quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18173: (In)citações (114): Amigo Cherno, meu irmão, com homens como tu, a Guiné-Bissau ainda se vai tornar uma grande pátria (Francisco Batista [ex-alf mil inf, CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72)]

1. Comentário do nosso grã-tabanqueiro Francisco Baptista, transmontano de Brunhoso (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72),  ao poste P18170 (*)

Amigo Cherno Baldé, gosto de te ler e admiro-te porque tu tens o humanismo e a universalidade para estabelecer pontes entre as gentes e entre os povos, que muitos ex-combatentes como eu apreciam.

A tragédia do soldado Sissé que tu contas com arte e sabedoria é uma consequência de os estrategas militares quererem fazer de jovens, máquinas de guerra através de treino militar duro e desumano, para serem lançados nos piores e mais bárbaros cenários de guerra, sem se importarem com os efeitos nefastos a nível psicológico que irão provocar na personalidade desses jovens. 

Estava eu em Buba, em 1971, quando um destacamento de fuzileiros africanos regressou lá depois da operação a Conakry [Op Mar Verde]. Sobre isso um subtenente dos fuzileiros falou-me. Estava em Mansabá em 1971, quando duas companhias de comandos africanos, foram lançadas na mata do Morés, depois de fortes bombardeamentos da aviação e de obuses levados para Cutia. O major,  comandante do COP de Mansabá, quando regressou de helicóptero depois de visitar a zona intervencionada, encontrou-me no bar e falou-me dessa operação. 

O subtenente dos fuzileiros e o major do exército já morreram, eram ambos bons amigos dos camaradas e dos copos. Falámos e bebemos uns copos, mais do que falámos, a guerra não é heróica, é miserável. 


Guiné-Bissau > Bissau > c. 1995/1997 > O Cherno Baldé com a sua querida mãe, Cadi Candé (c. 1927-2017), aqui com c. 70 anos. A foto foi tirada depois do primeiro regresso do Chermo Baldé, de Lisboa, onde frequentou, um mestrado (ou curso de pós-graduação, não sabemos ao certo) no ISCTE-IUL  (1993/95). Licenciou-se em economia  na Universidade de Kiev, Ucrânia, tendo assistido ao desmantelamento da URSS. Trabalha como gestor de projetos no CAON - FED, em Bissau [Cellule d'Appui à l'Ordonnateur National du Fonds Européen de Développement]. Andou no Liceu Nacional Kwame N'Krumah. Aprendeu as primeiras letras em Fajonquito com os militares portugueses ali estacionados durante a guerra colonial. É casado, pai de 4 filhos. É sportinguista. Vive em Bissau. Tem página no Facebook.

Fotos (e legendas): © Cherno Baldé (2011). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Depois da descolonização, após essa guerra cruel suportada por essas tropas especiais que, quando
são mandadas para as zonas de combate mais duras, vão morrendo senão fisicamente, psicologicamente porque vão matando a sensibilidade própria a todo o ser humano, o Estado Português, sobre a bandeira de quem eles combateram. abandona-os à fúria dos seus inimigos africanos, com promessas hipócritas das autoridades do novo Estado da Guiné Bissau.

Uma velha nação da Europa e uma jovem nação da África que deram uma lição miserável de hipocrisia e covardia a todo o mundo.

Amigo Cherno, meu irmão, acredito que, com homens como tu,  a Guiné-Bissau ainda se vai tornar uma grande Pátria, com muitos homens bons e muitas etnias a viver em paz e harmonia. Os meninos da tua terra com tantas esperanças nos seus olhos tão delicados e doces merecem. (**)

Um grande abraço para ti e para toda essa terra de florestas, água e bolanha, que continuo a amar. Um Bom Ano. 

Francisco Baptista
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Guiné 61/74 - P18172: Memória dos lugares (369): Fajonquito (1961) ou... Gam Sancó (1940, 1914, 1906, 1889)? (Armando Tavares da Silva)


Capa do Atlas Colonial Português, 1914


Capa do Atlas Colonial Português, 1914  > Mapa da Guiné > Posição relativa de Gam Sancó, entre Cambaju e Bafatá.



Guiné > Atlas de João Soares (c. 1940) > Posição relativa de Gam Sancó (a azul)... Escala: 1/2 milhões


Guiné > Mapa geral da províncía (1961) > Escala 1 / 500 mil > Posição relativa de Fajonquito, a noroeste de Contuboel.

Infogravuras: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2018)


1. Mensagem do nosso amigo e grã-tabanqueiro Armando Tavares da Silva, com data de hoje:

Caro Luís Graça,

O Post P18170,  do Grã-Tabanqueiro Cherno Baldé (*), fiz-me apressar o envio da carta da “Província da Guiné” inserta no Atlas Colonial Português da Comissão de Cartografia do Ministério das Colónias, de 1914. Esta carta, que tem 100 anos, ajuda a conhecer as mudanças que sofreu a toponímica da Guiné.(**)

Para além da imagem de toda a carta (ocupa 2 páginas e tem a dimensão de 43 x 32 cm), envio ainda a mesma carta mas dividida em quatro partes para melhor identificação das povoações.

Uma das povoações que nela figura é Gam Sancó, povoação que não figura nas cartas mais recentes. Esta povoação figurava também nas cartas da Comissão de Cartografia de 1889 e 1906, e ainda no atlas de João Soares, que teve várias edições nos anos 1940, e era utilizado no ensino liceal. Para melhor identificação da povoação segue ainda uma parte ampliada daquela mesma carta, com a região a norte de Bafatá.

Eu penso que esta povoação [, Gam Sancó,], que era a terra de origem do ex-soldado comando Cissé Candé (**), se por acaso não desapareceu, pela sua localização, é a actual Fajonquito, e gostava que me confirmassem, ou não, esta hipótese.

O Cherno Baldé, natural de Fajonquito,  talvez possa dar alguma informação relevante.

Abraço do
Armando Tavares da Silva

PS: As imagens seguem por WeTransfer


2. Mensagem do nosso editor acabada de enviar ao Cherno Baldé:

Amigo e mano Cherno:

Além dos votos de bom ano (, a nível pessoal, familiar e profissional), mando-te aqui uma pequena prenda (coletiva)... do nosso grã-tabanqueiro Armando Tavares da Silva: o atlas da Guiné de 1914... Segue um outro mail com o link para poderes transferir as imagens até ao dia 11 deste mês... São pesadas: mais de 24 MB... Vou também publicar no blogue [neste e noutros postes]... Mas gostaríamos de ter o teu douto comentário sobre a toponímia dessa época, em especial a da tua região natalícia: será que Fajonquito poderá ter-se chamado no passado "Gam Sancó" ou "Gã Sancó"?  [Gã Sancó  não consta da Portaria nº 71, de 7 de julho de 1948, do Governo da Colónia da Guiné: Primeira relação de nomes geográficos da Guiné Portuguesa, escritos segundo a ortografia oficial]

Já em 7/10/2017. tu perguntavas o seguinte (**):

"Caro Luís,

A tal aldeia de "Pejungunto" na região de Farim, bem poderia ser uma grafia alternativa a de 'Fajonquito',  isto antes da normalização com o Governador  Sarmento Rodrigues."


E o prof Armando Tavares da Silva comentava:

" E a aldeia de "Gam Sancó" que aparece no Atlas de João Soares (Sá da Costa, 1949) e que desapareceu na relação de nomes geográficos de 1948, e ausente nas cartas de 1/50 000, o que será? Poderá ser a actual 'Fajonquito'? E 'Gam Sancó',  o que foi/é?"

Mantenhas!...
Luís (***)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de  3 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18170: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (53): três balas de kalash para uma missão suicida: o trágico fim do ex-soldado 'comando', Cissé Candé, em abril de 1978

Guiné 61/74 - P18171: Ex-combatentes da Guerra Colonial lançam uma Petição Pública On Line (6): Petição enviada para o Ministro da Defesa Nacional e envio do Relatório para o Presidente da Assembleia da República para agendamento da discussão em Plenário (Inácio Silva)

1. Mensagem do nosso camarada, e meu particular amigo, Inácio Silva (ex-1.º Cabo Apontador de Armas Pesadas da CART 2732, Mansabá, 1970/72), fundador e editor da página Relembrar para não esquecer, com data de 3 de Janeiro de 2018, trazendo notícias da Petição que ele próprio colocou em 2011 no site "Petição Pública":

Caro Carlos Vinhal
Envio-te, em anexo, o ofício que recebi hoje mesmo da Assembleia da República, com o Relatório Final da Comissão de Defesa Nacional, a propósito da Petição que coloquei no site "Petição Pública", já há alguns anitos[1], e que foi profusamente divulgada pelo blogue de que és co-editor.
Como poderás verificar, na última folha, para além de estar referido o envio da Petição para o Ministro da Defesa Nacional, está, também, referido o envio do Relatório para o Presidente da Assembleia da República, para agendamento da discussão em Plenário.
Mais uma vez venho pedir-te que a divulgues no teu blogue e do Luís Graça.

Aquando da discussão na Assembleia da República, gostaria que estivessem presentes alguns camaradas nossos, se possível, de todos os ramos das Forças Armadas.

Ofício e Relatório Final da Comissão de Defesa Nacional

Os meus sinceros agradecimentos.
Inácio Silva


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Nota do editor:

[1] - Sobre esta petição vd. postes de:

11 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7591: Ex-combatentes da Guerra Colonial lançam uma Petição Pública On Line (1): Meta, recolha de 4000 assinaturas (Inácio Silva)

17 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7625: Ex-combatentes da Guerra Colonial lançam uma Petição Pública On Line (2): Informação e incentivo (Inácio Silva / Amaro Samúdio)

19 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7641: Ex-combatentes da Guerra Colonial lançam uma Petição Pública On Line (3): Alerta aos camaradas que subscreveram, mas não confirmaram a assinatura (Inácio Silva)

1 de fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7703: Ex-combatentes da Guerra Colonial lançam uma Petição Pública On Line (4): "Eu servi a minha Pátria. É justo que a minha Pátria reconheça isso" (Cândido J. R. Pimenta)
e
30 de maio de 2017 > Guiné 61/74 - P17410: Ex-combatentes da Guerra Colonial lançam uma Petição Pública On Line (5): A petição "Os ex-combatentes solicitam ao Estado Português o reconhecimento cabal dos seus serviços e sacrifícios", foi admitida (Inácio Silva, ex-1.º Cabo Ap AP da CART 2732)

quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18170: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (53): três balas de kalash para uma missão suicida: o trágico fim do ex-soldado 'comando', Cissé Candé, em abril de 1978


Guiné > Região de Bafatá > Fajonquito > Junho de 1972 > CCAÇ 3549 / BCAÇ 3884, Fajonquito, 1972/74> Equipa dos Condutores e Faxinas: da esquerda para a direita: José Maria, Vasconcelos, Carvalho e Fernando Mandinga. Na primeira fila: Jorge Suleimane, Barbosa (Mamassaido), Braima Banassé e o Francisco (Cherno-Dabo).

Foto (e legenda): © Cherno Baldé (2017). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Cherno Baldé, foto atual. Gentileza
da sua página no Facebook.
I. Mensagem do nosso amigo e grã-tabanqueiro Cherno Baldé, com data de ontem:

Caros amigos Luis e Carlos Vinhal,

Antes de tudo, espero que tenham entrado com o pé direito neste ano novo, com votos de saúde e felicidades junto dos seus entes queridos. Também aproveito o ensejo para desejar, a todos os meus amigos reais e/ou virtuais do Blogue da Tabanca grande, votos de festas felizes e prosperidade no ano novo que agora inicia.

Juntamente envio um texto para vossa apreciação e posterior publicação, caso assim o decidam.

Eu passei as festas de Natal na minha aldeia de Fajonquito e a passagem do ano em Bissau com a família.


Um grande abraço de estímulo e de encorajamento para mais um ano de luta e de trabalho para uma vida melhor.

Cherno A. Balde



Guiné > Região de Bafatá > Setor L1 (Bambadinca) > Fá Mandinga > 1970  > Grupo da 1.ª CCmds Africanos, em formação. Vê-se na segunda fila, sentado, o cap 'cmd' graduado João Bacar Jaló. Não temos nenhuma foto do Cissé Candé, natural de Fajonquito,  que pertencia à 2.ª CCmds Africanos, tal como o nosso saudoso Amadu Djaló.

Foto: © Virgínio Briote / Amadu Djaló (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagen: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


II. Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (53): 

Três balas para uma missão suicida (*)

por Cherno Baldé

Fajonquito, Abril de 1978

Os dias sucediam-se normalmente nessa época seca. As mulheres continuavam a levantar-se cedo para pilar o milho que seria utilizado para matar a fome das crianças que passavam os dias em casa durante o dia e no período da noite quando os homens voltassem dos trabalhos da preparação dos terrenos no campo para a época das chuvas que se aproximava e das pastagens longínquas situadas para lá das bolanhas de Berecolóm e Sunkudjumá.

A vida na aldeia decorria calmamente, entrecortada aqui e ali por questões mundanas, de querelas por mulheres e roubos de gado num contexto em que, cada vez mais, a autoridade de Estado deixava de se fazer sentir nas zonas mais periféricas do pais.

A contrastar com o sentimento de alguma insegurança e de incerteza politica, eram os festejos ligados à independência recente do país com danças frenéticas, acompanhadas de tambores e cânticos das mulheres nos seus trajes multicolores, embora o entusiasmo fosse cada vez menor, assim como a adesão das multidões. “Bhê-Tchebhiríma-ey!” (estamos fartos desta gente) diziam em surdina os mais ousados. Manifestações de apoio seguidos de reuniões intermináveis, todos os dias, era demais para os pobres camponeses que não podiam desperdiçar seu precioso tempo em futilidades.

Para o jovem Cissé (1), todavia, a preocupação era outra. Desmobilizado dos Comandos Africanos, tinha regressado à aldeia havia pouco tempo e, sem problemas de maior, tentava reintegrar-se na vida e nos trabalhos da aldeia na companhia do seu grupo de idade e dos irmãos mais novos, esperando poder mostrar aos mais velhos da aldeia que a vida militar não mudara em nada a sua aptidão e afinco no trabalho que aprendera desde os primórdios da sua juventude.

Ao mesmo tempo, as informações que circulavam não o deixavam sossegado. Os rumores davam o tenente Djamanca, o Carlos Bubacar Djau (2), o Sedjali Embaló (3) e outros, antigos oficiais e colegas do Batalhão dos Comandos, como presos algures em lugar incerto, talvez mortos, e havia que encontrar uma solução o mais rápido possível.

Uma noite decidiu falar com a mulher sobre o assunto. Deviam emigrar para o Senegal, afastar-se por algum tempo, deixar a poeira assentar. Que não, respondera a mulher, emigrar agora e deixar a família com um bebé nos braços, não podia ser, que esperassem ainda um pouco, talvez depois da próxima campanha agrícola.

Os olhos de Cissé emudeceram de lágrimas contidas, pois a mulher não compreendia o desespero da situação e ele sabia que não podia mostrar sinais de fraqueza. Precisamente, ele planeava passar as chuvas já no outro lado da fronteira. Nos dias que se seguiram falou com os seus pais, em especial com o tio paterno sobre o assunto, pedindo-lhes que intercedessem para convencer a mulher no maior sigilo possível, pois o assunto não podia ser do conhecimento público.

Entre outras coisas, chamou-lhes atenção sobre a presença assídua do homem da segurança do Estado que aos olhos de todos não passava de um idiota qualquer, animador da vida social na aldeia em promiscuidade constante com as mulheres, mas que, na realidade, trabalhava para a sua perda. Era ele que controlava a situação na aldeia e arredores, transmitindo as informações ao mais alto nível do Partido e da região. Passava todos os dias nas moranças como se viesse simplesmente cumprimentar os homens grandes, mas o objectivo era outro e Cissé sabia-o, sentindo-se vigiado por olhos e forças invisíveis cujo cerco se apertava de dia para dia.

Sentindo-se incompreendido e encurralado, não podendo aguentar mais, o jovem ex-comando começou a ser violento nas suas atitudes e numa tarde quente do mês de Abril [de 1978], por da cá aquela palha, passou mesmo a vias de facto com a mulher, tendo-a agredido e provocado alguns ferimentos na cabeça. Chegados ao posto sanitário para tratamento e, pela sua gravidade, o caso foi levado junto das autoridades que lhe deram ordem de prisão, sendo encarcerado dentro da residência do responsável pela segurança. Na solidão do cárcere, concluiu que aquilo que ele temia há muito, tinha finalmente chegado e agora estava nas malhas dos agentes da segurança, donde nunca poderia sair.

Por volta das 20 horas, já a noite se tinha abatido sobre a aldeia e, no desespero da causa, forçou a
janela do pequeno quarto que lhe servia de cela, saiu para a varanda da casa e reentrou, pelas traseiras, no quarto do homem da segurança e, como previa, estava ali a Aka (HK-47)  [foto à direita], pendurada na parede da casa. Inspeccionou e viu que a arma continha somente três balas. Abanou a cabeça de tristeza. O que poderia fazer com três balas num momento tão decisivo!?... Teria pensado. Saiu, contornando a área e dirigindo-se ao posto sanitário situado na zona central da aldeia, onde, nesse preciso momento e com a ajuda de um candeeiro petromax, estavam a suturar os ferimentos que ele tinha causado à sua esposa durante a briga da tarde. 

Apontou a arma para o circulo iluminado, não se sabendo bem se para matar a esposa desobediente, se o responsável da segurança que o tinha preso ou alguém do grupo dos curiosos que, entretanto, se tinham amontoado. O tiro da Kalash ecoou no ar e o candeeiro foi projectado pelos ares, aterrando-se a uma dezena de metros de distância. Entre gritos e gemidos de aflição, a multidão dispersou-se na noite escura, espalhando a noticia de um ataque a aldeia…, de mortos e de feridos…

Tudo leva a pensar que o Cissé ficou convencido ter cometido um acto tão irreversível quanto imperdoável e que poderia determinar o seu destino final, destino esse que, durante muito tempo na sua vida de soldado comando e em inúmeras ocasiões, durante as arriscadas missões em que participara, teria pensado, sem conseguir descortinar as suas reais formas. Quantas vezes perguntara a si mesmo quando e como seria a sua morte. Por bala ou por acidente? A única certeza que tinha era que não seria por doença.

Saiu da sua trincheira improvisada, contornou de novo a aldeia, seguindo por um trilho de cabras que atravessava a barreira dos arames farpados, entre o bairro mandinga de Morcunda e as ruínas do antigo quartel, embrenhando-se na escuridão dos arbustos à volta da pista de aviação, onde teria passado parte da noite, mergulhado na convulsão dos seus pensamentos confusos e de lembranças antigas da sua curta mas agitada carreira militar que agora subiam à tona.

Enquanto os guerrilheiros vindos em reforço andavam à sua procura no mato adjacente, durante a madrugada, qual animal ferido, ele teria voltado, sorrateiramente, junto a sua casa e, não tendo encontrado a esposa, ficara emboscado nas suas traseiras à espera dos primeiros raios do sol para finalizar a sua operação.

De manhã cedo, estavam os pais (o pai propriamente dito e seu tio, irmão do pai), sentados no “bentem” dos homens grandes, no centro da morança, a falar sobre os acontecimentos do dia anterior e, certamente, a reflectir sobre as possíveis consequências e medidas de precaução a tomar já que o problema se transformara, perigosamente, num caso de segurança de Estado com toda a região militar Leste em prevenção e de alerta máxima e, eis que surge, de repente, o vulto longilíneo de Cissé à porta da sua cubata, a poucos metros, com uma arma nas mãos e que os intimida nos seguintes termos:
- Olhem para o sol, seus velhacos, porque esta é a vossa última oportunidade em vida!!!

Todas as opiniões convergem no sentido de que ele dirigia estas palavras especialmente ao seu tio, com o qual nunca se dera bem, e que, na sua opinião, tinha contribuído negativamente para as difíceis relações com a sua mulher. Caçador profissional experiente, foi o primeiro a reagir, atirando-se ao chão num instinto de defesa. O mais velho, não sabendo ou não podendo reagir a tempo, ainda ficou petrificado e incapaz de reagir até sentir o assobio do projéctil perto das suas orelhas, para a seguir, também, imitar o irmão mais novo e estender o seu corpo esquelético e comprido no chão vermelho de poeira da sua morança como se estivesse morto, pensando na ousadia e atrevimento daquele garoto que ele criara com todo o amor de pai, antes de crescer e se transformar naquela máquina de Guerra insensível que os brancos apelidavam de Comandos africanos.

O Cissé tinha feito bem as contas, e pensando ter morto a esposa e os pais e, na certeza de que agora só lhe restava uma única bala, virou a Aka e meteu-a dentro da sua boca, premindo o gatilho. Era o fim…

Era o fim de um homem, de um jovem que tinha escolhido ser militar, um soldado da elite, que tinha participado e saído ileso nos assaltos as barracas de Oio e Morés em 1971; da invasão de Conakry em 71; que tinha visto com os seus olhos o cenário dantesco de morte e destruição na bolanha de Cufeu, em Maio de 73, durante o cerco a Guidage; da missão suicida e fratricida de Kumbamory em Junho do mesmo ano, dos raides e emboscadas sofridas naquele regresso lento e doloroso até à fronteira… E que tinha concluído que a vida sem honra e sem a dignidade, por que sempre lutara, não valia a pena ser vivida.

Foi assim o fim de um Comando africano, filho da aldeia de Fajonquito no Regulado de Sancorla, que no momento decisivo da sua vida, sentindo-se encurralado pelas estranhas circunstâncias da vida e incompreendido pela própria família, não querendo ser humilhado pelos Comissários do PAIGC pelos quais não nutria nenhuma simpatia e cuja legitimidade não reconhecia, só tinha três balas para cumprir a sua derradeira e última missão. Estava assim escrito que morreria de uma bala do inimigo, atirada pelas suas próprias mãos. Que a sua alma possa repousar em paz.

Nesse mesmo dia, quando chegaram os guerrilheiros, o Comandante da segurança, olhando para o corpo inerte de Cissé e o rio já escurecido de sangue que esvaíra da sua garganta esventrada, disse seca e asperamente aos homens e mulheres ali presentes:

- Este corpo que estão a ver é o de um cão nojento dos colonialistas que nos poupou o trabalho do seu fuzilamento.

Agora pergunta-se: Quantas vidas, quantos jovens ex-soldados, Comandos e não só, enganados e abandonados a sua sorte após a independência, terão sido obrigados a viver dramas semelhantes ou, dito por outras palavras, quantos terão sido imolados no altar dos quiméricos acordos e tácitos entendimentos entre o exército Português e os guerrilheiros do PAIGC, durante o processo da descolonização?

Feito em Fajonquito, aos 25 dias de Dezembro de 2017.

Com os testemunhos de Suleimane Pendo Baldé (o Camões); e de Mamadu Saido Candé (o Barbosa); com a autorização de publicação de Sambaro Candé (o João Henriques), irmão mais novo de Cissé Candé; tradução e texto de Cherno Abdulai Baldé (o Chico de Fajonquito).
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Notas do autor:

(1) Cissé ou Sissé Candé (as duas formas são utilizadas tanto para grafar nomes ou apelidos; no caso dos Mandingas é um apelido e para os Fulas de Gabu é um nome próprio mas de origem Mandinga). Desconheço como era escrito o nome do ex-comando que, pelas informações recolhidas, pertencia a 2.ª  Companhia dos Comandos Africanos.

(2) Carlos Bubacar Jau era natural de Fajonquito, foi alferes cmd da 2.ª Companhia e teria sido ele a patrocinar a entrada do Cissé nos Comandos.

(3) José Manuel Sedjali Embaló, natural de Fajonquito, era 2.º Sargento e pertencia à 1.ª  Companhia de Comandos.

Informação complementar  do editor:

Elementos recolhidos  a partir da pesquisa do cor inf ref Manuel Bernardo:

Abdulai Queta Jamanca: tenente“Cmd”, Cmdt CCaç 21 > Fuzilado em março de 1975, em Bambadinca. Incoprado em 12-1-1956, nasceu em 5/1/1937, em Farim; pertenceu originalmente à 1.ª CCmds Africanos. Era de descendência nobre ("príncipe fula").

Carlos Bubacar Jau: Alferes “Cmd” 2.ª CCmds Africanos; fuzilado no Cumeré; incorporado em 7-11-1971; nasceu em 13-3-1946, no concelho de Bafatá.

Sijali Embaló; furriel “Cmd” 1.ª CCmds Africanos. Fuzilado em 1974 no Cumeré: foi incorporado em  24/10/1966; nasceu em  7/5/1946, em Bafatá (concelho).
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 3 de janeiro de  2017 >  Guiné 61/74 - P16913: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (52): à semelhança da França (em relação aos seus "tirailleurs sénégalais"), quando é que Portugal reconhece aos seus antigos soldados guineenses a nacionalidade portuguesa?

Vd. primeiro poste da série > 19 de junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4553: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (1): A primeira visão, aterradora, de um helicanhão

Guiné 61/74 - P18169: Memória dos lugares (368): A Guiné-Bissau vista por Michel Renaudeau (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Abril de 2016:

Queridos amigos,
É de salientar que estas imagens terão sido captadas aí à volta de 1977, dá para perceber que o património arquitetónico deixado pela potência colonial ainda não foi desvirtuado, as ruas estão limpas, os jardins tratados.
Este álbum terá sido encomendado para mostrar as potencialidades turísticas, o exotismo, a diversidade étnica, as potencialidades agrícolas. Tem um resumo propagandístico da história do PAIGC e da luta de libertação. Vasco Cabral, o poderoso comissário da Economia, fala de plantações de cana-de-açúcar para 60 mil toneladas. René Dumont ficou alarmado quando ouviu estes números e fez as contas, teria um preço incomportável.
É um tempo de sonhos, de fantasias e de uma ingenuidade que custou muito caro.

Um abraço do
Mário


A Guiné-Bissau vista por Michel Renaudeau

Beja Santos

Este fotógrafo francês terá recebido a encomenda do Banco da Guiné-Bissau para preparar duas obras de prestígio, para consumo externo, estamos numa fase da governação de Luís Cabral em que era reconhecida a necessidade de captar investimentos, indispensáveis quer como contrapartidas para projetos que tinham doadores, quer para outros em que não se perfilavam oportunidades. Há um livro, exatamente este, para mostrar as potencialidades do país mostrando lugares, pessoas, a agricultura, o turismo, nunca esquecendo a natureza luxuriante. O outro livro, de que se falara noutra oportunidade, é exclusivamente destinado a mostrar o que o país precisa, num quadro em que há economia planificada mas onde também se põem janelas de oportunidade para a exploração agrícola e para as pequenas indústrias.


Tenho visto lindas fotografias de Cacheu mas considero esta inultrapassável: o ângulo, a ligação do pano de muralha à água e o que dela brota, a esterilidade do interior e a floresta ao longe. É um ângulo que evita a mostra vergonhosa das estátuas arrancadas dos seus pedestais. Felizmente que se começa a repensar que o país não pode iludir a sua memória e que aqueles vultos escolhidos pelo regime colonial, goste-se ou não, são pertença da história da Guiné-Bissau, falam português e guineense, e para todo o sempre.



Primeiro o artesão, porque a panaria cabo-verdiana-guineense é de uma enorme beleza, os Manjacos dão cartas nestes panos coloridos ou a preto e branco, de uma rara harmonia, de uma intensa sensibilidade. E a seguir temos o griot, o tocador de korá, trouxe seguramente longos, prolongados recitativos com que irá homenagear quem lhe encomendou a festa. Olhei demoradamente esta fotografia, penso que este griot veio a Bambadinca, talvez em 1970. Nota-se que está bem-disposto, lança um olhar faceto ao fotógrafo como se dissesse: tira mais fotografia!



Temos agora a nostalgia de Bolama. Quando visitei a cidade, em 1991, já o Hotel do Turismo parecia um escombro e no entanto havia aqueles sinais da Arte Nova já a anunciar um certo geometrismo que preparará a Arte Deco. Sabemos que as cidades se arruínam e desaparecem, sabemos hoje que Bolama é um fantasma do que foi, creio que ainda lhe resta uma das joias da coroa, a Tipografia Bolamense, a Imprensa Nacional da região, aqueles carateres são uma obra-prima, oxalá os saibam preservar. Mesmo desfocada, a segunda imagem dá para perceber como era chegar a Bolama, hoje está tudo diferente com o assoreamento. Gostava muito de lá voltar.



Fora o Palácio do Governador, até 1941, com a presença militar em Bolama ainda houve obras de manutenção. Creio que jamais estas voltaram a acontecer. Quando por aqui andou Michel Renaudeau, o palácio convertera-se na habitação oficial do presidente do comité da região.

A segunda fotografia ainda hoje me faz estremecer, é a entrada do Bissau Velho, a casa de ocre vermelho ainda consegue olhar para o cais do Pidjiquiti, por uma nesga, e depois entrava-se numa zona de intenso comércio, onde era possível encontrar coisas extraordinárias que não havia em Portugal. Nenhum combatente que desembarcou naquele cais e que esperou alguns dias antes de ser remetido para uma alfurja da guerra deixou de por aqui andar, há aqui qualquer coisa de vila do interior, tipo Penalva do Castelo, que define o caráter português de uma pequena povoação adaptada aos trópicos, em baixos os sobrados, por cima a casa e depois a varanda. Um Bissau Velho que devia ser tratado com respeito, quando o Governador Carlos Pereira mandou derrubar, no virar para o século XX as muralhas que cercavam Amura, foi por aqui que Bissau se expandiu, aqui cresceu a azáfama dos negócios, perto do porto por onde saíam as mercadorias e entravam os mercadores. Folheando o álbum, ocorre outra leitura, tudo estava limpo, aqueles lugares pertenciam a todos, não era para abandalhar. Infelizmente, o abandono está marcado pelo desleixo e aquela terrível indiferença de viver pacificamente com o lixo e o miasma.
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de dezembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18154: Memória dos lugares (367): "Guiné-Bissau e Cabo Verde", fotografia de Ulisses Rolim - Para lá do Tcheche, amor pelas gentes de Lugadjole (Mário Beja Santos)

terça-feira, 2 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18168: Manuscrito(s) (Luís Graça) (136): testamento vital















Portugal > Vila Nova de Gaia > Canidelo > Praia de Salgueiros > Restaurante Mar à Vista > Av. Beira Mar, 1143 > 21 de dezembro de 2017 > Entre as 17h45 e as 17h53 > Adorador do sol, me confesso. O último pôr do sol que fotografei o ano passado...  Por sorte ía um navio a passar ao largo, possivelmente saído do porto de Leixões, quando o sol já  se punha na linha do horizonte... 

Fotos (e legenda): © Luís Graça (2017). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Canaradas da Guiné]


1. O passadiço marítimo Gaia-Espinho é um dos encantos do sítio (Madalena) aonde eu vou passar o Natal, o Ano Novo e a Páscoa... Confesso que não sei qual é a sequência das praias, a contar da Foz do Douro... Só conheço duas ou três: Lavadores. Salgueiros, Madalena, Valadares... Mas para mim é tudo praia da Madalena... que ficou tristemente famosa por, em 1988, vai agora fazer 30 anos, um gigantesco navio porta-carros, japonês, lá ter encalhado  (e naufragado) com um carregamento de 5400 Toyotas!... Foi um dos maiores desastres ecológicos na nossa costa!...Durante anos deixei de lá pôr os pés, desgostoso... 

Mas hoje nunca perco a oportunidade de lá voltar e ir fotografar o pôr-do-sol, especialmente no fim do ano... além de dar uma passeata e dois dedos de conversa com os/as amigos/as... Este ano sairam-me estas fotos que mereciam uma legenda poética, que fica por fazer... Enfim, fui rebuscar os meus escritos do verão passado. Achei que este ("Testamemto vital") era apropriado... LG

Testamento vital

por Luís Graça

Confesso que sou um adorador do sol,
venero o sol como um deus,
devo a vida ao sol.
Perturbam-me os eclipses, totais ou parciais, do sol.
Extasio-me com o pôr-do-sol, e não tanto com o nascer.
Sei que o sol é um dado adquirido,

conto com ele todas as manhãs, ao acordar,
mesmo em dias de céu nublado,
mas um dia, daqui a alguns milhões de anos,
o sol apagar-se-á. 
Ou implodirá.

Pensava-o imortal:
quando descobri, aos catorze ou quinze anos,
que um dia o sol iria morrer,
tornei-me ateu (ou, talvez melhor, agnóstico,

ou talvez nem isso: 
tive muito simplesmente a minha primeira crise existencial).

Nunca liguei ao sol na Guiné,

na minha segunda crise existencial.
Ou melhor: odiei-o, com um ódio de morte.
Não tinha o mar, no interior, no mato,
para me deslumbrar com o pôr-do-sol.
Além disso, detestava o sol porque havia guerra,
e penosas operações que nos levavam 

à insolação, à desidratação
e, "in limine", à morte.

Odiei o sol da Guiné,
razão por que sempre preferi a noite.
Dormia de dia, sempre que podia.
E, quando eu morrer, 

se eu ainda puder decidir
(, isto é, escolher onde e quando...),
pois então eu peço para morrer 

ao pôr-do-sol, 
frente ao mar da minha infância...

Não, ainda não escrevi o meu testamento vital,
mas espero ainda ir a tempo de o fazer

e de lá pôr essa cláusula:

“Minha querida Chita,
não posso morrer na tua/nossa Quinta de Candoz,
onde o sol se põe às cinco da tarde,
emparedado pelas montanhas...

"Como um dia te escrevi,
em 8 de setembro de 2008,
na Praia da Peralta:

"(...) Posso gostar das tuas montanhas
e das tuas albufeiras
e das tuas florestas de castanheiros e carvalhos,
da gente rude e franca do teu norte,
mas preciso de regressar ao meu sul,
de vez em quando,
para respirar como as baleias" (...)

Praia da Areia Branca, 
Lourinhã, 22 de agosto de 2017.

In: Cancioneiro de Candoz (1999-2017), 3ª ed. revista e aumentada, 2017, pp. 43-44.
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Nota do editor

Último poste da série > 1 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18162: Manuscrito(s) (Luís Graça) (135): Bons augúrios para 2018!

Guiné 61/74 - P18167: Notícias (extravagantes) de uma Volta ao Mundo em 100 dias (António Graça de Abreu) - Parte XVIII: 24-26 de outubro de 2016, Sidney, Austrália


Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 3


Foto nº 4

Austrália > Sidney

Fotos e legendas: © António Graça de Abreu (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Parte XVIII (Segundo volume, pp. 27-32)





1. Continuação da publicação das crónicas da "viagem à volta ao mundo em 100 dias", do nosso camarada António Graça de Abreu, escritor, poeta, sinólogo, ex-alf mil SGE, CAOP 1 [Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74], membro sénior da nossa Tabanca Grande, e ativo colaborador do nosso blogue com mais de 200 referências.

É casado com a médica chinesa Hai Yuan, natural de Xangai, e tem dois filhos, João e Pedro. Vive no concelho de Cascais.

Sinopse (*):

(i) neste cruzeiro à volta do mundo, o nosso camarada e a sua esposa partiram do porto de Barcelona em 1 de setembro de 2016;
(ii) três semanas depois o navio italiano "Costa Luminosa", com quase três centenas de metros de comprimento, sair do Mediterrâneo e atravessar o Atlântico, estava no Pacífico, e mais concretamente no Oceano Pacífico, na Costa Rica (21/9/2016) e na Guatemala (24/9/2017), e depois no México (26/9/2017);
(iii) na II etapa da "viagem de volta ao mundo em 100 dias", com um mês de cruzeiro (a primeira parte terá sido "a menos interessante", diz-nos o escritor), o "Costa Luminosa" chega aos EUA, à costa da Califórnia: San Diego e San Pedro (30/9/2016), Long Beach (1/10/2016), Los Angeles (30/9/2016) e São Francisco (3/4/10/2017). No dia 9, está em Honolulu, Hawai, território norte-americano. Navega agora em pleno Oceano Pacífico, a caminho da Polinésia, onde há algumas das mais belas ilhas do mundo;


(iv) um mês e meio do início do cruzeiro, em Barcelona, o "Costa Luminosa" atraca no porto de Pago Pago, capital da Samoa Americana, ilha de Tutuila, Polinésia, em 15/10/2016;

(v) seguem-se depois as ilhas Tonga;


(vi) visita a Auckland, Nova Zelândia, em 20/10/2016:

(vii) visita à Austrália: Sidney, a capital, e as Montanhas Azuis (24-26 de outubro de 2016)


Sidney, Austrália


We got into Port Jackson( Sidney) early in the afternoon and had the satisfaction of finding
the finest harbour in the world.

Capitão Arthur Philip, em 1788


Três dias em Sidney mas poderiam e deveriam ter sido três meses. Estou num dos mais prodigiosos conglomerados urbanos do globo.

O navio chega a horas improváveis, 11,45 de uma noite de Primavera australiana, límpida e fria. Faz quilómetros e quilómetros por dentro da sinuosa baía, aproxima-se da Opera House, da Harbour Bridge e vai acostar exactamente entre este dois ex-libris de Sidney [Fotos nºs 1 e 2].

A Ópera está iluminada por um azul tenro, meio intenso, meio suave que sobressai entre ténues vapores da noite. A ponte, concluída em 1932, com quatro pilares e o arco duplo de meia volta, mostrase em tons de cinza clara e os pilares num amarelo forte. Subo ao 11º andar do Costa e faço as que serão as minhas melhores fotografias da estadia em Sidney, slides onde o real do lugar e o envolvente fantasmagórico nocturno se interpenetram.

De manhã, começo o reconhecimento da cidade no alto de um autocarro de dois pisos, Hop On, Hop Off. Subir pela Elisabeth Street até ao Hyde Park cá do sítio, avançar para King’s Road, leio que cheia de vida nocturna -- cem mil histórias, infindáveis etecetras do passado relacionados com drogas e sexo --, dar uma vista de olhos pelos cais onde estacionam as novas naus da marinha australiana, subir outra vez em direcção à Estação Central, passar ao lado da Chinatown, descer para Darling Harbour e seguir para The Rocks, completando o itinerário. Em vez de sair, continuo viagem no autocarro para uma segunda volta pelo burgo. Os mesmos lugares, agora com a noção correcta de onde descer e subir.

Saio em Darling Harbour, frente ao Museu Marítimo. Tenho diante dos olhos uma réplica da nau Endeavour [Foto nº 3], comandada pelo capitão James Cook (1728-1779), o homem que, com este barco, aportou à Nova Zelândia e às terras austrais e é tradicionalmente considerado como o descobridor da costa sudeste da  Austrália. No entanto, este vasto continente já teria sido conhecido pelos portugueses, logo no início do século XVI, quando Cristóvão de Mendonça e os seus homens navegaram desde Java até ao norte da Austrália, com chegada em 1522.

A seguir ao Museu Marítimo, a ponte Pyrmont, reservada a peões, atravessa a pequena baía e por aí encaminho os meus passos. Tudo apetecível, colorido, edifícios recentes debruçados sobre as águas, apartamentos de luxo, o museu das figuras de cera da Madame Toussaud, um aquário, outro pequeno museu da Vida Selvagem, e cafés, restaurantes, lojas caras. Até há um gigantesco casino, The Star, também hotel, com apartamentos e mais espaços comerciais. Quanto dinheiro circula todos os dias por esta Sidney?

Avanço por Market Street e subo para o centro da cidade. A Sidney Tower [Foto nº 4], com os outros arranha-céus em redor, ascende elegante aos 268 metros. Em baixo, os edifícios vitorianos de finais do século XIX, com fachadas trabalhadas e os halls de entrada decorados com madeiras e estuques, à moda antiga. Adiante, shoppings e malls do melhor por onde entrei em já tantos anos de vida, lojas de luxo, Dior, Louis Vuitton, Chanel, Versace, etc., e as mais plebeias Zara e H&M. Depois a Town Hall, a câmara municipal, de 1889, com 57 metros de altura, na época o  edifício mais alto da Austrália. 

Desço para Pittstreet e após voltas e mais voltas pelo centro de Sidney, de ter comprado umas calças em saldo, de excelente qualidade – mas made in China, como descobriria na etiqueta, mais tarde --, foram mais de dois quilómetros a pé até ao Costa, ancorado junto a The Rocks, o primeiro porto de Sidney junto ao qual a cidade nasceu e cresceu. No caminho, encontro uma cervejaria apinhada de gente onde se comemora a Oktober Fest com uma pequena banda de jovens alemães – provavelmente nascidos na Austrália --, tocando concertina, trompa e trompete, música da Baviera para alegrar gente da terra e turistas. Há dezenas de chineses debicando salsichas e outros petiscos germânicos, encharcando-se em canecas de litro, esvaziando a cerveja ao ritmo da música, imaginando-se em plena Munique. Para não destoar em tão singular paisagem humana, e porque também tenho sede, sento-me e peço meia caneca de cerveja alemã, seguramente made in Sidney.

Regresso derreado ao navio.

A manhã do segundo dia começa com visita à Ópera de Sidney.

Espantoso edifício com espantosa história. Pensado nos anos cinquenta do século passado, o desenho acabou por ser da autoria do arquitecto dinamarquês Jorn Utzon. Iniciada a construção em 1959, foram tantas as dificuldades e os custos, sempre a disparar, que o homem da Dinamarca, em 1966, deixou subrepticiamente o acompanhamento da obra e abandonou a Austrália. A Opera House teve honras de ser inaugurada em 1973 pela rainha Isabel II, de Inglaterra.

Tem duas grandes salas de concertos e quatro espaços mais pequenos onde acontecem 2.500 eventos culturais por ano. No Concert Hall, a sala maior, temos agora, em Outubro e Novembro 2016, a integral das nove sinfonias de Beethoven e no outro auditório é a My Fair Lady que enche o palco, sob a direcção de uma grande senhora chamada Julie Andrews, a Maria da “Música no Coração.”

Os edifícios, Património Mundial pela Unesco desde 2007, são soberbos. Uma série de estruturas em forma de velas brancas, ou talvez conchas, levantadas para o céu encaixam na base da construção, num todo harmonioso e único. Se soprar o vento, parece que a ópera pode levantar voo, rumo ao infinito. Mas há pessoas convencidas de que os telhados fantásticos não são velas de navio, nem conchas mas pedaços recortados de bolas de rugby, ou gomos de melão. Gente divertida e maldizente de Sidney descobriu que afinal as coberturas da Ópera correspondem a carapaças de tartarugas, com os simpáticos animais, ao alto, encaixados uns nos outros numa desenfreada orgia sexual. Também pode ser.

Por dentro, os auditórios deixam a boca, os olhos, os entendimentos escancarados de espanto. O Concert Hall está todo forrado a madeiras nobres com diferentes tons de creme e castanho a imperar. Os 2.700 lugares têm estofos de veludo vermelho-escuros. Portentosa harmonia com o todo circundante. O palco, rigorosamente afundado no centro da sala, já abaixo das águas exteriores da baía, promete cem mil maravilhas.

A Ópera de Sidney, criada pela genialidade dos homens, inserida nas margens majestosas de uma cidade única, reverenciará os deuses do céu. Os mesmos deuses que, em dia de descanso, se entretiveram, há cem mil séculos, a abrir uma enseada a quinze quilómetros de distância, e a lá colocar Bondi Beach, a mais famosa de todas as praias da Austrália.



Foto nº 5

De tarde, artilhado com fato de banho, protector solar e o meu chapéu todo o terreno, com alguns dólares no bolso, aí estou em Bondi Beach para uma tarde de intimidades pessoais com a areia e as ondas [Foto nº 5]. Estamos no fim da Primavera, com um calorzinho de 23 graus, a água do mar ainda fria mas não tão gelada como nos nossos verões atlânticos de Espinho, Nazaré ou Cascais.

Deu para uns saborosos mergulhos entre a rapaziada que surfava entusiasmada as pequenas ondas. Bondi Beach tem cerca de dois quilómetros de extensão distendidos por uma baía quase fechada, em forma de meia lua. Belo lugar e bonitas as pessoas na praia. À distância até deu para observar baleias, ao vivo e a cores. Caminhei até ao fim do lado esquerdo de Bondi Beach, subi a uma plataforma rochosa chamada Ben Buckler e, do miradouro, a menos de um quilómetro de distância, três baleias, aí de dois em dois minutos, subiam à superfície das águas para respirar, lançavam ondas de vapor e espuma no ar e voltavam a mergulhar.Tubarões é que não vi e, para meu sossego, dizem-me que os dos mares de Sidney são vegetarianos.

Regressei à cidade de autocarro, pelo alto, circundando as baías de Rose Bay e Double Bay, entre milhares de vivendas ajardinadas sossegadamente distribuídas pelo sobe e desce de ruas e avenidas, por espaços alindados que oscilam até o mar. Tanta gente rica com moradas e habitações de excelência na cidade de Sidney!



Foto nº 6



Foto nº 7

Fotos e legendas: © António Graça de Abreu (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Ao terceiro dia, foi tempo de partir ao encontro das Montanhas Azuis, cento e dez quilómetros a noroeste de Sidney [Foto nº 6]. Boa auto-estrada sem portagens –- o que creio acontece em toda a Austrália --, e paragem a meio do caminho, após 45 minutos de viagem para visitar uma espécie de mini-zoo apenas com animais originários da terra austral.


Logo à entrada, uma solícita empregada do parque deposita uma cobra simpática e inofensiva nas mãos da Haiyuan. O réptil sobe-lhe pelos braços e enfia a cabeça no saco que a minha mulher leva suspenso no ombro direito e onde rescende um apetitoso pacote de bolachas. A Haiyuan quase desmaia de susto mas, num ápice, a tratadora dos répteis resolve a questão, pegando na cobra, aconchegando-a em si. ]Foto à esquerda]

Depois da emoção, foi andar pelo meio dos cangurus, emus, koalas dorminhocos, aves esquisitas, até pinguins anões. A propósito, dizem-me que os ingleses, quando chegaram à Austrália, deram de caras com milhares de cangurus à solta por toda a parte e perguntaram, aos primeiros aborígenes que encontraram, qual era o nome de tão estranho animal, que jamais olhos britânicos haviam lobrigado. Os aborígenes, que logicamente não falavam inglês, responderam “kangooroo, kangooroo” o que significa num dos muitos dialectos dos autóctones desta terra “não percebemos, não percebemos nada!” Logo os ingleses, devidamente esclarecidos, passaram a chamar “cangurus” aos estranhos masurpiais.

As Montanhas Azuis, Património Mundial pela Unesco desde 2000, têm apenas 1.100 metros no cume mais elevado, mas a grandiosidade, a cor dos montes e vales que se estendem por um milhão de hectares, ao longo de cem quilómetros, surpreende, extasia, ilumina o viajante. O azulado que cobre os horizontes tem origem na bruma provocada por centenas de milhões de gotículas de óleo libertadas pela respiração das folhas dos eucaliptos gigantes agrupados em enormes florestas que sobem e descem as montanhas. [Foto nº 7]

Leura e Katoomba, duas pequenas vilas encaixadas no trepar da estrada, são poiso de artistas, poetas, amantes da natureza radicados por estes montes, longe da azáfama das grandes cidades, para aqui enxaguar os pulmões, e a alma, de ar puro. Quase todas as casas têm jardins em volta com flores exóticas, agora em tempo de Primavera.

Avanço para o Echo Point, uma plataforma em pedra debruçada sobre o aparentemente infindável vale de Jamison, coberto de bruma rigorosamente azul. Vista de estarrecer! Ao lado, três rochas quebradas pela erosão dos séculos são conhecidas como as Três Irmãs. Uma escadaria com 861 grandes degraus conduz ao fundo do vale. Não desço. Subo para um teleférico que cruza um desfiladeiro a quase trezentos metros do solo. Do outro lado, tomo outro teleférico que desce mais 545 metros até às profundezas do vale. Uma caminhada de quase dois quilómetros no sopé da montanha, que inclui passagem por uma mina de carvão de pedra há muito desactivada, leva-me à mais original estação de comboio que vi em toda a minha vida. Os rails sobem com uma inclinação de 52 graus. Estou na via férrea mais empinada do mundo. A subida é vertiginosa, um chiar e chocalhar constante das pequenas carruagens, numa espécie de mergulho mas ao contrário, em vez de descer, subo a pique por dentro de um túnel rasgado na rocha, saio entre vegetação luxuriante ao lado de uma cascata como que suspensa no ar. Os passageiros debruçados, encavalitados nos assentos do mini-comboio, acabaram de viajar, com todo o rigor, com o coração ao pé da boca.

À saída, lá em cima, da minha parte, nenhuma tensão. Apenas outra vez o sossego, o olhar perdido na névoa das fantásticas Montanhas Azuis.

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