terça-feira, 3 de julho de 2018

Guiné 61/74 - P18805: (Ex)citações (339): "Hoje sentimo-nos bem connosco, por termos ajudado a minorar o sofrimento dos feridos e doentes, que nos foram confiados. Em nós ficou o sentimento de um dever cumprido" (Maria Arminda Santos, capitão, enfermeira paraquedista, ref)


Leiria, Monte Real > Palace Hotel Monte Real > XII Encontro Nacional da Tabanca Grande > 29 de abril de 2017 > Da esquerda para a direita, a Giselda, a Maria Arminda Santos (que veio pela primeira vez a um encontro nacional da Tabanca Grande) e a Maria de Lurdes (de perfil) (, esposa do nosso camarada Jorge Canhão).

Foto: © MIguel Pessoa (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1, Pedi às nossas amigas, camaradas e grã-tabanqueiras, as enfermeiras paraquedistas, hoje jubiladíssimas, mas sempre atentas, disponíveis e amáveis, Giselda, Arminda, Rosa... para comentarem o poste do nosso Dino, que esteve em Fulacunda, região de Quínara, em 1972/74, e em especial um excerto de um aerograma à namorada e futura mulher, Amélia, com data de setembro ou outubro de 1973, em que dizia assim:

“Antes de te falar romanticamente, quero informar-te que hoje veio aqui um helicóptero e nele vinham duas moças pára-quedistas brancas,  foram para uma operação no mato e por causa do nevoeiro tiveram de aterrar aqui. Com estas duas, são três as mulheres brancas que vi em Fulacunda. Quando puderam partir levaram correio, espero que desta vez recebas”. 

Eu próprio comentei no poste, em tom de brincadeira, o seguuinte;

"Dino, com um ano de Guiné tinhas a 'obrigação' de saber que havia mulheres, nossas camaradas, enfermeiras paraquedistas que andavam nos helis e nas DO 27 a 'socorrer' os desgraçados dos nossos feridos graves, com direito a evacuação Ypsilon...

Geralmente não paravam nos quartéis, faziam as evacuações a partir do mato até ao HM 241, em Bissau...Não tinham tempo para se 'coçar'...

Acho que havia muita gente, nos nossos quartéis, que não sabiam mesmo da existência das enfermeiras paraquedistas... Elas não precisavam de pôr anúncios nas revistas cor de rosa da época... Mas eu vi-as, no mato e no quartel de Bambadinca, sempre elegantes, sempre eficientes, sempre corajosas... Temos uma grande dívida de gratidão para com estas raparigas, hoje com a nossa idade"...


Capa do livro "Nós, enfermeiras  paraquedistas" (Coord., Rosa Serra) Porto: Fronteira do Caos Editores. 2015 (Há já uma 2º ed). Prefácio do professor Adriano Moreira.



Da esquerda para a direita, a Maria Arminda, a  Maria  Zulmira André (falecida em 2010) e a Júlia Almeida (, falecida em 2017). Guiné, Bissalanca, BA12, s/d .  Foto de cronologia do Facebook da Maria Arminda Santos. (Reproduzida aqui com a devida vénia...).



2. A Maria Arminda Santos,  que esteve na Guiné (e mais do que uma vez, foi de resto a primeira a chegar ao território, logo em julho de 1962; e em 1969/70 era tenente enfermeira paraquedista; hoje capitão reformado, vive em Setúbal e tem 4 dezenas de referências no nosso blogue),  já me respondeu, ontem às 23h00, dizendo:

"Obrigada,  amigo Luis Graça, por me ter feito chegar esta mensagem. Não me surpreende que muitos militares desconheçam ainda muita coisa, da nossa existência e das missões que desempenhámos, durante o decurso da Guerra do Ultramar, ou Colonial.

Já coloquei o meu comentário no Blogue, conforme a sua solicitação. Envio um grande abraço. Não esqueço quem sempre nos tratou bem, apesar de eu participar pouquíssimo no blogue. Até sempre, M. Arminda Santos".

Aí vai comentário da Maria Arminda Santos,  deixado no poste P18799:

 "Li com atenção e não levo a mal, por esse nosso camarigo, desconhecer da nossa existência, na Guiné e nas Tropas Paraquedistas.

Realmente nós éramos poucas para acudir a todos os locais, mas de facto eram muitas as saídas em DO 27, Alouette III e até em Dakota, fizemos evacuações de feridos e não só, porque até a elementos da população civil, prestámos cuidados.

Também fizemos Bases de Operações, principalmente em Aldeia Formosa e Cufar, mantendo-nos de alerta para possíveis evacuações de feridos , que viésssem a ocorrer em teatro de operações, como na realidade aconteceram.

Ainda bem que esse camarada, não precisou de nos conhecer, no âmbito do nosso trabalho. Bom sinal para ele.


Hoje sentimo-nos bem connosco, por termos ajudado a minorar o sofrimento dos feridos e doentes, que nos foram confiados. Em nós ficou o sentimento de um dever cumprido.
Um abraço.

M. Arminda Santos" (**)

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(**) Último poste da série > 1 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18798: (Ex)citações (338): Quem não sabe beber, que beba m..., dizia um durão de Bambadinca... Mas, camaradas e amigos, era mesmo m... a famosa "água de Lisboa" que nos chegava aos nossos quartéis para matar a nossa dor e a nossa sede... (Luís Graça / Virgílio Teixeira)

Guiné 61/74 - P18804: Parabéns a você (1465): António Nobre, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2464 (Guiné, 1969/70)

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Nota do editor

Último poste da série de 1 de Julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18797: Parabéns a você (1464): Silvério Lobo, ex-Soldado Mec Auto do BCAÇ 3852 (Guiné, 1971/73)

segunda-feira, 2 de julho de 2018

Guiné 61/74 - P18803: Estórias avulsas (89): A noite mais longa da recruta… e não só (Carlos Pinheiro, ex-1.º Cabo TRMS Op MSG do STM/QG/CTIG)

1. Em mensagem do dia 17 de Junho de 2018, o nosso camarada Carlos Pinheiro (ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70), revive os tempos inglórios da sua Recruta do CSM na Escola Prática de Cavalaria de Santarém.


A noite mais longa da recruta… e não só

Carlos Pinheiro

Tínhamos assentado praça no dia 10 de Outubro de 1967 na EPC (Escola Prática de Cavalaria), em Santarém, em conformidade com a Lei do Serviço Militar Obrigatório.
O país estava em guerra em três teatros de operações, envolvendo todos os meios humanos e materiais possíveis, Angola, Moçambique e Guiné. Mas também tinha tropas destacadas em Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe e até em Macau e em Timor, tudo isto depois do desastre da Índia, pelo que o destino da juventude daquele tempo estava traçado.

Na noite desse dia 10, depois de nos terem sido indicadas as instalações, nomeadamente a caserna com sessenta camas, mais uma do plantão, dois chuveiros, duas sanitas e meia dúzia de lavatórios, e de nos ter sido fornecido o fardamento, depois de termos ido ao refeitório tomar a 3.ª refeição, fomos a esse mesmo refeitório passar uma parte importante do serão para aprendermos o que era a tropa. Foi uma conversa aberta e franca onde ficámos a saber, minimamente, quem é que mandava e quem é que tinha que obedecer. Ficámos a saber também que o porta-voz do Comando do Grupo de Esquadrões era o Tenente Sentieiro que ali fez todas as apresentações.

- Ficámos saber que só podíamos sair do Quartel depois de sabermos bem todos os distintivos dos vários postos da hierarquia militar para evitar que fossemos fazer continência ao porteiro do Hotel Abidis, que tinha uma farda parecida com a de um Marechal.

- Ficámos a saber que aquela coisa, onde estávamos a depositar a cinza e as beatas dos cigarros – naquele tempo podia-se fumar em todo o lado – a servir de cinzeiro, de manhã, ao pequeno-almoço, era, como se fosse, uma chávena de Vista Alegre para o café com leite e ao almoço era, como se fosse, um copo de cristal para o vinho, para a água ou para a água com algum vinho.

- Ficámos a saber que tínhamos que comer pão duro todos os dias porque, apesar da Escola receber todos os dias pão fresco da Manutenção Militar do Entroncamento, havia sempre dois dias de pão de reserva para evitar qualquer imprevisto que prejudicasse o nosso direito ao “casqueiro” diário.

- Ficámos ali a saber que passávamos a ser um número e mais nada. Mas foi útil essa conversa.

Logo no dia 11, pela manhãzinha, pela fresca, formámos na parada e marchámos para a terraplanagem, no quartel Sede, onde começámos a tomar contacto com a vala, com as barreiras, com a ponte interrompida, com o galho, com o pórtico, com o slide, e acima de tudo com a lama constante e em todo o lado da tal terraplanagem.

Durante a recruta tivemos de tudo um pouco. Muitas instruções nocturnas pelo Monte do Zé Morto, pelas Ómnias, deslocações diárias pelos arredores da cidade, sempre a marchar com a cadência militar, fosse a subir a Calçada do Monte, fosse a caminho da Carreira de Tiro, fosse a caminho da Escola, a caminho do Campo da Feira, fosse para onde fosse.

Logo no terceiro dia de tropa, uma quinta-feira dia 13, fomos confrontados com uma situação tão inesperada como impensável. Estávamos, como disse, no terceiro dia de tropa. Tínhamos regressado da terraplanagem e tínhamos dez minutos para tomar banho, fazer a barba, fazer a cama e apresentarmo-nos impecavelmente fardados na Parada, mesmo que enlameados mas com as botas devidamente engraxadas e a luzir e os talabartes também a brilhar. Nesse entretanto, eis que um camarada nosso, que terá conseguido tomar banho, ao fardar-se em cima da cama terá dito, mais ou menos isto:
- Eh malta, ninguém faz as camas, não temos tempo, não somos escravos.

Só que na Caserna estava um Cabo Miliciano, de Sargento de Dia, que trocou algumas palavras, mais ou menos azedas, com o tal instruendo. Mas tudo acabou, melhor ou pior, todos nos apresentámos na formatura dentro dos tais 10 minutos. Então, o Oficial porta-voz, dirigindo-se às forças em parada, ordenou que o tal instruendo saísse da formatura e acompanhasse o Sargento da Guarda. E o nosso camarada lá foi e esteve preso até Domingo, em prisão particular, tendo na segunda-feira saído à Ordem a sua detenção durante 18 dias, o que lhe deu 54 dias de dispensas cortadas e assim impedido de ir a casa durante esse período. Mas esse nosso camarada aproveitou o tempo de semiclausura e preparou-se para ir fazer duas cadeiras que lhe faltavam, dum bacharelato, num Instituto qualquer em Lisboa. E fez as cadeiras e passou para o COM. Mais tarde foi parar à Guiné, como eu fui, como foi o tal Cabo Miliciano e também o porta-voz. Penso que nunca nos encontrámos todos na Guiné mas eu encontrei, separadamente, o nosso camarada, já como Alferes Miliciano e o referido Cabo Miliciano, já como Furriel. Coisas da vida militar daqueles tempos.

Não foi só a última noite da recruta que foi longa, como lá mais para a frente referirei, mas ali tudo era longo. Os dias, as marchas, as noites, as instruções, especialmente na terraplanagem, as noites a engraxar as botas de sair e os talabartes para as revistas, sempre longas e rigorosas, o rigor da disciplina, a espera pelo fim-de-semana quando havia e só esse é que era sempre curto. A Cavalaria não era melhor nem pior do que as outras armas. Era diferente.

Um dia ao subirmos a Calçada do Monte, a descer ia o Major Duarte Silva, Director da Instrução, a conduzir o seu jeep Austin e porque o nosso Comandante de Pelotão não mandou olhar à esquerda, tivemos um fim-de-semana diferente. Ordem unida no sábado das 10 às 12 e das 15 às 17 e no domingo o calendário repetiu-se.

Foi durante a recruta que aconteceu a tragédia das grandes inundações da grande Lisboa, concretamente no dia 25 de Novembro de 1967, onde morreram largas centenas de pessoas e ficaram desalojados alguns milhares. Não tivemos intervenção directa nesta tragédia, mas muitos dos nossos camaradas que viviam na zona de Alverca, Carregado e Vila Franca, foram atingidos pela tragédia e chegaram com atrasos significativos naquele princípio de semana e contaram-nos episódios terríveis.
Nesse fim-de-semana, a Especialidade de Atiradores de Cavalaria, que tinha entrada no 3.º Turno, estava na semana de campo e também sofreu as consequências daquela intempérie.

Também fizemos a nossa semana de campo com tempo horrível. Na primeira noite a água chegou a congelar nos cantis que tínhamos à cintura. Nunca montámos tenda porque o “inimigo” estava por ali. Passámos frio, mas frio a sério, tudo para lá da Chamusca. Sempre a pé, a marchar, a andar e até a correr.
Mas algo de diferente parecia estar guardado para o fim da recruta, e estava mesmo.

Foi na última noite. No outro dia era o Juramento de Bandeira, mas o meu pelotão teve que cumprir nessa noite mais uma instrução nocturna visto que tinha faltado, com a devida autorização, a uma dessas instruções, dias antes quando nos juntámos, com o Comandante do pelotão, o Aspirante Maciel, para festejarmos o aproximar do final da recruta. E as contas tinham que se acertar. Não podia haver um pelotão beneficiado e não fazer aquela instrução que estava no calendário. E nós fizemos. O pior foi o resto.
A instrução correu bem dentro das normas estabelecidas e regressámos ao Destacamento da EPC, o nosso Quartel, já depois da uma da madrugada. Estava tudo em silêncio e nós respeitámos todos que estavam a descansar. Porém, quando chegámos ao nosso “quarto particular” com 60 camas – dois pelotões – e nos preparávamos para descansar, verificámos que as nossas camas estavam todas armadilhadas, à espanhola, trabalho efectuado certamente pelos camaradas do outro pelotão.

O meu pelotão no campo, mais propriamente nas Ómnias
Foto de autor desconhecido – Direitos reservados

Começou então a barafunda. Cabeçalho para ali, cabeçalho para acolá, alguns iam-se abrindo e espalhando a palha pelo chão, mas eis quando um desses cabeçalhos bate num pequeno vaso de flores que havia por cima da cama do Plantão, e o tal vaso partiu-se. Foi uma chatice. O Plantão levantou-se, fardou-se e desceu as escadas e foi participar o sucedido ao Oficial de Dia. Passado pouco tempo, com a confusão a complicar-se, já com colchões a voarem e a palha a espalhar-se cada vez mais pelo chão da caserna, entra o Oficial de Dia que ordenou que os responsáveis se apresentassem imediatamente na Parada. A barafunda acabou, mas ninguém se mexia para se apresentar na Parada. Então, três voluntários encheram-se de coragem e lá foram. Mas o Oficial exigiu que eles fossem buscar os outros responsáveis, porque aquilo que viu não era “trabalho” só de três instruendos. E assim, dos tais sessenta, viemos trinta e seis em cuecas, uns descalços, outros em botas e foi-nos tirado o número para não haver mais confusões. Voltámos à caserna e lá limpámos, impecavelmente, aquilo que parecia um palheiro mal organizado. Quando nos deitámos já seriam mais de quatro da matina e a Alvorada tocou à hora regimental.

O dia começou como habitualmente com a formatura geral, a toque de caixa, para o pequeno-almoço e de seguida subimos à caserna para nos barbearmos e fazermos a higiene pessoal possível, visto que só havia dois chuveiros para sessenta homens e o tempo estava cronometrado como acontecia todos os dias.

Aula técnica na Parada do Destacamento da EPC com o Comandante do Pelotão, Aspirante Maciel, a supervisionar os resultados

Mas à hora marcada, lá estávamos devidamente fardados e equipados na Parada, com os talabartes e as botas a brilhar, com o grande capacete na cabeça e a companheira Mauser à mão, a aguardar ordens.
E então, o Porta-voz do Comando do Grupo dos dois Esquadrões – trezentos e sessenta homens – lá deu os avisos da praxe, salientando e passo a citar de memória “que este era o dia mais solene da vossa vida militar pelo que estão autorizados a ir almoçar fora com a família, com as noivas, as mulheres ou as namoradas, à excepção daqueles trinta e seis “gabirus” que ficam detidos até novas ordens”.

Era tudo apurado. O do meio calçava 35 e andou em sapatilhas a recruta toda porque não havia botas para ele. Mas foi apurado

Nós, os tais trinta e seis, ficámos detidos – detenção particular – naquele dia e mais dois dias para não esquecermos onde nos tínhamos metido.
Entretanto, o pior estava para vir. Fomos de férias, por volta das vésperas do Natal desse ano de 1967, e regressámos no dia 4 de Janeiro de 1968, para sabermos a especialidade que nos caberia em sorte e a Unidade para onde iríamos. Mas de facto o pior estava para vir. Nesse dia soubemos que a maior parte da malta – 201 em 360 - chumbou no CSM e passou para o Contingente Geral. E eu fui um deles.

Mais tarde, já na Guiné, no ano de 1970, em data que não posso precisar, mas de certeza ainda no 1.º semestre, encontrei no Cais o Capitão Carvalho de Andrade que tinha sido Comandante do Grupo de Esquadrões na minha recruta em Santarém em 1967. Conheci-o à distância, e com a devida vénia prestei-lhe a continência a que ele correspondeu e disse-me que lhe parecia que me conhecia de qualquer lado. Respondi-lhe que também o conhecia, mas sabia de onde era. Então ele perguntou-me de imediato – estava a ver as minhas divisas de Cabo – se eu tinha sido um dos lixados do 4.º Turno de 67 de Santarém. Claro que lhe respondi que sim, que tinha sido um dos 201 que tinham chumbado. Então, com o vagar que havia, pois estávamos à espera dum barco que nunca mais chegava, penso que era o Carvalho Araújo, disse-me que tudo aquilo aconteceu porque terá havido um erro na classificação das pautas de tiro e o Comandante, porque o Tiro dependia da Direcção de Arma de Infantaria, não quis pedir a revisão das provas pelo que os chumbos calharam quase todos a Santarém onde só estavam 360 instruendos, ao passo que no CISM em Tavira e no RI5 nas Caldas da Rainha estariam cerca de 1200, em cada lado, e onde os chumbos não teriam chegado às duas dezenas. Era a tropa a funcionar no seu melhor.

Porque as conversas são como as cerejas, aproveito para recordar que o Capitão Carvalho de Andrade que acima referi, morreu na Guiné em 25 de Julho de 1970, num desastre do helicóptero, que vinha a voar em linha – eram três helis - e que caiu no Rio Mansoa devido a um tornado. Naquele helicóptero vinham quatro Deputados à Assembleia Nacional - Dr. James Pinto Bull, Dr. José Pedro Pinto Leite, Dr. Leonardo Coimbra e José Vicente de Abreu que também morreram nesse acidente assim como a tripulação do Heli.
As buscas duraram vários dias, com trabalho exaustivo de forças da Marinha, e só foram recuperados dois corpos, sendo um do Dr. Leonardo Coimbra e o outro do Capitão de Cavalaria Carvalho de Andrade, cujo corpo esteve em câmara ardente passados uns dias na Sé de Bissau, onde eu tive oportunidade de lhe prestar as minhas últimas homenagens.

Três dias depois da tragédia do Heli, em 28 de Julho de 1970, morre Salazar, e as atenções da Comunicação Social, apesar de nunca terem sido muito activas, porque a censura escondia tudo e mais alguma coisa que se referisse à guerra, aos mortos e aos acidentes, mesmo assim passam para segundo plano o impacto com o desastre da Guiné e creio que foi mais um assunto que caiu no esquecimento.

Para terminar, eu que só queria contar a história da noite mais longa da minha recruta, acabei por me esticar desde o 4.º trimestre de 1967 até ao último de 1970. Aliás, sempre foram mais de 38 meses de tropa, dos quais mais de 25 na Guiné.

As minhas desculpas a quem teve a coragem e a paciência suficientes para ler todo este escrito. Obrigado.

Carlos Pinheiro
16.06.18
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18026: Estórias avulsas (88): Recordações da minha passagem por terras da Guiné, vaca morta junto ao arame farpado (Abel Santos, ex-Soldado Atirador Art.ª)

Guiné 61/74 - P18802: Convívios (865): XXXIII encontro anual da CART 3494 (Xime e Mansambo, 1972/74) - Seia, 9 de junho de 2018 (Jorge Araújo)

Foto nº 1 > Oliveira do Hospital > Nogueira do Cravo > Capela do Senhor das Almas,  local do XXXII Encontro-convívio da CART 3494... Foto de família.


Jorge Alves Araújo, ex-Furriel Mil, Op Esp /RANGER,  
CART 3494 (Xime-Mansambo, 1972/1974): nosso coeditor


XXXIII ENCONTRO/CONVÍVIO ANUAL DA CART 3494
"OPERAÇÃO SENHOR DAS ALMAS, NOGUEIRA DO CRAVO - SEIA"

EM 9 DE JUNHO DE 2018


1. INTRODUÇÃO

Quarenta e quatro anos após o seu regresso à Metrópole (Lisboa), depois de cumprida a sua Missão Ultramarina no TO da Guiné, no período de 1971 a 1974 [correspondente a vinte e oito meses], o contingente da Companhia de Artilharia 3494 [CART 3494], a terceira Unidade de quadrícula do BART 3873 [Bambadinca], que esteve aquartelado no Xime, Enxalé, Mansambo e Ponte do Rio Udunduma, continua activo, realizando as suas "operações" anuais [encontros/convívios] em diferentes regiões do território nacional.

Recorda-se, a propósito, que este projecto foi iniciado em 1986, com o (re)agrupar das/dos tropas, com a 1.ª edição a ser realizada em 14 de Junho desse ano, no Restaurante «O Frangueiro», em Aver-o-Mar, Póvoa de Varzim. 

O Encontro deste ano, o XXXIII consecutivo, teve lugar no passado dia 9 de Junho, sábado, na região Centro, também conhecida pela «Região das Beiras», com o colectivo dos ex-combatentes a ter de cumprir as suas tarefas em dois distritos: Coimbra e Guarda.

No primeiro caso, no lugar da Capela do Senhor das Almas, a um quilómetro da freguesia de Nogueira do Cravo, Município de Oliveira do Hospital, verificou-se a chamada, e o "controlo", das quatro dezenas de ex-combatentes disponíveis para esta acção, onde foi preparado o «golpe de mão» à Tabanca «Restaurante Pastor da Serra», sito no Município de Seia, distrito da Guarda.


2. O DESENROLAR DAS ACÇÕES


A organização desta edição XXXIII, que esteve a cargo do camarada José do Espírito Santo Vicente, de Nogueira do Cravo, previa a concentração a partir das 09h30 para os mais madrugadores, como era o caso dele, pois tinha de dar o exemplo como o mais responsável e, naturalmente, como anfitrião.

Foto nº 2 > Capela do Senhor das Almas, Nogueira do Cravo,
Oliveira do Hospital
Com o decorrer do tempo, cada um dos ex-combatentes, acompanhado dos seus familiares, foi chegando no seu meio de transporte ao local previamente acordado – Largo da Capela do Senhor das Almas (imagem ao lado) – depois de ter percorrido mais ou menos quilómetros em função do início da viagem. Os mais atrasados (e houve alguns) não tiveram outra alternativa senão ir directamente para o local do "ataque", em Seia.

Para uma estimativa das distâncias até Seia, referem-se alguns exemplos: de Coimbra (98 kms), da Guarda (67 kms), de Viseu (45 kms), de Lisboa (298 kms), do Porto (163 kms) e de Viana do Castelo (235 kms).

Os ex-combatentes da CART 3494 que compareceram na Capela Senhor das Almas, freguesia de Nogueira do Cravo, ei-los aqui  na «foto de família» [vd. foto acima].

Era meio-dia quando se deu início à marcha da "Coluna Auto(móvel)", num percurso de vinte e dois kms pela Estrada Nacional 17, rumo ao objectivo, em Seia. Aí chegados, cada um dos membros ocupou a sua posição em redor dos diferentes alvos de modo a cumprir, com sucesso, a sua missão individual em interacção com os seus camaradas, dela fazendo depender, justamente, o sucesso colectivo das "forças" mobilizadas.

Durante a operação tudo decorreu como planeado, pelo que no final a satisfação era plena para os oitenta participantes, que uma vez mais recuperaram muitas das suas memórias de tensões e emoções da "aventura africana". Houve música, muita animação, e por último cantou-se os parabéns por mais um aniversário. Nessa ocasião voltámos a erguer os nossos copos brindando aos presentes e aos ausentes, com votos de felicidades e de muita saúde para todos, no sentido de no próximo ano podermos repetir, no mínimo, os resultados agora obtidos e, se possível, com mais presenças.

Despedimo-nos até ao próximo Encontro Anual – o XXXIV – a realizar no dia 1 de Junho de 2019, sábado, no Município de Montemor-o-Velho, organização a cargo do camarada António de Sousa Bonito. Até lá…

3.  FOTOGALERIA


Foto nº 3


Foto nº 4

Fotos nº 3 e 4 > Salão do Restaurante Pastor da Serra durante o convívio da CART 3494


Foto nº 5  > O camarada José Vicente, organizador do Encontro, na companhia de sua esposa.



Foto nº 6


Foto nº 7

Fotos nºs 6 e 7 > Actuação do dueto musical do XXXIII Encontro, que esteve brilhante, constituído pelos camaradas Américo Russa, ex-Furriel Vagomestre da CCS do BArt 3873, e Acácio Correia, ex-Alferes do 3.º Gr Comb da CArt 3494. [Ambos membros da nossa Tabanca Grande]



Foto nº 8 >Sousa de Castro e João Godinho


Foto nº 9 > Da esquerda para a direita, Américo Russa, Jorge Araújo e António Bonito


Foto nº 10 > Bolo comemorativo do XXXIII Encontro/Convívio dos ex-combatentes da CART 3494.

Fotos (e legendas): Jorge Araújo e Sousa de Castro (2018).

Como nota final, dá-se conta que entre o Encontro de 2017 e o deste ano o colectivo da CART 3494 perdeu mais três membros, a saber:

● António Alves Ramos (sold) – Alvoco da Serra, Seia († 7 de Julho de 2017);

● Orlando Bilro Bagorro (1º sarg) – Damaia, Amadora († ? de Fevereiro de 2018);

Augusto Vieira Fidalgo (sold) – Santa Marinha, Vila Nova de Gaia († 4 de Abril de 2018).

Considerando que estes casos não mereceram a devida atenção durante o Encontro, por esquecimento colectivo, que só mais tarde foi notado, importa agora reparar esse lapso tornando público estas ocorrências, ao mesmo tempo que endereçamos aos familiares dos três camaradas falecidos as nossas mais sentidas condolências.

Obrigado pela vossa atenção.

Com um forte abraço de amizade.

Jorge Araújo

13JUN2018
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Nota do editor:

Último poste da série > 30 de junho de 2018 > Guiné 61/74 - P18796: Convívios (864): VIII Encontro da CCAÇ 1586, "Os Jacarés" (Piche, Ponte Caium, Nova Lamego, Béli, Madina do Boé, Bajocunda, Copa, Canjadude, 1966/68): os cinquenta anos do regresso, comemorados em 19 de maio p.p., em Abrantes (Jorge Araújo)

Guiné 61/74 - P18801: Notícias (extravagantes) de uma Volta ao Mundo em 100 dias (António Graça de Abreu) - Parte XXXVII: Mascate, sultanato de Omã, onde a água pode ser mais cara do que o petróleo...




Muscat (ou Mascate, sultanato de Omã ) > A grande mesquita, mandada construir pelo sultão Qaboos bin Said Al Said (n. 1940)



Fotos (e legendas): © António Graça de Abreu(2018). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Continuação da publicação das crónicas da "viagem à volta ao mundo em 100 dias" [3 meses e oito dias], do nosso camarada António Graça de Abreu.

Escritor, poeta, sinólogo, ex-alf mil SGE, CAOP 1 [Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74], membro sénior da nossa Tabanca Grande, e ativo colaborador do nosso blogue com cerca de 220 referências, é casado com a médica chinesa Hai Yuan, natural de Xangai, e tem dois filhos, João e
Pedro. Vive no concelho de Cascais. Deu recentemente, em 20 de junho passado,  uma longa entrevista (c. meia hora) ao canal Sporting TV, programa Conversas na Lua, sobre a sua história de vida, a sua obra literária e a sua "relação especial" com a China e a cultura chinesa. Vd. aqui o vídeo em You Tube > Sporting Clube de Portugal.

Hai Yuan e António Graça de Abreu

2. Sinopse da série "Notícias (extravagantes) de uma Volta ao Mundo em 100 dias" (*)

(i) neste cruzeiro à volta do mundo, o nosso camarada e a sua esposa partiram do porto de Barcelona em 1 de setembro de 2016; [não sabemos quanto despenderam, mas o "barco do amor" deve-lhes cobrado uma nota preta: c. 40 mil euros, no mínimo, estimamos nós];

(ii) três semanas depois de o navio italiano "Costa Luminosa", com quase três centenas de metros de comprimento, sair do Mediterrâneo e atravessar o Atlântico, estava no Pacífico, e mais concretamente no Oceano Pacífico, na Costa Rica (21/9/2016) e na Guatemala (24/9/2017), e depois no México (26/9/2017);

(iii) na II etapa da "viagem de volta ao mundo em 100 dias", com um mês de cruzeiro (a primeira parte terá sido "a menos interessante", diz-nos o escritor), o "Costa Luminosa" chega aos EUA, à costa da Califórnia: San Diego e San Pedro (30/9/2016), Long Beach (1/10/2016), Los Angeles (30/9/2016) e São Francisco (3/4/10/2017); no dia 9, está em Honolulu, Hawai, território norte-americano; navega agora em pleno Oceano Pacífico, a caminho da Polinésia, onde há algumas das mais belas ilhas do mundo;

(iv) um mês e meio do início do cruzeiro, em Barcelona, o "Costa Luminosa" atraca no porto de Pago Pago, capital da Samoa Americana, ilha de Tutuila, Polinésia, em 15/10/2016;

(v) seguem-se depois as ilhas Tonga; visita a Auckland, Nova Zelândia, em 20/10/2016;

(vi) volta pela Austrália: Sidney, a capital, e as Montanhas Azuis (24-26 de outubro de 2016);

(vii) o navio "Costa Luminosa" chega, pela manhã de 29/10/2016, à cidade de Melbourne, Austrália; visita à Austrália Ocidental, enquanto o navio segue depois para Singapura; o Graça de Abreu e a esposa alugam um carro e percorrem grande parte da costa seguindo depois em 8 de novembro, de avião para Singapura, e voltando a "apanhar" o seu barco do amor...

(viii) de 8 a 10 de novembro. o casal está de visita a Singapura, seguindo depois o cruzeiro para Kuala Lumpur, Malásia (11 de novembro);  Phuket, Tailândia (12-13 de novembro); Colombo, capital do Sri Lanka ou Ceilão ou Trapobana (segundo os "Lusíadas", de Luís de Camões. I, 1), em 15-16 de novembro. de 2016;

(ix) na III (e última) parte da viagem, Graça de Abreu e a esposa estão, a 17 de novembro de 2016, em Cochim, na Índia, e descobrem a cada passo vestígios da presença portuguesa; a 18, estão em Goa, seguindo depois para Bombaím (20 e 21 de novembro de 2016);

(x) com 2 meses e 20 dias, depois da Índia, os nossos viajantes estão Dubai, Emiratos Árabes Unidos, passando Muscat, o sultanato de Omã, em data que já não podemos precisar, de qualquer modo já estamos em finais de novembro ou já  princípios de em dezembro de 2016; a viagem vai terminar em Roma.


Viagem de volta ao mundo em 100 dias > Muscat, sultanato de Omã [s/d, finais de novembro de 2016] (pp. 17-19], da terceira e última Parte]


O António, tendo atrás o forte de Muttrah
Muscat, sultanato de Omã

Desde o mar, vários fortes, tipo castelo, plantados em montes escalavrados, pontilham o horizonte quase circular da baía de Muscat. Foram construídos em finais do século XVI pelos inevitáveis portugueses, aquela gente aventureira e doida de quem herdei o sangue e que um dia resolveu ir lavrar o mar, e deixar na vastidão do mundo um padrão, uma cruz, um pendão soluçante.

O forte de Muttrah, assim como os outros próximos, de nome Al Marani e Al Jalali (São João) - estes dois agora encaixados nos espaços de um dos palácios do sultão de Omã -, estão impecavelmente restaurados e conservados. Todos fechados ao público, o forte de Muttrah funciona ainda hoje como instalação militar e, no alto, é bem visível uma bateria de modernos canhões apontados à entrada da baía.

Muscat [, em português, Mascate]foi conquistada por Afonso de Albuquerque em 1507 e desde então funcionou como um lugar estratégico para os portugueses nas rotas entre a Índia, o Golfo Pérsico e o Mar Vermelho. Hoje, este sultanato de Omã, três vezes maior do que Portugal, conta com 4,5 milhões de habitantes, metade dos quais são imigrantes, muitos deles sazonais.

A maior parte do território estende-se por inóspitos desertos aparentemente esquecidos. Mas é aí, sob milhões de toneladas de areia, que descansam imensas jazidas de petróleo e gás natural, o ouro vermelho escuro e os hidrocarbonetos incolores que enchem de dólares os cofres do sultanato. 

O sultão Qaboos bin Said Al Said está no poder desde 1970, é senhor de uma enorme fortuna, tem já setenta e seis anos de idade, mas aparece em fotografias espalhadas por tudo quanto é sítio aparentando uns quarenta [, foto à direita]. Possui três palácios na Europa, em Marbella, Espanha, na Inglaterra e na Alemanha. 

No porto de Muttrah, Muscat, em frente ao nosso Costa, estão ancorados três grandes iates que lhe pertencem e dizem-me que tem mais dois navios para se passear, atracados noutros portos de Omã. Conta também com sete palácios no sultanato, onde reside alternadamente, saltitando de um para outro. Ninguém costuma saber exactamente em que palácio se encontra o sultão que, só de longe em longe, se dá à vista de quem quer que seja, mas que me dizem ser um benemérito para o seu povo, estimado pela maioria dos omanis, os cidadãos do sultanato. 

Nos quarenta e sete anos de poder do sultão Qaboos, o território de Omã mudou muito. No passado, eram conhecido como entreposto de escravos, terra de pescadores e plataforma de venda de armas brancas, sobretudo adagas, punhais e cimitarras de variados tamanhos, e de eficácia garantida, comprovada. A descoberta do petróleo em 1964 veio alterar, por completo, o estatuto e as realidades de Omã. O actual sultão - quando jovem educado em Inglaterra e na Alemanha -, tem acompanhado inteligentemente o crescimento da região, retirando daí os benefícios a que acha ter direito e, com tantos dólares a inundarem-lhe os palácios e os iates, melhora também as condições de vida da população.

Muscat, que cresceu, a partir de Muttrah neste espaço da baía, vive do turismo e dos pequenos negócios. Recomendo a ida ao souk, o mercado e zona comercial, não muito diferente dos souks de outros países árabes, onde se vende de tudo, de ouro a babuchas, de especiarias às adagas, de perfumes aos estilizados vestidos de seda, mais toneladas de quinquilharia, a preços baratos. E como são vaidosas algumas mulheres muçulmanas! Sob o niqab negro, a túnica que lhes cobre todo o corpo, excepto a fresta dos olhos, usam roupa de costureiros franceses, à venda também neste souk, garante-me o guia local.

Por detrás da baía e dos montes de pedra acastanhada, que delimitam Muttrah, a sul e a oeste, abre-se a grande Muscat com quase um milhão de habitantes. Partimos em busca da maior mesquita do sultanato de Omã, a uns quinze quilómetros de distância. Trata-se de um conjunto arquitectónico recentemente concluído, com uma torre e quatro minaretes, pouco capaz de encher o olho ao turista em viagem mas que será, por certo, um excelente lugar para os muçulmanos rezarem a Maomé e pedirem as generosas bênçãos de Alá. 

Atravessamos a zona dos ministérios e vastos complexos habitacionais, mais uma zona de stands de automóveis, Porsches, BMWs, Bentleys, Rolls-Royce. O dinheiro do petróleo, e dos subsequentes negócios, dá para dez mil extravagâncias. Mais adiante, deparamo-nos com uma instalação enorme onde se procede à dessalinização da água do ar. Enormes depósitos guardam a, agora, água doce. A propósito, dizem-me que em Muscat chove em média cinco dias por ano, apenas em Dezembro e Janeiro, por isso a água, fundamental para todas as vidas, pode ser mais cara do que o petróleo.

(Continua)

Guiné 61/74 - P18800: Notas de leitura (1080): História das Missões Católicas na Guiné, por Henrique Pinto Rema; Editorial Franciscana, Braga, 1982 (7) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Outubro de 2016:

Queridos amigos,
Chegámos à penúltima etapa, a atividade missionária entre 1955 e 1973.
Em 1955, a Missão da Guiné Portuguesa foi elevada à categoria de Prefeitura Apostólica. É um período de construções e de intensificação da ação educativa e existencial. Em 1961, começa o refluxo missionário com a chegada de contingentes militares que ocupam instalações de muitas missões, e muitos missionários, por insegurança, abandonam lugares. Como observa o Padre Pinto Rema, a atividade missionária foi apanhada entre dois fogos, e dá o exemplo do Padre António Grillo, da Missão de Bambadinca, que ainda é recordado pelos muçulmanos e animistas de Bambadinca, Samba Silate e Nhabijões.

Um abraço do
Mário


História das Missões Católicas na Guiné, por Henrique Pinto Rema (7)

Beja Santos

Prevíamos ser este o texto derradeiro da necessariamente longa recensão à incontornável obra “História das Missões Católicas da Guiné”, por Henrique Pinto Rema, Editorial Franciscana, 1982. Não será assim, haverá ainda um texto sobre as missões católicas na República da Guiné-Bissau.

O período ora em análise compreende 1955 até 1973. Temos agora os franciscanos na Prefeitura Apostólica. Com efeito, em 1955, a chamada Missão da Guiné Portuguesa foi elevada à categoria de Prefeitura Apostólica. D. Martinho Carvalhosa, franciscano português, é confirmado como Prefeito Apostólico. O gesto da Santa Sé coroava o esforço missionário dos últimos 15 anos. O autor descreve assim D. Martinho:  
“Sempre insatisfeito com os outros, ele está em toda a parte a dar palavra de ordem aos seus padres e religiosos e aos seus professores-catequistas. Como construtor de igrejas, de capelas, de residências missionárias e de escolas, os gerentes das casas fornecedoras de materiais, os administrativos da Guiné e os encarregados das obras estão-lhe constantemente no pensamento para lhes regatear preços e pedir descontos especiais em ajudas. Ele próprio empenha, em meados de 1954, ao Banco Nacional Ultramarino, o seu vencimento de 500 contos, depois de ter obtido autorização da Santa Sé e do seu conselho missionário”.

E segue-se ume esclarecimento importante:  
“Monsenhor Carvalhosa está a par dos movimentos subversivos, ainda subterrâneos, em 1955. Acompanhá-los-á de perto e com ansiedade, até à sua manifestação violenta na madrugada de 21 de Julho de 1961, no ataque a S. Domingos. Ele previu o que representavam as greves dos estivadores no cais do Pidjiquiti nos dias 6, 7 e 8 de Março de 1956 e os recontros então havidos com as forças da ordem, as organizadas debandadas para território estrangeiro (aliás sempre notadas pelo Superior da Missão de Bula em 1956 na sua área), a existência de certos grupos de orientação política e rácica e a rebelião do Sul contra os impostos”.

Monsenhor Carvalhosa regressa à metrópole em Setembro de 1962, sucede-lhe o Padre João Ferreira, que chega a Bissau no ano seguinte. Por razões de saúde, retira-se em 1965. Nas ausências dos Prefeitos Apostólicos tomou quase sempre conta do expediente da Circunscrição Missionária da Guiné o Padre Amândio Neto, franciscano português que chegara a Bolama em 1941.

Pois bem, os franciscanos da Província de Santo António de Veneza chegam a Bissau em 1955, logo entre eles D. Settimio Ferrazzetta, que irá ter um papel da maior importância na tentativa de reconciliação entre as partes em litígio no dramático período do conflito político-militar no fim do século. Até ao ano de 1969 a única congregação feminina que exerceu atividade na Guiné foi a das Irmãs Franciscanas Hospitaleiras da Imaculada Conceição. Em 1969, a Prefeitura pediu ao governo da Guiné a entrada de mais uma congregação irmãs religiosas estrangeiras, as Missionárias Franciscanas do Coração Imaculado de Maria, com sede em Roma.

Um apontamento sobre a ação educativa. Em Julho de 1954, Monsenhor Carvalhosa escrevia: “Na Guiné é absolutamente certo que a diferença entre o indígena das nossas escolas e os assimilados é nula ou simplesmente mínima”. Um acontecimento político acabou por contribuir para a melhoria da ação educativa na esfera missionária. O Governador Melo e Alvim chega à Guiné no início de Janeiro de 1954 e logo se lançou nos preparativos da viagem do Presidente da República General Craveiro Lopes, que ocorreu em Agosto de 1955. Apareceu dinheiro e as obras começaram a sair dos alicerces. Escreveu então o Prefeito Apostólico: “Foi possível que durante 18 meses, em construções, movimento escolar, assistência e meios culturais as missões católicas avançassem 10 anos”. Mas as dificuldades eram inúmeras, como escreve Pinto Rema:  
“O pessoal docente era formado nas escolas das Missões de Bula e Bafatá. Os rapazes dali saídos não eram muitos nem possuidores de grande bagagem cultural. No entanto, tal pessoal docente era único capaz de se sujeitar a todos os ambientes e a trabalhar nas piores condições. A ausência de escolas de adaptação no Leste da província da Guiné explica-se pela extensão enorme daquela área, servida unicamente pelas missões de Bafatá e Bambadinca e sem meios de transportes capazes para a tal constante fiscalização, sempre necessária”.
Na ação assistencial, ganha relevo o histórico que o investigador apresenta acerca da leprosaria de Cumura.

Bastante interesse tem também o conjunto de notas que o autor intitula “As Missões da Guiné na conjuntura da guerrilha”. As instalações das missões vão sendo sacrificadas com a chegada de contingentes militares. Logo a Missão de Mansoa foi a primeira a ser sacrificada com entrega ao Exército do pavilhão acabado de construir, em Maio de 1961. O Governador Peixoto Correia pediu à Prefeitura, em Junho de 1961, a cedência de duas salas, do refeitório e dos sanitários da missão de Bula. Foi ocupada a escola missionária de Mansabá e também a Missão de Suzana foi ocupada em Outubro de 1961. Nesse mesmo mês, o comandante militar pede à Prefeitura o edifício das Missões de Catió e depois Teixeira Pinto, Bambadinca, Ingoré e Xitole. Tudo muda em Bissau com o êxodo provocado pela guerra e o autor descreve detalhadamente o funcionamento das missões neste período crítico. Dar-se-ão conflitos entre missionários e as Forças Armadas. Veja-se o exemplo da Missão de Bambadinca que atingiu diretamente um missionário altamente prestigiado e que trabalhava na área populosa de Samba Silate e Nhabijões. Vindo de férias em Abril de 1962, o Padre António Grillo vê-se entre dois fogos, guerrilheiros do PAIGC e Forças Armadas, os grupos comandados por Domingos Ramos já estão ativos. O Padre Grillo vê-se envolvido, é preso em Fevereiro de 1963 e recambiado para Itália. A Missão de Bambadinca é ocupada pelo Exército que nunca mais a abandonou. Pinto Rema explica que o mal funcionamento das escolas no mato é fenómeno anterior à chegada da guerrilha, mas o período de subversão a partir de 1962 alterou tudo. Falando ainda de Bambadinca, diz o autor que as escolas da Ponta do Inglês, Ponta Luís Dias, Finete e Santa Helena não abriram em Outono desse ano por falta de frequência dos alunos e por causa da intranquilidade da área. A guerrilha iria afetar profundamente a atividade missionária em todo o território, incluindo Bissau e os Bijagós.

(Continua)
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Nota do editor

Poste anterior de 25 de junho de 2018 > Guiné 61/74 - P18776: Notas de leitura (1078): História das Missões Católicas na Guiné, por Henrique Pinto Rema; Editorial Franciscana, Braga, 1982 (6) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 29 de junho de 2018 > Guiné 61/74 - P18790: Notas de leitura (1079): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (41) (Mário Beja Santos)

domingo, 1 de julho de 2018

Guiné 61/74 - P18799: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulos 59 e 69: vê, pela primeira vez, enfermeiras, brancas, paraquedistas; apercebe-se igualmente da guerra psicológica; queixa-se de a namorada não receber o correio em setembro e outubro de 1973... Faz circular pelo quartel um texto a apelar a uma maior união dos "serrotes", numa crítica implícita ao capitão, por quem não morre de amores... Sabe, por fim, da declaração unilateral da independência do território através da Rádio de Argel...



Guiné > Uma propaganda pérfida e cínica, a do regime de Salazar-Caetano, que criou nas populações africanas a falsa (e trágica) ilusão de que eram portuguesas, tão portuguesas como os minhotos ou os alentejanos; por outro lado, minimizou e desprezou os combatentes do PAIGC, reduzindo-os ao estatuto de pobres mercenários, por conta de interesses estrangeiros, a quem se podia estender facilmente uma nota de 1000 pesos em troca da sua rendição e da entrega da sua arma...

Trata-se de material (muito pobre e tosco, muitas vezes escrito em português e não em crioulo...) de propaganda das NT, documentação essa  recolhido pelo nosso grã-tabanqueiro da 1.ª hora, o ex-1.º cabo enfermeiro José Teixeira (CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70), régulo da Tabanca de Matosinhos...

Fica-se na dúvida sobre o público-alvo: os pobres soldados e quadros milicianos a quem era preciso incutir e reforçar permanentemente a ideia de que, na Guiné, era a Pátria que estava em perigo; ou os os coitados dos guineenses, que nem sequer sabiam onde ficava Lisboa e quem era o homem grande de Lisboa...

Fotos (e legenda): © José Teixeira (2005). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita, "Em Nome da Pátria") do nosso camarada José Claudino Silva [foto atual à esquerda] (*):

(i) nasceu em Penafiel, em 1950, "de pai incógnito" (como se dizia na época e infelizmente se continua a dizer, nos dias de hoje), tendo sido criado pela avó materna;

(ii) trabalhou e viveu em Amarante, residindo hoje na Lixa, Felgueiras, onde é vizinho do nosso grã-tabanqueiro, o padre Mário da Lixa, ex-capelão em Mansoa (1967/68), com quem, de resto, tem colaborado em iniciativas culturais, no Barracão da Cultura;

(iii) tem orgulho na sua profissão: bate-chapas, agora reformado; completou o 12.º ano de escolaridade; foi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor de dois livros, publicados (um de poesia e outro de ficção);

(iv) tem página no Facebook; é avô e está a animar o projeto "Bosque dos Avós", na Serra do Marão, em Amarante;

(ix) é membro n.º 756 da nossa Tabanca Grande.


2. Sinopse dos postes anteriores:

(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;

(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, da dos percursos de "turismo sexual"... da Via Norte à Rua Escura;

(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depois da recruta; promovido a 1.º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3.ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74);

(iv) chegada à Bissalanca, em 26/6/1972, a bordo de um Boeing dos TAM - Transportes Aéreos Militares; faz a IAO no quartel do Cumeré;

(v) no dia 2 de julho de 1972, domingo, tem licença para ir visitar Bissau, e fica lá mais uns tempos para um tirar um curso de especialista em Berliet;

(vi) um mês depois, parte para Bolama onde se junta aos seus camaradas companhia; partida em duas LDM para Fulacunda; são "praxados" pelos 'velhinhos' (ou vê-cê-cês), os 'Capicuas", da CART 2772;

(vii) faz a primeira coluna auto até à foz do Rio Fulacunda, onde de 15 em 15 dias a companhia era abastecida por LDM ou LDP; escreve e lê as cartas e os aerogramas de muitos dos seus camaradas analfabetos;

(viii) é "promovido" pelo 1.º sargento a cabo dos reabastecimentos, o que lhe dá alguns pequenos privilégio como o de aprender a datilografar... e a "ter jipe";

(ix) a 'herança' dos 'velhinhos' da CART 2772, "Os Capicuas", que deixam Fulacunda; o Dino partilha um quarto de 3 x 2 m, com mais 3 camaradas, "Os Mórmones de Fulacunda";

(x) Dino, o "cabo de reabastecimentos", o "dono da loja", tem que aprender a lidar com as "diferenças de estatuto", resultantes da hierarquia militar: todos eram clientes da "loja", e todos eram iguais, mas uns mais iguais do que outros, por causa das "divisas"... e dos "galões"...

(xi) faz contas à vida e ao "patacão", de modo a poder casar-se logo que passe à peluda; e ao fim de três meses, está a escrever 30/40 cartas e aerograma as por mês; inicialmente eram 80/100; e descobre o sentido (e a importância) da camaradagem em tempo de guerra.

(xii) como "responsável" pelo reabastecimento não quer que falte a cerveja ao pessoal: em outubro de 1972, o consumo (quinzenal) era já de 6 mil garrafas; ouve dizer, pela primeira vez, na rádio clandestina, que éramos todos colonialistas e que o governo português era fascista; sente-se chocado;

(xiii) fica revoltado por o seu camarada responsável pela cantina, e como ele 1.º cabo condutor auto, ter apanhado 10 dias de detenção por uma questão de "lana caprina": é o primeiro castigo no mato...; por outro lado, apanha o paludismo, perde 7 quilos, tem 41 graus de febre, conhece a solidariedade dos camaradas e está grato à competência e desvelo do pessoal de saúde da companhia.

(xiv) em 8/11/1972 festejava-se o Ramadão em Fulacunda e no resto do mundo muçulmano; entretanto, a companhia apanha a primeira arma ao IN, uma PPSH, a famosa "costureirinha" (, o seu matraquear fazia lembrar uma máquina de costura);

(xv) começa a colaborar no jornal da unidade (dirigido pelo alf mil Jorge Pinto, nosso grã-tabanqueiro), e é incentivado a prosseguir os seus estudos; surgem as primeiras dúvidas sobre o amor da sua Mely [Maria Amélia], com quem faz, no entanto, as pazes antes do Natal; confidencia-nos, através das cartas à Mely as pequenas besteiras que ele e os seus amigos (como o Zé Leal de Vila das Aves) vão fazendo;

(xvi) chega ao fim o ano de 1972; mas antes disso houve a festa do Natal (vd. cap.º 34.º, já publicado noutro poste); como responsável pelos reabastecimentos, a sua preocupação é ter bebidas frescas, em quantidade, para a malta que regressa do mato, mas o "patacão", ontem como hoje, era sempre pouco;

(xvii) dá a notícia à namorada da morte de Amílcar Cabral (que foi em 20 de janeiro de 1973 na Guiné-Conacri e não no Senegal); passa a haver cinema em Fulacunda: manda uma encomenda postal de 6,5 kg à namorada;

(xviii) em 24 de fevereiro de 1973, dois dias antes do Festival da Canção da RTP, a companhia faz uma operação de 16 horas, capturando três homens e duas Kalashnikov, na tabanca de Farnan.

(xix) é-lhe diagnosticada uma úlcera no estômago que, só muito mais tarde, será devidamente tratada; e escreve sobre a população local, tendo dificuldade em distinguir os balantas dos biafadas;

(xx) em 20/3/1973, escreve à namorada sobre o Fanado feminino, mas mistura este ritual de passagem com a religião muçulmana, o que é incorreto; de resto, a festa do fanado era um mistério, para a grande maioria dos "tugas" e na época as autoridades portuguesas não se metiam neste domínio da esfera privada; só hoje a Mutilação Genital Feminina passou a a ser uma "prática cultural" criminalizada.

(xxi) depois das primeiras aeronaves abatidas pelos Strela, o autor começa a constatar que as avionetas com o correio começam a ser mais espaçadas;

(xxii) o primeiro ferido em combate, um furriel que levou um tiro nas costas, e que foi helievacuado, em 13 de abril de 1973, o que prova que a nossa aviação continuou a voar depois de 25 de março de 1973, em que foi abatido o primeiro Fiat G-91 por um Strela;

(xxiii) vai haver uma estrada alcatroada de Fulacunda a Gampará; e Fulacunda passa a ter artilharia (obus 14); e o autor faz 23 anos em 19 de maio de 1973; a 21, sai para Bissau, para ir de férias à Metrópole; um grupo de 10 camaradas alugam uma avioneta, civil, que fica por um conto e oitocentos escudos [equivalente hoje a 375,20 €];

(xxiv) considerações sobre o clima, as chuvas; em 19/5/1973, faz 23 anos... e vem de férias à Metrópole, com regresso marcado para o início de julho de 1973: regista com agrado o facto de o pai, biológico, ter trazido a sua tia e a sua avó ao aeroporto de Pedras Rubras para se despedirem dele;

(xxv) vê, pela primeira vez. enfermeiras, brancas, paraquedistas; apercebe-se igualmente guerra psicológica; queixa-se de a namorada não receber o correio; mada um texto para o jornal "O Século" que decide fazer circular pelo quartel e onde apela a uma maior união do pessoal da companhia, com críticas implícitas ao capitão por quem não morre de amores...


3. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 57 e 58

[O autor faz questão de não corrigir os excertos que transcreve, das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. E muito menos fazer autocensura 'a posterior', de acordo com o 'politicamente correto'... Esses excertos vêm a negrito. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, quem o criou. ]


59º Capítulo  > AS NOTAS DE IMITAÇÃO E A PSIQUE

É apenas em finais de Agosto [de 1973] que me refiro a um pequeno acontecimento relacionado com a guerra.

Um grupo de milícias (nome dado a combatentes locais voluntários) veio participar connosco numa operação e é nessa altura que me apercebo doutra espécie de guerra. A guerra psicológica. Saibam o que levaram para o mato.

26 de Agosto de 1973:

“Como normalmente faço quando completo mais um mês aqui te envio um postal que acho encantador, espero que gostes também. Essa imitação é de uma nota de mil escudos da Guiné, é para guardar como recordação. Essas notas são feitas para serem espalhadas pelo mato para convencer alguns “turras” a entregarem-se, é uma das psicologias adoptadas pelo nosso governo a ver se convencem que o nosso lado é melhor”.

Esclareço que essa nota pedia aos homens do mato para se entregarem às tropas portuguesas e entregarem a sua arma, em troca de dinheiro e comida.

(Tive o prazer de oferecer a nota de mil escudos, a que me refiro, ao núcleo de ex-combatentes da cidade da Lixa, concelho de Felgueiras, estando exposta na sua sede).

Rapidamente voltei à música e à literatura.

O Silva, o tal de Almada mas que eu dizia ser de Lisboa, foi telegrafista. Era o tipo do Racal. Foi com ele que comecei a gostar de Lisboa, indo ao ponto de mesmo hoje lamentar não viver na capital.

Conversávamos muitas vezes sobre a diferença entre a cidade e a aldeia e não minto se disser que também com o Silva de Lisboa ou de Almada,  como queiram, aprendi a desenvolver-me em alguns aspectos, de forma a evoluir intelectualmente. Foi ele quem me pôs a ouvir Isaac Haies [1942-2008]e a gostar de Soul, Blues e Jazz. Também com ele aprendi o código dos radiotelegrafistas. Um Alfa Bravo para todos.


60.º Capítulo > INACREDITÁVEL

Registado no meu mapa de correspondência, em Setembro de 1973, e só para a Amélia, enviei 33 cartas e aerogramas, além de um postal de aniversário. Ela não recebeu nenhuma correspondência.

Em Outubro do mesmo ano, enviei 34; ela recebeu 5.

Não posso afirmar categoricamente qual foi a razão do desaparecimento do meu correio, mas tudo se vai complicar para mim e creio que, para todos nós, após eu ter enviado para o jornal O Século um artigo de opinião da minha autoria.

O texto não foi publicado no jornal e nem sei se lá chegou. Mesmo assim, decidi divulgá-lo pelo quartel. Foi este texto.

CONVERSAS EM FAMÍLIA.

Fulacunda Guiné

Nós precisamos de apoio moral, não queremos ser uma “série” que dominada, apenas trabalha com as pernas, precisamos de nos sentir apoiados e livremente dirigidos.

Nós temos receio de expor problemas, porque nos sentimos coibidos na presença dos nossos superiores e então, exteriorizamos em massa; apoiando-nos uns nos outros aquilo que sentimos.

Os nossos superiores em minha opinião, deviam dizer “os meus homens” mais vezes, mas como um pai diz “os meus filhos”.

A nossa família é de facto uma família? Se é, porque não temos mais conversas?

A hierarquia militar não nos permite um lugar-comum. No entanto haveria a meu ver, uma melhor ligação entre superiores e subordinados se os primeiros vivessem mais de perto com os seus homens.

Não haverá possibilidades de uma Maior união entre todos os “Serrotes”?

Será muito pedir que sejamos tratados como homens que somos?

União na terra entre homens de boa vontade.

José Claudino da Silva 

1.º Cabo N.º 158532/71

PENSEM E ACREDITEM SE QUISEREM! O CASTIGO POR CAUSA DISTO FOI MUITO GRAVE.

Em Outubro de 1973 eu soube, através duma rádio, que diziam emitir de Argel, que a Guiné tinha declarado a independência no dia 24 de Setembro de 1973 em Medina do Boé. Se assim fosse, eu estava a lutar num país estrangeiro.

Sem precisar de transcrever nada, tal a irrelevância do que escrevi nesses dias, somente um caso que na altura me pareceu um tanto ou quanto invulgar. Quero partilhar:

“Antes de te falar romanticamente quero informar-te que hoje veio aqui um helicóptero e nele vinham duas moças pára-quedistas brancas foram para uma operação no mato e por causa do nevoeiro tiveram de aterrar aqui. Com estas duas, são três as mulheres brancas que vi em Fulacunda. Quando puderam partir levaram correio, espero que desta vez recebas”.

Pela primeira vez fiquei a saber que na Guiné havia mulheres pára-quedistas a intervir em combate.
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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P18798: (Ex)citações (338): Quem não sabe beber, que beba m..., dizia um durão de Bambadinca... Mas, camaradas e amigos, era mesmo m... a famosa "água de Lisboa" que nos chegava aos nossos quartéis para matar a nossa dor e a nossa sede... (Luís Graça / Virgílio Teixeira)



Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > Núcleo Museológico Memória de Guiledje > Otubro de 2010 > Restos arqueológicos... uma garrafa de Bussaco (sumo de ananás ou laranja), marca que era (e ainda é) comercializada pela Sociedade de Refrigerantes Buçaco, Lda, empresa familiar fundada em 1921... Mas podia ser uma garrafa de vinho verde Casal Garcia, ao "ventre da guerra" não faltava anda do "uísque escocês" à "água de Lisboa"... Foto do nosso saudoso Pepito (1949-2012).

Foto (e legenda): © Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2018). Todos os direitos reservados


Guiné > Região de Tombali > Bedanda > CCAÇ 6 (1972/73) > Legenda: "Nesta foto está o Figueiral em frente (ao meio) de óculos escuros e a comer uma cabritada com a garrafa de Casal Garcia à frente. Eu estou do lado esquerdo da foto, com o frigorífico atrás de mim. De costas para a foto está o Pinto Carvalho. Do lado direito da foto, em primeiro plano está o Alferes Bastos, o homem do obus (Alf de Artilharia) e logo a seguir, portanto à esquerda do Figueiral, está um segundo tenente de que não me recorda o nome. Era habitual haver um abastecimento via barco por mês e que vinha sempre escoltado pela Marinha, ficando o Oficial instalado lá no quartel [, em Bedanda, na margem esquerda do Rio Cumbijã]"

Foto (e legenda): © António Teixeira (1948-2013) / Blogue Luís Graça & Caramadas da Guiné (2013). Todos os direitos reservados



 1. Um camarada nosso, que passou como eu por Bambadinca,  era pouco ou nada tolerante para com as bedeiras... dos outros, sobretudo quando mexiam com a sua "área de conforto"...  Costumava ele comentar, com ar sarcástico, nessas ocasiões em que o deus Baco falava mais alto que os outros deuses todos do Olimpo:  "Quem não sabe beber, que beba... merda!"... 

O adágio ficou, e acho que se tornou um dos 10 anti-mandamentos  do bar de Sargentos de Bambadinca... (O primeiro devia ser, se bem me lembro: "O camelo só bebe de oito em oito dias,  não sejas camelo"...).  Afinal, aprendemos a "beber", e a beber com conta, peso e medida, nessa grande escola que foi a tropa e a guerra... em matérias de álcoois etílicos... (Claro que hoje o mandamento é outro, por razões de saúde: Não sejas burro, sê camelo, bebe muita água...).

Também não vou citar, por razões óbvias, o nome do meu querido camarada... até porque é meu amigo e vizinho... e faz parte do 'quadro de honra' da Tabanca Grande!... Mas por outro lado, se ele me ler, e como sei que ele tem sentido de humor, não me vai por certo levar a mal... Nem ele nem ninguém, incluindo os "meninos copos de leite" que também os havia, embora poucos, no meu tempo...

Cardinas, cadelas, carpantas, carapantas, carraspanas, pifos, pielas, tosgas, bezanas, narsas, bubas, borracheiras... afinal, quem não as/os apanhou?  Do sacristão ao capelão, do básico ao senhor major, do furriel ao capitão, do corneteiro ao escritas... quem não apanhou o seu "pifozito"? 

Pretextos não faltavam: o calor, a distância, as saudades, a depressão, a solidão, a camaradagem, a festa, a guerra, a morte... E meios para matar a sede e a dor também não faltavam, do uísque ao vinho do Porto, da "água de Lisboa" até ao "vinho de cana", mesmo intragável que este fosse  para o palato mais avariado do "tuga"...

Uma ressalva: nunca se bebia sozinho, ninguém apanhava cardinas sozinho, era tudo ao molhe e fé em Deus... Uma garrafa era para se partilhar... Uns aguentavam-se melhor do que outros, os "velhinhos" tinham mais treino ou mais manhas do que os "periquitos"... Primeira regra de oiro: nunca faças misturas... Enfim, são tudo histórias para contar... aos bisnetos, se a gente lá chegar aos netos e depois aos bisnetos...

Os nossos soldados fulas, que eram abstémios por prescrição da sua religião muçulmana, bem nos avisavam: "Eh, furriel, água de Lisboa, manga de cabeça grande"!... O que eles não sabiam era que a "água de Lisboa" que chegava aos rios e braços de mar da Guiné, do Geba ao Cacine, do Corubal ao Cacheu, era mesmo uma... "merda". Ou uma "zurrapa", uma palavra que continuamos usar para dizer vinho mau, estragado ou que sabe mal...

Não se sabe muito bem qual a origem da palavra, mas pode ser do castelhano... "Zurrapa" [s. f., quer dizer, segundo o dicionário de castelhano, "brizna o pequeña porción de materia que se halla en los líquidos y que poco a poco se va sentando y formando poso" (...): "el café está lleno de zurrapas"].

"Vinho a martelo", também se dizia na época... Estava na moda, quando regressei da Guiné, o "vinho a martelo", uma mistura hidroalcoólica que era depois "queimada" nas destilarias da região, às claras ou às escondidas...

Também se falava em "vinho batizado" com água do cais do Beato, no estuário do Tejo... Era ali que ficavam os grandes armazéns de conhecidos comerciantes de vinhos,  a granel, que terão feito belas  fortunas a mandar pipas de vinho marado para o preto e para o tuga...

Costuma-se, de resto, citar, com ou ou sem rigor histórico, um destes homens que fizeram fortuna no tempo em que beber vinho era dar de comer a um milhão de portugueses... Terá feito questão de lembrar, antes de morrer, aos herdeiros, filhos e netos, o segredo do sucesso da sua vida e dos seus negócios "Não se esqueçam, meus filhos, que das uvas também se faz vinho"... A história pode ser anedota, mas encerra uma verdade cruel...


2. Vinho de uvas, e bom... quem o bebeu na Guiné? Poucos, afinal, porque o bom era raro e caro... Mas temos aqui, no nosso blogue, alguns "expertos" nesta matéria... E que já aqui falaram há dias "de cátedra"sobre o tema (*)... 

Vamos lá recuperar alguns dos seus comentários, seria um pena "perdê-los" (**).

(i) Virgílio Teixeira:

(...) O que eu me lembro eram todas as bebidas alcoólicas, de todo o tipo até às mais caras, nem preciso de dizer os nomes pois era de tudo. O tabaco a mesma coisa, desde o Português Suave até ao Gitane e outras. Bebidas só me lembro das seguintes que eram misturadas com o álcool. Águas Perrier, Vichy, ambas francesas, e Castelo Portuguesa, para misturar com o Whisky. Depois a Tónica da Schweppes para o Gin, normalmente Gordon's.

Outras bebidas, tipo Fanta também me lembro, Laranjinha ou Laranjina C, Cocas, eu não era cliente destas bebidas doces. A laranjada Convento não me parece ter visto. Quase nem me lembro de que marca era a cerveja, normal ou bazuca, Sagres ou Cristal? Água apenas raramente bebia, só mesmo misturada com whisky e muito gelo.

Vinhos verdes também tinha, mas mandava vir para mim, de Bissau ou da Metrópole. Com isto fazia inveja e inimizades com os oficiais superiores que bebiam aquela zurrapa das pipas de vinho branco feito a martelo e misturadas com água do Rio Geba. Ninguém se embebedava com aquilo, além disso era servido 'ao quente'.

As latas de que falei de frutas da África do Sul, isso havia muita lata, mas não sei o nome de nenhuma marca, lamento. Estas latas, também nós a utilizávamos, como 'tipo chuveiro'. Na casa de banho, havia um bidão de 500 litros, do gasóleo, depois enchia-se diariamente de água que vinha dos camiões, como não havia sistema de chuveiro, utilizávamos estas latas de frutas para deitar pela cabeça abaixo e assim tomava-se o banho. Muito mais tarde inventou-se um sistema de os bidões ficarem por cima do telhado, uns tubos,  umas grelhas e uma torneira e lá tínhamos os chuveiros, um luxo. Só que no banho de fim de tarde era uma desilusão, a água saia muito quente, pois estava exposta ao sol, não servia. Então voltamos ao bidão no WC, para os banhos da tarde, e para os da manhã já servia o chuveiro, pois durante a noite não baixava mais do que 20º, talvez. Enfim, histórias. (...)

(ii) Tabanca Grande Luís Graça:

(...)" aquela zurrapa das pipas de vinho branco feito a martelo e misturadas com água do Rio Geba" (...). Dizes bem, Virgílio.

Foi na Guiné que eu, e muitos de nós, aprendemos a conhecer o "vinho verde branco"... Marcas como a Aveleda, as Três Marias, o Gatão, o Lagosta... eram muito procuradas. E eram caras, quase tanto como um garrafa de uísque novo... Aquela "trampa", gazeificada, fresca, sabia "pela vida"... E os otários pagavam 35 pesos por uma garrafa!... Um luxo!...

Ora, eu hoje suspeito que muito do vinho verde que a gente lá bebia era feito "a martelo"... Uma parte seria da minha região, a Estremadura Oeste, que tinha vinhos brancos, de baixo grau alcoólico... e que seguiam para o Porto, em camiões-cisterna, para depois serem misturados com os verdes, gaseificados e exportados para a Guiné, para a tropa, para o "tuga", para o "preto".

Hoje sou produtor de vinho verde, uma aventura que me aconteceu por via... uterina. E sei um pouco mais da história do vinho verde... Nos anos 60, pouco vinho branco se fazia, na região demaracada, a maior do país... talvez 10% no total... O forte era o "tinto", muito dele oriundo de "produtores diretos" como o Jaquet  (lê-se "Jaquê"...),  que resistiam a tudo o que eram doenças e não precisava de "tratamento"... Hoje é proibido, felizmente...

Fizeram-se grandes fortunas com os "engarrafados" e os "entalados", durante a "guerra do Ultramar".. Infelizmente é assim, em todas as guerras... O "vinho verde" (mas também as "conservas de peixe") foi o "volfrâmio" de alguns, poucos, que encheram os bolsos com a nossa fome e a nossa sede...

Nós, o Zé Soldado, fez a guerra, comeu e bebeu merda... Como sempre, em todas as guerras...


(iii) VirgílioTeixeira:

(..)" aquela zurrapa das pipas de vinho branco feito a martelo e misturadas com água do Rio Geba" (...)

Quero esclarecer que bebi muita daquela zurrapa, era vinho branco escuro, sem sabor, misturado com gelo, ou ao natural, com um pouco mais de álcool. O vinho verde, esse, mandava vir de vez em quando, e bebia mesmo na messe fazendo natural inveja, digo eu agora, mas não era essa a ideia.
Aquela zurrapa, normalmente, dava volta aos intestinos, e as diarreias e outros males intestinais eram devido também a esse vinho, isto para 'pessoas mais delicadas'!!!

Li que a malta da Intendência, brancos e pretos, nos barcos com os abastecimentos, furavam as pipas, bebiam metade e emborrachavam-se e depois para pôr ao nível juntavam água do rio, e por vezes álcool etílico e assim enganavam as tropas. E fizeram-se,  como bem dizes grandes fortunas às custas disto, mas quem nesse tempo pensava nisso? Eu não.


(iv) Tabanca Grande Luís Graça:

Também aprendemos a beber o "Mateus Rosé"... Em dia de festa, lá se puxava pela nota e mandava-se vir um "Mateus Rosé"... Que chique!... O dinheiro escorria, sujo e feio, era o "patacão da guerra"...


(v) Virgilio Teixeira:

Havia nos vinhos verdes vários tipos de 1.ª classe:

Em primeiro o Casal Garcia - já o bebia antes da tropa, e ainda hoje está na moda - o Gatão, o Aveleda e o Lagosta,  tudo dentro do mesmo nível.
Depois os 3 Marias, eram garrafas de 2.ª classe, eram de 1 litro, e não era de rolha, mas sim de cápsula. Vendia-se muito em Bissau, quando ia comer ao Zé d'Ámura os passarinhos fritos com molho picante, ele servia esse vinho e bebia-se uma garrafa num abrir e fechar de olhos. Os outros eram servidos nos melhores restaurantes, portanto mais caros, talvez fossem ao preço de uma garrafa de whisky da tropa.

O Mateus Rosé nunca bebi isso na Guiné, porque pensava que era doce. Aliás só comecei a beber cá depois da tropa, quando casei em 1970; lembro-me bem que nos dias 25 de cada mês - data do meu casamento e dia de receber o pré no meu emprego - ia a um restaurante na Povoa de Varzim - O Ricardo, hoje é mais um Tourigalo - comer uns camarões tigre fritos com piripiri, quando eles ainda eram relativamente baratos, e bebíamos uma garrafa de Mateus Rosé, e até fiz uma pequena coleção delas vazias. Coisas do passado.

(...) Transcrição de uma passagem do que escrevi no meu livro (inédito), acerca do vinho, copiei agora, e não está longe do que tinha dito atrás.

A mistura que faziam nas barcaças, era com água salgada, não era álcool etílico como disse, aliás se eles o tivessem bebiam mesmo álcool puro, penso eu!

O vinho gelado em garrafa e as invejas na messe de oficiais: Durante muito tempo eu mandava vir da metrópole caixas de vinho verde branco que era nessa altura o célebre Casal Garcia em garrafa ou então o Aveleda em botijas tipo garrafão redondas. E mais tarde vinha mesmo do comércio local de Bissau, caixas e caixas de vinho verde. 

O que era servido na messe de oficiais era de pipa, e era rasca, muito fraco, era misturado com água salgada e fazia-se negócio com ele, mas ainda bebi muito quando não havia outro e sinto ainda hoje esse cheiro e sabor, pois normalmente não estava gelado nem fresco por falta de frio nos frigoríficos, e por isso as canecas com essa bebida que vinham para a mesa eram acrescentadas de blocos de gelo das arcas, mais fácil de conseguir e por isso era meio vinho e meio água. 

Eu não gostava nada daquilo. Sinto ainda o sabor amargo desse líquido de cor castanha a que chamavam de vinho branco. As minhas garrafas eram metidas na arca frigorífica, e para mim vinha uma garrafa com vinho geladinho, às vezes até era mesmo congelado, e a pingar no copo, aquilo fazia uma inveja de morte a todos, mas em especial ao meu inimigo especial, o major Henriques, que no meio da refeição perguntava alto onde é que eu arranjava esse vinho, ao que eu respondia que o comprava com o meu dinheiro, mas ele insistia que isso custava muito, e eu lá lhe respondia que em vez de deixar a maior parte do meu vencimento em casa, ficava sim com ele todo na Guiné, e então preferia comer e beber bem em vez de ter dinheiro para quando regressasse, pois nem sequer sabia se regressava ou não. (...)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 25 de junho de 2018 > Guiné 61/74 - P18777: Fotos à procura de...uma legenda (106): "As sobras do rancho da tropa"... e as latas de conservas, "made in Portugal", que as crianças levavam à cabeça (Valdemar Queiroz / Museu de Portimão / Virgílio Teixeira)

(**) Último poste da série > 16 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18640: (Ex)citações (337): A propósito das deserções nas fileiras do PAIGC, há um provérbio africano que diz "Todos os cães podem ser bravos, mas são mais bravos dentro das suas moranças", o mesmo quer dizer, dentro dos seus "chãos" (Cherno Baldé, Bissau)

Guiné 61/74 - P18797: Parabéns a você (1464): Silvério Lobo, ex-Soldado Mec Auto do BCAÇ 3852 (Guiné, 1971/73)

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Nota do editor

Último poste da série de 30 de Junho de 2018 > Guiné 61/74 - P18793: Parabéns a você (1463): Manuel Maia, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4610 (Guiné, 1972/74)