situações bem mais difíceis, vividas em anos de perigo permanente, e em que o cumprimento de rigorosa segurança tinha que obrigatoriamente ser a palavra de ordem, pois a situação que se viveu, entre os anos de 1963 e 1974, não permitia aventuras nem distracções ou descuidos, leva-me a afirmar com total conhecimento de causa que, em tempos da dita guerra colonial, seria quase impensável fazer as deslocações e visitas que fizemos.

Por outro lado, segurar a rebeldia de alguma juventude dos nossos militares e a atracção/convite que sobre eles faziam a juventude feminina local (vulgo “bajudas”), não eram tarefas fáceis de controlar, muitas vezes aliada à inexperiência de um cenário de guerra para a maioria desses militares, realidades que preocupavam, e de que maneira, a delicada missão de quem os tinha que comandar.

Embora já direccionado para ir comandar, como Capitão Miliciano, a Companhia de Caçadores n.º 17 (CCAÇ 17), sediada em Binar, foi-me determinado para ir comandar a 1.ª Companhia do Batalhão 8320/72 (BCAV 8320/72), cuja sede se localizava em Pete, situada a sul da estrada entre as localidades de Bula e Binar e a cerca de 6/7 quilómetros a nascente/sul da vila de Bula, cujo Comandante tinha sido castigado e mandado regressar à então designada metrópole, aguardando-se a sua substituição.

Cerca de dois meses depois e já colocado em Binar, por doença contraída pelo novo Comandante da .1ª Companhia do BCAV 8320/72, que o levou a ser internado no Hospital Militar de Bissau, fui solicitado para comandar de novo essa mesma companhia, que nessa altura tinha sido transferida para Nhamate, uma pequena povoação situada a nascente de Binar e a meia distância entre Binar e o destacamento do Biambe.

Saliento porque é de inteira justiça fazê-lo, tinha em Pete/Nhamate o Alferes Gatinho, de Lisboa, e em Binar o Alferes Teixeira, de Braga, que muito mais experientes que eu, me mereciam e demonstraram total confiança, e comandaram interinamente as tropas dos dois aquartelamentos (cerca de 140 homens em cada um deles), durante a minha temporária ausência, porque durante uns 3/4 meses andei a saltar de um lado para o outro, situação que me obrigava a ter casa/alojamento em cada um desses lugares, afastados cerca de 10 quilómetros uns dos outros, mas tudo correu pelo melhor, graças sobretudo à capacidade de liderança desses dois bons elementos.

Como referência negativa, sinto hoje talvez a culpa de ter acreditado demasiado nas palavras do Comandante Dick Daring do PAIGC, quando me afirmou, por diversas vezes, que os graduados guineenses que serviram de boa-fé o exército português, seriam reintegrados no novo exército da nova Guiné-Bissau.

Meses mais tarde, veio a confirmar-se ser falsa essa promessa, pois a maioria deles acabou fuzilada no antigo aquartelamento do Cumuré e na Fortaleza de S. José da Amura, lamentando-me não ter sido o suficiente convincente com os furriéis guineenses da minha CCAÇ 17, para que viessem para Portugal, porque, aqui sim, havia grandes possibilidades de continuar a integrar o exército português


09 – A POBREZA DE ALGUMAS DAS POVOAÇÕES VISITADAS

Em contrapartida, e tal como já referi no anterior ponto 06, deixou-nos algo desolados aquilo que que de negativo vimos e que não estávamos a contar ver.

Muita pobreza nalguns locais, é verdade, mas ficou-nos sobretudo na memória a pouca vontade da maioria dos naturais guineenses em procurar melhorar o seu nível de vida, trabalhando. Diz-se em Portugal que “trabalhar faz calos”, mas em muitas zonas da Guiné-Bissau vimos os homens à sombra das árvores ou de outros obstáculos que provocassem sombra, enquanto as mulheres e as crianças trabalhavam.

Sendo a Guiné-Bissau tão rica, desde que bem trabalhada, em áreas agrícolas como na cultura do arroz, na produção de mancarra (amendoim, em Portugal), na produção do cajú, na pesca do camarão e de variados peixes, na produção de mangas, entre outros, porque não aproveitam as potencialidades destes enormes recursos naturais que possuem?!


10 – OBSERVAÇÕES FINAIS

Consegui concretizar um desejo e uma vontade que tinha em visitar terras que, em situações bem mais difíceis, com a segurança a ser obrigatoriamente a palavra de ordem, e que em tempos da dita guerra colonial, seria quase impensável fazer.

Poderão então perguntar: Se foi um tempo perdido, cheio de incertezas e de sacrifícios, afastado da família, dos amigos e do seu ambiente natural, será que valeu a pena?

Apesar de tudo, creio que sim, pois trouxe-nos outra maturidade, um melhor sentir cá dentro aqueles a quem mais queremos, ao mesmo tempo que nos alertou e deu espaço temporal para pensar que a vida, em geral, não é fácil de seguir e de cumprir, que as metas pretendidas são difíceis de atingir e que as dificuldades nos podem surgir em qualquer dos percursos que possamos optar.

Um grande abraço amigo aos doze colegas que comigo partilharam estes nove dias de romagem de saudade e visita a terras da Guiné.

Aos meus familiares e amigos que ficaram, mas que de uma forma ou outra me acompanharam nesta odisseia africana, o meu obrigado a todos.

F I M 

António Acílio Azevedo
Leça da Palmeira
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Nota do editor

Postes anteriores da série de:

19 de Setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17779: As memórias revividas com a visita à Guiné-Bissau, que efectuei entre os dias 30 de Março e 7 de Abril de 2017 (1): 1.º Dia, a viagem de ida (António Acílio Azevedo, ex-Cap Mil)

21 de setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17784: As memórias revividas com a visita à Guiné-Bissau, que efectuei entre os dias 30 de Março e 7 de Abril de 2017 (2): 2.º Dia, a cidade de Bissau (António Acílio Azevedo, ex-Cap Mil)

27 de setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17802: As memórias revividas com a visita à Guiné-Bissau, que efectuei entre os dias 30 de Março e 7 de Abril de 2017 (3): 2.º Dia, a cidade de Bissau - continuação (António Acílio Azevedo, ex-Cap Mil)

28 de setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17804: As memórias revividas com a visita à Guiné-Bissau, que efectuei entre os dias 30 de Março e 7 de Abril de 2017 (4): 3.º Dia: Bissau, Safim, Bula, Có, Pelundo, Canchungo, Bachile e Cacheu (António Acílio Azevedo, ex-Cap Mil)

3 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17820: As memórias revividas com a visita à Guiné-Bissau, que efectuei entre os dias 30 de Março e 7 de Abril de 2017 (5): 4.º Dia: Bissau, Safim, Bula, Có, Pelundo, Canchungo, Bachile e Cacheu (António Acílio Azevedo, ex-Cap Mil)

6 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17827: As memórias revividas com a visita à Guiné-Bissau, que efectuei entre os dias 30 de Março e 7 de Abril de 2017 (6): 5.º Dia: Bissau, Safim, Bula, Binar e Bissorã (António Acílio Azevedo, ex-Cap Mil)

10 de outubro de 2017 >  Guiné 61/74 - P17844: As memórias revividas com a visita à Guiné-Bissau, que efectuei entre os dias 30 de Março e 7 de Abril de 2017 (7): 5.º Dia: Bissau, Safim, Bula, Binar e Bissorã (continuação) (António Acílio Azevedo, ex-Cap Mil)

12 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17855: As memórias revividas com a visita à Guiné-Bissau, que efectuei entre os dias 30 de Março e 7 de Abril de 2017 (8): 6.º Dia: Bissau, Safim, Nhacra, Jugudul, Bambadinca, Bafatá e Gabu (António Acílio Azevedo, ex-Cap Mil)

17 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17870: As memórias revividas com a visita à Guiné-Bissau, que efectuei entre os dias 30 de Março e 7 de Abril de 2017 (9): 7.º Dia: Bissau, Safim, Nhacra, Jugudul, Mansoa, Mansabá e Farim (António Acílio Azevedo, ex-Cap Mil)

19 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17880: As memórias revividas com a visita à Guiné-Bissau, que efectuei entre os dias 30 de Março e 7 de Abril de 2017 (10): 8.º e 9.º Dias: Bissau e Regresso a Portugal (António Acílio Azevedo, ex-Cap Mil)

Guiné 61/74 - P17899: In Memoriam (307): Ivo da Silva Correia (Fajonquito, c. 1974 - Bissau, 21/10/2017)... Era filho de um camarada nosso, da CCAÇ 3549 (Fajonquito, 1972/74). Morreu sem conhecer o pai português... É tarde, mas ainda vamos a tempo de lançar uma petição pública para que estes pobres "filhos do vento" vejam reconhecido o seu direito a serem também portugueses, além de guineenses... O "Ibu" passa a ser, a título póstumo, o membro nº 758 da nossa Tabanca Grande!





Guiné > Região de Bafatá > Setor de Contuboel > Fajonquito > Ivo da Silva Correia (Fajonquito, c. 1974 - Bissau, 2017)

Fotos: © Cherno Baldé (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Vítima de doença prolongada, faleceu  no passado dia 21 do corrente,  "o meu irmão Ibu (vulgo Ibulel)",  escreveu Aliu Baldé, na sua página do Facebook.

O Ivo da Silva Correia era natural de Fajonquito, nascido por volta de  1974 [ou já 1975],  segundo informação do nosso amigo Cherno Baldé,  que acrescenta mais o seguinte na sua página do Facebook:

(i) era filho de um soldado português da Companhia dos Deixós Poisar (CCAC 3549) que nunca o reconheceu; 

(ii) sem o devido enquadramento e a ajuda necessária, não conseguiu avançar por aí além na escola e, apesar dos apoios e solidariedade dispensada pela comunidade e colegas da sua Tabanca, sempre que era necessário, levou uma vida errática e bastante difícil, que acabou por o vitimar;

(iii) era um jovem afável e de bom trato;

(iv) foi sepultado no cemitério de Bissau. 

E termina o nosso amigo e irmãozinho, o "menino e moço" de Fajonquito que tem mais de 150 (!) referências no nosso blogue: "Fajonquito e os Deixós-Poisar perderam um dos seus filhos. Que a terra lhe seja leve e que, finalmente, encontre a paz de espírito que não teve em vida.  Amén".


2. Comentários de camaradas nossos na página do Cherno Baldé [foto à direita]:


(i) Hélder Valério de Sousa 

Lamentável que o desfecho tenha sido esse. Sabe-se que a Lei da Vida é assim mesmo,  mas, pelo relato do Aliu [Baldé] que o Cherno nos faculta, foi uma vida bem difícil e que, felizmente, contou com alguma solidariedade. Que possa descansar em paz.



Na minha aldeia [, Brunhoso, concelho de Mogadouro,] conheci alguns filhos de pai incógnito mais velhos do que eu, que embora conhecendo o seu pai, toda a aldeia sabia quem era, aceitavam esse facto como uma fatalidade natural.

Tal como nas aldeias também nas cidades ainda havia nesse tempo muitos filhos sem pai reconhecido. Por toda essa predisposição social, a acrescentar aos preconceitos raciais que existiam em todas as classes sociais e económicas, acho que não devo culpar esse soldado que abandonou o filho embora seja um acto condenável. Lamento a sorte do Ibu [Ivo]  que,  sem o apoio do pai branco, não conseguiu o equilíbrio que merecia. Que descanse em paz.


3. Comentário de LG:

O Ivo era um jovem conhecido do nosso Cherno Baldé, um "filho do vento" (, não gosto da expressão, porque é eufemística,  uma figura de estilo que usamos, de maneira cínica, que nada tem de romântcio ou poético, para escamotear ou disfarçar uma realidade cruel...), tal como a Cadija Seidi, e a Kumba Seidi, também nascidas por volta de 1973/74, em Fajonquito, filhas de soldados portugueses.

Já em 2013, o Cherno Baldé (*) tinha-nos dado notícias da existência do Ivo;

(...) "Filho de Sona Baldé, conhecida entre os soldados por Sonia, filha de Sadjo Baldé, antigo cozinheiro da tropa, nasceu em Fajonquito em 1975. O pai, de nome C..., não chegou a conhecer o filho, com o fim da comissão a Companhia de Caçadores n.º 3549, 'Deixs Poisar', comandada pelo Capitão Quadro Especial de Oficiais José Eduardo Marques Patrocínio e, posteriormente, pelo Capitão Miliciano Graduado de Infantaria Manuel Mendes São Pedro, deixou Fajonquito em junho de 1974, o pai nunca mais deu sinais de vida. 

"[ O Ivo] não está desesperado da vida, simplesmente gostaria de conhecer a cara do pai, pois dizem que são muito parecidos. A única referência que tinha do pai era uma fotografia que entretanto se deteriorou com o tempo." (...)


Todos estes homens e mulheres carregam histórias de amargura, discriminação racial, exclusão social, pobreza... São, brutalmente falando,  "restos"... do nosso império! (**).

Camaradas e amigos, este é assunto de que temos falado aqui no blogue, com alguma frequência...  Aliás, temos falado muito e feito pouco... Há um mês atrás, em 14 de setembro último, chegou-nos um pedido de publicação. Ou melhor: uma sugestão de texto para uma eventual petição à Assembleia da República...

Precisamos de alguém, com formação jurídica, de preferência, que agarre esta causa e que trabalhe melhor o texto... que podia ter o seguinte teor:

(...) "Durante o período em que durou a guerra colonial ou guerra do Ultramar, para uns, guerras da libertação nacional (1961-1975), para outros, estiveram ao serviço do Estado português, em Angola, Moçambique e Guiné, quase um milhão de homens portugueses (, sem esquecer os oriundos dos territórios ultramarinos, Cabo Verde, Guiné, São Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique, Macau e até Timor). Muitos destes militares mantiveram, durante o conflito, relações com mulheres locais, que resultaram em filhos.

Os filhos que os militares portugueses deixaram para trás,  vêm por este meio solicitar que o Estado Português lhes reconheça o seu legítimo direito à nacionalidade portuguesa, uma vez que são filhos de pais portugueses que, na maior parte dos casos, nunca irão ter a oportunidade de vir a conhecer.

Souberam das suas origens através das suas mães e familiares. E têm em comum toda uma vida de ostracismo e estigmatização nos seus países de origem, sobretudo a seguir à independência, onde foram cruelmente chamados de “restos de tuga” ou “sobras do colono”, e sofrem até hoje com o desconhecimento de metade da sua história. 

Conceder-lhes a nacionalidade que é dos seus pais desconhecidos,  seria uma forma de fechar um ciclo da História de Portugal." (...)

O texto pode ser melhorado, este é apenas um rascunho.

O sítio Petição Pública é o mais usado para estes fins e torna o processo de criação e divulgação da "causa" muito mais fácil. Depois de angariada alguma massa crítica é que se poderia formalizar o processo no sítio  da Assembleia República. Ver aqui o endereço na Net: Petição Pública - Serviço gratuito de petições online.

Para já, temos o dever (moral) de homenagear o Ivo e, na sua pessoa, todos os  demais filhos e filhas de militares  portugueses, que continuam a lutar, através da sua Associação, pelo direito à nacionalidade portuguesa.

O Ivo da Silva Correia (c. 1974-2017) (***)  passa a  ser, a título póstumo e simbólico,  membro da nossa Tabanca Grande. O seu lugar será o nº 758. Fica connosco, à sombra do nosso sagrado poilão, que nos une a todos, amigos e camaradas Guiné, vivos e mortos.  (****).

Obrigado, Cherno Baldé, por nos teres dado a esta notícia, embora triste. Sem ti, nunca ficaríam a saber que, afinal, estamos todos mais pobres, Fajonquito e a família da CCAÇ 3549.
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Notas do editor:


(**) Vd. poste de 14 de julho de 2013 > Guiné 63/74 - P11838: Os filhos do vento (13): Em busca do pai tuga: um reportagem, 3 vídeos, 19 histórias, 19 rostos, 19 nomes à procura do apelido paterno... Hoje no "Público", domingo, dia 14. A não perder.

(***) Último poste da série >  19 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17883: In Memoriam (306): Cadi Candé (c.1927-2017), arquétipo da mãe africana, exemplo de humildade, abnegação e coragem... Homenagem à mãe do nosso amigo e irmãozinho Cherno Baldé (Bissau)

(****) Vd. poste de 20 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17888: Tabanca Grande (450): António Ramalho, ex-fur mil at cav, CCAV 2639 (Binar, Bula e Capunga, 1969/71), natural da Vila de Fernando, Elvas, e novo membro da Tabanca Grande, com o nº 757... Faz parte da Associação de Alunos da Universidade Sénior de Vila Franca de Xira.

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Guiné 61/74 - P17898: (D)o outro lado do combate (11): Regime de Sékou Touré e PAIGC: propostas de reforço da cooperação militar, elaboradas por Amílcar Cabral, 4 meses antes de ser assassinado (Jorge Araújo) - III (e última) parte





1. Mensagem do Jorge Araújo , com data de 2 do corrente:


Caro camarada Luís,

Remeto, finalmente, a terceira parte (a última) do meu trabalho relativo às propostas que o AC  [Amílcar Cabral] enviou a Sekou Touré, em 14 de Setembro de 1972 (fez quarenta e cinco anos) pedindo mais apoios para "o combate do outro lado".

Espero que ainda vá a tempo... e faça sentido a sua publicação.

Vou tentar normalizar a minha participação no blogue, ainda que continue no activo académico com viagens semanais a Portimão.

Com um forte abraço de amizade,

Jorge Araújo. (**)







3








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Notas do editor:

(*) Vd. postes anteriores:

Guiné 61/74 - P17897: FAP (102): Bissalanca, BA 12, 1973: uma foto histórica do Heli AL III 9377, do Grupo Operacional 1201, do ten cor pilav Vasquez, com nova configuração de armamento (José Matos)





Guiné > Bissalanca > BA 12 > 1973 > O helicanhão  AL III, com a nova configuração de armamento. Créditos fotográficos: Grupo Operacional 1201 (comandamte : ten cor pilav Fernando Jesus Vasquez, hoje ten gen ref).

Texto e foto:  José Matos  (2017) [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem, de 19 do corrente, do nosso  amigo José Matos:

[Foto à direita: o nosso grã-tabanqueiro José [Augusto] Matos; formado em astronomia em 2006 na Inglaterra ( University of Central  Lancashire, Preston, UK );  é especialista em aviação e exploração espacial desde 1992; faz parte da Fisua - Associação de Física da Universidade de Aveiro; filho de um antigo combatente, nosso camarada da Guiné, já falecido;  é investigador independente em história militar]

Olá, Luís

Mando-te uma foto do AL III 9377 na BA 12 em 1973 
que é histórica e tem um certo interesse. 

Vemos o helicóptero armado com dois ninhos de foguetes SNEB de 37 mm e duas metralhadoras de 7.62 mm, tudo armamento que se usava no T-6G. 

Na altura, por indicação do comandante do Grupo Operacional 1201 (Ten cor pilav Vasquez) , foi testada esta configuração de armamento no AL III com vista a ser usada no TO, no caso de se verificar novos ataques em força contras os quartéis de fronteira. 

O armamento foi testado em primeiro lugar acoplado a uma viatura na carreira de tiro da BA12 para ver se os suportes aguentavam a pressão das armas. Depois foi adaptado ao helicóptero e experimentado nos Bijagós. 

Podemos também ver na imagem uma mira no lugar direito do helicóptero, que era a mira do Fiat calibrada para o AL III para pontaria das armas. Esta configuração nunca foi experimentada em combate, mas era uma possibilidade improvisada na BA12, que podia ter tido alguma utilização. 

Aqui fica a foto que podes creditar ao Grupo Operacional 1201.

Ab, 
José Matos


PS - SNEB: acrónimo do fabricante francês da granada-foguete, Société Nouvelle des Établissements Edgar Brandt
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Nota do editor:

Último poste da série > 1 de maio de 2017 > Guiné 61/74 - P17303: FAP (101): Agora num expositor... Aventuras de um capacete... E não só... (Miguel Pessoa)

Guiné 61/74 - P17896: Notas de leitura (1007): Memórias boas da minha guerra, volume II, por José Ferreira; Chiado Editora, 2017 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Outubro de 2017:

Queridos amigos,
Deste batedor de sete léguas, um andarilho que descobre em qualquer lugar convivas e antigos combatentes, já lhe fiz o retrato quando saudei o seu primeiro volume: "Regista os desenrascanços na cozinha, os apetites sexuais, as risotas sobre o linguajar do Norte, pena é que um leitor impreparado no jargão não conheça o significado de morcão, isto é não sabe se estamos a falar num atrasado ou num javardo. José Ferreira faz desfilar jovens que percorreram quartéis e partiram a descobrir mundo". Alguém também já o saudou pelo humor, pelo sarcasmo e pelos condimentos da solidariedade, é um narrador de mil e uma histórias onde cabem manhosos, espevitados, personagens de Camilo Castelo Branco.
Não esteve na operação Bola de Fogo, um dos eventos mais trágicos da guerra da Guiné, o levantamento de um quartel chamado Gandembel, mas tem fibra para homenagear aqueles mártires.
Que mais memórias não te faltem, José Ferreira, um abraço do
Mário


Memórias boas da minha guerra, volume II, por José Ferreira

Beja Santos

Entende-se por literatura da guerra colonial o subgénero literário onde se agrupam romances, contos, novelas, poesias, peças de teatro, ensaios históricos, antologias, biografias, registos fotográficos, memórias, diários, e algo mais, escritos de 1961 à atualidade e cujo tema nuclear tem como palco um dos três teatros onde essa guerra aconteceu. Não é novidade para ninguém que começa a haver uma zona de fricção entre esta literatura e uma outra que tem a ver com escritos elaborados por quem regressou de África ou seus descendentes. A guerra e o combatente dão a placa giratória e daí, mesmo nos livros de caráter memorial, o autor poder falar da sua infância e origens, a preparação, a viagem, episódios da comissão e acontecimentos do regresso. É importante registar que no mercado livreiro proliferam obras com saudades de África enquanto a literatura da guerra gira cada vez à volta das memórias. Talvez se perceba porquê. O combatente caminha para os setenta ou é já um septuagenário consolidado. Tem disponibilidade para juntar peças, já não guarda rancores, constitui amizades, encontra-se regularmente em tertúlias com quem combateu a seu lado, aliás é nesses espaços de convívio que cada um conta o que pensa que aconteceu. Depois, há salas de conversa, como os blogues ou as digressões pelo Facebook, Twitter e Instagram, redes sociais de boa ou belicosa convivência, vêm mais elementos à tona em dado momento organiza-se uma trama e temos um leque de memórias e muita vontade em publicá-las.

“Memórias Boas da Minha Guerra” é o segundo volume de alguém que fez parte de uma companhia de intervenção que atuou em mais de metade de todo o território da Guiné, regressou, manteve-se convivente e lendo os seus escritos fica-se com a ideia que o furriel Silva ou José Ferreira da Silva ou o escritor José Ferreira tem uma enorme sede de camaradagem, conserva um rol de episódios pícaros, burlescos, misturados com estúrdia e passagens por casas de gente mal-afamada. E sempre que vai ao passado sentimos, como num espelho estilhaçado, que ele nos dá uma imagem de gente da nossa geração que cresceu na guerra, foi alvo de endurecimentos vários e em encontros casuais ou programados, os retratos compõem-se e o leitor atento fica com mais imagens desse Portugal de 1950 e 1960, nomeadamente na região Norte. Tenho para mim que é deste modo que ganha a leitura deste segundo volume das memórias de José Ferreira, recentemente publicadas pela Chiado Editora.

Tem muita ironia, em lugares de amenidade como Dunane pode gerar-se uma situação crítica, a memória salta até ao Porto e visita-se uma zona de meretrício na Rua Escura, começa-se a falar no morcon e depois temos uma galeria de retratos, com o Geninho à cabeça:  
“Parecia um miúdo da escola primária. Tinha 1,37 m de altura. A espingarda Mauser, pousada, com a coronha no chão, à sua frente dava pelos olhos. O curioso é que ele era um jovem socialmente bastante desenvolvido e de trato muito agradável. Quando o mandaram embora, ele lamentava-se dizendo: 
- Vou triste, porque até gosto disto e gostaria imenso de servir a minha Pátria”.
Há os molengões, os ronceiros, gente com uma perna mais curta dois dedos do que a outra, gente que sonhava alto, dando um espetáculo que atraía a caserna por inteiro…

E há o amontoado de situações inesquecíveis como os bolos de bacalhau à moda de Catió, o Chico de Alcântara, o cabo Felgueiras, aquele dia 26 que se festejava com um casamento, imagine-se, num quartel em plena guerra, um a fazer de padrinho, outro de irmão da noiva, os noivos em toda a sua alvura e pujança, o sacristão, o moço da água benta e até o fotógrafo.

Ficamos a conhecer histórias de gente que passou uma infância na miséria e até se abre o pano para um palco de amores camilianos, caso do Diogo de Carvalho que se ofereceu para a tropa, havia a história do comportamento do pai que depois de viúvo engravidou uma jovem casada que trabalhava lá em casa, o Diogo adorava a Guidinha, filha de boas famílias, chegaram a brincar ao sexo sem consequências, depois a Guidinha desapareceu, nem às festas da Senhora da Mó veio, anos mais tarde Silva e Diogo encontram-se, Diogo licenciara-se em Coimbra, seguira a carreira da magistratura e depois falou-lhe da Guidinha:
“Lembras-te daquela história da minha paixão? A miúda sempre seguiu para freira. Chegou a diretora de colégio. Recentemente, quando faleceu o tio padre Benjamim houve um funeral especial, que teve muito impacto aqui na região. Por curiosidade quis ver a Guidinha durante o velório”.

Como as memórias são como as cerejas, José Ferreira leva-nos a Crestuma junto a rio Douro, apresenta-nos a terra onde vive, vemos a velha fundição de Arcos de Ferro e Verguinha, fundada em 1793. Mais tarde (e até hoje) Companhia de Fiação de Crestuma, e isto para dizer que após independência da Guiné veio uma equipa de guineenses para aprenderem a trabalhar com teares e outras máquinas, havia a promessa de construir uma fábrica em Bolama. O projeto caiu na água. E após mais umas histórias entremeadas de estúrdia e de que de se guardam boas recordações até ao presente, chegamos à operação Bola de Fogo, a construção de Gandembel onde a CART 1689, a que José Ferreira pertenceu, teve papel primordial na fase de arranque. Ele estava de férias nessa altura mas homenageia os seus camaradas cozendo várias histórias.

Em Abril de 1968 foi lançada esta operação para a implantação de um aquartelamento no corredor de Guileje, na região entre Gandembel e Ponte Balana, intervieram para além da CART 1689 duas companhias de comandos e outras unidades com destaque para a CCAÇ 2317, a quem coube o fel mais amargo. É uma sequência trágica de tiros de obuses, minas, fornilhos, abertura de um quartel dentro da natureza bravia, sem réstia de população, houve que fazer limpezas com motosserra e passar a ser atacado a qualquer hora do dia, são esses os relatos pungentes que José Ferreira organiza, ressalto o sofrimento físico, a violência das mortandades, não faltam cenas horríveis com pedaços de carne humana e lembra-se o alferes Monteiro que já tinha concluído a sua comissão e que se ofereceu para este último serviço:
“No início desta reta, à terceira cratera, do lado direito, e junto à estrada, via-se um tufo de três palmeiras. Numa delas estava uma perna de calças de camuflado, com uma bota amarrada e pendurada da copa da palmeira. No tronco da palmeira central, estava a tampa do crânio de uma cabeça com cabelo louro à altura de um metro e quarenta do chão. O resto do tronco até ao chão era uma massa de carne e sangue, impregnada na casca da palmeira. Deduzimos que eram os restos mortais do alferes Monteiro. Ele era o único branco e louro do pelotão”.

É este o remate trágico de um livro inconfundível de memórias que começa em aldeias remotas, em jovens cheios de sonhos que aprenderam a crescer na picada e nos quartéis do fim do mundo e hoje contam à lareira aos netos histórias inacreditáveis que a voracidade mediática e velocidade do nosso tempo reduziram a narrativas do fantástico, uma espécie de contos de fadas dentro de guerras cujo sentido escapa às novas gerações.
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17887: Notas de leitura (1006): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (5) (Mário Beja Santos)

domingo, 22 de outubro de 2017

Guiné 61/74 - P17895: Agenda cultural (599): "Conspirou? Certamente, mas…", título do trabalho apresentado pelo Coronel Art Ref António José Pereira da Costa no Congresso Internacional levado a efeito nos passados dias 11 e 12 deste mês, na Academia Militar (Campus Amadora), subordinado ao tema "Gomes Freire de Andrade: O Homem e o Seu Tempo"



Oeiras > Ponta de São Gião > Praia da Torre > Freguesia de Oeiras e São Julião da Barra, Paço de Arcos e Caixas > Forte de São Julião da Barra, visto do lado poente > 3 de setembro de 2017 >  É considerado o maior e mais compeloa militar de defesa no estilo Vauban, ainda existente em Portugal. No passado, era nossa maior fortificação marítma, baluarte da defesa do reino e da sua capital.... No séc. XIX tornou-se prisão política. Foi aqui que o "mártir da Pátria",  gen Gomes Freire de Andrade, foi executado, não por fuzilamento (como ele pediu) mas por enforcamento, sendo o corpo cremado e as suas cinzas deitadas ao Tejo, em 18/10/1817. Foi acusado de liderar uma conspiração contra os ingleses que governavam o país, enquanto o regente (e futuro D. João VI) e a corte viviam no outro lado do Atlântico, desde 1807, na sequência das invasões napoleónicas. Um processo de justiça infamante, como muitos na nossa história...

Foto (e legenda): © Luís Graça (2017), Todos os direitos reservados. [Edição:r: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Em mensagem do dia 17 de Outubro de 2017, o nosso camarada António José Pereira da Costa, Coronel de Art.ª Ref (ex-Alferes de Art.ª da CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69; ex-Capitão de Art.ª e CMDT das CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74), enviou-nos para publicação, a nosso pedido, o texto da sua intervenção no Congresso Internacional, levado a efeito nos passados dias 11 e 12 deste mês, na Academia Militar (Campus Amadora), subordinado ao tema Gomes Freire de Andrade: O Homem e o Seu Tempo[*].


Conspirou? Certamente, mas…

Declaração de Interesses 

Como bom Brandoniano, para a elaboração deste trabalho, tomei como base a obra de Raul Brandão, "Vida e Morte de Gomes Freire", que considero absolutamente inultrapassável, no detalhe e na profundidade da análise dos acontecimentos e das personalidades dos intervenientes. É pouco provável, mas se surgir algum documento, que não tenha sido analisado por Raul Brandão, ele nunca poderá produzir grandes alterações relativamente à visão dos factos que nos deu. Para além daquela obra, consultei outros documentos, nomeadamente a "Memória sobre a Conspiração de 1817 […] Escripta e Publicada por hum Português", "Amigo da Justiça e da Verdade" e atribuída por Raul Brandão a Joaquim Ferreira de Freitas, (o padre Amado). O exemplar que consultei foi oferecido à Sociedade Martins Sarmento pelo Conde de Vila Pouca e será a versão mais completa deste texto. Aparentemente publicada em Londres, apresenta um sem número de anotações manuscritas a lápis de cor azul. Estou convencido de que foram feitas pelo escritor tal, é a semelhança entre a sua caligrafia e a das anotações. Devo confessar que estou de acordo com uma boa parte dos comentários que deixou.


Título

O título que escolhi foi inspirado numa frase de Raul Brandão, na qual, referindo-se a Mathilde de Faria e Mello e não temendo más interpretações, o autor pergunta: “Casada?” e reponde: “Certamente!”.

Não existe nenhuma certidão daquele casamento, mas não importa. Matilde teve, durante a sua vida o comportamento de uma mulher casada e que amava (muito) o seu marido.

Da mesma maneira podemos perguntar: A conspiração existiu? Certamente!

Gomes Freire sabia-o, mas não a denunciou, embora não acreditasse nela. Contudo, achava-a necessária e até imperativa. As duas situações são, portanto, semelhantes. Nenhum dos dois se prendeu com questões de forma para fazer o que achava que devia ser feito. Em última análise diremos que ter conhecimento da revolta e não a denunciar é pactuar com ela… A conivência é uma forma de colaboração.

Venho falar de Gomes Freire enquanto Homem, Homem com H grande, como Raul Brandão lhe chama várias vezes, expressão que é o máximo elogio que se lhe pode fazer, a ele ou a outro qualquer homem e especialmente a um militar.


Palavras-chave

Escolhi três palavras-chave, que traduzem sucintamente o desenrolar dos acontecimentos: Revolta, Beresford e Tortura. Vou abordá-las não necessariamente por esta ordem.

A vida de Gomes Freire é uma constante aquisição de experiência e capacidades no campo operacional, completada com a observação e estudo prático e teórico da gestão de grandes meios logísticos e humanos. Quando regressa a Portugal, em 1815, não teria outro oficial capaz de ombrear consigo nestas áreas. Acresce que terá sido chamado a desempenhar funções no âmbito dos assuntos civis e governo militar, nas diversas cidades onde foi representante do poder napoleónico o que lhe concede uma nítida vantagem sobre os seus pares. Era um homem valente, culto, sabedor, experiente, próximo dos soldados e do povo. Seria, por isso, o oficial-general mais completo do seu tempo. Como denominador de todas estas qualidades, uma última: a frontalidade. Uma verdadeira mistura explosiva!

E, por uma questão de personalidade, em choque permanente com os superiores hierárquicos, de mentalidade reduzida e anquilosados pela burocracia, mas sempre prontos a demolir quem se lhes opusesse. As invejas não tardaram a surgir e, sufocadas por algum tempo, explodirão em Tortura, logo que para isso tiverem ocasião.


O Construir da Inveja

A sua vida foi um amontoar de invejas e ressentimentos dos que nunca lhe perdoaram as suas capacidades e o seu voluntarismo. Tendo assentado praça como alferes no Regimento de Infantaria de Peniche (a 9 de Outubro de 1782) começa a sua actividade operacional, incorporado na Marinha. As oito investidas realizadas na baía de Argel (Julho de 1784) sobre o poder naval ali sediado foram muito duras. As barcaças artilhadas com que esse tipo de ataques era feito eram dificilmente manobráveis e os combates realizados a curtas distâncias. Estas circunstâncias marcaram-no, enquanto militar e homem, a par dos múltiplos aspectos da organização da campanha (23 de Junho a 24 de Setembro de 1784) que terá observado em pormenor.

Ao voltar a Portugal, em menos de quatro anos, atinge o posto de sargento-mor do seu Regimento (27 de Abril de 1788). Naquele tempo, o sargento-mor era a terceira figura do regimento e aquelas funções eram desempenhadas por oficiais criteriosamente escolhidos e que, de um modo simplificado poderemos dizer que eram os “comandantes executivos” da unidade. O regulamento do tempo responsabiliza-os, entre diversas funções, pela disposição do regimento para a batalha.

Mas é em 1788, na Guerra da Crimeia, que, verdadeiramente, se forma como militar através da participação em combates violentíssimos, levados a cabo por grandes efectivos, em maus terrenos e sob condições meteorológicas severíssimas. As descrições de Raul Brandão apontam para situações fome e frio, com a soldadesca a viver miseravelmente em barracas de campanha, para não falar do saque da cidade de Oczakov (Dezembro de 1788) defendida por 310 canhões. O número de mortos de ambas as partes atinge várias dezenas de milhar.

Regressado a Portugal, como coronel dos exércitos russos, parte então, (20 de Setembro de 1793) à testa do regimento de que era coronel para a Campanha do Russilhão. As descrições de Raul Brandão sobre esta campanha são verdadeiramente surrealistas e, por outras vias, sabemos que foi uma operação tão inútil quão inconveniente. A logística foi péssima (alimentação, alojamento e higieno-sanitária), quando não falhou e a actividade operacional decorre em condições climáticas muito severas. Os franceses, de invadidos passaram rapidamente a invasores, e a retirada é acompanhada de deserções em massa dos militares espanhóis que se sentem muito felizes cada vez que se rendem. O ambiente entre a oficialidade portuguesa é mau, sem que John Forbes Skellater tenha mão nos seus inferiores. É aí que Gomes Freire cria uma amizade para a vida com António de Sousa Falcão – em horas de perigo e incerteza – e uma inimizade que roça o ódio com Luís Carlos de Clavière e D. Miguel Pereira Forjaz, ajudantes de ordens de João Forbes Skellater. Os ajudantes-de-ordens, normalmente oficiais do estado-maior, eram intermediários entre um comando superior e os comandos inferiores. Transmitiam pessoalmente ordens, observavam a sua execução e a situação da unidade. Conferenciavam com o respectivo comandante e depois reportavam as suas impressões ao comandante que os enviara. Tinham, por isso, grande influência nas decisões que eram tomadas e eram tidos – com razão ou sem ela – como intriguistas e manipuladores da acção do comando a que pertenciam.


Para além de outros indícios claros de desorganização e indisciplina, a situação no comando do Exército Auxiliar Português tornou-se tão insustentável, que Gomes Freire é mandado regressar a Lisboa. Chega mesmo a falar-se da abertura de uma devassa ao comportamento das forças portuguesas no combate de 20 de Novembro de 1794.

É aqui que a inveja começa a desenvolver-se e a sede de vingança desenhar-se para ser servida em doses de tortura, mal a oportunidade surja.

O episódio cómico-bélico denominado Guerra das Laranjas foi mais uma afirmação de Gomes Freire no campo operacional. Era então Quartel-mestre do Exército de Trás-os-Montes, servindo sob as ordens do Marquês de La Rosière, o que atesta a sua capacidade de organizador de forças e gestão de meios logísticos. Ao protagonizar uma acção ofensiva sobre Monterrey, a que hoje poderíamos chamar “golpe-de-mão” torna-se num dos três oficiais que procuraram lutar contra o marasmo que foi a actuação das forças portuguesas. Os outros foram Matias José Dias Azedo (em Campo Maior) e Eusébio de Sousa Soares (em Vila Real de Santo António).

Como militar experiente e bem habilitado nas duas áreas fundamentais para o efeito, Gomes Freire de Andrade expediu opiniões sobre a reorganização do Exército e, por sugestão do Duque de Sussex, acabou por escrever (1806) um livro de mais de 400 páginas no qual expõe um plano para a reorganização do Exército visando evitar os graves inconvenientes sobre a vida das populações motivados pelas levas, pelo serviço militar tão longo e dos graves prejuízos para a agricultura que considera a base da vida do país.

Nesta área, é o trabalho mais completo produzido por um oficial português até então. É proposta uma divisão territorial do país para efeitos defensivos, determinados os principais eixos de aproximação a Portugal e, consequentemente, quais as medidas logísticas, dispositivo a adoptar, de treino regular das unidades, e até uma avaliação em termos financeiros das medidas preconizadas. Este trabalho ter-lhe-á granjeado mais alguns ódios, especialmente porque as I e a III Invasões utilizaram os eixos que havia apontado. É mau ter razão antes de tempo.

À data da I Invasão, Gomes Freire é responsável pela defesa da área de Setúbal, recebendo ordem de Junot para comandar a II Divisão das tropas que marchariam para França. Aguardando um desembarque britânico, (que só surgirá quando a Inglaterra entender que é conveniente) resiste à ordem procurando demorar o encontro com a unidade que iria comandar, mas, ao tentar atravessar a Espanha, a sublevação das populações põe-lhe a vida em perigo. Consegue entrar em França e, a partir da sua apresentação em Paris, a sua vida é um autêntico rosário de colocações, em variadas tarefas que seria óptimo que conseguíssemos detalhar. O período entre 1808 e a sua rendição em Dresden, em 1814, é talvez o mais rico da sua vida, mesmo sendo pobre como Job e não passando de um prisioneiro condecorado e armado. Depois da rendição é conduzido, sob prisão à Hungria, e só regressa a Paris, a 5 de Junho de 1814, perdido da sua Matilde que o procurou num percurso de mais de 2000 Km numa Europa esventrada por muitos anos de guerras de vários tipos e formas. Nunca lhe poupará elogios e ela estará ao seu lado especialmente no momento da captura.

Gomes Freire sabe que não é bem quisto em Lisboa e procura demonstrar, antecipadamente que, a menos que tivesse realizado o milagre de S. António, nunca combatera em Portugal, nem na Península Ibérica. É uma dura batalha a produção do cartapácio (processo, como hoje diríamos) que lhe permitiria fugir à sanha dos procuradores. Mesmo assim, quando regressa a Lisboa, via Londres, em 25 de Maio de 1815, ainda passa pela Torre de Belém por alguns dias.


A revolta existiu… 

Os documentos que constam na devassa mostram que havia uma revolta em movimento. Quando Gomes Freire chega a Lisboa, os franceses tinham saído de Portugal havia cerca de quatro anos, depois de um saque de mais de oito meses. Os afrancesados são perseguidos pelas suas ligações – especialmente ideológicas – ao invasor e a situação social é uma catástrofe.

A descrição de Raul Brandão fala de falta de braços nos campos, recorda que a corte fugiu e já poderia ter voltado, que o tratado de comércio com a Inglaterra põe o país a saque económico, que a reestruturação exército cria mal-estar, embora Beresford tenha “cortado a direito”. Há suspeitas de imoralidade na Igreja, fome nas Beiras e os preços sobem loucamente. O número de órfãos, viúvas e desenraizados é enorme. Um dos conspiradores é coronel, visita de casa de Gomes Freire, casado e com filhos. Há trinta meses que não recebe vencimento. Quem não conspiraria nestas circunstâncias? Para um homem próximo do seu povo e pronto a defender os seus camaradas estão criadas as condições para que, pelo menos feche os olhos à revolta e chefie, se necessário.


A Tortura 

A análise dos factos, ocorridos entre 25 de Maio (domingo) e 18 de Outubro de 1817 (sábado) revela um processo kafkiano. Para além da óbvia condenação, deveria passar por um crivo de tortura bem estreito.

A prisão dos réus ocorre 25 de Maio de 1817, numa operação bem planeada e conduzida, entre a meia-noite e as quatro horas da manhã, sob controlo de oficiais estrangeiros. Beresford chega ao Regimento de Cavalaria de Alcântara pouco antes da meia-noite e à quatro da manhã já está em casa, no Pátio do Saldanha. Verificamos uma demonstração de força materializada pelos efectivos empenhados e ainda por 5 baterias (cada um com 4 peças + 1 obus) prontas e com os murrões acesos, junto do Arsenal do Exército.

Só Gomes Freire é enviado para S. Julião da Barra e mantido incomunicável até à execução.
O lugar onde esteve preso e as condições de vida celular a que foi sujeito nos primeiros dias de prisão confirmam-no.

O processo não observa as regras processuais em vigor nem a jurisprudência existente ao tempo.
Nunca virá a ser acareado com os outros réus que o acusavam, o que seria uma diligência elementar.
É interrogado na cela, apenas na presença de um desembargador e um escrivão.


No âmbito da tortura poderemos acrescentar a assistência médica que lhe é “prestada”, em duas visitas, realizadas a 6 de Julho e 12 de Julho pelo físico-mor do Exército, José Carneiro Barreto, o que seria sinónimo da intenção de um tratamento feito por alguém de créditos clínicos firmados. Os relatórios revelam um agravamento do reumático de que o General sofria e que estaria directamente relacionado com as condições de habitabilidade da cela onde estava preso, assim como com a idade e os sofrimentos da vida em campanha. Gomes Freire queixou-se de indisposição de estômago e […] de incommodo  de ventre que, na opinião do cirurgião, são bem de acreditar pela conspurcação da língua e outros signais. O médico pretendeu combater a indisposição de estômago com um emético (produto que provoca o vómito) e o incommodo de ventre com um catártico (laxante). Queixou-se também de enxaquecas que o médico não valorizou. O médico propõe que seja permitido ao prisioneiro que se barbeie, pois será um primeiro passo para a cura de uma erupção cutânea que o aflige.

Ainda no âmbito da saúde, sabemos que o tenente-coronel Haddock, em serviço na fortaleza, informa Beresford de que Gomes Freire algumas vezes está agitado.

A devassa não observa as regras processuais em vigor, como o advogado dos réus demonstra na sua contestação à sentença. Nega-se-lhe o apelo para o Rei que era um direito que tinha e os documentos que entrega a Archibald Campbell desaparecem e não têm qualquer efeito. É aqui que o réu se compenetra de que vai morrer e desabafa com Campbell.

No âmbito da tortura, encontramos ainda a indicação do método e local de execução designado na sentença.

A sentença foi proferida em cinco dias e os recursos apresentados pelo advogado de defesa prontamente considerados improcedentes, o que, para uma justiça fortemente burocratizada, como a do tempo, é muito suspeito. (17 de Outubro de 1817).

O pouco tempo que mediou entre a condenação dos réus e a execução da sentença. Pode parecer estranha a publicação deste documento, ocorrida já após a execução. Todavia, sabemos que era necessário actuar contra (hum, principalmente) dos réus e secar as veleidades dos que quisessem repetir a aventura.

No dia da execução, Gomes Freire barbeia-se e farda-se a rigor, mas é obrigado e despir a farda e a vestir a alva dos condenados e a humilhação prossegue, enquanto aguarda a execução descalço durante várias horas. O tenente-coronel Haddock dá-lhe uns sapatos para que possa marchar para o patíbulo com certa comodidade. Isso irá valer-lhe aquilo que a que hoje chamaríamos um processo disciplinar que encerra sem consequências. Seria garrotado de acordo com a sentença. Pede para ser fuzilado nos mesmos moldes que o marechal Ney. Acaba enforcado.

Antes tenta despedir-se dos soldados, mas é impedido de se lhes dirigir. São prontamente virados de costas para o patíbulo a fim de não lhes poder transmitir alguma mensagem maçónica, ao mesmo tempo que os frades presentes iniciam um canto religioso em altos berros.

D. Miguel Pereira Forjaz dá ordem pessoal ao Arsenal Régio para o fornecimento do alcatrão a usar na queima do cadáver de Gomes Freire.

Tudo se conjuga para um assassínio premeditado, precedido de tortura.


E a Igreja Católica 

A posição da Igreja Católica não surpreende. Uma ordem de 8 de Junho de 1817, ordena a celebração (a 22 Junho) de um Te Deo de Acção de Graças em todo patriarcado de Lisboa, pela descoberta da conspiração. Haviam passado 15 dias sobre a prisão dos réus e a Igreja já os dá como culpados, chamando-lhes “insensatos, temerários e atrevidos”. A sua hierarquia congratulou-se com a vitória das forças conservadoras na repressão aos subversivos e assim, ganhou em dois tabuleiros: apoiou o poder, o que sempre lhe trouxe dividendos, e ganhou tempo retardando a evolução das ideias na sociedade.

Virá a surgir no processo, sim, mas apenas no que respeita a uma das suas tarefas habituais e que mais ninguém desempenhava: a encomenda das almas dos condenados à morte que, quase de certeza iam parar o céu, considerando que se haviam arrependido e confessado os seus pecados e tinham pouco tempo para pecar...


William Carr Beresford, Marechal-General 

William Beresford (reestrutura o Exército a partir de 15 de Março 1809) é o primeiro a saber da conspiração. É, essencialmente, um militar estrangeiro a quem é dada uma missão. Reestruturado o Exército Português e expulsas as forças francesas de Portugal (Maio de 1811) continua a sua acção, agora procurando levar a Regência a conduzir uma política que fosse favorável aos interesses ingleses. O seu poder foi aumentando por delegação do poder real, nomeadamente depois de cada ida ao Brasil.

Os denunciantes Pedro Pinto de Morais Sarmento, José de Andrade Corvo de Camões (ambos militares) e o bacharel João de Sá Pereira Ferreira Soares, procuram-no na sua casa e descrevem-lhe o que haviam sabido em consequência da denúncia involuntária de um tal António Cabral Calheiros Furtado de Lemos, tenente demitido do Regimento de Infantaria n.º 3. Prova-se durante o processo que está perturbado, mas as suas atitudes conspirativas são tidas como correctas.

Beresford procura conselho (noite de 22 de Maio), reunindo-se, em sua casa, com três funcionários superiores da administração: o Cipriano Ribeiro Freire (Presidente da Junta do Comércio), o Visconde de Santarém e José António de Oliveira Leite de Barros (Desembargador do Paço e Auditor-geral do Exército). Conforme o conselho que lhe é dado, no dia seguinte, procura o Marquês de Borba que se compromete a informar a regência.
Participada a revolta, assegura a captura dos conspiradores numa operação que dura apenas quatro horas, conduzida sob controlo de um número considerável de oficiais estrangeiros. Terminada a operação, publica em Ordem do Dia um louvor à tropa, em 30 de Maio de 1817. Aparentemente uma atitude simpática para como o Exército e a Polícia, mas até que ponto não poderá ser um auto-louvor?
Depois, aparentemente, sai de cena.

Os pedidos de Beresford seguem sempre as vias “hierárquicas” normalmente através do Intendente Geral de Polícia, João de Matos Vasconcelos Barbosa de Magalhães.

Logo em 29 de Maio de 1817, pede (à Regência) que Gomes Freire "tenha aqueles artigos que o seu commodo exigisse” e nomeia Archibald Campbell como responsável pela sua guarda. Naquele tempo, era possível que os criados acompanhassem os senhores durante os seus períodos de prisão. Tal não foi autorizado a Gomes Freire, embora Beresford tivesse estranhado uma tal atitude. Campbell, enquanto governador da Praça, sustenta-o durante os seis primeiros dias de reclusão. Por fim, não podendo melhorar mais as condições de vida do preso, pede para ser substituído, mas Beresford não aceita. Não assiste à execução, embora Gomes Freire tenha pretendido despedir-se dele e agradecer-lhe o seu empenho. Declara-se doente.

Os papéis enviados, por Gomes Freire, para a Regência, são elaborados sob controlo de Campbell e recebidos com autorização do governo. Foram entregues ao Marquês de Borba, Presidente do Governo, mas desapareceram. Tal como Beresford, Archibald Campbell é cuidadoso no contacto com as autoridades portuguesas e procura evitar confrontos com o “desembargador” que promoverá a execução.

A recusa das autoridades em permitir que o preso se barbeasse, apesar das insistências de William Beresford e Archibald Campbell, é prova indirecta de que quem controlava o tratamento que lhe era dado, pretendia causar-lhe toda a dor que lhe fosse possível, porém não o assumindo directamente. Campbell dispôs-se até a assistir à actuação do barbeiro, ou procurou que fossem fornecidas navalhas especiais ao prisioneiro para que se barbeasse. Nenhuma das soluções foi autorizada o que prova que, mesmo na prisão e independentemente da condenação que viesse a receber, Gomes Freire não estava a salvo da intenção da Regência de o torturar e que a ajuda dos britânicos era necessariamente tímida. É provável que esta solução não desagradasse a Beresford. Sabemos que ele e Gomes Freire só viveram simultaneamente em Lisboa durante pouco mais de dois anos, sendo lógico que mal se conhecessem pessoalmente. William Beresford é censurado por querer avistar-se com Gomes Freire o que nunca sucederá.

Amanhã completam-se 200 anos sobre a morte de
Gomes Freire de Andrade

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BIBLIOGRAFIA 

ANDRADE, Gomes Freire de, Ensaio sobre o Methodo de Organisar em Portugal o Exército Relativo à População, Agricultura e Defeza do Paiz, Nova Officina de João Rodrigues Neves, Lisboa, 1806.

BRANDÃO, Raul, Vida e Morte de Gomes Freire, 4.ª edição, Editorial Comunicação, Rua da Misericórdia, 67-2º, 1200 – Lisboa, Janeiro de 1988, Colecção Obras Completas de Raul Brandão, Depósito Legal n.º 20027/88.

FREITAS, Joaquim Ferreira de (o padre Amado), Memória sobre a Conspiração de 1817, vulgarmente chamada Conspiração de Gomes Freire, Escripta e Publicada por hum Português, Amigo da Justiça e da Verdade[1], Impresso em Londres por Ricardo e Artur Taylor e em Lisboa na Impressão Liberal, em 1822. Este último mais completo foi oferecido à Sociedade Martins Sarmento pelo Conde de Vila Pouca (S.L.f-3-72)

[1] - Autoria atribuída por Raul Brandão
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Notas do editor

[*] Vd. postes de:

6 de Outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17829: Agenda cultural (589): Congresso Internacional, dedicado a Gomes Freire de Andrade, na Academia Militar (Campus Amadora), nos dias 11 e 12 de Outubro de 2017, com a uma intervenção a cargo do Cor Art.ª Ref António J. Pereira da Costa
e
8 de outubro de 2017 Guiné 61/74 - P17834: Agenda cultural (590): Bicentenário da morte do general Gomes Freire de Andrade (1757-1817): eventos (António J. Pereira da Costa, cor art ref)

Último poste da série de 22 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17894: Agenda cultural (598): DocLisboa2017: Hoje, às 16h15, no Cinema São Jorge, "Os Cantadores de Paris" (Portugal / França, 2017, 80'), um filme de Tiago Pereira

Guiné 61/74 - P17894: Agenda cultural (598): DocLisboa2017: Hoje, às 16h15, no Cinema São Jorge, "Os Cantadores de Paris" (Portugal / França, 2017, 80'), um filme de Tiago Pereira






Cinema São Jorge - Sala Manoel De Oliveira,
Lisboa


Os Cantadores de Paris 

Tiago Pereira | 2017 | Portugal, França, 80’

“Como é cantar uma cultura que não se conhece? 

Três portugueses, uma italiana, uma alemã e seis franceses formam o grupo Cantadores de Paris, dedicado ao cante alentejano. 

Trazemos elementos do grupo a Serpa para os cruzar com os grupos locais.”  (Tiago Pereira )

Projecções:

22 OUT / 16.15, Cinema São Jorge – Sala M. Oliveira

28 OUT / 16.15, Cinema São Jorge – Sala M. Oliveira


Vd. aqui "trailer" do flme > Sinopse:

"A música portuguesa a gostar dela própria2 apresenta um filme de Tiago Pereira

Em Paris criou-se um grupo de Cante Alentejano formado por pessoas de várias proveniências.
O cante Alentejano tem uma coisa incrível que é o seu lado de confessionário, os homens másculos, bem constituídos cantam sobre as flores e os passarinhos e as mulheres quando não imitam os motes dos homens cantam segredos femininos e lamentam-se por estar casadas, as pessoas usam o cante como escape do que de outra forma não seria bem visto em sociedade. Isto é uma análise possível, a minha neste caso. 

O documentário quer-se nesse tom de confissão, não é uma reportagem, o que importa é mostrar não é narrar, não é um filme de entrevistas, os interpretes usam a câmera como espelho, como algo que está lá no camarim ou na rua e falam com ela, podem-se vestir ou pintar em frente a ela mas também usá-la como confessionário, confessam-se, falam dos seus medos, da dificuldade do cantar em português, do que o cante os faz pensar e sentir."

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Nota do editor:

Último poste da série > 21 de outubro de  2017 > Guiné 61/74 - P17891: Agenda cultural (597): DocLisboa2017, de 19 a 29 de outubro: destaque para dois filmes sobre a África Lusófona, um realizado na Guiné-Bissau ("Spell Reel", de Filipa César, 96') e outro em São Tomé e Príncipe ("O Canto do Ossobó", 99')

Guiné 61/74 - P17893: Blogpoesia (534): "O que vejo da minha janela..."; "Os vira-casacas" e "O Tratado da Insolência", poemas de J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) três belíssimos poemas, da sua autoria, enviados entre outros, durante a semana, ao nosso blogue, que publicamos com prazer:

 
O que vejo da minha janela…

Não é o mundo inteiro que eu vejo da minha janela.
Linda. Rica ou feia é só uma parte minúscula.
Só dela não retiro a ideia global do que seja o mundo.
É preciso saltar para fora e longe.
Ver o novo e o diferente.
Trazer para dentro e reflectir.
Retirar o bom. Extirpar o mau.
Enriquecer a ideia e a visão das coisas.
Melhorar. Avançar depois.
Novas etapas. Crescer.
Não ficar igual. O que é mais pobre…

Berlim, 17 de Outubro de 2017
17h9m
Jlmg

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Os vira-casacas

Eu era miúdo. Nos tempos pós-guerra.
Eram de fome.
De vez em quando, chegava um freguês:
-Ó Quinzinho. Pode virar-me este fato?
Meu Pai saudoso, era alfaiate, o estendia na mesa, examinava.
- Sim senhor.
Pode vir buscá-lo p’rà semana.
Os tempos passaram.
A guerra amainou.
Mudou-se a fome.
Agora é de vergonha.
Dum dia para o outro, a toque dos ventos,
Se vira a casaca,
Tudo em casa.
Nem precisa alfaiate…

Berlim, 22 de Outubro de 2017
9h19m

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O Tratado da Insolência

Anda por aí um livro de grande tiragem, denominado
– Tratado da Insolência -.
Foi adoptado como livro base, de formação política, por aquela ala de políticos baixos,
Que a utiliza como escada na vida.
Em vez da escola.
É o vale tudo. Acabou-se a Ética.
Para derrubar o adversário.
E lhe ocupar a cadeira.
Tudo serve.
- Mentir? O mais que se puder.
- Ofender? Que mal é que tem?
É o bota-abaixo, de qualquer jeito.
- Assumir as culpas próprias e responsabilidades? Que estupidez! Nem pensar nisso.
- Imputá-las aos outros. Assim é que é.
Se quer ser insolente… deve comprá-lo.
Ficará mestre!...
Mas, por favor, emigre para bem longe…
noutro planeta que não a Terra.

Berlim, 20 de Outubro de 2017
5h10m
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de 15 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17863: Blogpoesia (533): "São verdes e negras..."; "Mais um pouco..." e "Língua materna", poemas de J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P17892: Fotos de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74, que está a preparar a edição de um terceiro livro, memorialístico, "Em Nome da Patria"



Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BART 6520/72 (1972/74) > "Beleza das mães [. biafadas,] de há 44 anos... Reparem na perna e braço do bebé"...



Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BART 6520/72 (1972/74) > Malta do 1.º pelotão, à civil...



Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BART 6520/72 (1972/74) > "A espectacular equipa dos 'Serrotes de Fulacunda' que só perdia quando eu jogava. Tinham de me deixar jogar porque eu era o cantineiro. O autor {o segundo a contar da esquerda, na primeira fila,] é, naturalmente, o "dono da bola"...


Amarante > José Claudino da Silva >  s/d > Bate-chapas, "self-made man" ou "homem que se fez a si próprio", escritor, com dois livros publicados (um de poesia e outro de ficção). Está a elaborar um terceiro com as cartas que foi trocando com a futura esposa.

Fotos (e legendas): © José Claudino da Silva (2017), Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Fotos do álbum de José Claudino da Silva:

(i) natural de Penafiel;

(ii) residente em Amarante;

(iii) bate-chapas, reformado;

(iv) ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART /BART 6520 / 72, Fulacunda, 1972/74;  (*)

(v) "self made man" ou "homem que se fez a si próprio", escritor, é autor de dois livros, um de poesia (2007) e outro de ficção (2016), estando a finalizar um terceiro ("Em nome da Pátria"), de que iremos pré-publicar alguns excertos, com a devida autorização do nosso camarada;

(vi) membro nº 756 da nossa Tabanca Grande. (**)
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