quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P17944: O cancioneiro da nossa guerra (2): três letras do Edmundo Santos, ex-fur mil, CART 2519, Os Morcegos de Mampatá (Buba, Aldeia Formosa e Mampatá, 1969/71): (i) Os Morcegos; (ii) Estou farto deles, tirem-me daqui; (iii) Fado da Metralha


CART 2519, Os Morcegos de Mampatá (Buba, Aldeia Formosa e Mampatá, 1969/71) > A bordo do T/T Uíge que levou o pessoal até Bissau, em maio de 1969, : o Edmundo Santos, à esquerda, e o Mário Pinto, à direita.  Foto do álbum do Mário Pinto, reproduzido aqui com a devida vénia.

Foto: © Mário Pinto (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1. Continuamos a reunir as peças, dispersas pelo blogue, do "cancioneiro da nossa guerra"... De facto,  são já algumas dezenas, entre quadras ao gosto popular,  sonetos, versos decassílabos parodiando os "Lusíadas", textos poéticos livres, poemas, hinos, letras de canções, baladas, fados, etc. (*)

No essencial,  são letras produzidas ao longo da guerra (1961/74), mas também no pós-guerra... e nalguns casos, muito depois do nosso regresso.  Nem todas têm autoria, mas em quase todas elas há um "sentido coletivo", ou procuram interpretar um "sentir coletivo", centrando-se o seu conteúdo nas peripécias da tropa e na guerra, e tendo por cenário a Guiné.

Nem todos estes textos poéticos eram canções (como o "Cancioneiro do Niassa", por exemplo). Uns tinham (ou poderiam ter tido) suporte musical, outros não. Preocupámo-nos sobretudo com a recolha das letras que corriam o risco, isso, sim, de se perderem para sempre... Num caso ou noutro, conseguimos identificar a música que lhe estava associada (, em geral, era parodiada, como acontecia com o "Cancioneiro do Niassa").

Este material poética, independentemente da sua qualidade literária, tem interesse documental, tem um matriz socioantropológica, fala de nós, das nossas vidas na Guiné, fala de uma geração anónima, esquecida, mal tratada, fala de lugares perdidos e achados,  de topónimos estranhos, fala inevitavelmente da trilogia "sangue, suor e lágrimas", fala inevitavelmente da fome e da sede que passámos, mas também fala de coragem, de camaradagem, de saudade, etc.

Continuamos a apelar aos nossos leitores para continuarem a alimentar esta série. Acreditamos que há ainda muitas "canções e outros poemas de guerra" esquecidos no "baú da memória" dos ex-combatentes que fizeram a guerra da Guiné (1961/74)... É trabalho para nós, mas também para os nosso filhos e netos... que, com o gravador de som do telemóvel podem registar letras e músicas que os seus pais e avós ainda se lembram dos tempos da Guiné.

As referências a este tópico já são muitas, no nosso blogue, para cima mesmo de uma centena.


2. Hoje temos o gosto de vos apresentar, pela mão do nosso grã-tabanqueiro Mário Pinto, alguns letras do Edmundo Santos que ficarão para sempre associadas ao "cancioneiro de Mampatá"... 

O Edmundo irá abrir o caminho a outros camaradas, com engenho, jeito, arte e talento para a escrita poética como será o caso do nosso Zé Manuel Lopes, mais conhecido pelo seu pseudónimo literário, Josema.  [O José Manuel de Melo Alves Lopes, ex-fur mil, CART 6250/72, "Os Unidos de Mampatá, Mampatá, 1972/74, é natural da Régua.]

O Mário Pinto e o Edmundo Santos, por sua vez,  eram ambos furriéis da CART 2519, Os Morcegos de Mampatá (Buba, Aldeia Formosa e Mampatá, 1969/71).

Sobre o poeta, e seu camarada, Edmundo Santos escreveu, em 1 de agosto de 2009,  o Mário [Gaulter Rodrigues] Pinto, na página que ele próprio criou, "CART 2519, Os Morcegos de Mampatá"

(...) "Gostaria de falar do nosso camarada e amigo fu mil  Edmundo [Santos],  do 2.º Grupo de Combate, figura controversa da nossa Companhia.

O Edmundo era natural de Lisboa, do antigo bairro da Picheleira,  oriundo de uma família operária e trabalhadora, pois seu Pai era da CARRIS. Cresceu e aprendeu a contestar o regime vigente, como talvez nenhum de nós o pensasse, fruto da sua educação familiar. Por isso era contestatário permanente mas de uma alma grandiosa (, do tipo despir a camisa para dar ao seu amigo). Por o Edmundo ser o único furriel desponível do 2.º Gr Comb, eu algumas vezes nele fui integrado e vi muitas vezes o seu estado de espírito quanto ao conflito.

O Edmundo tinha sido meu contemporanio na EPA [, Escola Prática de Artilharia,]  e por isso convivímos assiduamente. Quem não se lembra dos seus versos e fados que todos nós,  bem ou mal cantarolávamos nos nossos momentos de ócio:  "De pica na mão lá vai a maralha", o fado da "Metralha" ou o "Adeus, Aldeia", versos e fados da sua autoria, são pecúlios que ficarão sempre na nossa memória." (...)



Cuiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 2519 (1969/71) > Resultado da explosão de uma mina A/C... Apesar da má qualidade da imagem, vê-se do lado direito a viatura sinistrada, uma GMC, e do lado esquerdo um corpo no chão.



Cuiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 2519 (1969/71) > O pesadelo dos fornilhos e das minas anticarro (A/C) e anti-pessoal (A/P), colocadas nas picadas, nos trilhos, nas bermas da estrada... Daí a importância  (e o stresse) da "picagem" do terreno, que era efetuada por uma secção de "picadores" ou "picas" (vocábulo, subs. masc.,  que ainda não vem grafado nos nossos dicionários, com esta aceção, sinómimo de picador, tal como não vem agrafado o vocábulo "pica", subs. fem, que designava a vara que terminava, com um prego ou ponta de aço, e que servia justamente para "picar" o terreno e detetar minas e fornilhos)


Fotos: © Mário Pinto (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].



3. Segundo a ficha da unidade, a CART 2519 era uma companhia independente, mobilizada pelo RAL 3, partiu para o CTIG em 7 de maio de 1969 e regressou em 17 de março de 1971. Esteve sediada em Mampatá, e o seu único comandante foi o cap art Jacinto Manuel Barrelas.

Recorde-se por outro lado o que o Mário Pinto,o cronista da CART 2519, escreveu sobre a missão da sua companhia, em Mampatá: 

"A CArt 2519 a que eu pertencia quando se instalou em Mampatá , por volta do fim de agosto de 1969, depois da construção da estrada Buba-Aldeia Formosa, de má memória, recebeu como missão interceptar as colunas do PAIGC no corredor de Missirá que se deslocavam de sul para norte via Nhacobá-Uane-Xitole. Para cumprimento desta missão todos os dias um Grupo de Combate reforçado fazia emboscada no dito corredor em quanto outro Gr Comb patrulhava as imediações perto do corredor."(...).

As companhias do "mato", independentes, metropolitanas ou africanas, adidas aos batalhões ou aos comandos de agrupamento operacional (CAOP, COP), erm "usadas e abusadas" por "eles",  os "senhores da guerra", os oficiais superiores... E muitas eram "sobrecarregadas", em termos de atividade operacional, por compração com as unidades de quadrícula que faziam parte dos batalhões... Em suma, havia filhos e enteados...

Np CTIG, no "mato", o ambiente operacional era de de grande tensão, levando ao fim de meses, à exaustão física e emocional,  e isso está bem retratado nestas três etras do Edmundo Santos que o Mário Pinto recolheu e publicou na sua página e, depois, foram reproduzidos, com a devida vénia no nosso blogue (**).

Espero que ainda haja mais letras destas no "baú" do Edmundo, Santos que, para surpresa minha, se revela um poeta talentoso, com recursos estlílisticos acima da média, sabendo fazer bom uso do humor, da ironia, do sarcasmo... Constou-me que ele continua a fazer poesia, vou ver se lhe telefono e o convido, pessoalmente, para integrar a nossa Tabanca Grande, dando-nos assim a honra de sentar  à sombra do nosso simbólico e sagrado poilão!

Seria interessante também saber, junto do Mário Pinto, que músicas (de canções, baladas ou fados da época) acompanhavam estas letras... Como ele recorda, "eram versos e fados que todos nós, bem ou mal,  cantarolávamos nos nossos momentos de ócio"... O cantar, em grupo, e geralmente de copo na mão, na caserna dos soldados ou nos bar de sargentos (, locais que em geral os oficiais, mesmos os milicianos, não frequentavam fora das "horas de serviço"), ajudava a exorcizar os nossos fantasmas, a "desopilar", a aliviar a tensão...Como diz o povo, "quem canta, seu mal espanta"...

Os ventos (da contestação, da revolta e de esperança) que começavam a soprar na metrópole, com a chamada "primavera marcelista", também chegam à Guiné...a avaliar pela forma e conteúdo destas letras do Edmundo Santos. (LG)

PS - Já falei com o Edmundo Santos, que vive em Lisboa, e que aceitou o meu convite para integrar a nossa Tabanca Grande, Ficou de me dizer, por mail, que músicas de fado eram cantadas com estes versos (em geral, em festas de anos da rapaziada...). Vai-me mandar também mais algumas letras que escreveu mais recentemente, sobre os tempos de Guiné, e que não chegaram a  ser cantadas, com acompanhamento de guitarra e viola, como estava previsto, num dos últimos encontros do pessoal da CART 2519, em 2013,  em Benavente. 


OS MORCEGOS

por Edmundo Santos



Aqui não temos parança,
andamos sempre a alinhar,
uns a fazer segurança
e outros a patrulhar.
Só nos resta a esperança
de um dia poder voltar.

Ai!, uma vida pior
do que esta não há,
chamamo-nos os 
Morcegos,
mas ai, vejam lá,
a malta só nos conhece
pelos 
Coirões de Mampatá.

Todos os dias há saídas,
com o perigo sempre a rondar,
são poucas as alegrias
e muito para contar,
não há lugar p'ra sossego,
é a vida de um 
Morcego.

Fonte: CART 2518 Os Morcegos de Mampatá > 29/9/2011


ESTOU FARTO DELES, TIREM-ME DAQUI!

por Edmundo Santos


Tenho corrido 
manga de estradas,
que em tão má hora eu conheci,
tenho caído em emboscadas,
estou farto deles, tirem-me daqui!

Noites no mato,  debaixo de água,
são realidades que eu já vivi,
tenho a alma cheia de mágoa,
estou farto deles, tirem-me daqui!

Muita fominha tenho passado,
por causa dela me ressenti,
tenho o corpito todo enfezado,
estou farto deles, tirem-me daqui!


Fonte: CART 2518 Os Morcegos de Mampatá >  28/9/2009


FADO DA METRALHA

por Edmundo Santos



De pica na mão,
lá ia a maralha
com toda a metralha,
de olhos no chão;
para não haver falha,
piquem bem o trilho,
tomem atenção;
sou de opinião
que, se houver fornilho,
ai que Deus nos valha!

E, naquela estrada,
junto ao cruzamento,
as dores que me deste,
mais uma emboscada,
no meu pensamento,
nessa mata agreste
e os bombardeiros,
fiéis companheiros,
em qualquer momento
iam atacando
e 
turras matando,
sem dó nem lamento.

Adeus, Mampatá,
quero-te esquecer,
fizeste sofrer
quem andou por cá,
pronto a combater,
ó maldita terra
onde nada há,
e digo-te já
que toda esta guerra
foi dura a valer.


Fonte: CART 2518 Os Morcegos de Mampatá > 25/9/2009

[ Revisão / fixação de texto: L.G.]

terça-feira, 7 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P17943: Notícias (extravagantes) de uma Volta ao Mundo em 100 dias (António Graça de Abreu) - Parte XV: Pago Pago, capital da Samoa Americana, Polinésia, 15/10/2016



Pago Pago, Samoa Americana, Polinésia, 15 de outubro de 2016


Texto, fotos e legendas: © António Graça de Abreu (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Parte XV (Segundo volume, pp. 16-19)

1. Continuação da publicação das crónicas da "viagem à volta ao mundo em 100 dias", do nosso camarada António Graça de Abreu, escritor, poeta, sinólogo, ex-alf mil SGE, CAOP 1 [Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74], membro sénior da nossa Tabanca Grande, e ativo colaborador do nosso blogue com cerca de 200 referências.

É casado com a médica chinesa Hai Yuan e tem dois filhos, João e Pedro. Vive no concelho de Cascais. 
Neste cruzeiro à volta do mundo, o nosso camarada e a sua esposa partiram do porto de Barcelona em 1 de setembro de 2016. Três semanas depois o navio italiano "Costa Luminosa", com quase três centenas de metros de comprimento,  sair do Mediterrâneo e atravessar o Atlântico, estava no Pacífico, e mais concretamente no Oceano Pacífico, na Costa Rica (21/9/2016) e na Guatemala (24/9/2017), e depois no México (26/9/2017).

Na II etapa da "viagem de volta ao mundo em 100 dias", com um mês de cruzeiro (a primeira parte terá sido "a menos interessante", diz-nos o escritor), o "Costa Luminosa" chega aos EUA, à costa da Califórnia: San Diego e San Pedro (30/9/2016), Long Beach (1/10/2016), Los Angeles (30/9/2016) e São Francisco (3/4/10/2017). No dia 9, está em Honolulu, Hawai, território norte-americano. Navega agora em pleno Oceano Pacífico, a caminho da Polinésia, onde há algumas das mais belas ilhas do mundo.

Um mês e meio do início do cruzeiro, em Barcelona, o "Costa Luminosa" atraca no porto de Pago Pago, capital da Samoa Americana, ilha de Tutuila, Polinésia, em 15/10/2016.


Pago Pago, Samoa Americana, Polinésia


Festa rija na chegada ao porto de Pago Pago, o centro político, a capital da Samoa Americana, na ilha de Tutuila, na Polinésia. Há eleições neste pequeno território constituído por cinco ilhas vulcânicas e dois atóis. Hoje temos comício e grandes manifestações de apoio aos dois senhores, Lolo e Lemanu, que pretendem ascender aos cargos de governador e vice-governador da Samoa. Centenas e centenas de militantes da causa dos candidatos estendem-se pelos passeios e por ambas as bermas da avenida principal, ao longo de mais de um quilómetro, junto aos edifícios públicos, às agências bancárias, aos restaurantes, ao mar, com trajes garridos, camisas e saias – uma espécie de sarong que os homens também usam –,  em azul vivo, vermelhão, verde forte, castanho e amarelo canário. Muitos empunham cartazes, ou usam t-shirts com o nome e fotografia dos homens a eleger para governar a ilha, e têm uma boa palavra de ordem “people first”. Carros com aparelhagens montadas nos porta-bagagens, de porta traseira levantada, mais duas instalações fixas nos jardins ao longo da avenida, debitam monumentais decibéis com música da terra e palavras de apoio aos candidatos. Uma grande festa, com as pessoas gordinhas e bem dispostas, saudando os carros que passam lentamente devido ao engarrafamento provocado pela curiosidade de quem conduz e pelo estreitar da avenida, cheia de gente.

Noventa e seis por cento da população da ilha são autóctones, com o seu idioma próprio, aparentado com outros dialectos polinésios. A Samoa depende politicamente dos Estados Unidos da América desde finais do século XIX, quando os norte-americanos estenderam o seu domínio a estas longínquas paragens, dado o interesse estratégico das ilhas. Aqui em Tutuila, construíram uma série de instalações militares de extrema utilidade durante a II Guerra Mundial no apoio às esquadras do Pacífico, na luta anti-japonesa.

Na outra Samoa independente, aqui ao lado, viveu, entre 1890 e 1894, o escocês Robert Louis Stevenson, o autor da “Ilha do Tesouro”, livro que encantou a meninice de muitas gerações de rapazes, como eu, que se imaginavam sulcando as águas do Pacífico com um misterioso mapa na mão, buscando um fabuloso tesouro escondido numa estranha ilha perdida no mar.

Apanhei um autocarro público e parti, não à procura de um tesouro – já estarão todos descobertos!–, mas de uma praia acolhedora e limpa. Curiosos estes jipões, já quase todos velhíssimos, transformados em autocarros que circulam pela ilha. Têm a caixa atrás adaptada com um habitáculo em madeira, onde foram montados dez ou doze lugares. Circundando a baía de Pago Pago, viajei até ao fim da linha com descida numa aldeia chamada Ana. Quinhentos metros mais à frente havia uma praia pequenina, meia escondida, vazia de gente, sombreada por uns tantos coqueiros (cuidado que pode sempre cair um coco, bem pesado, em cima das nossas cabeças), mais o mar azul, uma leve ondulação e um calor tropical. Vamos ao banho. Água quentíssima como só me recordo de ter encontrado há anos atrás num verão com um mar quase a ferver na ilha de Djerba, Tunísia.

Mas nem tudo é perfeito neste lugar. Há vidros de garrafas espalhados pela areia da praia. Uns quaisquer energúmenos devem ter vindo para aqui beber umas cervejolas e, já toldados pelos perfumes do malte, pelas espirais do álcool, ter-se-ão entretido a partir as garrafas vazias e a deixar os vidros na praia. 

O mar também tem um problema. Entramos, avançamos uns dez metros pela areia fina, logo depois começam as pedras e os corais, submersos, quase à tona da água. Não dá para nadar muito e alguns corais podem cortar os pés e ser venenosos. E existe a possibilidade de encontrarmos mosquitos, não os vemos, não parecem ser muitos, mas quem nos garante que não apareça por aí uma mosca travestida de zika capaz de nos espetar, tropicalmente, o ferrão na pele fofa e de nos injectar o vírus que nos deixará abananados durante meses? Também podemos ser atacados por tubarões. Não será mais seguro, e mais barato, trocar o paradisíaco destas enseadas em ilhas no meio do Oceano Pacífico, por uma bonita praia fluvial nos nossos Zêzere ou Mondego, ou por uma praia atlântica a sério, em Porto Covo ou na Fuzeta? Estou a comparar o quê? A Polinésia tem algumas das ilhas mais bonitas do mundo.

Regressei a Pago Pago. A festa da campanha eleitoral continuava. Um cidadão integrado no cortejo eleitoral diz-me: Thank you for coming!... As pessoas destas ilhas vivem tão sozinhas, tão longe de tudo que saúdam com simpatia o estrangeiro que as visita. São Francisco, a pátria americana, fica a 7.700 kms de distância, o Hawai, habitado também por polinésios aparentados com os samoanos, situa-se a 4.700 kms, a Austrália, a 4.000 kms, a Nova Zelândia, a 2.900, as ilhas Fiji, a 1.200, o Tahiti a 2.400. Portugal está quase nos antípodas, a cerca de 20.000 quilómetros.

(Continua)

Guiné 61/74 - P17942: In Memoriam (308): Nelson Batalha (1948-2017), um dos 15 "ilustres TSF" do meu curso, meu padrinho de casamento, meu grande amigo e camarada... Natural de Setúbal, ferido em Catió, e depois de 10 anos a lutar contra o Alzheimer, acaba de cambar o Rio Caronte... A título póstumo, passa a integrar a nossa Tabanca Grande, sob o lugar nº 759 (Hélder Sousa, régulo da Tabanca de Setúbal)



Foto nº 1 > Setúbal > Encontro dos "Ilustres TSF" > 2009 > Nelson Batalha (à direita) , com José Fanha (, à esquerda)


Foto nº 2 > Nelson Batalha (à direita): em Bissau, no Pelicano, provavelmente em finais de 1971, em que estou com ele e com o Fernando Roque (ao centro)...


Foto nº 3 > Nelson Batalha: no Hospital de Setúbal, num dos últimos internamentos. [Registe-se o gesto de grande ternura da  esposa  Maria José.  O casal tem dois filhos, um rapaz e uma rapariga.]

Fotos (e legendas): © Hélder Sousa (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Mensagem do nosso colaborador permanente, amigo e camarada Hélder Valério de Sousa (ex-fur mil trms TSF, Piche e Bissau, 1970/72; régulo da Tabanca de Setúbal):


Data: 6 de novembro de 2017 às 18:38

Assunto: Falecimento do nosso "camarada da Guiné" Nelson Batalha


Caros amigos e camaradas:

Caso entendam que este mail 'tem cabimento', façam o favor de o utilizar.

Sei que o "nosso Blogue" não pode, nem deve, ser um repositório de aniversários e obituários. Também não sou um "datista", daqueles que vivem obsecados pelas datas das efemérides e dos seus acontecimentos pessoais.

Mas, e há sempre um "mas", por estas alturas "elas", as datas, vêm ter comigo e nessa ocasião vêm as recordações.

Em 26 de Outubro passado ocorreu a data "oficial" da minha partida para a Guiné. Por razões que já por aqui contei, o barco, o cargueiro Ambrizete, nesse dia dos 'adeuses' às famílias,  fez-se ao largo da baía de Cascais para, segundo a terminologia que ouvi e recordo, "fazer agulhas" e regressou a Lisboa para reparações.

Por tal motivo a real data da partida foi a 3 de Novembro, depois das 22:00. A chegada a Bissau foi no dia 9 de Novembro, manhã cedo. A partida definitiva da Guiné foi a 10 de Novembro, dois anos depois.

Mesmo que não queira, estas datas estão tão próximas que quando uma delas surge as outras vêm por arrasto.

Mas este ano há um novo elemento a registar. Exactamente uma semana antes, a 19 de Outubro, faleceu um dos meus camaradas de Curso de TSF, a cujo conjunto de elementos costumamos auto-designarmos por "Ilustres TSF".

Trata-se do Fur Mil TSF Nelson Batalha, meu companheiro, conjuntamente com o Manuel Martinho, dessa viagem que costumamos também por designar "o cruzeiro das nossas vidas".

O Batalha, portanto também "nosso camarada da Guiné",  esteve em Catió, para onde foi depois de jogar às moedas comigo para ver quem ia para Catió ou para Piche. Em Catió foi ferido [, com um estilhaço de canhão s/r] num ataque que ocorreu em 14 de Abril de 1971 e evacuado para o HM de Bissau. Depois disso foi para a "Escuta" para onde também fui um mês mais tarde, conjuntamente com outros "Ilustres" e onde desempenhámos as nossas funções até ao final da comissão.

O Batalha é meu padrinho de casamento [e a esposa, Maria José, a madrinha].

Desde já há bastante tempo que a sua saúde e o 'discernimento' se vinham a deteriorar.

Ainda o levei a um dos nosso primeiros Encontros [Pombal, 28 de abril de 2007]a ver se o animava e se o "estar com malta daquele tempo" o ajudava, mas a verdade é que o seu estado se foi agravando,  sendo que nos últimos dois anos já os passou internado num Lar da Santa Casa da Misericórdia, em Setúbal, com intermitentes passagens pelo Hospital.

Finalmente encontrou descanso.

Cada vez que o ia visitar ao Lar vinha de lá cada vez mais constrangido.  Em grande parte pela impotência para poder fazer o que quer que fosse para tentar reverter aquela situação e também por verificar a inevitabilidade dum desfecho que acabou por ocorrer em sofrimento.

Dos 15 jovens que em finais de Setembro, depois das respectivas recrutas na 3ª incorporação no 1º Ciclo do CSM, se apresentaram no então BT em Lisboa para fazer o 2º Ciclo do CSM na especialidade de TSF, 3 deles já 'fizeram a travessia de Caronte': 

(i) foi o Luís Dutra, na sequência de problemas pulmonares, ao que parece motivado pelo tabaco;

(ii) foi o António Calmeiro (*), após várias 'batalhas' com uns bichinhos que às vezes lhes chamam de metástases;

(iii) foi agora o Nelson Batalha na sequência de um processo degenerativo e de "Alhzeimer".


O curioso é que todos eles estiveram na Guiné. E tendo em conta que dos tais 15 do Curso ficaram por cá 2 e foram mobilizados 13, sendo que 7, portanto mais de 50%, foram para a Guiné, isso dá que pensar.... 

Meus amigos, façam o favor de viver com alegria os tempos que nos restam pois bem sabemos que a 'nossa vez' está para chegar.e cada vez mais próxima.

Hélder Sousa

PS - Envio três fotos de grupo com o Nelson Batalha: (i)  no Encontro em Setúbal, em 2009, com José Fanha; (ii) em Bissau, no Pelicano, provavelmente em finais de 1971, em que estou com ele e com Fernando Roque;  (iii) no Hospital de Setúbal, num dos últimos internamentos.


Pombal > Restaurante "O Manjar do Marquês" > 28 de abril de 2007 > II Encontro Nacional da Tabanca Grande > Nesta foto (parcial, do Grupo), o nosso camarada Nelson Batalha está assinalado com a elipse encarnada. (A amarelo e a verde, respetivamente, aparecem dois representantes da CCAÇ 2402/ BCAÇ 2851 (1968/70), o Raul Albino e o Maurício Esparteiro)... Outros grã-tabanqueiros são facilmente reconhecidos. Fo o único encontro da Tabanca Grande em que compareceu o Nelson Batalha (1948-2017), e já com os primeiros indícios da doença que o há-de vitimar.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2007). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Viseu > VII Encontro dos "Ilustres TSF" > 20 de abril de 2016 (**) > O Nelson Batalha terá ido aos dois primeiros encontros da... Tabanca de Setúbal.


Viseu  > VII Encontro dos "Ilustres TSF" >  20 de Abril de 2016 > No "Bar de Gelo", por ser talvez mais difícil reconhecer as personagens, temos, da esquerda para a direita. M. Martins, E. Pinto, J. Reis, H. Sousa, M. Rodrigues, C. Lã, F. Cruz, J. Fanha e F. Marques. (O Nelson Batalha também já não pôde comparecer, por razões de saúde). (**)

 

Porto > Ribeira > 27 de maio de 2015 > VI Encontro dos "Ilustres TAF" > Em baixo o C. Lã. De pé, da esquerda para a direita: A. Calmeiro (já entretanto falecido), M. Rodrigues, E. Pinto, J. Reis, H. Sousa, M. Martins, F. Cruz, e F. Marques. (O Nelson Batalha  já não compareceu por razões de saúde...). (**)


Foto (e legenda): © Hélder Sousa (2016). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

2. Comentário do editor:

Meu caro Hélder, a estatística da morte é (e sempre foi) para nós muito pesada, ontem, no teatro de operações da Guiné, e hoje, já  aos km 60/70/80 da picada da vida...

No caso dos 15 "ilustres TSF" do teu curso do 2º Ciclo do CSM, três "baixas mortais" representam 20% do total... Depois do Dutra e do Calmeiro, chega agora a triste notícia da morte do Nelson Batalha, depois de mais de uma dezena de anos de doença crónica degenerativa (*).

Vejo a tua impotência, a tua desolação, a tua dor que, desde há muito, partilhavas connosco, sempre que falavas do Nelson Batalha(*)... Finalmemnte, ele fez a cambança do Rio Caronte... que os vivos não podem atravessar nos dois sentidos (para a mitologia grega, só os heróis, "mais do que homens, menos que deuses", tinham o privilégio de poder "cambar", para lá e para cá...)-

Estamos contigo, com a família (, a esposa Maria José, os dois filhos, um dos quais, o rapaz, a viver na Holanda) , os amigos e os camaradas do Nelson. E o Nelson  não vai ficar na "vala comum do esquecimento", vai ficar connosco, sob o simbólico e sagrado poilão da nossa Tabanca Grande. Temos um lugar para ele,o nº 759.

Ele e tu e os "ilustres TSF" que ainda estão vivos bem o mereceis. E o Nelson, que foi ferido na Guiné, em Catió. e lutou na fase final  da sua vida contra o Alzheimer, bem o merece: não é o Panteão Nacional, bem sabes, é bem melhor, muito melhor, é a nossa Tabanca Grande, acolhedora, quente e fraterna, onde estão os amigos e camaradas da Guiné e o repositório das suas memórias. (***)

____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 5 de agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3112: História de vida (13): O meu amigo Nelson Batalha (Helder Sousa)

(...) Acontece que este meu amigo não tem passado muito bem (acho que é vulgar dizer-se isso sobre quem esteve em teatro de guerra...), tem problemas de alzheimer (ainda não muito desenvolvidos) e nunca recuperou bem depois de ter acabado a sua profissão (era Despachante Alfandegário), sendo que da guerra da Guiné ainda guarda no corpo alguns estilhaços que foram absorvidos pela massa muscular, estilhaços esses adquiridos em Catió aquando do ataque a esse aquartelamento/povoação em Abril de 1971 (salvo erro a 13 ou 14).

Isto vem a propósito do seu aniversário, que foi no passado dia 15 de Junho, e que mais uma vez me deixou um pouco deprimido pela impotência que sinto em não o poder ajudar mais. (...)


(**) Vd. poste de 7 de maio de  2016 > Guiné 63/74 - P16062: Convívios (740): VII Encontro de Os Ilustres TSF, ocorrido no passado dia 20 de Abril em Viseu (Hélder V. Sousa, ex-Fur Mil TRMS TSF)

(...) Não sei dizer como, quando e quem começou a chamar "Ilustres TSF" aos jovens a quem,  depois de fazerem o 1.º Ciclo do CSM no 3.º Turno de incorporação em 1969, lhes calhou em sorte essa especialidade (TSF), tirada a partir do final de Setembro desse ano no então BT à Graça/Sapadores, em Lisboa.

Isso agora não importa, o que para o caso deve ser notado é que esse grupo foi constituído por 15 'jovens mancebos', de locais muito dispersos do País e que hoje ainda persistem em manter os laços, fortes e indestrutíveis, que então os uniu e que os motiva a procurar materializar estes Encontros.

Acontece que os problemas de saúde também vêm atormentando os seus membros. Dos 15, tanto no 6.º Encontro no ano passado, no Porto, como no 7.º Encontro, este ano recentemente ocorrido em Viseu, foram 9 os presentes.

Um já faleceu (vítima de doença 'incurável'...), um outro anda travando batalhas sucessivas com uns 'bichinhos' desse tipo, outro (meu padrinho) está incapaz de se juntar a nós com problemas originados pelo "senhor alemão", outros têm outros tipos de problemas, pelo que a consciência que temos vindo a tomar de que é imprescindível manter esta chama (da amizade, do convívio) viva tem conseguido vencer obstáculos.

No Porto, o ano passado em 27 de Maio, conseguiu-se com que, ao fim de décadas, nos reencontrássemos nessa cidade. Foi bastante bom, o dia estava quente, o 'Porto turístico' lá estava para nos mostrar o que evoluiu (com os ganhos e perdas que isso acarreta).  (...)

Como tudo correu bem e como nos apercebemos de que este tipo de Encontros nos fazem bem, nos 'rejuvenescem', decidimos logo ali não deixar passar muito tempo para que novo Encontro ocorresse e desse modo ficou aprazado que este ano de 2016 seria em Viseu.

E assim foi. Lá estivemos novamente 9, sendo que esta ano o A. Calmeiro não teve possibilidade de participar por motivo dos tratamentos que anda a fazer mas no lugar da sua falta apareceu o J. Fanha, o que muito nos alegrou. (...)


(***) Último poste da série > 24 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17899: In Memoriam (307): Ivo da Silva Correia (Fajonquito, c. 1974 - Bissau, 21/10/2017)... Era filho de um camarada nosso, da CCAÇ 3549 (Fajonquito, 1972/74). Morreu sem conhecer o pai português... É tarde, mas ainda vamos a tempo de lançar uma petição pública para que estes pobres "filhos do vento" vejam reconhecido o seu direito a serem também portugueses, além de guineenses... O "Ibu" passa a ser, a título póstumo, o membro nº 758 da nossa Tabanca Grande!

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P17941: Convívios (830): Os "últimos moicanos", o pessoal da CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65), fizeram prova de vida em 4 do corrente, em Sapataria, Sobral de Monte Agraço (José Colaço / Francisco Santos)

 Foto nº 1

 Foto nº 2


Foro nº 3

Sobral de Monte Agraço > Sapataria  > Restaurante  O Ferrador > 4 de novembro de 2017 > Convívio anual do pessoal da CCAÇ 557 (1963/65)

Fotos (e legendas): © José Colaço (2017). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Versinhos do Francisco Santos, poeta popular.



1. Mensagem, de 4 do corrente, do José Colaço:

[Foto à esquerda: José Botelho Colaço ex-soldado trms da CCAÇ 557, Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65), membro da nossa Tabanca Grande desde 2 de junho de 2008: tem 70 referência no nosso blogue.]


Caríssimo amigo Luís e editores,  como tinha sido anunciado (*) realizou-se hoje,  04-11-2017 , o almoço anual de convívio dos veteraníssimos ex-militares da CCaç 557 e,  como vem sendo hábito,  com a honrosa e agradável presença do nosso comandante da Tabanca da Linha,  Jorge Rosales,  pois ele é já uma peça insubstituível na família da CCaç 557.

Segue em anexo, e em  formato jpg,  o poema do nosso tabanqueiro,  o poeta popular Francisco dos Santos, e mais as seguintes fotos:

(i) Foto nº 1 > ao centro e na fila de trás o comandante da Tabanca da Linha Jorge Rosales, na fila da frente o primeiro da segunda linha à esquerda o nosso poeta popular Francisco dos Santos, a segurar um saco de papel o Sr. Coronel reformado João Luís da Costa Martins Ares, comandante da CCaç 557;

(ii) Forio nº 2 > O Sr. coronel Ares,  comandante da CCaç 557 no discurso directo a saudar todos os presentes e com o improvisado fotocine Z´w Colaço à frente a tentar gravar as palavras do comandante;

(iii) Forto nº 3 > À esquerda,  Jorge Rosales, ao centro o ex-1º-cabo João Casimiro Coelho , organizador do almoço e à direita o Sr. Coronel Ares,  Comandante da CCaç 557

  Nota: neste dia, e como é habitual,  o Sr. coronel Ares leva uma grande "porrada", é despromovido e passa de Coronel a nosso Capitão. (**)

___________________________

Notas do editor:



Guiné 61/74 - P17940: Notas de leitura (1011): “A PIDE no Xadrez Africano, Conversas com o Inspetor Fragoso Allas”, por María José Tíscar; Edições Colibri, 2017 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Outubro de 2017:

Queridos amigos,

A investigação de María José Tíscar sobre as redes de informações da PIDA/DGS em África abre com um importante capítulo que nos dá em grande ecrã os serviços de informação na guerra colonial, nesse contexto aparece um jovem alferes na Guiné, António Fragoso Allas, que vive fundamentalmente na região de Bedanda, Tombali.

No regresso, tendo-lhe sido obstada a carreira militar, ingressa na PIDE e o seu trabalho ganhará notoriedade quando vai participar na restruturação das informações da PIDE em Angola. Spínola pretende os seus serviços logo em 1968, só depois do que aconteceu na operação Mar Verde é que recebeu assentimento da PIDE em Lisboa.

Neste texto abordar-se-á o assassinato de Cabral, Fragoso Allas montara uma rede de informação que conta com os djilas e atingia o PAIGC em pontos nevrálgicos, houve contactos com figuras guineenses, com destaque para Nino Vieira. E esclarece-se, creio que corretamente, que nem Spínola nem a PIDE tiveram algo a ver com o assassinato do fundador e líder máximo do PAIGC.

Um abraço do
Mário


De leitura obrigatória: o diretor da PIDE/DGS na Guiné, no tempo de Spínola, na primeira pessoa (2)[1]

Beja Santos

O livro intitula-se “A PIDE no Xadrez Africano, Conversas com o Inspetor Fragoso Allas”, por María José Tíscar, Edições Colibri, 201.

Já aqui se escreveu como Allas chega à Guiné para chefiar a delegação da PIDE/DGS em meados de 1971, depois de muita insistência de Spínola. Do seu depoimento, fica bem claro que o seu trabalho parecia praticamente ignorado pelos serviços centrais da polícia política, não se percebe muito bem se por azedume quando Spínola pretendeu prender o seu antecessor, Matos Rodrigues, de algum modo responsabilizado por deficientes informações que conduziram aos péssimos resultados da Operação Mar Verde. Por que teria sido Allas tão insistentemente solicitado por Spínola? O entrevistado responde:

“O objetivo do general era ter alguma sensibilidade para perceber melhor o que se passava no interior do PAIGC, sem provocar mal-estar. Eu sentia que ele tinha esse interesse em encetar conversações com o PAIGC, mas isso não pode ser feito sem tempo. O mais importante para ele era melhor a pesquisa de informação porque a queria aproveitar para as suas operações. Penso que ele queria chegar a contacto com Amílcar Cabral e, por outro lado, controlar a rede interna do PAIGC na própria província da Guiné, que existia e era importante”.

A conversa centra-se no assassinato de Amílcar Cabral. Spínola terá reagido com desalento à notícia de morte de Cabral: “bem, estamos tramados”. Revela que nunca teve instruções para preparar e mandar executar o assassinato de quem quer que seja: “Matar não tem interesse porque isso complica o problema. Mas nós fizemos muito para levá-los a negociar connosco. Isso é que tinha interesse”.

Nunca a PIDE/DGS em Bissau participou num plano secreto para matar Amílcar Cabral. Não deixa de ser ambígua a resposta que dá à pergunta de um qualquer envolvimento da PIDE em Lisboa: “Eu não sei o que se passava em Lisboa”.

Ambígua e seguramente sujeita a ressentimentos, Fragoso Allas sabia o suficiente para saber que era totalmente impensável montar-se uma operação em Lisboa até Conacri sem ele dispor de informações. Ambígua é também a resposta quanto ao facto dos assassinos de Amílcar Cabral se terem ido apresentar a Sékou Touré, é evidente que os sediciosos, todos guineenses, após terem prendido os quadros cabo-verdianos, teriam que ter um apoio, sem a bênção de Touré estariam perdidos, como ficaram, Touré tinha que dar prova de firmeza e não interferir no conflito entre guineenses e cabo-verdianos, colaborou na cortina de fumo da intervenção da Guiné Portuguesa e até se ficcionou que uma esquadra portuguesa aguardava no limite das águas territoriais a chegada dos sediciosos com os altos dirigentes do PAIGC.




O General Costa Gomes visita a Guiné em Julho de 1973, vive-se uma situação muito crítica. O general pede a Allas para procurar contactar os guerrilheiros guineenses.

“Respondi que depois da morte de Amílcar não tinha contactos válidos no órgão político para esse fim. Poderia contactar o Nino Vieira mas levaria tempo; não tinha peso político na cúpula, mas tinha influência numa parte grande dos guerrilheiros guinéus que já não queriam combater. Este era o nosso melhor trunfo e poderia ter sido aproveitado por nós no palco político internacional”.

Faz reparos críticos a não se ter aproveitado devidamente o contacto com Senghor nem a vontade dos guerrilheiros guineenses se entregarem. Informa que lançou um alerta a Lisboa acerca da possibilidade do PAIGC, em curto prazo de tempo, poder aniquilar algumas guarnições e estabelecer novas áreas libertadas. E mais: “Disse que tínhamos de contemplar a hipótese de se vir a abater um avião, mesmo a hipótese de ser atacado um avião da TAP”.

Como responsável pela PIDE em Bissau, propôs a Lisboa a Operação Safira, destinada a desestabilizar Conacri, isto em fins de 1972 ou princípios de 1973, era uma proposta para se criar uma rede para fazer distúrbios na Guiné Conacri, não obteve resposta, e a operação não chegou a funcionar. Acerca dos aspetos organizativos desta operação, Allas é interpelado sobre a participação de elementos do PAIGC:

“Eles já trabalhavam connosco. Havia um lá dentro que nos vinha dar informações e houve gente dessa que levou explosivos para colocar na Guiné Conacri, em Boké, em Kandiafara, naquelas povoações que mais nos complicavam a vida e onde o PAIGC tinha bases. Um dia punham explosivos numa bomba de gasolina, outro dia num posto de autoridade administrativa… desta maneira, as autoridades de Conacri tinham de tentar controlar a situação”.

O entrevistado deixa a Guiné em Setembro de 1973. “O Governador Bettencourt Rodrigues pediu-me para ficar na Guiné, mas eu já estava muito cansado de tantos anos, seis anos de serviço consecutivos, sem uns dias de férias, e de não ter apoio de Lisboa". 

Perguntado se na altura em que saiu havia alguma inércia nos militares portugueses ou se se continuava a combater como dantes, responde: “Notava-se inércia nos militares portugueses, mas também cansaço da guerra do lado do PAIGC”.

É agora altura de discorrer sobre a obra do princípio ao fim. María José Tíscar dedica o primeiro capítulo aos serviços de informação na guerra colonial, isto para introduzir Fragoso Allas que dedicou a quase totalidade dos seus serviços às informações em África. Este futuro estratega de informações nascido em 1934, que chegou a matricular-se na Faculdade de Medicina de Lisboa, depois de cursar Mafra, embarcou em Agosto de 1957 para Bissau, onde chegou nos primeiros dias de Setembro. Foi colocado em Bolama e mais tarde escolhido para comandar um pelotão que ia ser destacado para Bedanda, na península de Cubucaré, Tombali.

A questão da soberania portuguesa no Sul da Guiné surge em 1959, indicia-se subversão das populações. “Os cipaios diziam que as populações já não estavam tranquilas e que isso era consequência do trabalho dos doutrinadores. Fragoso Allas, não sei baseado em que elementos diz que Amílcar Cabral fez a politização das populações em 1956 e 1957, isto depois de Julião Soares Sousa já ter comprovado que Amílcar Cabral estava a trabalhar em Angola, fez curtas passagens por Bissau para visitar familiares próximos, nunca nesta época e até 1960 Amílcar Cabral fala na existência do PAIGC, certo e seguro esteve em Bissau em Setembro de 1959 onde o rudimentar PAI esboça uma estratégia subversiva para o interior da Guiné e para a sensibilização internacional".

Fragoso Allas escreve o seu trabalho em Bedanda, passou quatro anos nos matos da Guiné. É no seu regresso a Portugal que a sua vida muda, tendo reprovado a entrada na Academia Militar, aceitou o convite do Coronel Homero de Matos, então dirigente da PIDE, para entrar na corporação. Começa trabalhar em cifra e em 1963 vai ter um papel fundamental na reestruturação das informações da PIDE em Angola.

Continua
____________

Notas do editor

[1] - Poste anterior de 30 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17917: Notas de leitura (1009): “A PIDE no Xadrez Africano, Conversas com o Inspetor Fragoso Allas”, por María José Tíscar; Edições Colibri, 2017 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 3 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17928: Notas de leitura (1010): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (7) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P17939: Manuscrito(s) (Luís Graça) (127): O Dia de Fiéis Defuntos na Tabanca de Candoz: aqui a tradição ainda é o que era...


Marco de Canaveses > União das Freguesias de Paredes de Viadores e Manhuncelos > Candoz > Quinta de Candoz > 1 de novembro de 2017 > "Antiga casa de caseiro", fechada há mais de 30 anos... Como outras tantas casas cujos "inquilos" morreram...E as enormes teias de aranha ganham o estatuto de marcas do tempo... É sempre estranho e intimidante entrar numa casa fechada...

Foto (e legenda): © Luís Graça (2017). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Manuscrito(s) (Luís Graça) > A comunhão dos vivos e dos mortos > Paredes de Viadores, 1 de novembro de 2017: aqui a tradição ainda é o que era


Dia de Todos os Santos. Na minha terra, na Estremadura, era o dia do "pão por Deus"… Lembro-me, de puto, de andar também de sacola às costas, em bando, de casa em casa, a "pedir o pão por Deus"...Ia-se sobretudo àquelas casas, dos ricos e remediados, que sempre tinham um pão doce, uma broa, uma guloseima ou um tostão para dar às crianças...que, de certo modo, representavam as almas dos fiéis defuntos, em errância pelo mundo.


Aqui, em Paredes de Viadores, Marco de Canaveses, não há essa tradição, mas é o Dia de Finados (que o calendário litúrgico celebra só amanhã). Estou no recinto da capela de Nossa Senhora do Socorro, no alto da antiga freguesia de Paredes de Viadores, velha ermida cuja origem se perde nos tempos. Terá sido reconstruída por volta de 1877. O cemitério, ao lado, esse, data de 1894.


Como os cristãos se recusavam a ser enterrados fora do "solo sagrado" (ou seja, no interior das igrejas ou do seu adro), por razões de saúde pública, foram criados os primeiros cemitérios públicos em Lisboa, nos primórdios do liberalismo (1835). Mas a medida é ferozmente combatida por grande parte do clero e demais apoiantes da "sociedade senhorial", ou seja, do absolutismo...


A revolta minhota da Maria da Fonte, em 1846, tem a ver também com a proibição, do governo de Costa Cabral, de enterrar os mortos nos recintos religiosos e com o protagonismo dos médicos que passam a certificar o óbito... A sublevação popular que se estende a grande parte do país, leva a soluções de compromisso: a maior parte dos cemitérios públicos, sobretudo no Norte, surgem muito tardiamente, já nos finais do séc. XIX, e são construídos com muros, restos de muralhas e ruínas, e como extensão do "recinto sagrado" (a igreja ou capela e o seu adro) ...É o caso deste cemitério paroquial, rural...


Em 1890, Paredes de Viadores tinha pouco mais de um milhar de habitantes, hoje não chega aos 1300 (censo de 2011).Século e meio de depois, a vida e a morte, o profano e o sagrado juntam-se, mais uma vez, no sítio da antiga ermida de Nª. Sra. do Socorro.





Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Capela de Nossa Senhora do Socorro (restaurada em 1877) e Cemitério da freguesia (1894) > 1 de Novembro de 2008 > O recinto de festas da N. Sra. do Socorro, na freguesia de Paredes de Viadores, enche-se de viaturas e pessoas que, aproveitando o feriado de Todos os Santos, vêm celebrar o Dia dos Fiéis Defuntos, ou Dia de Finados, ou simplesmente Dia dos Mortos, que no calendário religioso é a 2 de Novembro. Hoje há missa às 2 horas da tarde. Depois o padre segue para o cemitério para uma breve cerimónia religiosa, aspergindo com água benta as sepulturas. É um acto de comunhão entre vivos e mortos. Antigamente, creio que antes do Vaticano II, havia três missas, seguidas... Mas mesmo hoje a capela, que data de 1877, torna-se pequena para a multidão que aqui se junta. A fé já não é (nem pode ser) a mesma, mas o ritual mantém-se. Como há séculos. (Comparando com a  foto que tirei em 1 de novembro de 2017, mas que não tenho aqui disponível, a única diferença que se pode notar é no parque automóvel, que melhorou, e nas árvores, agora maiores e mais frondosas, à volta do recinto...). (*).

Foto (e legenda): © Luís Graça (2008). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Há largas dezenas de viaturas, talvez mais do que uma centena, espalhadas em redor do recinto (capela, cemitério, parque das merendas). São duas da tarde. As pessoas da freguesia (que agora faz parte da união das freguesias de Paredes de Viadores e de Manhuncelos) comem à pressa (ou mais cedo) para chegar a tempo e horas da missa e bênção das campas.

A capela está a rebentar pelas costuras e cá fora há outro tanto "povo" (como aqui se diz). Ninguém quer perder este momento único do ano que é a celebração do Dia de Finados no feriado de Todos os Santos. Há muito que o povo aqui substituiu os santos pelos seus queridos mortos. É, em resumo, o dia em que os vivos falam, em voz alta, com os mortos. Ou melhor: comungam...

É muito povo junto para uma pacata freguesia do Marco de Canaveses, de povoamento disperso, que vai de Mondim a Candoz, e que é servida, no Juncal, pelo comboio da belíssima Linha do Douro. "Cheiram" a fumo e a anho assado no forno com arroz, que é a especialidade gastronómica da região (Marco de Canaveses e Baião). Hoje é dia de comer arroz de forno. Como na Páscoa e na festa de Nª Sra. do Socorro, festa rija com muito fogo de artifício, que se realiza nos finais de julho (*). Mas já não vêm a pé, agora é um "povo motorizado". 


Além disso, a capela fica num alto, com um estradão de acesso, empedrado, muito íngreme. As mulheres, antes de sair dos carros, besuntam-se à pressa com o perfume dos frasquinhos que vão rebuscar nas malas. Porque depois da missa e da procissão até ao cemitério, vão-se beijar todos uns aos outros, os primos, os parentes, os vizinhos, os amigos, alguns os quais vieram de longe, de Ermesinde, da Maia, de Matosinhos, do Porto, de Gaia e até de Lisboa, como eu e a Alice...

Sento-me no muro, enegrecido, do recinto da capela. É já centenário como a capela cujas obras de refundação remontam a  1877, perdendo-se a sua origem no tempo. À volta há sete ou oito oliveiras, bem cuidadas, carregadas de azeitonas, umas já pretas, outras ainda verdes. Lá dentro há um coro de vozes femininas, estridentes. Ouço o “Aleluia”, mas já não sei dizer em que parte vai a missa...


É uma religiosidade ancestral, com profundas raízes socioantropológicas que remontam porventura à época pré-romana e pré-cristã. Quem é vivo e pode deslocar-se, não perde as cerimónias, os gestos, as palavras e as emoções deste Dia de Finados. Pena é que o sol aqui se ponha cedo, por detrás da serra (ou planalto) de Montedeiras. É um catolicismo de raiz pagã, está no ADN desta gente, homem, mulher, criança, velho… “Sou mouro, não há dúvida!”, penso eu com os meus botões.

As campas foram, de véspera, energicamente lavadas e polidas. Com aquele esmero e compulsão que as mulheres do Norte põem nas tarefas de limpeza da casa. Estão cobertas de vistosos ramos de flores e raras são as sepulturas que não têm visitas. Cada família deixa dois, três ou mais círios de 7 dias, acesos. Brancos ou vermelhos, porventura “made in China”. São como as pilhas Duracell que a publicidade diz que duram e duram... À noite, o cemitério é um campo feérico, cheio de mistério, de magia e de interditos. Os vivos e os mortos só se cruzam de dia, e em especial neste dia, o Dia dos Fiéis Defuntos...

Do meu posto de observação, entre uma oliveira e um nicho onde as mulheres vão “queimar” velas de cera, vejo em frente o belo parque de merendas com árvores que mostram a folhagem, de vivas cores outonais. A igreja e a nobreza enquadraram durante séculos esta gente, procurando dar-lhes um sentido para uma vida de "bestas de carga": camponeses, rendeiros, cabaneiros, criados... 


Acendo duas velas por todos os mortos, em todas as guerras do passado deste país que começou aqui, nos vales do Sousa e do Tâmega, e de quem porventura ninguém se vai lembrar neste dia. Na última guerra, a do Ultramar, este concelho perdeu 45 dos seus filhos, mas não encontro, na lista, nenhum combatente aqui de Paredes de Viadores. (Há no concelho, pelo menos, três memoriais ou monumentos aos combatentes da guerra do ultramar, na sede do concelho, em Paços de Gaiolo e em Vila Boa de Quires.)

A fila dos que assistem à missa chega até à grade do portão exterior do recinto da capela. Há carros que continuam a chegar, atrasados ou com gente mais idosa que precisa de apoio de braço para se deslocar até aqui. É já difícil estacionar. Com os lucros da festa de Nª Sra do Socorro, os mordomos vão comprando terras à volta, fazendo muros altos e alindando o sítio.

Reza-se o Padre Nosso com devoção, uns, maquinalmente, outros, mesmo as duas jovens manas, de nariz arrebitado e ar suburbano, que estão aqui ao meu lado, sentadas num banco de pedra. Quem é que não sabe ainda recitar o "Padre Nosso que Estais no Céu", que todos nós, "cristãos, judeus e mouros", aprendemos na escola e na catequese ?

O sino bate, com um som grave, à meia hora das duas da tarde. É espantoso como o sino das nossas igrejas e capelas ainda mexe connosco e as nossas memórias de infância. Estou aqui, a um canto, escrevinhando o meu bloco de notas. E pergunto-me: “Será que eu também sou daqui ?”… 


Venho aqui há 40 anos e ainda há  coisas da idiossincrasia deste povo que me escapam... A Tabanca de Candoz, além da Alice Carneiro, madrinha de guerra de muitos combatentes,  está bem representada, entre amigos e camradas: dos antigos combatentes encontro o Manuel Carneiro (CCP 121 / BCP 12,  BA 12, Bissalanca,1972/74)(**), o José Ferreira, o Zé do Alto,  (que também esteve na Guiné, no início da década de 1970,  antigo presidente da junta de freguesia local, primo da Alice,  empresário); os meus cunhados José Ferreira Carneiro, que esteve em Angola, em Camabatela, 1969/71, e o António Ferreira Carneiro, que foi ferido em Moçambique, Tete, 1964/66)... (O Manuel Carneiro, reformado da CP, residente no Juncal, não tem qualquer ligação de parentesco com a família Carneiro, de Candoz). Falta aqui o Júlio Vieira Marques, exímio tocador de violino, e que a malta da Tabanca de Matosinhos já conhece: também esteve na Guiné em meados dos anos 60 e também faz parte da Tabanca de Candoz.

As pessoas estão há mais de meia hora de pé. Quem está cá fora, a acompanhar a missa, também observa quem chega e como se comporta. Quem chega, abraça, beija ou cumprimenta com aperto de mão quem está ao lado. Todos se conhecem, contrariamente ao pessoal da grande cidade donde eu venho. Todos aqui são primos, parentes, vizinhos ou amigos uns dos outros. Ou foram namorados/as, colegas de escola, companheiros/as da catequese e da comunhão…

Sai, por fim,  a procissão com a cruz à frente e o padre com a caldeirinha de água benta, a caminho do cemitério que fica ao lado, são escassas dezenas de metros de percurso. O sol mal rompe a cortina de nuvens que o estrangula. Dizem que hoje vai chover. O dia está triste, adequado à cerimónia. Continua a rezar-se maquinalmente, eles e elas. Quem está sentado, levanta-se, e toma então lugar na procissão a caminho do cemitério.

Feita a bênção das campas, cada família recolhe-se por uns largos minutos junto da campa dos seus, ajeita os ramos flores, beija os retratos esmaltados dos seus queridos mortos, dá os últimos retoques, faz as suas orações, conta histórias, recorda memórias, mata saudades… Da casa de Candoz, repousam aqui os restos mortais dos nossos dois "mais velhos": Maria Ferreira (1912-1995) e José Carneiro (1911-1996).


Há lágrimas furtivas nalguns rostos...E depois acontece, a seguir, uma descompressão geral. O ambiente torna-se ruidoso e quase festivo e até galhofeiro. A alegria de viver e o forte sentido gregário deste povo não são incompatíveis com o milenar cultos dos mortos. O resto da tarde é passado a beijarem-se e a abraçarem-se, mostrando uns aos outros que estão vivos e bem de vida e de saúde… As mulheres foram ao cabeleireiro, vestiram roupa domingueira, enfim, estão "todas produzidas”, como aqui se diz, com graça.

Chega-se por fim a casa, já noite, com a consciência do dever cumprido, o de velar pelos mortos sem deixar de cuidar dos vivos, duas das 14 obras de misericórdia que fazem parte do legado da nossa ancestral cultura não apenas judaico-cristã como helénica
… “Dei um abraço àquela malta da minha infância, do tempo de escola, que já não via há cinquenta ou sessenta anos… E foi como se fora o último!”, diz alguém de volta ao carro...

Confesso que nunca tinha visto, como aqui, no cemitério da freguesia de Paredes de Viadores, do antigo concelho de Bem Viver, um lugar tão especial, singelo e até ternurento, de socialização. O único dia do ano em que os vivos falam, tu-cá-tu-lá, com os seus queridos mortos. E se juntam, em pé de igualdade, no mesmo espaço,  a antiga nobreza (os "fidalgos" e seus descendentes), o novo clero e o (e)terno povo… 

A um "mouro", como eu, que vem do sul, observador participante, apraz-me registar, com respeito,  no meu bloco,  uma última observação: Aqui a tradição ainda é o que era...(***)


____________

Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

30 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14947: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (12): Há festa na aldeia!...O Grupo de Bombos do Grilo, Baião, na Tabanca de Candoz, Paredes de Viadores, Marco de Canaveses

21 de novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10702: Tabanca de Candoz: Há a bazuca e a... mazurca; ou aqui não há festa sem música, sem dança no terreiro, sem contradança, valsa, fado, baile mandado..., ou seja, sem as velhas, novas, tunas rurais de Entre Douro e Minho...

2 de novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3394: Blogoterapia (68): Amnésia, vergonha, denegação ou ocultação dos próprios nossos mortos (Luís Graça)

(**) Vd. poste de 7 de outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2163: História de vida (7): Manuel Carneiro, 55 anos, director de rancho folclórico, ex-pára-quedista da CCP 121 / BCP 12 (Luís Graça)

(***) Último poste da série > 30 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17916: Manuscrito(s) (Luís Graça) (126): O fogo que nos redime


Guiné 61/74 - P17938: Parabéns a você (1336): Jorge Cabral, ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 63 (Guiné, 1969/71)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 3 de Novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17927: Parabéns a você (1335): Tenente General Pilav António Martins de Matos, ex-Tenente Pilav da BA 12 (Guiné, 1972/74)

domingo, 5 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P17937: Blogpoesia (536): "A Terra e o Sol...", "Aquela força..." e "Cantos e recantos...", poemas de J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

Foto: © Dina Vinhal


1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) três belíssimos poemas, da sua autoria, enviados entre outros, durante a semana, ao nosso blogue, que publicamos com prazer:


A Terra e o Sol…

Preocupam-me a Terra e o Sol.
Milénios de milénios, brilharam no mundo.
Semeando a vida. No silêncio astral.
Acabada a aventura, temo o escuro das trevas e a morte geral.
Renasça o nada das cinzas.
Acabe-se o tempo. Este vagão carregado. Parado para sempre, sem sopro.
Cessem as dores e as penas.
Se rasguem as vestes e vença a nudez.
De resto, a verdade total.
Tudo ao começo. Mais vale que o estertor da imundície a que a humanidade chegou.
Um deserto do bem. O reino do mal…

Berlim, 2 de Novembro de 2017
7h29m
Jlmg

************

Aquela força…

Aquela força que irradia do rosto,
Brilhando nos olhos,
Num sorriso sem fim,
Fez um milagre,
Bem dentro de mim.
Iluminou meu passado,
Carregado de escuro,
Névoas do céu,
Pedaço do mundo,
Me impedindo de ver.
Escondeu-me o caminho,
Talhado no berço.
Feito para amar,
Com corpo e com alma.
Cobriu-me de luto.
Viúvo da vida,
Com sol e luar.
Seara de fruto,
Raiado de cor,
Para comer e para dar.
Afastou-me do mundo,
Encerrou-me num souto.
Pleno de sombras.
Nem vivo nem morto.
Claustros de pedra,
Fria e inerte.
Rochedo do mar,
Batido das ondas,
Coberto de limos.
Cercado de algas,
Enterrado na areia.
Para sempre e para nada…

Berlim, 31 de Outubro de 2017
8h25m
Jlmg


************

Cantos e recantos...

Procurei em todos os cantos e recantos desse mundo um lugar de paz.
Onde o sorrir fosse a saudação
E o abraço a despedida.
Conviver e partilhar fosse a bandeira ao alto, desfraldada.
As portas todas pudessem ficar abertas a toda a hora.
Se respirasse confiança pura e verdadeira.
A constituição fosse a consciência.
Onde cada um pudesse ser tudo em plenitude.
O bom, o bem e o belo fossem o lema de cada dia.
Cansado e desiludido, regressei mais pobre.
Afinal, ao pé de mim, eu tenho o mar, o céu e viceja a terra.
Meu refúgio firme é ser quem sou com Deus na minha casa e um bom vizinho...

Berlim, 5 de Novembro de 2017
7h25m
amanheceu com sol
Jlmg
____________

Nota do editor

Último poste da série de 29 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17914: Blogpoesia (535): "Ao ritmo das marés...", "O lobo-pastor..." e "Nunca arrefeça...", poemas de J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P17936: Fotos à procura de uma... legenda (95): Algures, no CTIG, 29 de dezembro de 1967: uma guarita improvisada... Quem será este camarada ? Onde é que foi tirada a foto ? .. . Uma imagem carregada de simbolismo: criatividade, desenrascanço, abandono, solidão... (Jorge Araújo)


Fundação Mário Soares > Casa Comum > Arquivo de Mário Soares > Pasta: 06916.004.031 > Título: Guerra da Guiné: exército português em operações.> Assunto: Exército português em operações de guerra na Guiné. Uma guarita improvisada. > Data: Sexta, 29 de Dezembro de 1967 > Fundo: AMS - Arquivo Mário Soares -> Fotografias Exposição Permanente

Citação:
(1967), "Guerra da Guiné: exército português em operações.", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_114442(2017-10-24)


1. Mensagem, de 24 de outubro, do Jorge Araújo, nosso colaborador permanente :

Caro Camarada Luís.

Das muitas visitas que tenho feito ao espólio de Amílcar Cabral, existente na Casa Comum / Fundação Mário Soares encontrei a foto, que anexo, para a qual olhei demoradamente.

Da sua observação mais atenta, fui formulando algumas perguntas para as quais não tive resposta... naturalmente.

- Considerando tratar-se de uma imagem de um camarada nosso (NT), como terá ela chegado às mãos de Amílcar Cabral ?

- De quem se trata?

- Qual a sua Unidade e Local?

Diz a legenda de que é de 1967 (29 de dezembro), ou seja, vai fazer 50 anos.

Será que a poderemos editar com o objectivo de encontrar respostas às questões acima formuladas?

Boa semana.

Com um forte abraço, Jorge Araújo.

PS - Ao rever a foto acima, reparei que ela faz parte do Arquivo de Mário Soares (fotografias da Exposição Permanente) e não do Arquivo de Amílcar Cabral.
As minhas desculpas. Daí, deixo ao critério dos editores a sua publicação... ainda que considere o seu enquadramento de grande valor, pois está carregada de simbolismos: criatividade, desenrascanço, abandono ou solidão, entre outros. É a tal imagem que fala por si... "valendo mais que mil palavras" no dizer popular.

____________________

Nota do editor:

Último poste da série >29 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17915: Fotos à procura de... uma legenda (94): O emboscador emboscado... Ou então: que pena eu não ter sido antes repórter de guerra...