sexta-feira, 10 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18911: Notas de leitura (1090): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (46) (Mário Beja Santos)

Bolama, vestígios do quartel-general, fotografia de Francisco Nogueira, retirada, com a devida vénia, do livro “Bijagós Património Arquitetónico”, Edições Tinta-da-China, 2016


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Janeiro de 2018

Queridos amigos,
O que temos hoje a oferecer para leitura é variado. Antes de mais, nesta década de 1920 foram lançados empreendimentos que não chegaram a bom porto, expetativas não faltavam, corria a fama que as terras da Guiné eram luxuriantes, de Norte a Sul. Não é por acaso que se inicia a exposição com os belos propósitos da Companhia de Fomento Nacional, investiu-se muito e correu tudo mal, irá a seguir a Sociedade Agrícola do Gambiel. Fala-se também da Companhia Estrela Farim e das imensas propriedades que Vítor Gomes Pereira desbaratou. E há cenas de intriga, com veneno à mistura, do gerente de Bolama, já em contencioso com Bissau e a dizer cobras e lagartos de Velez Caroço.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (46)

Beja Santos

Introdução 
De V. Senhorias para V. Exas.

A década de 1920 vê surgir alguns empreendimentos agrícolas que se julgavam ter futuro. Não acontecerá assim, darão todos com os burrinhos na água, a despeito de muitas expetativas. Logo a Companhia de Fomento Nacional, em Aldeia do Cuor, ocupando em parte os regulados de Cuor, Joladu e Mansomini. Na resposta dada em 16 de Fevereiro de 1923 ao gerente do BNU em Bissau, tudo são promessas, veja-se o que se conjeturava a partir de um farto documento enviado da sede, Rua Augusta, 176, 2º, Lisboa:
“A linha de confluência entre as terras altas e as lalas que pelo exame da planta da concessão facilmente se verifica ser extensíssima e quase sempre guarnecida de palmeiras de Dendém em povoamentos mais ou menos densos, devendo o seu número subir alguns milhões, constituindo uma grande riqueza a explorar.
As suas instalações em Aldeia, na margem do rio Geba, com dois portos para embarque e desembarque, cobertas de telha, possuindo instalação eléctrica, cobrem já uma grande superfície (e descrevem-se as construções). Estas construções todas indispensáveis para a vida da exploração representam muitas centenas da exploração de metros quadrados de alvenaria, muitos metros cúbicos de madeiramentos e milhares de telhas e não se levantavam hoje se não com muitas centenas de contos.
Devemos ainda mencionar 9 quilómetros de estradas de penetração, não contado com os 20 ultimamente construídos pela circunscrição (de Bafatá) assim como 20 quilómetros de caminhos diversos e ainda duas pontes lançadas sobre o rio Gambiel que permitem a sua travessia por todos os nossos mecanismos de lavoura e transporte”.

Segue-se ainda uma descrição minuciosa do que já está cultivado. Não foi um êxito, tempos depois o empreendimento passou a ter outra designação, Sociedade Agrícola do Gambiel.

Outra empresa que parecia votada ao sucesso era a Companhia Estrela Farim, o seu diretor dirigia-se ao governador de BNU nestes termos em 9 de Março de 1924:
“A Companhia Estrela Farim possui na Guiné Portuguesa uma das mais vastas e belas propriedades, 25 mil hectares ocupando cerca de 12 quilómetros da margem do rio Cacheu, acessível a embarcações de 3 mil toneladas.
Esta propriedade acha-se no começo de exploração agrícola e possui instalações e maquinismos adquiridos no valor de cerca de 700 contos.
Tem a companhia os seus estudos feitos para uma exploração susceptível de larguíssimo desenvolvimento futuro, compreende duas culturas principais e o aproveitamento dos palmares existentes de muito mais de um milhão de palmeiras de coconote, cujos frutos os indígenas trarão à permuta desde que se encontrem quem lhes forneça artigos apropriados às suas necessidades de consumo. As duas culturas principais serão o gergelim e o tabaco.
Para realizar este trabalho a companhia carece do auxílio do BNU, precisa de um crédito contracorrente prestado em dinheiro em notas da Província da Guiné, constituído pelas seguintes importâncias: até 31 de Março do corrente, 50 contos; e em cada um dos meses subsequentes 20 contos, num total de 230 contos”.

Encontrar-se-á em diferentes relatórios a verberação, tanto de Bolama como em Bissau, de que estas empresas eram mal geridas, mal planeadas, nunca se visualizava uma relação efetiva com os agricultores locais, sempre ciosos por agricultar as suas coisas, remunerando mal e sem nunca oferecer contrapartidas sociais. Um poderoso empresário do Sul, Vítor Gomes Pereira, dissipará o seu capital, milhares e milhares de hectares das suas terras passarão para a posse do BNU.

Estamos agora em 1925 e surgem sinais claros de arrufos entre Bolama e Bissau, nunca mais se extinguirão até ao momento em que a filial de Bolama desaparecer. Vejamos uma queixa de Bolama enviada para Lisboa em 6 de Julho de 1925:
“Pedimos há tempo à agência de Bissau para nos comprar ali uma porção de sacos; estes sacos destinavam-se ao embarque da mancarra do nosso cliente Vítor Gomes Pereira, que nos está consignada a mancarra.
A agência de Bissau, quando nos enviou o documento do custo dos sacos, incluiu no mesmo uma comissão de 1% para si.
Baseado no artigo 312 do Regulamento das Dependências, reclamámos contra aquela comissão, mas aquela agência, com o fundamento em que os sacos não eram para uso próprio desta filial mas sim para um cliente, insistiu naquela exigência, não só naquela compra como em outras que lhe se seguiram.
Pondo de parte a alegação de que os sacos não eram para uso da filial, alegação que não merece contestação, resta o muito trabalho que causa a compra dos sacos. Não compreendemos como aquele serviço possa causar muito trabalho, quando ele pode ser feito tão simplesmente mandando um contínuo ou praticante às casas que costumam vender aquele artigo, perguntar se o tem e quanto custa e depois em face das informações dizerem: mandem tantos sacos. O embarque dos mesmos também não demanda muito trabalho, nem a interferência de nenhum empregado superior, pois se resume a saber quando vêm uma lancha para Bolama e mandar pôr a bordo dessa lancha os referidos sacos.
Seja, porém, como for, o que é certo é que o artigo 312 do Regulamento é taxativo e bem explícito, não fazendo referência alguma ao maior ou menor trabalho que os serviços recíprocos possam ocasionar, e tanto assim que aquela agência, em anos anteriores, já nos tem prestado iguais serviços sem reclamação da comissão.
A termos de pagar aquela comissão, não é lícito carregarmos ao cliente duas comissões, uma para esta filial e outra para a agência de Bissau, temos de chegar à conclusão que esta filial terá de trabalhar gratuitamente em serviços dos seus clientes, para ir dar interesses à agência de Bissau.
O nosso colega, em face da nossa insistente reclamação, propôs agora que aquela comissão seja dividida pelas duas dependências e sugere-nos que, caso não estejamos de acordo, para apresentarmos a nossa reclamação perante V. Exas., o que nós vimos fazer, não tanto pela importância daquelas comissões, que é relativamente diminuta, mas como uma questão de princípio a estabelecer para outros negócios de, porventura, maior importância”.

Logo Lisboa respondeu: “O número 312 do Regulamento é muito claro e terminante: o serviço prestado pelas dependências entre si é gratuito. Isto mesmo dissemos a Bissau”. Mas as tensões jamais serão aplacadas.

Data de 16 de Novembro de 1926 um documento enviado por Bolama a Lisboa sobre a situação da colónia, o Governador Velez Caroço está na berlinda:
“Como alguns jornais de Lisboa iniciaram ultimamente uma campanha contra o governador da Guiné, parece-nos oportuno informar V. Exas, imparcialmente, do que aqui se está passando.
Desde há meses a esta parte que se vem notando nesta colónia um movimento de desagrado à administração do Governador Velez Caroço.
Rompeu hostilidades, ostensivamente, o Capitão de Engenharia João Pedro da Costa com um relatório dirigido ao ministro das Colónias, verberando a administração do governador, que classifica de perdulária.
Este relatório foi organizado um tanto levianamente, ressentindo-se falta de provas jurídicas, e não sortiu o efeito que o autor desejava: uma sindicância àquilo a que o governador chama a sua obra. Dizem-nos que o governador facilmente destruiu as acusações que lhe foram feitas. O certo, porém, é que o Capitão João Pedro da Costa não foi até hoje castigado militarmente por ter acusado um seu superior sem o ter feito pelas vias competentes.
Pouco depois era o Engenheiro Costa secundado na campanha pela Associação Comercial de Bissau, elegendo como seu representante para o Conselho Legislativo o Dr. Alçada Padez, advogado naquela cidade e particular amigo do Engenheiro João Pedro da Costa.
Passaram então a revestir certo interesse para o público as sessões do conselho legislativo, onde o Dr. Padez entrou em franca oposição, comentando, por vezes acaloradamente, a administração do governo da Guiné.
Entretanto o governador seguiu para Lisboa. Dá-se a revolta militar e o governador embarca apressadamente para o seu posto.
Como todos contavam que o governador pedisse a demissão, a pouco e pouco foram perdendo o medo que ele inspirava e por todas as esquinas eram comentadas desfavoravelmente tanto a administração dos dinheiros públicos como a sua adesão ao governo militar”.

O gerente de Bolama tudo vai comentando sobre estes confrontos, quem é quem no baluarte da oposição, em que constituem os ataques aos Caroços, pai e filho, um governador, outro Secretário dos Negócios Indígenas e Comandante da Polícia. A campanha “anti-carocista” atinge o auge, mas o gerente de Bissau não deixa de dizer que parece que o atual ministro das colónias mantém por tudo quanto se está passando na Guiné um desprezo superior, e lança o seu veneno:
“Nas repartições públicas nada se faz. Em Bolama sente-se uma atmosfera densa de terror. As perseguições aos funcionários que não votaram com o governador não se fizeram esperar. Inventam-se intentonas. Houve tropas de prevenção, com metralhadoras e tudo. Quase se não respira.
Não nos move a mais leve animosidade contra o senhor Governador Velez Caroço, com quem mantemos amistosas relações pessoais, mas não podemos, imparcialmente deixar de reconhecer que não são sem fundamento a maioria das acusações que lhe fazem.
Há esbanjamentos, há imoralidades e o orçamento é uma ficção”.

(Continua)





Reproduz-se na íntegra a troca de correspondência a propósito de um acontecimento embaraçante para o BNU da Guiné: a República da Guiné aparecia com uma moeda nova, estava estabelecido o caos nos mercados do interior, que valor se podia atribuir ao franco guineense? Era esta a pergunta-chave, para qual não se encontrava resposta, houve que proceder a consultas. Era esta a primeira grande dor de cabeça que vinha do regime de Sékou Touré
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Notas do editor:

Poste anterior de 3 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18892: Notas de leitura (1088): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (45) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 6 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18901: Notas de leitura (1089): Nó Cego, por Carlos Vale Ferraz; Porto Editora, 2018 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P18910: Memória dos lugares (378): Restaurante, pensão e "boite", o Chez Toi fazia parte do roteiro de "Bissau, by night"... O estabelecimento situava-se na rua engº Sá Carneiro... Desdobrável publicitário: cortesia de Carlos Vinhal.













Desdobrável publicitário do "Chez Toi", restaurante, pensão e "boite", sita na rua eng Sá Carneiro. Exemplar da coleção do nosso coeditor Carlos Vinhal. Data: Bissau, 15 de fevereiro de 1971. Parece que em 1973 também era conhecido por "Gato Negro"...

Foto (e legenda): © Carlos Vinhal (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Afinal, em que é que ficamos ? "Nazareno", casa de fados e restaurante (em 1968) ? "Chez Toi", pensão, restaurante e "boite"  (em 1970/71) ? "Gato Negro", de novo casa de fados  (em 1973) ? (*)

O Carlos Vinhal (ex-Fur Mil Art e Minas e Armadilhas da CART 2732 (Mansabá,1970/72),  nosso coeditor, tinhs guardado, no seu "baú",  esta precioso documento a que já tinha feito referência num poste de há 12 anos atrás (**)-

Na altura, no início  de 1971, o Chez Toi era pensão, restaurante e "boite"... O Carlos mandou-nos também  outros documentos, dizendo:

(...) Luís: Junto envio uma factura referente à estadia de dois dias no Hotel Portugal, onde estive na companhia dos camaradas Furriel de Alimentação Costa e Cabo Maciel. Como te deves lembrar, podíamos ser muito ricos, que mesmo assim nos estava interdito o acesso ao Grande Hotel, onde só podiam ficar Oficiais (por mais labregos que fossem) e civis. Nós, os furrielitos, praças e demais maltrapilhos estávamos confinados ao melhor que havia, nomeadamente o Hotel Portugal ou o Chez-Toi.

A propósito do ChezToi, eles tinham um desdobrável, do qual junto parte, que sucessivamente ia aparecendo: Abra com cuidado, Desdobre de vagar e leia com atenção, Vá..., comer..., no..., CHEZ TOI... Especialidade em Cachupa Rica, etc. (...) 

Ora a cachupa é um prato típico cabo-verdiano... Será que a gerência era cabo-verdiana ?

Em 1968/70, o Carlos Pimheiro diz-nos que a casa de fados Nazareno foi  "mais tarde rebatizada de Chez Toi" (***).

O Tó Zé Pereira da Costa, na altura capitão de artilharia, garante que "o Chez Toi chamava-se Gato Negro em 1973"... E acrescenta: "Era a mesma coisa, mas com nome mais pomposo. Até tinha uma fadista que cantava axim, mas tirando isso era uma casa muito respeitável" (***)

No logue Lamparam III, editado pelo nosso amigo e grã-tabanqueiro da primeira hora, Leopoldo Amado,  também enocntrámos uma referência a um guitarrista, guineense,  Zeca Fernandes, que animava as noites de gala do Chez Toi, considerado " um dos primeiros Night Club de Bissau" (****)

2. Destaque, por fim, para o testemunho do nosso camarada Paulo Santiago, ex-comandante do Pel Caç Nat 53 (Saltinho e Bambadinca, 1970/72) ("Uma ida ao Pilão"), para quem o "Chez Toi", em 1972, era um "cabaret chungoso", equivalente hoje a "um bar de alterne":


(...) Foi aí por volta de 30 ou 31 de Março de 1972 que os acontecimentos se passaram. Estava eu em Bissau, de passagem, para mais um mês de férias na Metrópole, embarcava no avião da TAP em 2 de Abril.

O NRP Orion (...)  foi onde jantei naquela noite, a convite do Comandante Rita, sendo também convidado o ten RN [reserva naval] Alves da Silva, conhecido entre nós pelo petit-nom de Eduardinho. Não me lembro da ementa, mas foi excelentemente acompanhada pelos belíssimos néctares existentes na garrafeira daquele navio.

O [alf mil ] Martins Julião estava em Bissau a chefiar a comissão liquidatária da CCAÇ 2701 [, Saltinho, 1970/72]: sabendo que me encontrava a bordo da Orion, apareceu no fim de jantar, ainda a tempo de beber uns uísques.

Por volta da meia-noite, ou ainda mais tarde, resolvemos ir ao Chez Toi, um cabaré chungoso, o que se chama agora casa de alterne. 

Apanhámos um táxi no porto e lá seguímos para a má vida. O Rita, como habitualmente, ainda poderia beber mais uma garrafa nas calmas, eu, o Alves da Silva e o Julião já estávamos um pouco mal tratados. O cabaré estava repleto, já não cabia mais ninguém. Convencemos o empregado a trazer-nos uma Old Parr, mais quatro copos e ali ficámos encostados ao muro a dar conta da garrafa.

Subitamente chega um carro em alta velocidade, Peugeot 404 preto, que faz uma travagem maluca ali em frente, e donde sai o Cap Tomás, ajudante [de campo] do Caco [, gen Spínola]. Vinha bastante encharcado, mas deitou a mão à nossa garrafa bebendo uma boa golada. A única pessoa que ele conhecia bem era o Rita. Queria ir para as gaijas, não sei fazer o quê, naquele estado. Convenceu o Comandante e lá entrámos os quatro para o 404, era o carro da D. Helena [Spínola], onde o único meio sóbrio era o meu amigo Rita." (...).

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(....) Mais tarde, um encontro fortuito ou o retomar de uma velha amizade, viria a ligar o José Carlos ao Duco Castro Fernandes. O irmão deste, o Zeca, do mesmo apelido, considerado na época um bom guitarrista, dava noites musicais de gala no Chez Toi , um dos primeiros Night Club de Bissau. 

Duco aprende com o irmão os segredos da viola e transmite-os ao seu fiel companheiro que se aplica na técnica da utilização do instrumento com uma relevada paixão. Este exercício daria nascimento ao grupo recreativo “Roda Livre” e ao conjunto musical “Sweet Fanda”. Mas a vida não era só a alegria dos momentos de confraternização ou o carinho que brota de um lar familiar. Com a idade, novos desafios se lhe defrontaram. (...)

(ªªªªª) Vd. poste de 24 de novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1314: Estórias de Bissau (8): Roteiro da noite: NPR Orion, Chez Toi, Pilão (Paulo Santiago)

Guiné 61/74 - P18909: Parabéns a você (1478): Alberto Nascimento, ex-Soldado Condutor da CCAÇ 84 (Guiné, 1961/63); Américo Russa, ex-Fur Mil Alimentação do BART 3873 (Guiné, 1972/74) e Tomás Carneiro, ex-1.º Cabo Condutor da CCAÇ 4745 (Guiné, 1973/74)



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Nota do editor

Último poste da série de 9 de Agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18906: Parabéns a você (1477): Anselmo Reis Garvoa, ex-Fur Mil Op Esp da CCAÇ 2315 (Guiné, 1968)

quinta-feira, 9 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18908: Estórias de Bissau (20): A cidade onde vivi 25 meses, em 1968/70: um roteiro (Carlos Pinheiro)... [Afinal o "Chez Toi" era a antiga casa de fados "Nazareno"...]

1. Texto (e fotos) de Carlos Manuel Rodrigues Pinheiro* (ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70), com data de 17 de Abril de 2011 (, já publicado sob o poste P8138) (*).
O Carlos Pinheiro tem cerca de meia centena de referências no nosso blogue e conheceu Bissau como poucos de nós, já que lá viveu 25 meses... Colocado no QG, nas horas também dava uma ajuda no estabelecimento do o seu parente, Costa Pinheiro, estabelecido em Bissau desde os princípios dos anos 50. A casa Costa Pinheiro era uma das boas casas comerciais de Bissau. Achamos oportuno revisitar a cidade de Bissau dos anos de 1968/70 (**)


A Cidade de Bissau em 68/70

Texto e fotos de Carlos Pinheiro

A esta distância no tempo, recordar a cidade de Bissau onde passei mais de 25 meses da minha vida, obrigatoriamente e sem alternativa de escolha, não é fácil, mesmo assim é bom recordar Bissau, para que a memória não esqueça e para que outros possam também recordar e testemunhar.

Bissau era uma cidade simpática onde havia um pouco de tudo e acima de tudo muita tropa, muitos militares em movimento, a chegar, a partir e a estar. Não era uma grande metrópole mas tinha infra-estruturas que uma cidade de província, na Metrópole de então, não tinha, não podia ter e nem tinha que ter. 

Tinha por exemplo um Aeroporto, na Bissalanca, que é certo se confundia de algum modo com a BA 12, já que as pistas eram as mesmas e, aliás, o Boeing da TAP só lá ia uma ou duas vezes por semana, levar de regresso combatentes que tinham vindo de férias, buscar outros em sentido contrário e acima de tudo levar e trazer correio tão indispensável para o apoio moral das tropas e especialmente dos seus familiares cá na santa terrinha. 

Na maior parte do tempo eram os FIAT G91, os T6 e os DO27, para além de outros meios aéreos, os únicos a utilizar as pistas quando eram lançadas Operações onde o apoio aéreo tinha uma preponderância mais que evidente.

E, claro, também era dali que saíam os helicópteros, os Alouette III, para as Operações, mas acima de tudo para fazer as evacuações dos doentes e dos feridos

Tinha também um porto de mar, que por acaso era no rio Geba onde, por vezes, os barcos maiores, o Uíge ou o Niassa, não atracavam.

Mas barcos como o Rita Maria, o Ana Mafalda, o Alfredo da Silva, o Manuel Alfredo, todos da Sociedade Geral, da CUF, esses porque eram mais pequenos, atracavam. Também o Carvalho Araújo, penso que dos Carregadores Açorianos, nos seus últimos tempos de vida, também ali atracava. Mas era um porto com poucas condições. Este último barco, porque tinha pouca autonomia, tinha que ir, na viagem de ida, a S. Vicente, Cabo Verde, meter água e nafta e no regresso, era no Funchal que atestava.

Tinha ainda outro porto, este mais de pesca, o Pidjiguiti, tristemente célebre pelos massacres que precederam a guerra da independência.

Mas tinha o Palácio do Governador, tinha a Associação Comercial, tinha algumas casas apalaçadas de arquitectura tipicamente colonial, tinha um cinema, a UDIB tinha dois campos de futebol, o campo da UDIB e o Estádio dos Cajueiros,  à Ajuda, tinha um comércio florescente, especialmente dominado pelos libaneses, onde tudo se vendia desde o alfinete ao camião, tudo importado, principalmente do Japão, mas também dos States, da Inglaterra, da Escócia, da Itália, da Holanda, da Checoslováquia, da França, etc., e naturalmente da Metrópole.

E Bissau tinha algumas casas que toda a malta conhecia pois era lá que convivia, que matava saudades e acima de tudo matava a fome e a sede. 

Logo à saída do QG havia o Santos, a que simplesmente, mas com muito carinho, chamávamos o “Enfarta Brutos”, onde se comia, talvez a maior febra de Bissau. Parecia que tinha as orelhas de fora do prato, tal era a sua dimensão. Mas as batatas fritas a acompanhar também mereciam respeito. Quanto à cerveja, ela era igual em todo o lado, desde que estivesse bem fresca e isso às vezes conseguia-se e muita até era da Manutenção Militar.

Mas lá em baixo, na cidade, tínhamos outras casas emblemáticas. Tínhamos a Solmar, que não tinha nada a ver com a outra de Lisboa, mas que já era um bom restaurante que também vendia muita cerveja para acompanhar as ostras e o camarão.

Tínhamos o Solar do 10, casa mais pequena mas mais requintada, onde por vezes à noite se cantava o fado depois de uma jantarada ou ceia.

Tínhamos o Zé da Amura onde se comiam uns chispes que iam para lá enlatados não sei de onde, mas que, à falta de melhor, eram apreciados.

Tínhamos, na Praça Honório Barreto, o Internacional, o Portugal e o Chave de Ouro, tudo cafés/cervejarias mas também onde se comiam umas febras ou uns bifes, quando havia.

Mas na Avenida principal [ , a Av da República], que ía do porto ao Palácio do Governo, também havia o Bento, café e esplanada característica da cidade a que vulgarmente nós, os militares, chamávamos de “5ª Rep.” já que o Quartel-general só tinha 4 Rep, 4 Repartições.

Para a malta, ali era portanto a 5ª repartição onde quem chegava do mato se encontrava com os residentes, onde se trocavam informações e onde, se dizia, que essas informações vadiavam ali dum lado para o outro do conflito. Ao lado do Bento,  mais para o interior, era a Bolola, onde esteve o Serviço de Material, depois transferido para Brá, e onde era o Cemitério que ainda guarda os restos mortais de muitos camaradas nossos.

Nessa avenida estavam talvez as maiores casas comerciais. Por exemplo a Casa Gouveia, da CUF, que vendia ali de tudo e que tudo comprava o que os naturais produziam, principalmente a mancarra (2), o Banco Nacional Ultramarino, o banco emissor da Província, o Cinema UDIB e ao lado uma boa gelataria, mais acima, a Pastelaria, Padaria e Gelataria Império, assim baptizada por estar já na Praça do Império onde se situava o Palácio do Governo e  a Associação Comercial.

Também era nessa Avenida que estava a Sé Catedral, templo de linhas tão simples quanto austeras.

A caminho de Brá e da SACOR, havia um local chamado Benfica onde havia um café com o mesmo nome e onde se apanhavam os transportes para os vários quartéis daquela zona como eram o Hospital Militar 241, o Batalhão de Engenharia 447, os Comandos, os Adidos e mais à frente a BA 12 e o BCP 12 [, em Bissalanca]..

Mas havia outros estabelecimentos dignos de recordação. A casa de fados Nazareno, mais tarde rebaptizada de Chez Toi, a Meta com as suas pistas de automóveis eléctricos, e como novidade também apareceu naquela altura O Pelicano, café-restaurante construído pelo Governo e explorado por privados, com uma belíssima vista sobre o Geba e avenida marginal.

Na Avenida Arnaldo Shulz, que ligava a Estrada de Santa Luzia à tal SACOR, a caminho de Brá, sempre ao lado do Cupelão [ou Pilão], estava o Comando Chefe das Forças Armadas à esquerda de quem subia, um pouco mais abaixo, os Bombeiros Voluntários de Bissau num grande quartel nessa altura muito bem equipado, a Cruz Vermelha, estes do lado direito e até a sede local da PIDE, que nessa altura já se chamava DGS, também do lado direito mas já junto ao Largo do Colégio Militar.

Era uma avenida nova, como se fosse uma circular urbana onde as boas vivendas também começaram a aparecer.

No princípio da Avenida que ia para Santa Luzia, antes de se chegar ao Hospital Civil, estava o Grande Hotel, nome pomposo do melhor estabelecimento hoteleiro da cidade. O resto era pensões, algumas de quinta escolha.

Mas o comércio de Bissau não era constituído só por cafés, restaurantes e tascas. Havia de tudo. E há nomes que não se esquecem. Para além da Casa Gouveia, o maior empório daquele então Província Ultramarina, como então se dizia, a Casa Pintosinho, a Taufik Saad, a Costa Pinheiro, e muitas outras vendiam de tudo, são nomes que ficaram para sempre na memória.

Havia, claro, várias casas de fotografia, como por exemplo a Agfa perto da Amura, que ganhavam muito dinheiro na medida em que era raro o militar que não tivesse comprado a sua Fujica, Pentax, Nicon, etc., a que davam muito uso. Muitas casas vendiam roupa barata, nessa altura já confeccionada em Macau, especialmente aquelas camisas de meia manga, calças de ganga e sapatos leves.

Era assim Bissau naquela época.

Carlos Pinheiro
 [, Torres Novas,]
16.04.11


2.  Comentário do nosso editor LG:

Recorde-se aqui a "dica" sobre a localização do Chez Toi, dada em tempos pelo nosso amigo Nelson Herbert, jornalista guineense que foi para a América, onde trabalhou na VOA - Voice of America:  era na mesma rua onde ele vivia, e onde ele e os putos seus amigos brincavam com o seu "primeiro carro de rolamentos" (sic), utiliziando para o efeito o "declive que ia dos serviços metereológicos/Boite Cabaret Chez Toi... no cimo da então nossa rua, Engenheiro Sá Carneiro [, subsecretário de Estado das Colónias, que visitou a Guiné em 1947, ao tempo do Sarmento Rodrigue]"... Essa rua era "a mesma da Praça Honório Barreto, do Hotel Portugal, do Café Universal, do Restaurante ou Pensão Ronda... já agora que ia dar ao cemitério, passando lateralmente pelo hospital" e indo dar "à messe dos Sargentos [da Força Aérea]"...
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 20 de abril de 2011 >  Guiné 63/74 - P8138: Memória dos lugares (152): A cidade de Bissau em 1968/70: um roteiro (Carlos Pinheiro)

(**)  Último poste da série > 9 de agosto de  2018 > Guiné 61/74 - P18907: Estórias de Bissau (19): O Pilão e o Chez Toi que eu conheci... (António Ramalho)... Comentários de Valdemar Queiroz, Virgílio Teixeira, Costa Abreu e Juvenal Amado sobre o primeiro "night club" que abriu na capital guineense...

Guiné 61/74 - P18907: Estórias de Bissau (19): O Pilão e o Chez Toi que eu conheci... (António Ramalho)... Comentários de Valdemar Queiroz, Virgílio Teixeira, Costa Abreu e Juvenal Amado sobre o primeiro "night club" que abriu na capital guineense...

1. Mensagem de António Ramalho, ex-fur mil at cav, CCAV 2639 (Binar, Bula e Capunga, 1969/71), natural da Vila de Fernando, Elvas, membro da Tabanca Grande, com o nº 757:

Data: 4 de agosto de 2018 às 10:58
Assunto: O Pilão e o Chez Toi!

Caro Luís, bom dia!

Cada dia,  o bloque que, em boa hora criaste,  me enriquece pela qualidade e conteúdos nele inseridos, fazendo-me recordar temas que o tempo não conseguiu apagar sendo  interessante motivares a sua lembrança. Relembro alguns factos:

(i) Foi no Pilão que pratiquei o meu "primeiro acto social" aquando da minha chegada a Bissau, levado por um célebre taxista, João Kabala!

Foi lindíssimo, pele sedosa...  memórias que guardo com muita graça já que nos preliminares do encontro a avó se retirou da sala de estar,  levando consigo... o penico!

(ii) No Chez Toi, versão francesa, Gato Preto,  versão guineense, há um pormenor que ainda hoje me arrepia,  que era o facto das raparigas ficarem "encurraladas" na cave durante o dia, uma tristeza!

Todavia nunca assisti a cenas desagradáveis como a que referes (*).

Era um pequenino oásis onde nas poucas vindas a Bissau nos esquecíamos do resto...

Tinha um camarada de Engenharia que tudo fez para conseguir retirar uma daquelas raparigas daquele degredo para irem almoçar... Fartou-se de namorar, nunca o conseguiu. Tinha um vestido lindíssimo em seda para lhe oferecer no dia do repasto, mesmo assim teve dificuldade em fazê-lo chegar à destinatária!

(iii) Uma noite, em Lisboa, fomos tomar um copo à Tágide, ironias do destino, reencontrou-a lá!... Estás a imaginar a cena?!... Foi uma festa, até as paredes abanaram, e a Ponte Salazar também, naquele tempo, presumo eu!

Um forte abraço para ti, extensivo a todos os camaradas da Guiné.
António Fernando Rouqueiro Ramalho


2. Comentários ao poste P18895 (*)

(...) Excelente narrativa, até parece que estamos a ver um filme em que é abordado toda a envolvência histórica daquele tempo, incluindo a zaragata e apenas faltou saber como estava vestido o tipo com o bioxene. Excelente guião para um filme. 

Interessante também é eu ter estado por várias vezes em Bissau, duas vezes para vir de férias, uma para entregar material usado e outra a aguardar transporte para Nova Lamego depois de estar internado no Hospital devido a uma grave infeção numa perna, e não conhecer a Chez Toi e agora não me lembrar de sequer ouvir falar. Ficava sempre numa Pensão, na rua do Serviço de Meteorologia, em que tudo era da tropa e até faltava a almofada da cama. (...)


(ii) Virgílio Teixeira:

(...) Eu que já disse que conhecia tudo, e volto a dizer o mesmo, no Pilão em particular, dada a minha facilidade e autonomia de transporte aliada à minha loucura, não sei mesmo onde ficava, ou se já existia no meu tempo [1967/69] o Chez Toi. Não estamos a confundir com 'A Meta' ? (...)

(...) Ando a marrar no Chez Toi, se ele existia no meu tempo eu tinha de conhecê-lo. Em que ano/mês terá sido aberta esta Boite? (...)


(iii) Juvenal Amado:

(...) O meu amigo de infância e dos bailaricos José António prestava serviço na companhia de Transportes de Bissau. Quando fui de férias, o meu amigo conseguiu arranjar um beliche na sua camarata e assim demos uma volta pela a noite de Bissau e passamos à porta do Chez Toi. Não entrei e as estórias que contavam sobre o estabelecimento eram repletas peripécias. Dizíamos por graça que estava para chegar a rendição, para as que lá estavam, no próximo navio. (...)


(iv) Júlio Costa Abreu:

(...) Lembro-me bem do Chez Toi. O dono/gerente era empregado da casa Pintozinho e estava amigado com uma cabo-verdiana do Pilão. Quanto à Meta,  era do Geraldes, dono da casa de fotografia que ficava na mesma rua do Chez Toi e era casado com a Natália que tinha uma pensão junto a casa da fotografia. (...)
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Guiné 61/74 - P18906: Parabéns a você (1477): Anselmo Reis Garvoa, ex-Fur Mil Op Esp da CCAÇ 2315 (Guiné, 1968)

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Nota do editor

Último poste da série de 8 de Agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18903: Parabéns a você (1476): Henrique Martins de Castro, ex-Soldado Condutor da CART 3521 (Guiné, 1971/74) e José Santos, ex-1.º Cabo Auxiliar de Enfermeiro da CCAÇ 3326 (Guiné, 1971/73)

quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18905: Historiografia da presença portuguesa em África (127): Exposição Colonial do Porto, 1934: imagens inéditas para o nosso blogue (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Fevereiro de 2018:

Queridos amigos,
A comitiva guineense impressionará as populações nortenhas, outras comitivas se seguirão, sempre abrilhantadas, com régulos, moranças, reprodução de ambientes, assim será no Parque Eduardo VII, na Exposição Industrial de 1937, na Exposição do Mundo Português, passarão a ser uma atração permanente, darão também brado na efeméride do VIII Centenário da Tomada de Lisboa, em 1947. Há, felizmente, um excelente repertório destas participações, impunha-se no nosso blogue este material esteja convenientemente inventariado. Aqui fica mais uma peça para o inventário.

Um abraço do
Mário


Exposição Colonial do Porto, 1934: imagens inéditas para o nosso blogue

Beja Santos

Publicação encontrada na Biblioteca do Arquivo Histórico do BNU, o guia da mais importante exposição colonial que precede a Exposição do Mundo Português. Realizou-se no Porto, em 1934, o seu coordenador foi Henrique Galvão, contou com uma plêiade de colaboradores de primeira água, logo o fotógrafo Domingos Alvão, de que podemos ver abaixo algumas imagens.

Para Francisco Vieira Machado, Subsecretário de Estado das Colónias, era uma manifestação inequívoca da vitalidade do Terceiro Império, tratava-se do chamamento africano, ia a par da regeneração nacional que se dotara de uma missão civilizadora sem precedentes, transportar os ideais pátrios, a Cruz de Cristo e os valores culturais para abraçar os indígenas com os padrões das quinas, a mítica miscigenação que será tão propalada pelo luso-tropicalismo, sem qualquer ressonância, aliás, em território guineense, a presença branca era bem minguada.

O que para o caso interessa é que a Guiné deu brado, e no blogue já juntámos algumas peças elucidativas. O Augusto irá aparecer em publicidade ao tabaco; a Rosinha foi a beleza eleita, as meninas Bijagós, de peito ao léu e a bambolear-se nas suas saias de ráfia, causaram uma onda de protestos das senhoras que percorriam todo aquele certame e se sentiram vexadas com o público atentado ao decoro e bons costumes. Ainda não tínhamos publicado esta fotografia do régulo Mamadu Sissé, Tenente de 2.ª linha e companheiro de jornada do Capitão Teixeira Pinto que no livro aparece como régulo de Susana, coisa estranha de um Mandinga de quatro costados aparecer implantado em chão Felupe, vemos igualmente a imagem da frontaria da exposição, bem bonita por sinal e arrojada para aqueles anos 1930 em que a Arte-Déco não era vista com bons olhos pelos adeptos da casa portuguesa, com beirais imaginados por Raul Lino.

O BNU fora oportunamente interpelado para enviar elementos sobre as indústrias, a agricultura e os serviços, de Bolama e de Bissau informaram o governo em Lisboa de que havia pouca coisa capaz de ser prantada no certame, fizeram-se uns gráficos e mandaram-se imagens do que havia de melhorzinho, como sinais de progresso.

Foi, indiscutivelmente, uma mostra singularíssima, junto do Palácio de Cristal acorreu muita gente, era hora de ver o que se fazia no tal Império Português, lá tão longínquo, prestaram-se informações sobre negócios, era uma comunicação não só destinada às empresas como procurava seduzir gente disposta a partir para África. A apresentação artística da exposição foi muito cuidada, já aqui falámos do trabalho de Eduardo Malta e de outros na decoração dos diferentes pavilhões[1].
Sem dúvida alguma, foi um grande ensaio para a exposição de 1940.







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Notas do editor:

[1] - Vid postes: P8253; P13511 e P17775

1 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18887: Historiografia da presença portuguesa em África (125): 1917: O BNU na Guiné e as convulsões republicanas (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P18904: O mundo é pequeno e a nossa Tabanca...é Grande (108): O Carlos Silvério, nosso futuro grã-tabanqueiro... n.º 783... Encontrei-o na Lourinhã e ele contou-me o seu... "segredo" ... Também me disse que morou em Bissau, na rua do "Chez Toi", quando lá esteve, casado, com a Zita, em 1972/73...


Oeiras > Algés  > 35.º almoço-convívio da Tabanca da Linha > 18 de janeiro de 2018 >  "O Carlos Silvério, meu amigo, camarada, vizinho e conterrâneo... Veio com a Zita. O casal é lourinhanense... 'Periquitos', na Tabanca da Linha. Ele, furriel miliciano,  da CCAV 3378, andou pelo Olossato e por Brá, antes de a gente fechar as portas da guerra, entre abril de 1971 e março de 1973. A Zita esteve com ele em Bissau... Já o convidei meia dúzia de vezes para se sentar à sombra do nosso poilão... Mas ele diz que prefere o sol... Lugares ao sol..., não temos na Tabanca Grande, só à sombra... Espero que ele ainda entre ao 7.º convite... Ficou a ponderar: parece que o problema é a foto... fardada. Enfim, temos que compreender e respeitar quem tem alergias às fardas" (*)...

Foto: © Manuel Resende (2018). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Encontrei, este domingo passado, o meu amigo e camarada Carlos Silvério (**). Tinha vindo à missa da tarde, aqui na igreja da Lourinhã. Perguntei-lhe pela saúde da sua esposa Zita,  bem como  pelo padre Batalha, prior da freguesia de Ribamar onde ele mora (, e que é um grande amigo da Guiné-Bissau)... Um vai passando melhor, a outra, lá vai lidando (mal) com os seus problemas de coluna... Bem diz o povo: "Até aos quarenta bem eu passo, depois dos quarenta, ai a minha perna, ai o meu braço!"...

Como não podia deixar de ser, sempre que o reencontro, voltei a perguntar-lhe, pela enésima vez, quando é que ele tem pronta (leia-se: digitalizada...) a tal foto do tempo da tropa ou da guerra... Garantiu-me que sim, que a foto já está digitalizada pela sua filha e só ainda não a mandou porque está à espera do nº... 783 para formalmente pedir a inscrição no blogue...

Porquê este "fétiche", esta obsessão com o n.º 783?... Nós só vamos no n.º 776 (***). Faltam, portanto, 7 números para chegarmos ao 783, altura em que ele se quer inscrever... Em boa verdade, e ao ritmo de entrada de novos membros da Tabanca Grande, só daqui a dois ou três meses é que ele nos dará a honra da sua presença, sentando-se então à sombra do nosso poilão...

Ele já tinha feito essa confidência ao nosso coeditor Carlos Vinhal. E, respeitando a sua vontade, vamos ter mesmo que honrar seu pedido. Que é uma ordem, tratando-se de uma camarada da Guiné, e para mais filha da Lourinhã... Vamos então reservar esse número, o 783, para ele.

Vamos lá explicar melhor, para que não se pense que é um capricho dele... O 783 era o seu número de soldado-instruendo na recruta, em Santarém. Acabada a recruta, e quando ele se preparava para ir uns dias de férias, andava a passear com a sua Zita nas ruas de Santarém, quando passa rente a um major de cavalaria... Distraído com a namorada, mal deu conta dos galões amarelos do oficial superior que lhe fez a tangente... Mas ainda foi a tempo de se virar e de lhe bater a pala... O major continuou o seu caminho, mas, matreiro ou sacana, foi dar uma volta e, logo mais à frenre,  virou em sentido contrário  para o apanhar de frente. O Carlos desta vez não foi apanhado desprevenido e fez-lhe, corretamente, a devida continência... Mas o senhor oficial estava mesmo determinado em lixá-lo. Tirou-lhe o número (o 783) por causa da desatenção anterior.

Resultado: quando o Carlos Silvério chegou ao quartel, já tinha a participação do major... Enquanto o  resto do pessoal (cerca de 400)  foi gozar unsmerecidos  dias de licença em casa, o Carlos ficou de castigo no quartel... Seguindo depois diretamente, de Santarém para Tavira,  para o CISMI, numa penosa viagem de comboio que levou toda a noite, ...

Compreensivelmente, o Carlos Silvério "ficou com um pó" aos oficiais de cavalaria, em geral, e aos majores, em particular, nunca mais se esquecendo do seu azarento n.º 783 da recruta em Santarém. Ele é primo do tenente general reformado Jorge Manuel Silvério, nascido em Ribamar, em 1945, e já lhe contou em tempos esta peripécia que o deixou desgostoso em relação à instituição militar...

Está, pois,  explicado o "mistério" do n.º 783... e o desejo de só entrar para a Tabanca Grande depois do n.º 782...

2. Também me disse que gostou muito de ler a minha "short story" sobre o "Chez Toi" (****). Ele morava em Bissau, depois de vir do Olossato, com a Zita, já casado, justamente na rua do "Chez Toi"... Já não se lembra do nome da rua, só sabe que ia dar à  messe dos sargentos da Força Aérea (*****).

De resto, era complicado sair e entrar, numa rua "mal afamada" como aquela, sobretudo de noite, para uma jovem branca, casada, como era o caso da Zita.

Ficamos a saber, pelo depoimento do Carlos Silvério, que o "Chez Toi" existia (ou ainda existia) em 1973/74... Ele e a Zita costumavam ir ao Pelicano jantar e também comer ostras numa casa ali perto.. Eram 25 pesos uma travessa... Também costumavam comprar camarão, acabado de apanhar no Rio Geba, às vendedeiras locais que por ali passavam...

Boa noite, Carlos, fica registado o teu pedido e é hoje divulgado o teu desejo de seres o nosso grã-tabanqueiro n.º 783... Esperemos que, rapidamente, apareçam seis camaradas ou amigos da Guiné para perfazermos o teu número. Fica aqui a nossa promessa: o 783 fica reservado para ti!...

Um beijinho para a Zita, com votos de rápidas melhoras.
Um alfabravo para ti.

(LG)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 22 de janeiro de  2018  > Guiné 61/74 - P18241: Convívios (839): 35º almoço-convívio da Tabanca da Linha, Algés, 18/1/2018 - As fotos do Manuel Resende - Parte II: Tudo gente magnífica... "Caras novas", com destaque para o pessoal da CART 1689, camaradas dos escritores Alberto Branquinho e José Ferreira da Silva

(**)  Último poste da série > 15 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17474: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca ... é Grande (108): Na Lourinhã, fui encontrar o ex-1º cabo at inf Alfredo Ferreira, natural da Murteira, Cadaval, que foi o padeiro da CCAÇ 2382 (Buba, Aldeia Formosa, Mampatá, 1968/70)... e que depois da peluda se tornou um industrial de panificação de sucesso, com a sua empresa na Vermelha (Luís Graça)

(***) Vd. poste de 2 de agosto de 2018 >  Guiné 61/74 - P18891: Tabanca Grande (466): Manuel Gonçalves, ex-alf mil manutenção, CCS / BCAÇ 3852, Aldeia Formosa, 1971/73; ex-aluno dos Pupilos do Exército, transmontano, vive em Carcavelos, Cascais. Senta-se à sombra do nosso poilão, no lugar nº 776.

(****) Vd. poste de  4 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18895: Estórias de Bissau (18): Uma noite no Chez Toi: o furriel Car…rasco, meu anjo da guarda... (Luís Graça)

(*****) Segundo o nosso amigo Nelson Herbert,  jornalista guineense  que para a América, era aí que ele e os putos seus amigos brincavam com o seu "primeiro carro de rolamentos", utiliziando para o efeito o "declive que ia dos serviços metereológicos/Boite Cabaret Chez Toi... no cimo da então nossa rua, Engenheiro Sá Carneiro [, subsecretário de Estado das Colónias, que visitou a Guiné em 1947, ao tempo do Sarmento Rodrigue]"...  Essa rua era "a mesma da Praça Honório Barreto, do Hotel Portugal, do Café Universal, do Restaurante ou Pensão Ronda... já agora que ia dar ao cemitério, passando lateralmente pelo hospital" e indo dar "à messe dos Sargentos [da Força Aérea]"...

Guiné 61/74 - P18903: Parabéns a você (1476): Henrique Martins de Castro, ex-Soldado Condutor da CART 3521 (Guiné, 1971/74) e José Santos, ex-1.º Cabo Auxiliar de Enfermeiro da CCAÇ 3326 (Guiné, 1971/73)


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Nota do editor

Último poste da série de 4 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18894: Parabéns a você (1475): José Nunes, ex-1.º Cabo Mecânico-Electricista do BENG 447 (Guiné, 1968/70) e TCor Inf Ref Rui Alexandrino Ferreira (ex- Alf Mil Inf da CCAÇ 1420 - Guiné 1965/67 e Cap Inf, CMDT da CCAÇ 18 - Guiné 1970/72)

terça-feira, 7 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18902: Vídeos de guerra (16): O FIAT G-91 na Força Aérea Portuguesa, um filme da Defesa Nacional (Mário Santos, ex-1.º Cabo Especialista de MMA da BA 12)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Santos (ex-1.º Cabo Especialista MMA da BA 12, Bissalanca, 1967/69), com data de 1 de Agosto de 2018:

Caro amigo e camarada Carlos Vinhal
Desejando que saúde e qualidade de vida te acompanhem sempre a ti e a todos os teus, envio-te este vídeo que considero de grande interesse e relevância, não só para a Força Aérea Portuguesa, mas para todos os combatentes da nossa guerra em África.
Retratam e contam episódios de guerra não só do Fiat G-91, mas também de todas as outras aeronaves que apoiaram as nossas Forças Terrestres e Navais em todos os teatros de actividade em que estivemos envolvidos entre 1961 e 1974, na Guiné, Moçambique e Angola.
Particularmente singular o facto de que numa das sequências do vídeo, em 1968/1969, me revejo em acção na Linha da Frente da BA12 - Bissalanca em apoio de missão ao saudoso Capitão Pil./Av Amílcar Barbosa de saída para uma missão de bombardeamento e posteriormente após a aterragem, após cumprimento da missão.

A todos, combatentes de Terra, Mar e Ar, particularmente aos camaradas da Guiné, o meu grande abraço de amizade.

Abraço,
Mário Santos



O Fiat G-91 na Força Aérea Portuguesa
Com a devida vénia a Defesa Nacional
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18342: Vídeos de guerra (15): "Guerre en Guinée" (ORTF, 1969, 13' 50'): o governo português suportou o custo das viagens e estadia de todos os elementos da equipa do programa "Point Contrepoint", da televisão pública francesa, durante cerca de um mês... Eu assisti à montagem do filme e trouxe, de Paris, cópia para o Marcelo Caetano... Quando viu a cena da emboscada, disse-me: "Temos que acabar com esta guerra" (Manuel Domingues)

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18901: Notas de leitura (1089): Nó Cego, por Carlos Vale Ferraz; Porto Editora, 2018 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Junho de 2018

Queridos amigos,
Era tempo de se consagrar a devida homenagem à obra ímpar da literatura da guerra colonial. Possui, passe a expressão, uma organização sinfónica, tem andamento empolgante, frenético, parece que troam metais e a percussão, perfilam-se muitos dos homens daquela Companhia, e aos poucos o leitor toma nota que está ali Portugal inteiro; Há um andamento para conhecermos o meio, com uma lanceta cirúrgica o destacamento de M é visitado na sua amplitude e apercebemo-nos que a guerra mudara de natureza, aquele comandante que dá pelo nome de Tio Abílio será substituído por um austero burocrata que só quer resultados. E no fim, num tremendo halali, seremos enfronhados naquela operação Nó Górdio que terá mudado o sentido da guerra, a farronca da vitória deu lugar a uma inesperada disseminação da FRELIMO até ao centro de Moçambique.
Consumara-se o nó cego.
É com a maior satisfação que aqui vou vasculhar o primeiro clássico da literatura da guerra colonial.

Um abraço do
Mário


Nó Cego, a obra maior de toda a literatura da guerra colonial (1)

Beja Santos

Uma arquitetura narrativa avassaladora, parágrafos cortantes, imagens originais, uma cadência verdadeiramente sinfónica de lentos, rápidos, moderados, adágios, tornaram esta obra, publicada inicialmente em 1982, no documento literário indiscutivelmente mais significativo de toda a literatura da guerra colonial: Nó Cego, por Carlos Vale Ferraz, Porto Editora, 2018.

Logo, a ironia, com um ressaibo de mofa, uma advertência para melhor compreender certas estratégias de cinismo, farronca e desmedida ignorância brandidas por uma certa hierarquia militar:
“Esta é uma obra de ficção. Factos, pessoas e situações narradas não aconteceram nem existiram, qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. Pormenores eventualmente chocantes dizem respeito a outras gentes e a tempos em que a guerra era suja, mas povoada por humanos combatentes, com forças e fraquezas, dúvidas e certezas, sabedorias e ignorâncias; a real verdade foi outra, vejam-se as fotografias e leiam-se os discursos da época, limpas e gloriosas acções representadas por magníficos heróis!”.

E qual escriba penitente na sua obscuridade, zomba da fama, da farronca e dos panteões da gloríola:
“O autor é pacato e gordo, cai-lhe o cabelo e escreve de noite com os óculos na ponta do nariz, não apresenta nenhum sinal visível que o indicie como particularmente dotado para esta arte de escrever. Por si, garante, a pátria não verá aumentar a galeria dos ilustres e não ganhará feriado em data de morte ou de centenário”.

Estamos no Planalto dos Macondes, aí por finais de 1969, o leitor entra direto numa operação de uma Companhia de Comandos, por sinal a primeira operação em Moçambique. Tropa bem preparada mas inexperiente, salvo o capitão que já andara em tal labuta como oficial subalterno e o furriel Passos que se oferecera como voluntário para uma segunda comissão nas tropas especiais.
Dá-se uma pincelada no ambiente:
“Na mata das zonas ravinadas do Planalto dos Macondes, o terreno um pouco mais húmido alimentava uma vegetação densa e difícil de transpor. Cada homem via à sua frente apenas os vultos de dois ou três que o precediam e sentia os passos dos que o seguiam. Naquela fornalha do auge da época seca, onde não corria uma aragem, eles e uns mosquitos pequenos que se metiam pelos olhos, pela boca, pelo nariz, como se fossem cegos, pareciam ser os únicos seres vivos”.
O silêncio é sepulcral, e, súbito, um estrondo, há feridos, o capitão dá ordens, e vem a primeira fotografia do capitão:
“Seco de carnes e de rosto de feições regulares, inspirava confiança, apesar de ser quase da mesma idade dos homens que comandava. Mantinha uma distância de reserva entre si e eles que alguns confundiam com arrogância. Por vezes, os seus gestos pareciam displicentes, mas ajudavam a criar uma aura de consideração e de invulnerabilidade à sua volta.”

O soldado Pedro perdera um pé, o capitão tranquiliza-o, chama-se o helicóptero, segue-se o calvário da espera, as transmissões estão empancadas. Ouve-se tiroteio, depois de muita tensão avizinha-se um helicóptero. Vão aparecendo nomes de soldados: o Torrão, fora pastor no Alentejo; Tino, um soldado moreno, atarracado, de nariz afilado e cabelo luzidio; Brandão, o especialista de transmissões da Companhia; Vergas, intermediário de putas e chulos, nascido no Bairro Alto. Na arquitetura da narrativa há sempre tempo para vir ao passado deste homens que estão nesta primeira operação em Moçambique, começa-se pelo capitão e o seu ambiente familiar, agora os soldados Comandos fazem uma pausa para comer, fala-se do guia Evaristo, é um homem condenado. Recomeça a progressão, é a vez de conhecermos um pouco o passado do Tino, não muito longe, enquanto se progride naquela mata densa, ouvem-se gritos e rugidos, depois a mata acabou repentinamente “como uma muralha de castelo caída a pique, e surgiu um terreno limpo, com palhotas debaixo das árvores por entre as quais ziguezagueavam vultos em fuga”.
Ataca-se quem ali vive, há quem corte apêndices auditivos com facas de mato, à distância os guerrilheiros reagem à morteirada, irá morrer o Preguiça:
“À medida que os camaradas se aproximavam, distinguiu quatro deles caminhando lentamente, segurando pelas pontas um pano de tenda carregado como uma trouxa informe ensopada em sangue. O Lopes espreitou para a abertura negra formada por quatro vértices de pano de lona sem perceber imediatamente que aquela massa de sangue e tripas era o resto do que fora um corpo.
Sem uma palavra, os homens de olhos vazios e os lábios brancos de suor depositaram no trilho seco a sua carga. As moscas zumbiram em busca de uma refeição de sangue, sem que eles fizessem um gesto. O alferes Lencastre, branco como a cal, fez um gesto com o queixo para os homens do furriel Freixo substituírem os que transportavam o morto.
- Quem era? – perguntou serenamente o Lopes.
- O Preguiça, a granada caiu-lhe mesmo em cima, não deu um ai – respondeu o outro como se falasse sozinho.”

O cabo enfermeiro tratava os outros feridos e o autor dá-nos oportunidade de saber quem é este homem, de onde veio, foi estudante nas Belas Artes. A aviação bombardeou a posição dos guerrilheiros, a Companhia atravessa o vale, sobe-se a encosta do planalto, faz-se pausa, depois recomeça a marcha, a meio da manhã veio o helicóptero que levou o morto e os feridos e deixou jerricãs de água, o guia Maconde fala sobre o resto da construção do antigo posto de água número nove:
“ – Pessoal do planalto não tinha água, ia procurar longe, longe mesmo, ao rio Muera, demorava quase um dia as mulheres ir e vir. Tugas da administração prometeram dar água a maconde, mas quando fez posto era preciso meter moeda de quinhenta para ter uma lata e maconde não tinha dinheiro, trabalhava na machamba e tinha sede. Água não compra, água vem no rio, vem do céu, Deus dá. Maconde pensou que não era direito pagar, começou a fazer barulho, a fazer banja com homens grandes, um dia veio governador de Pemba, Porto Amélia, veio tropa, matou gente e começou a guerra. Já não lembra, era menininho, sabe de ouvir contar…”.

Ficamos também na posse de dados curriculares dos alferes Lourenço e Lencastre. Finda a operação, volta-se a M em coluna motorizada, viaja-se à máxima velocidade possível para não dar tempo aos guerrilheiros de colocarem novas minas.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 3 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18892: Notas de leitura (1088): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (45) (Mário Beja Santos)

domingo, 5 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18899: Blogues da nossa blogosfera (98): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (17): Palavras e poesia

Do Blogue Jardim das Delícias, do Dr. Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com a devida vénia, reproduzimos esta publicação da sua autoria.


BOTÃO-FLOR DA PRIMEIRA FOLHA VERDE

ADÃO CRUZ

© ADÃO CRUZ


Há uma mulher de alvor azul
com um fio de azeite nos lábios finos
e uma gota de água no canto dos olhos secos.
Os lábios foram carnudos e vermelhos de sangue
e os olhos eram verdes como o sol
quando o sol era verde.
Tem o rosto sumido na sombra
descaída ao longo dos braços
como vela despregada de navegar.
Outrora
o mar encapelado brilhava nos seus olhos
cobrindo de espuma branca as alamedas do desejo.
Havia uma cidade entre os lábios
envolta em lagos de montanha
com peixes verdes voando entre os pinheiros.
Não havia pombas brancas
caídas no chão da cidade morta.
Nas ruínas da ilusão
um edifício muito alto se erguia
nas paredes do deserto
e rompia o céu de nuvens negras.
No vão da noite que acolhe os sonhos
o botão-flor da primeira folha verde
inverteu a vida entre o real e o imaginário
nas dobras do tempo em universal dilema.
Há uma mulher de alvor azul
com um fio de azeite nos lábios roxos
e uma gota de água gelada no canto dos olhos
mas cedo se fez tarde a madrugada
sem tempo para morrer
na vida de um poema.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 29 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18877: Blogues da nossa blogosfera (97): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (16): Palavras e poesia

Guiné 61/74 - P18898: Blogpoesia (578): "Sombras...", "Minha sonda..." e "Laçadas falsas...", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados entre outros, durante a semana, ao nosso blogue, que publicamos com prazer:


Sombras...

Acendam-se todas as luzes e se apaguem as sombras negras que toldam o nosso mundo.
Brilhe o poder em esplendor nas mãos de gente capaz e bem formada.
Chova a riqueza nas casas pobres que perderam a saúde e não a encontram.
Uma vaga de paz inunde os países martirizados pela guerra atroz de que não são autores.
Se destruam todos os castelos do capital que escraviza o mundo a favor duma minoria desumana.
Venha enfim a paz e a concórdia na base firme da fraternidade universal...

ouvindo concerto n.º 2 de Rachmaninoff por Khatia Buniatishvilli
Mafra, 3 de Agosto de 2018
8h1m
Jlmg

********************

Minha sonda...

Andou perdida no universo a minha sonda.
Poisou à minha porta como um fiel amigo abandonado.
Fui ver-lhe a caixa preta.
Perscrutar-lhe os seus registos.
Estou atónito.
Durante esta vida inteira,
seguiu meus passos sobre esta terra.
Ali estavam nítidas as minhas brincadeiras de criança.
Quando a inocência ainda reinava.
As descobertas todas que fui fazendo.
No meu corpo e minha alma.
Para quê as diferenças?
Afinal, nem todos somos iguais.
O porquê dos pais.
Depois a escola.
Primeiro salto nas aventuras.
Tantos feitios diferentes do meu.
A melhor forma de viver com eles.
Aprender a contar e ler.
Quando se abriu o mundo.
Muito maior que o pequeno terreiro das brincadeiras.
As disputas por ser melhor.
Faziam doer.
E aquele casarão estranho onde se ditava a missa e rezava a Deus...
Que queriam dizer?
E, por aí fora. Até ao dia de ontem.
Em que meu filho partiu um dedo.
Irei concentrar-me, por dentro dela e decifrar tudo
até ao meu derradeiro dia...

Bar "Os sete momentos" , Mafra 2 de Agosto de 2018
10h2m
Jlmg

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Laçadas falsas...

Passo meu tempo a desatar laçadas como quem raspa raspadinhas.
Um engodo.
Todas brancas.
Não há como saber bem o chão onde se pisa os pés.
Ninguém apanha em falso um precavido.
Dos desatentos gosta o carteirista.
Caminhar com a cabeça a pino é remédio santo
para quem quer caír.
Tantos males seriam evitados se, na cabeça, houvesse tino.
Mas, há sempre tempo para corrigir, enquanto há tempo...

Bar "O caracol", arredores de Mafra
30 de Julho de 2018
10h49m
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18876: Blogpoesia (577): "Os sintomas", "Minh'alma leve..." e "Minhas ideias...", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P18897: Estórias avulsas (91): "São dois medronhos como deve ser, que depois arranjo-lhe pra Guarda Fiscal"... Lembranças da praia de Mil Fontes, onde passei as férias de agosto de 1983 a 1999... (Valdemar Queiroz)


Portugal > Odemira > Vila Nova de Mil Fontes >  Praia  de Mil Fontes > Pertence à freguesia do mesmo nome, concelho de Odemira, distrito de Beja, situando-se na margem norte da foz do rio Mira. Encontra-se inserida no Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina. (Vd. Wikipédia)


Foto (e legenda): © Valdemar Queiroz (2018). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Valdemar Queiroz  [ex-fur mil, CART 2479 /CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70):

Data: 3 de agosto de 2018 às 22:09
Assunto: Tempos de Férias


Como estamos em tempos de férias e haver sempre recordações desses tempos, cá vai uma estória passada em Vila Nova de Milfontes.

Passei férias em Milfontes de 1983 a 1999, empre no mês de Agosto.

Em 1983, Vila Nova de Milfontes era uma pequena povoação, só com as ruas principais alcatroadas.  Uma pasmaceira, como os seus habitantes diziam. Havia poucos habitantes e pouca actividade para se arranjar trabalho. Uma pequena actividade piscatória e pouco mais. No verão sempre apareciam alguns banhistas, principalmente os que se dedicavam ao campismo selvagem. Havia dois ou três restaurantes e o mercado tinha poucos produtos para venda. Fora o campismo, acampava-se em todo o lado, modalidade de que eu nunca fui grande amante.

Havia já alguma oferta de casas para aluguer. Alugava-se o mês inteiro, os donos iam viver para anexos ou vice versa, havia anexos com melhores condições que as casas, e ainda nos ofereciam polvos, fruta e batata doce. Havia grande dificuldade em lá chegar, a não ser com carro próprio, só havia uma carreira de manhã e à tarde entre Milfontes - Sines e julgo que para o Cercal.

Para se ter uma ideia da pasmaceira, em Maio de 1983 fui lá para arranjar e marcar alojamento para as férias desse ano e desde quase a entrada da povoação até ao farol no limite e junto à praia apenas me cruzei com duas pessoas.

Mas, partir de 1984 e com a rede de Expressos RN, de Lisboa à Zambujeira do Mar, tudo começou a mudar.

Agora cá vai a estória. Eu, para ser bem tratado,  tinha por hábito dizer "depois arranjo-lhe pra Guarda Fiscal"... e quando fui com o meu amigo Fanã beber um medronho a um cafezinho, junto da barbacã do Castelo, disse para o empregado: "São dois medronhos como deve ser, que depois arranjo-lhe pra Guarda Fiscal".

Talvez por usar cabelo curto, bigode e sobrolho carregado o homem serviu-nos
e garantiu: "Wste é do melhor,  bebam outro que este pago eu". Notei que no dia a seguir era olhado/cumprimentado por gente lá da terra, duma maneira diferente..

Ao jantar fui como habitualmente ao mesmo Restaurante / Taberna, no Rossio, que tinha que se ir cedo para arranjar lugar e peixe grelhado. Quando não é o meu espanto,  o empregado, marido da filha do dono da casa, disse que tinha mesa reservada para mim.

Conversa pra lá, conversa pra cá, o empregado disse-me que já tinha concorrido prá Polícia mas por causa da vista foi reprovado (usava uns óculos com lentes fundo de garrafa). "Pois é, por causa da vista",  disse-lhe eu. "Mas o meu capitão é que podia dar um jeitinho",  disse ele. "Espere lá, primeiro não sou capitão e segundo não tenho nada com a Polícia". Ele não desarmou: "Mas é da Guarda Fiscal e quando andam à paisana dizem todos o mesmo para não serem conhecidos".  Retorqui: "É, pá, desculpe mas está a fazer uma grande confusão"...  Paguei e fui dar uma volta.

No outro dia dirigi-me ao Posto da Guarda Fiscal, que ainda funcionava como tal, e expliquei ao Cabo o que se estava a passar. O homem olhou bem para mim: "Pois,  e deixe que lhe diga...parece mesmo!"...
Julgo que o Cabo andou ou mandou dizer a toda a gente que eu não era nada capitão, mas mesmo assim não me safei e durante mais uns bons anos notava que havia alguns homens da terra dizendo uns para os outros: "Lá vem o capitão  que arranja trabalho na Guarda Fiscal".

Boas Férias
Valdemar Queiroz

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