quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18962: Antropologia (28): Os sírio-libaneses na Guiné Portuguesa, 1910-1926; Dissertação de Mestrado em Antropologia Social por Olívia Gonçalves Janequine (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Abril de 2018:

Queridos amigos,
Nunca me ocorrera quando e como os sírio-libaneses arribaram à Guiné, como se poderá ler neste documento foi coisa que ocorreu na viragem do século, vinham do Monte Líbano, o Império Otomano dava sinais claros de decadência, eles sonhavam com melhores condições de vida, embrenharam-se por toda a África Ocidental, mas muitos foram para mais longe, para as Américas do Norte e do Sul, convém não esquecer Seu Nacib, a paixão de Gabriela, em Gabriela Cravo e Canela de Jorge Amado. Sempre minoritários, optaram por locais do interior, fugiram discretamente à discriminação, não encontrei nenhum registo de hostilidades entre estes comerciantes e os mauritanos.

Um abraço do
Mário


Os sírio-libaneses na Guiné Portuguesa, 1910-1926

Beja Santos

A surfar na net deparou-se-me esta dissertação de mestrado em Antropologia Social na Universidade de Campinas, não podia resistir à leitura, tendo tido, como direto colaborador, no Pel Caç Nat 52, Zacarias Saiegh, de ascendência sírio-libanesa, sabendo que ao tempo os sírio-libaneses continuavam muito ativos no comércio, a despeito da guerra, resolvi inteirar-me como tinham chegado à Guiné.
É o que Olívia Gonçalves Janequine nos sintetiza sobre o seu trabalho: “Na passagem do século XIX para o século XX, no contexto da sua grande migração, alguns milhares de sírio-libaneses foram para a África Ocidental e ali se estabeleceram. Em toda a região, tornaram-se intermediários no circuito comercial, então em plena ascensão, que fazia chegar as matérias-primas da região à indústria europeia e os bens de consumo produzidos na Europa aquele que era o novo mercado. Com o contexto global e regional sempre em perspetiva, esta dissertação apresenta uma investigação sobre o processo de estabelecimento de migrantes sírio-libaneses na Guiné Portuguesa”, o período de estudo corresponde à I República.

Zacarias Saiegh, da I Companhia de Comandos Africana, executado em Porto Gole em dezembro de 1977.

A mestranda deu particular realce na investigação aos documentos que circulavam entre administradores coloniais, pois verificou que estes sírio-libaneses aparecem em relatórios, censos, anuários e artigos publicados em periódicos coloniais sempre como tema acessório. Parte do marco temporal, a partir da década de 1880, houve um grande movimento emigratório a partir da região do Império Otomano denominada Grande Síria (atuais Síria, Líbano, Jordânia, Israel, Territórios Palestinos e uma fração da Turquia) especialmente na área onde está localizado o Monte Líbano. Estes migrantes eram conhecidos por “turcos”, caso do Brasil, mas também os tratavam por árabes ou sírios. Nos documentos referentes à Guiné Portuguesa no período 1908-1950 são tratados como: “syrien”, “syrios”, “syrianos”, “franceses (naturais da Síria” e também “libaneses”. Pude constatar que eram referidos como sírio-libaneses ou só libaneses.

Esta migração prende-se com o declínio otomano, os sírio-libaneses lançaram-se num êxodo, na Europa, em direção às Américas (EUA, Brasil e Argentina). Uma dessas levas europeias encaminhou-se para a rede do comércio internacional de tecidos, outra para a África Ocidental, a partir do porto de Marselha. A invasão colonial na África Ocidental era impressionante, tratava-se da avidez dos mercados fornecedores de matérias-primas e consumidores de manufaturas. Iremos encontrar estes migrantes vindos do Monte Líbano em regiões como o Senegal, a Costa de Marfim, a Nigéria e o Gana (então conhecida como Costa do Ouro) mas também a Serra Leoa, a Guiné Francesa, o Sudão Ocidental. Terão partido do Senegal e da Guiné Francesa até à Guiné Portuguesa. Um investigador aponta que em 1960 na África Ocidental os libaneses residentes aproximavam-se das 40 mil pessoas.

Irmã do falecido Faraha Heneni, um dos importantes comerciantes libaneses (ou de origem sírio-libanesa) de Bafatá, imagem do blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné.

Diz a mestranda que em casos como a Guiné Senegal, Guiné Portuguesa e Serra Leoa, o movimento migratório ficou restringido nos primeiros anos às principais zonas urbanas, muito cedo começaram a ser hostilizados os comerciantes locais, há dados que tal aconteceu no Senegal, em Serra Leoa e na Guiné Portuguesa houve o seu claro repúdio pela Liga Guineense em 1915.

A investigadora dedica particular interesse à análise da administração colonial e o seu relacionamento com os estrangeiros, recorda que a administração era constituída por uma minoria de metropolitanos cercada de funcionários oriundos de outros territórios ultramarinos, principalmente de Cabo Verde e crioulos guineenses, muitos deles de origem cabo-verdiana. Até a uma efetiva pacificação, o comércio processava-se em praças, isto é, em aglomerações onde comerciantes europeus, cabo-verdianos e luso-africanos viviam ou se estabeleciam e que se tornaram nos principais centros urbanos da Guiné ainda no século XIX.

A escassa presença portuguesa prendia-se a diferentes fatores: a hostilidade das populações locais, a insalubridade do território, o clima, verdadeiramente devastador, tal como o Governador Carlos Pereira, o primeiro nomeado após a vitória republicana escreveu numa obra que redigiu em francês em 1914:
“Vê-se que a colónia não se presta à adaptação da raça branca. (…) Uma vez que o clima é debilitante para o branco, este não deve, normalmente, passar na colónia duas estações chuvosas consecutivas. Convém, portanto, que ele aí permaneça apenas por períodos de 18 meses. (…) As obras de saneamento realizadas ultimamente na colónia, assim como o melhor conhecimento e uma aplicação mais rigoroso das prescrições higiénicas por parte dos brancos, fizeram baixar consideravelmente os números das estatísticas nosológicas (referentes a doenças), o que facilita hoje em dia a contratação dos funcionários necessários à boa organização dos serviços públicos e dos colonos necessários ao seu desenvolvimento económico”.

A investigadora destaca o papel da Liga Guineense, as suas contendas com Teixeira Pinto e as atrocidades e prepotências praticadas na Península de Bissau por Abdul Injai e a hostilidade ao comércio libanês.

Estes sírio-libaneses eram 101 na Guiné Portuguesa em 1924. Devemos ao relatório produzido por Calvet Magalhães, Administrador da Circunscrição de Geba, e referente a 1914, o dado de que havia mais de 20 estabelecimentos sírios só em Bafatá, refere a sua presença em Contuboel e Sonaco. Fica claro que esta concentração do comércio sírio era no interior da Guiné, posicionavam-se em locais que podiam ser abastecidos através do rio Geba. A investigadora estudou também dados sobre a presença destes comerciantes em Farim. Mas ao contrário da circunscrição de Farim, a região de Bafatá (pertencente à circunscrição de Geba) encontrava-se sob plena administração portuguesa. A autora sugere que os sírio-libaneses não queriam entrar em concorrência com as elites locais europeias e crioulas. A Liga Guineense criticava as práticas comerciais dos sírios e o próprio Governador Carlos Pereira tece-lhes considerações bem pouco abonatórias:
“O sírio é tão bom vendedor quanto o contratante negro, mas ele vive, em geral, mais miseravelmente que este último. Por sua insensibilidade moral, pelos procedimentos condenáveis que ele adota em suas transações com os indígenas, pelo conhecimento que possui dos costumes e da língua destes, o sírio é um concorrente ameaçador, não somente para as grandes casas europeias mas também e principalmente para os pequenos comerciantes”.
Calvet Magalhães também os vai zurzir no seu relatório, falando nas suas balanças viciadas, na ganância dos seus lucros.


A I Guerra Mundial afetou a presença síria na Guiné, Portugal entrou na guerra no lado oposto ao dos otomanos, havia que deter cidadãos alemães e seus aliados residentes na Guiné, os sírios teriam sido detidos em julho de 1916 e apenas no Cacheu e não há relatos de consequências para os sírio-libaneses noutros pontos da Guiné.

Importa igualmente dizer que Olivia Janequine analisa as atividades económicas deste comércio sírio no contexto de toda a África Ocidental e explana também o contexto da economia da Guiné Portuguesa na I República. No fundo, os sírio-libaneses granjearam posições em Bissau, Bafatá, Bambadinca, Sonaco e Farim e em centros menores como Cacheu, Geba e Xitole. Em 1948, apenas algumas companhias comerciais maiores de sírio-libaneses como a Aly Souleiman & C.ª atuavam no interior e estavam presentes nos portos marítimos de Cacheu e Bissau, as firmas sírio-libanesas representavam aproximadamente metade dos estabelecimentos comerciais em Geba, Xitole, Farim e Bafatá, isto já noutro período histórico, é referência que consta do Anuário da Guiné Portuguesa de 1948.

É possível ler todo este documento da dissertação de mestrado de Olivia Gonçalves Janequine em: http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/279139/1/Janequine_OliviaGoncalves_M.pdf
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Nota do editor

Último poste da série de 2 DE MAIO DE 2018 > Guiné 61/74 - P18594: Antropologia (27): Uma preciosidade: arte indígena portuguesa, 1934 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P18961: Notícias (extravagantes) de uma Volta ao Mundo em 100 dias (António Graça de Abreu) - Parte XXXVIII: Salalah, sultanato de Omã, onde a electricidade, a água, o ensino e a saúde são gratuitos...


Foto nº 1 


Foto nº 2


Foto nº 3

Salalah, sultanato de Omã, dezembro de 2016


Fotos (e legendas): © António Graça de Abreu (2018). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1. Continuação da publicação das crónicas da "viagem à volta ao mundo em 100 dias" [3 meses e oito dias], do nosso camarada António Graça de Abreu.  

Escritor, poeta, sinólogo, ex-alf mil SGE, CAOP 1 (Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74), membro sénior da nossa Tabanca Grande, e ativo colaborador do nosso blogue com cerca de 220 referências, é casado com a médica chinesa Hai Yuan, natural de Xangai, e tem dois filhos, João e Pedro. Vive no concelho de Cascais.

[Foto à esquerda: Hai Yuan e António Graça de Abreu]



2. Sinopse da série "Notícias (extravagantes) de uma Volta ao Mundo em 100 dias" (*)


(i) neste cruzeiro à volta do mundo, o nosso camarada e a sua esposa partiram do porto de Barcelona em 1 de setembro de 2016; [não sabemos quanto despenderam, mas o "barco do amor" deve-lhes cobrado uma nota preta: c. 40 mil euros, no mínimo, estimamos nós];

(ii) três semanas depois de o navio italiano "Costa Luminosa", com quase três centenas de metros de comprimento, sair do Mediterrâneo e atravessar o Atlântico, estava no Pacífico, e mais concretamente no Oceano Pacífico, na Costa Rica (21/9/2016) e na Guatemala (24/9/2017), e depois no México (26/9/2017);

(iii) na II etapa da "viagem de volta ao mundo em 100 dias", com um mês de cruzeiro (a primeira parte terá sido "a menos interessante", diz-nos o escritor), o "Costa Luminosa" chega aos EUA, à costa da Califórnia: San Diego e San Pedro (30/9/2016), Long Beach (1/10/2016), Los Angeles (30/9/2016) e São Francisco (3/4/10/2017); no dia 9, está em Honolulu, Hawai, território norte-americano; navega agora em pleno Oceano Pacífico, a caminho da Polinésia, onde há algumas das mais belas ilhas do mundo;

(iv) um mês e meio do início do cruzeiro, em Barcelona, o "Costa Luminosa" atraca no porto de Pago Pago, capital da Samoa Americana, ilha de Tutuila, Polinésia, em 15/10/2016;

(v) seguem-se depois as ilhas Tonga; visita a Auckland, Nova Zelândia, em 20/10/2016; volta pela Austrália: Sidney, a capital, e as Montanhas Azuis (24-26 de outubro de 2016);

(vi) o navio "Costa Luminosa" chega, pela manhã de 29/10/2016, à cidade de Melbourne, Austrália; visita à Austrália Ocidental, enquanto o navio segue depois para Singapura; o Graça de Abreu e a esposa alugam um carro e percorrem grande parte da costa seguindo depois em 8 de novembro, de avião para Singapura, e voltando a "apanhar" o seu barco do amor...

(vii) de 8 a 10 de novembro. o casal está de visita a Singapura, seguindo depois o cruzeiro para Kuala Lumpur, Malásia (11 de novembro); Phuket, Tailândia (12-13 de novembro); Colombo, capital do Sri Lanka ou Ceilão ou Trapobana (segundo os "Lusíadas", de Luís de Camões. I, 1), em 15-16 de novembro. de 2016;

(viii) na III (e última) parte da viagem, Graça de Abreu e a esposa estão, a 17 de novembro de 2016, em Cochim, na Índia, e descobrem a cada passo vestígios da presença portuguesa; a 18, estão em Goa, seguindo depois para Bombaím (20 e 21 de novembro de 2016);

(ix) com 2 meses e 20 dias, depois da Índia, os nossos viajantes estão Dubai, Emiratos Árabes Unidos, passando por Muscat, e  Salah, dois sultanatos de Omã, em datas que já não podemos precisar (, as fotos deixam de ter data e hora...),  de qualquer modo já estamos em finais de novembro/ princípios de em dezembro de 2016; 

(x) tempo ainda para visitar Petra, na Jordânia, e atravessar os 170 km do canal do Suez (Egito), antes de o "Costa Luminosa" entrar no Mediterrâneo; a viagem irá terminar em Civitavecchia, porto de Roma.  



3. Viagem de volta ao mundo em 100 dias > Salalah, sultanato de Omã [s/d,  dezembro de 2016] (pp. 20-22], da terceira e última Parte]




Salalah, sultanato de Omã 




Viveu Job cento e quarenta anos e viu os seus filhos, e os filhos dos seus filhos até à quarta geração, e morreu velho e cheio de dias. 


Antigo Testamento, Livro de Job, cap. 42, vers. 16 


Mais mil quilómetros de estrada marítima e chegamos a Salalah, no sudeste do sultanato de Omã, a dez léguas do Yémen, hoje assolado pela guerra e pela fome. Há paz do lado de Omã, as velhas terras de Dhofar, habitadas outrora pela formosa e antiquíssima rainha de Sabá. Hoje, para lá das fronteiras de Omã, é só metralha, miséria e morte. 

Iniciamos a viagem de descoberta da região de Salalah, com o autocarro a avançar desde o porto, pejado de contentores e de tubagens, estas para a exportação do gás natural. Tudo fica para trás e começamos a subir por uma cadeia de montanhas secas e inóspitas, rodeadas, lá em baixo, por avassaladores desertos [Foto nº1]. Nos declives dos montes há alguns pinheiros verdes, raros nestes lugares semi-desérticos. Não entendo exactamente para onde nos levam, tanta curva, tanto monte, por isso pergunto ao simpático guia local: “Qual é o destino?” 

Simples, vamos visitar o túmulo do profeta Job, esse mesmo, o do Livro de Job, no Velho Testamento, o “da paciência de Job”, expressão que tantas vezes utilizamos ao longo das nossas vidas. Job é considerado profeta também por muçulmanos e judeus. Descendente de Noé, terá vivido há uns três mil anos atrás e, no Corão, Maomé faz quatro referências à sua pessoa. Job, tal como Abraão, Moisés e David, é uma das figuras bíblicas que também encaixam no islão primitivo, tradicional, muito anterior a Maomé.

No alto da montanha, num lugar com uma vista majestosa, uma capela branca, de cúpula redonda, guarda o que serão os ossos do velho Job, hoje -- se é mesmo verdade que a tumba é autêntica! --, apenas restos de poeira e pó. Descalço os sapatos para entrar e estou diante de um simples túmulo jazente coberto por um pano de cetim verde e amarelo. Uma leve reverência a este pobre Job e ali fico, a embeber-me nos traços da memória de um profeta do nosso Antigo Testamento. Cá fora, ao lado da capela, levanta-se uma pequena mesquita fechada ao culto, mas o que mais me impressiona é a nascente de água, uma fonte jorrando num estranho lugar, no alto de uma montanha circundada por desertos. Há um pequeno jardim com lírios vermelhos e buganvílias floridas. O túmulo de Job levita na magia dos espaços. [Foto nº 2]

Descemos para o mar. Cá em baixo, na aridez extrema de terras de areia e cascalho pedregoso, não há uma árvore, é quase só desolação, desdobrada na secura da paisagem, no delapidar impiedoso do calor caído do céu, violento, esmagador, estendendo-se pela passagem dos séculos.

A estrada acompanha a orla marítima, bordeja a extensa praia de Mughsail, algo semelhante à nossa na ilha de Porto Santo. Temos uns trinta graus de temperatura mas não há um simples mortal na areia ou a mergulhar na ondulação serena do Oceano Índico. As gentes de Omã não serão muito dadas aos prazeres da praia e, quanto a bronzear o corpinho, estamos entendidos. Haverá mulheres muçulmanas lindas de morrer, no entanto, por respeito com o rigor do Islão, ao sair de casa cobrem quase todo o corpo. 

Atravessamos uma pequena aldeia de pescadores, com casas modernas, na arquitectura árabe, bem traçadas e implantadas no terreno. Dizem-me que foram mandadas construir e oferecidas pelo sultão Qaboos, o poderoso e omnipresente senhor de Omã, há mais de quarenta anos. 

Nestas terras, o petróleo corre em abundância, a electricidade e a água – escassa, muita dela proveniente de complexos de dessalinização da água do mar  –, são gratuitas, assim como o ensino e a saúde. Os cidadãos do sultanato também não pagam impostos o que, de resto, creio acontecer em outros territórios árabes. O dinheiro do ouro negro vai chegando para quase tudo embora, nos últimos anos, muitos destes países tenham perdido milhões e milhões com a descida do preço do petróleo. 

O extremo poente da praia de Mughsail termina num promontório que se eleva abrupto no horizonte. Na plataforma rochosa, em baixo, uma espécie de curiosos géisers marinhos lançam água do mar, comprimida pelas rochas, a uns vinte metros de altura. Mas é a vastidão azul do oceano, da quase infindável praia, a leste, e, do outro lado, o imenso maciço de pedra avermelhada entrando pelas águas que impressiona este pobre turista lusitano que, até há poucos meses atrás, desconhecia por completo a existência de uma cidade chamada Salalah, e para quem o sultanato de Omã era uma miragem fantasiosa, perdido algures em desertos do fim do mundo. Continuo a ignorar quase tudo sobre o coração desta terra, mas o lugar já não me é estranho.

A pequena urbe de Salalah  – bem alinhada e cuidada, com rotundas verdejantes e floridas, dado beneficiarem de constantes regas  –, tem edifícios baixos ao modo tradicional árabe, algum comércio, uns tantos mercados, um estádio de futebol, as sempre presentes mesquitas. Junto ao mar, com outra enorme praia vazia, o destaque vai para o palácio Al Husn, onde nasceu o sultão Qaboos e hoje uma das suas residências de Verão. Paragem para caminhar pelas ruas ajardinadas em volta do palácio, tirar fotografias e depois, no mercado em frente, comprar um lote de especiarias, algumas tão estranhas que nem sei exactamente o que são, mas que irei experimentar nos meus apaladados cozinhados em Portugal, a minha terra distante que me começa a fazer falta.[Foto nº 3]

(Continua)
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Nota do editor:

terça-feira, 28 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18960: Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) - Parte XLI: Efeméride: a maior flagelação ao quartel de São Domingos foi há 50 anos...


Foto nº 1A > Guiné > Região de Cacheu > São Domingos > CCS/ BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) >  16 de abril de 1968 > 18h00 > Cerimónia do arrear da bandeira


Foto nº 1B  > Guiné > Região de Cacheu > São Domingos > CCS/ BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) > 16 de abril de 1968 > 18h00 > Cerimónia do arrear da bandeira > Do lado esquerdo,  o edifício do Administrador Local.


 Foto nº 2 > Guiné > Região de Cacheu > São Domingos > CCS/ BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) > 16 de abril de 1968 > 18h00 >  Após os primeiros ruídos de saída dos Morteiros- início de mais uma flagelação do IN, todo o pessoal vai a correr para os seus postos, abrigos ou espaldões. 


Foto nº  3 > Guiné > Região de Cacheu > São Domingos > CCS/ BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) > 16 de abril de 1968 >  O ataque vem do Norte – Senegal – e por este caminho vai o pessoal a correr para o Quartel de Cima – Companhia de Artilharia 1744, do Capitão Mil Serrão.


Foto nº 4 > Guiné > Região de Cacheu > São Domingos > CCS/ BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) > 16 de abril de 1968 > Neste ponto o pessoal já está no fim da linha, junto à paliçada que separava o nosso aquartelamento, da terra de ninguém, a 2 ou 3 km do Senegal.



 Foto nº 11 > Guiné > Região de Cacheu > São Domingos > CCS/ BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) > 1º semestre de 1968 > Vindos do lado leste um Grupo de Combate (CCAÇ 3 ou Companhia de Milícias  24) acaba de chegar de uma operação de rotina ou de reconhecimento dos arredores.



Foto nº 11A > Guiné > Região de Cacheu > São Domingos > CCS/ BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) > 1º semestre de 1968 >Saída de dois Gr Comb, do aquartelamento para operações de rotina ou reconhecimento, levadas a efeito pelo CCAÇ 3 ou  CM 24.


Foto nº 12 > Guiné > Região de Cacheu > São Domingos > CCS/ BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) >1º semestre de 1968 > Saída de dois Gr Comb, do aquartelamento para operações de rotina ou reconhecimento..



Foto nº 12A  > Guiné > Região de Cacheu > São Domingos > CCS/ BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) > 1º semestre de 1968 > Saída de dois Gr Comb, do aquartelamento para operações de rotina ou reconhecimento.


Foto nº 13 >  Guiné > Região de Cacheu > São Domingos > CCS/ BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) >1º semestre de 1969 >Chegada ao aquartelamento de um Gr Comb  da CART 1744, após uma operação de rotina ou de reconhecimento.


Fotos (e legendas): © Virgílio Teixeira (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação do álbum fotográfico do Virgílio Teixeira (*), ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, set 1967/ ago 69); natural do Porto, vive em Vila do Conde, sendo economista, reformado; tem já cerca de 80 referências no nosso blogue.



 Guiné - Portugal 67/69 - Álbum de Temas:

T023 – A  MAIOR  FLAGELAÇÃO AO QUARTEL DE SÃO DOMINGOS ACONTECEU ÀS 24 HORAS DE 27, OU 00:00 HORAS DE 28 AGOSTO 1968
OUTRAS IMAGENS DE FLAGELAÇÕES AOS QUARTEL EM SÃO DOMINGOS
IMAGENS DE GRUPOS DE COMBATE NA SAÍDA E NA CHEGADA DE OPERAÇÕES


I - Anotações e Introdução ao tema:


1 – O MAIOR ATAQUE A SÃO DOMINGOS


Este Tema tem por finalidade dar conta de uma Efeméride – Os 50 anos, ou Meio século - que neste dia 27 e inícios de 28 de Agosto de 1968, se deu o maior ataque/flagelação ao aquartelamento e povoação de São Domingos.

Iniciou ao cair das 24 horas do dia 27 de agosto de 1968, e início de 28 do mesmo mês.

Sendo o maior de sempre, pela hora, o tempo de duração – 30 minutos, e a intensidade de fogo com todo o tipo de armas – Morteiros 82, Canhão Sem Recuo, Lança Granadas RPG e Lança Roquetes, Armas Pesadas e Ligeiras modernas,

Partiu da fronteira Norte com o Senegal, tendo sido devidamente respondido com as nossas armas, contudo o tempo foi interminável, longo e assustador. Era Noite.

Não sei explicar os contornos militares, pois não foi minha preocupação perceber isso, mas sim apanhar os invólucros que caíram perto da minha residência/dormitório.

Não houve mortes, feridos alguns e em especial das populações, socorridas prontamente.

O IN felizmente não apontava as armas como deve ser, pois num pequeno espaço em que nos encontramos, se meia dúzias de ameixas caíssem nas instalações haveria certamente muita coisa a lamentar, embora tínhamos sempre os abrigos, que não estando ao alcance imediato sempre serviam para meia protecção das tropas.

Não há fotos como é óbvio, nem dessa hora nem do dia seguinte, mas poderia ter algumas dos buracos que as bombas fizeram.

Fica aqui a história para quem esteve lá se lembrar, mas não vejo muita gente do meu Batalhão a comentar nada.


2 – IMAGENS DE UMA FLAGELAÇÃO ÀS 6 HORAS DA TARDE


Aproveitei este Poste para colocar então outro acontecimento, que por acaso eu estava a fotografar nos primeiros tempos em São Domingos. Era a cerimónia diária de Hastear a bandeira de manhã, e o arrear da bandeira ao fim do dia – 18 horas da tarde, inicio da noite.

Estava então uma secção comandada pelo Oficial de Dia, na cerimónia de arrear a bandeira, 10 militares, 2 a começar a arrear a bandeira Nacional em frente do Posto do Administrador Local, e além dos nossos militares estava sempre presente uma quantidade representativa da Mocidade Portuguesa de São Domingos.

Às 18 horas quando se inicia o arrear da bandeira, tinha eu feito a primeira foto, houve-se o ‘baque'  da saída de morteiros, então gera-se logo a confusão total e todos correm para os seus abrigos e os responsáveis pelos armamentos vão para os seus postos.

Eu fico ali com a máquina na mão, a tentar fazer as imagens da minha vida, isto é fotografando tudo. Claro que não era nenhum bravo nem herói, era a juventude e ingenuidade a juntar à minha ideia de fazer as fotos, não ligando nada ao que acontecia à volta. Quando elas começam a cair, eu também não era alheio a isso, e fiquei também descontrolado, as fotografias que deviam sair acabam por não acontecer.

A máquina não era como agora uma automática, após uma foto tinha de ir ao carregador e passar para a seguinte, mas com a normal atrapalhação, não metia nova foto, e assim vou carregando umas atrás das outras, e de vez em quando lá passando mais uma foto.

A verdade é que de quase um rolo se aproveitam umas 5 fotos, as outras ficaram todas em branco ou em cima das anteriores, foi uma desgraça total, e com a agravante de não encontrar uma quinta, só me aparecem 4 para representar este inédito e inolvidável acontecimento.

Acabo a última já na Companhia de Cima – onde estava a CART 1744, do Capitão Serrão, a qual fazia a segurança ao aquartelamento, a Companhia de Intervenção.

Nunca fiz publicidade disto, guardei e numerei-as e datei, dia 16 de Abril de 1968. Não durou muito tempo, pois conseguimos pôr os Turras a fugir com a nossa pronta resposta, mas nunca me escondi nem me deitei ao chão, estava obcecado pelas fotos, nada mais.


3 – PARTIDAS E CHEGADAS DE GRUPOS DE COMBATE AO AQUARTELAMENTO


Ainda dentro do mesmo princípio, para aproveitar este Poste, juntei algumas fotos – 3 – dos Grupos de Combate, quando saiam e quando chegavam de operações diárias.

Duas delas são com militares nativos, ou da CCAÇ 3, ou Companhia de Milícias 24, que integravam as nossas tropas. Na terceira,  em 1969, são militares da CART 1744.

São um pequeno testemunho de como se passavam as operações militares rotineiras, numa das quais eu próprio fui nomeado para uma operação, não de combate, mas apenas de um reconhecimento normal à volta do nosso aquartelamento de São Domingos, quando não devia ter feito, não era essa a minha especialidade.


II – As Legendas das fotos:


F1 – Cerimónia normal em qualquer Unidade em qualquer sitio. De manhã o hastear da bandeira, e ao fim da tarde, 18 horas, o arrear da bandeira. Aqui era mais uma vez, em frente do edifício do Administrador Local. São Domingos, 16Abr68

Pode ver-se um militar a puxar o fio da nossa bandeira, uma secção militar a prestar honras com as armas, atrás um grupo grande da Mocidade Portuguesa, e nessa hora e ao toque da corneta, toda a gente, civil e militar,  ficava parada e em sentido. Velhos tempos em que havia respeito à bandeira de Portugal.

F2 – Após os primeiros ruídos de saída dos Morteiros- início de mais uma flagelação do IN, todo o pessoal vai a correr para os seus postos, ou abrigos ou de armas. SD, 16Abr68.

Existiam outras fotos com a guarda de honra em debandada, mas falharam os disparos na máquina, muitas fotos se perderam.

F3 – O ataque vem do Norte – Senegal – e por este caminho vai o pessoal a correr para o Quartel de Cima – Companhia de Artilharia 1744, do Capitão Mil Serrão e outros. SD, 16Abr68.

Estas deslocações eram frequentes, o pessoal andava por outros sítios, e na hora de mais uma flagelação, teriam de correr para os seus abrigos e ninhos das nossas armas.

F4 – Neste ponto o pessoal já está no fim da linha, junta à paliçada que separa o nosso aquartelamento, da terra de ninguém e logo a cerca de 2 a 3 km tínhamos a Republica do Senegal, e os Santuários dos Turras, que eram autorizados por aquele país.

F11 – Vindos do lado Leste um Grupo de Combate acaba de chegar de uma operação de rotina ou de reconhecimento dos arredores. SD, 1º Semestre de 68.

Estes Gr Comb eram formados por militares de maioria negra, pertencentes à Companhia de Caçadores Nativos nº 3 ou Companhia de Milícias nº 24, comandadas normalmente por Furriéis ou Alferes miliciano.s

F12 – Saída de dois Gr Comb, do aquartelamento para operações de rotina ou reconhecimento, levadas a efeito por Nativos da CCAÇ 3 ou CM 24, comandadas por graduados brancos, Furriel miliciano ou Alferes Miliciano. SD, 1º Semestre de 68.

F13 – Chegada ao aquartelamento de um GC da CART 1744, após uma operação de rotina ou de reconhecimento, como chegam a pé, conclui-se que não seria de uma grande dimensão a área percorrida. SD, 1º Semestre de 69.

Pode ver-se bem o armamento que levava, e o cansaço com que chegaram. Em pé e sem boné, está o nosso Capitão Martins, da Secção de Pessoal e reabastecimentos, a ver a chegada das tropas.


Em, 2018-08-27

Virgílio Teixeira

«Propriedade, Autoria, Reserva e Direitos, de Virgílio Teixeira, Ex-alferes Miliciano do SAM – Chefe do Conselho Administrativo do BATCAÇ1933/RI15/Tomar, Guiné 67/69, Nova Lamego, Bissau e São Domingos, de 21SET67 a 04AGO69».

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Guiné 61/74 - P18959: Parabéns a você (1490): António Marques Barbosa, ex-Fur Mil Cav do Pel Rec Panhard 1106 (Guiné, 1966/68) e José Corceiro, ex-1.º Cabo TRMS da CCAÇ 5 (Guiné, 1969/71)


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Nota do editor

Último poste da série de 27 de Agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18957: Parabéns a você (1489): Jaime Machado, ex-Alf Mil Cav, CMDT do Pel Rec Daimler 2046 (Guiné, 1968/70)

segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18958: Notas de leitura (1095): Nó Cego, por Carlos Vale Ferraz; Porto Editora, 2018 (4) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Julho de 2018

Queridos amigos,
Depois de um repouso na ilha de Moçambique, algo que nos lembra, transviado, o episódio da Ilha dos Amores, inicia-se o derradeiro ato da vida daquela Companhia de Comandos que acabará desmembrada, a operação Nó Cego, a convicção do general K que encontrara uma poção mágica para varrer a Frelimo do Planalto dos Macondes. Tudo vai correr às avessas e a guerra mudará de rumo.
Como numa trágica comédia em imenso palco, homens mansos descobrirão a bravura, serão forjados alguns falsos heróis, um comissário político da Frelimo avisará o capitão da inutilidade do que por ali andam a fazer e o general K está em impante de alegria, considera que houve uma retumbante vitória.
É nesta feira cabisbaixa que Carlos Vale Ferraz escreve esta obra imponente, um clássico na justa medida em que fica esculpida, em toda a sua inutilidade, aquela guerra já sem sentido.

Um abraço do
Mário


Nó Cego, a obra maior de toda a literatura da guerra colonial (4)

Beja Santos

"Nó Cego", por Carlos Vale Ferraz, Porto Editora, 2018, impôs-se ao longo de 35 anos, como leitura obrigatória, é a obra mais universal da nossa literatura da guerra colonial, o romance mais poderoso, melhor arquitetado e de dimensão clássica. E, prova provada, inultrapassável.

Chegou a hora de uma certa quietude, a Companhia vai fazer uma pausa na ilha de Moçambique, encruzilhada nas viagens da carreira da Índia. Vamos conhecer o funcionamento da administração colonial, o castigo das palmatoadas, os conflitos entre a fação do administrador e a do juiz da comarca. Como na Ilha dos Amores, haverá o repouso idílico do capitão, com senhoras de vária idade. É este o prólogo do quarto e último andamento, chegou o momento da operação desenhada pelo impante general K, sempre seguido pelo séquito de ajudantes de campo, ele sonha com o dia histórico em que se vai dar a estucada de morte na Frelimo em todo o Planalto dos Macondes. É a operação Nó Cego, estariam localizadas com exatidão as suas três grandes bases: a Gungunhana, a Moçambique e a Nampula. Um coronel do Estado Maior sumariza o que se vai passar:
“Cerca-se esta zona – o coronel apontou –, aproveitando as estradas existentes e construindo com engenharia as que faltam, para fechar um quadrado de cerco que será guarnecido com emboscadas permanentes realizadas por tropas normais e patrulhamentos regulares com esquadrões de reconhecimento. Quando a ratoeira estiver montada, quando ninguém puder entrar ou sair, lançaremos ao assalto das bases as nossas companhias de tropas especiais: os comandos para a Base Alfa, nome de código da Gungunhana, os paraquedistas para a Bravo, da Moçambique, e os fuzileiros, em segunda fase, para a Charlie, da Nampula.”

E o general K declamou eufórico:
“Dentro deste quadrado tudo o que mexer é inimigo, será a guerra total! Esta é uma luta de vida ou de morte. Mas nós vamos ainda dar uma oportunidade às populações enganadas na sua boa-fé. Assim, durante este mês, faremos uma gigantesca operação de acção psicológica: as populações serão avisadas das consequências do apoio aos terroristas, serão convidadas a apresentarem-se voluntariamente nas nossas guarnições militares”.

E um outro coronel apresentou o plano de ação psicológica e social:
“Além dos panfletos serão lançados vários objetos que demonstrarão a nossa boa vontade, uma técnica que desde as Descobertas tem dado muito bons resultados no contacto com os nativos. Serão lançadas duas toneladas de roupa interior de mulher, tais como soutiens e calcinhas, canetas, sapatilhas, óculos escuros, bandeirinhas nacionais. Paralelamente serão difundidos programas de rádio a prometer terras e a vinda para o Sul. Paz e trabalho a todos os que se apresentarem. Este programa será realizado aproveitando os antigos terroristas capturados e recuperados pela DGS”.

É um momento alto em que Carlos Vale Ferraz esboça estereótipos inesquecíveis, como aquele capitão Vouzela que se compraz com as campanhas de pacificação de Mouzinho de Albuquerque, a arengada do general comandante-chefe às tropas a caminho da operação, os comentários brejeiros às senhoras do Movimento Nacional Feminino. E a Companhia de Comandos saiu à frente para assaltar a base Gungunhana. O foguetório começa cedo, explode uma mina no esquadrão de cavalaria do capitão Vouzela, o capitão está morto.
Um alferes de cavalaria justifica-se:
“Vínhamos à confiança, sem esperar minas. Está aí toda essa tropa a montar emboscadas…Rebentou a primeira e a autometralhadora da frente foi pelos ares, o nosso capitão mandou avançar a dele para a proteger e foi também pelo ar…”.

O poder narrativo espraia-se em pequenos flashes de estados de alma de oficiais, sargentos e praças, entrara-se na floresta de árvores a pingarem cacimbo, iam furando o capim ainda húmido, encontram-se trilhos, o cansaço alastra-se, inicia-se um brutal golpe de mão, a brutalidade toma conta do texto, uma jovem negra é sistematicamente violada. Queima-se tudo, há que continuar, a base de Gungunhana deve estar perto, há tiros, morteiradas, as tropas da Frelimo estão a reagir, recolhem-se vários feridos e um morto, irá morrer o alferes Fernandes, o capitão segue condoído, aquele seu alferes era de todos o mais frágil e normal. “Um miúdo de vinte e um anos… - o capitão cerrou os lábios -, tão zeloso que até as últimas palavras foram ordens para tratarem das suas cartas, apenas lhe escapou a derradeira, o apelo irreprimível à mãe, que parece ser o chamamento final dos homens que partem para a viagem de regresso às origens”.

Nestes tiroteios, é capturado o comissário político da zona, Alberto Chinavane, é duríssima a conversa travada entre o comissário e o capitão, mas o comissário morre devido aos ferimentos. E prossegue o caminho para a base, a Companhia de Comandos é recebida com silêncio, ninguém lá estava, todos tinham fugido. E, súbito, estoira o fogo inimigo, o capitão é ferido, na manhã seguinte chega a nova Companhia de Comandos, a base está completamente queimada. “O general comandante-chefe desembarcou do helicóptero seguido da comitiva. Vinha barbeado, de camisa e calças verdes, de boné de pala, como usava no seu quartel-general. A única concessão que fazia nas suas visitas às unidades em operações era calçar umas botas em vez de sapatos”. O capitão é exibido aos órgãos de comunicação social, o teatro e a política convergem no mesmo ato. E o capitão é evacuado. O general K dará uma conferência de imprensa anunciando que na operação Nó Cego se joga o futuro do Ocidente.

A Companhia de Comandos irá ser desmantelada, haverá ainda mais reação das forças da Frelimo, todos aqueles homens estão a mudar, há mansos transformados em lobos, há quem mude em herói por múltiplas razões do acaso. A dissolução daquela força de tropa especial é irreversível, alguém comenta: “Uma Companhia só é uma boa Companhia quando tem um bom capitão, um bom enfermeiro e um bom transmissões, esta já não os tem”.

Lá longe, no Algarve, gozando férias, o capitão medita: “Condecoraram, promoveram, graduaram, transferindo, reclassificaram, recompletaram. A nossa velha Companhia desapareceu”. O general K está eufórico, grita a todos os ventos que houve uma retumbante vitória. Como se sabe, a Frelimo saiu fortalecida, vão ficar para a História as explicações daquela guerra insana e destes mártires que, no Nó Cego, foram os mártires da mais dementada guerra que Portugal alimentou, um Nó Cego que só o 25 de abril desapertou.

Documento e monumento literário, este Nó Cego devia pelo menos ser livro obrigatório em todas as bibliotecas públicas, nenhum outro livro assume esta capacidade explicativa do que foi, no seu todo, a mais inútil das guerras em que Portugal participou. Salvou-se a comunicação entre todas as parcelas do Império, mas duro foi o seu preço.
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Notas do editor:

Vd. postes de:

6 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18901: Notas de leitura (1089): Nó Cego, por Carlos Vale Ferraz; Porto Editora, 2018 (1) (Mário Beja Santos)

13 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18919: Notas de leitura (1091): Nó Cego, por Carlos Vale Ferraz; Porto Editora, 2018 (2) (Mário Beja Santos)

20 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18940: Notas de leitura (1093): Nó Cego, por Carlos Vale Ferraz; Porto Editora, 2018 (3) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 24 DE AGOSTO DE 2018 > Guiné 61/74 - P18950: Notas de leitura (1094): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (48) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P18957: Parabéns a você (1489): Jaime Machado, ex-Alf Mil Cav, CMDT do Pel Rec Daimler 2046 (Guiné, 1968/70)

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Nota do editor

Último poste  da série  > 25 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18951: Parabéns a você (1488): Manuel Carmelita, ex-Fur Mil Radiomontador do BCAÇ 3852 (Guiné, 1971/73)

domingo, 26 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18956: Blogues da nossa blogosfera (101): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (20): Palavras e poesia


Do Blogue Jardim das Delícias, do Dr. Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com a devida vénia, reproduzimos esta publicação da sua autoria.


VENHO DE UM JARDIM DISTANTE

ADÃO CRUZ

©ADÃO CRUZ


Venho de um jardim distante florido de memórias
ou de um sonho qualquer
entre risos e lágrimas caindo de um céu de chumbo
ou de um céu de magnólias.
Venho do seio do orvalho da madrugada
num punhado de vida libertada
em qualquer rumor de passos
brincando nos telhados acesos pela luz do dia.
Venho de um jardim distante
onde grinaldas de flores abrilhantam a festa do azul dos tempos
no incêndio do crepúsculo ou no ardor da manhã
do meu berço de mistério e universo.
Venho das esquinas do tempo
em recordações avulsas ao sabor das pontes da vida
cavalgando o vento que assobia nas ruas estreitas
ou mordendo as pedras com punhais de silêncio.
De onde venho ninguém sabe.
Venho talvez da intimidade salgada do mar
ou de um jardim distante com um rio de passos e palavras
e pedaços de sol num rosário de pérolas
abrindo a neblina do nascer da vida.
Venho… quem sabe…
da nudez adormecida no silêncio do tempo
destinado à simplicidade da morte
pelo sinuoso caminho das recordações perdidas
no chão fundo das angústias ou nos retalhos da esperança.
Venho talvez das sombrias entranhas
prenhes de fulvos e ilusórios tesouros
que emergem do fundo do mar
sublimados de cor e luz
à superfície traiçoeira das águas bordadas de espuma.
Ou então…
Ou então serei filho de um mundo sem resposta
sujeito a ventos e marés que enrugam o latejar das veias
e quebram o voo das artérias com lugar no corpo
rompendo o fluir da vida no interior do sonho.
Não.
Eu não venho de lugar algum fora da mente
nem trago comigo a erva daninha.
Eu venho de um jardim distante entre o sonho e a razão
onde o pensamento se agiganta contra as trevas da ilusão.
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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE AGOSTO DE 2018 > Guiné 61/74 - P18937: Blogues da nossa blogosfera (100): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (19): Palavras e poesia

Guiné 61/74 - P18955: Blogpoesia (581): "Para que servem as palavras", "Soletro os meus versos, letra a letra" e "O essencial", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados entre outros, durante a semana, ao nosso blogue, que publicamos com prazer:


Para que servem as palavras

Sonoras ou escritas
Têm cor, cheiro e sabor.
Podem ser pétalas ou espinhos de flor.
Umas graves outras leves.
Falam verdades
E falam mentiras.
Consolam a alma.
Magoam e
Curam feridas.
Malévolas,
Se trocam por tudo e
Se vendem por nada.
Tudo revelam
E guardam segredos.
Mudam de rosto conforme convém.
Defendem e atacam os fortes e fracos.
Paradas, vivem à espera de uso
E não cobram vintém.
Carregam nas cores quando convém.
Esquecem os caminhos por onde não passam ninguém.
Com justa medida, julgam os pobres e ricos.
Castas e púdicas se expõem ao sol.
Consertam as letras à sombra para parecerem baratas.
Sem elas não haveria portáteis
E os computadores nem sequer existiam...

Berlim, 20 de Agosto de 2018
19h59m
Jlmg

********************

Soletro meus versos, letra a letra

Como quem puxa a água dum poço com uma corda.
Encho o balde bem fundo e trago-o à tona.
Bebo dele e me refresco.
A outra parte sirvo à mesa dos amigos.
Suavize e mate a sede de quem chegue.
Sem olhar quem é.
Refresque e acalme a dor e o sofrimento que todos sentimos.
Ninguém está bem a cem por cento.
Minhas letras encham folhas de cor e luz.
Levem longe e sempre razões de esperança.
Lavem um pouco das muitas manchas que a sombra faz.
Embora não o pareça,
Nem tudo é mal no mundo.
O vença o bem e haja paz.

Berlim, 21 de Agosto de 2018
6h41m
Jlmg

********************

O essencial

É fértil a natureza.
Só nos dá o essencial e
Chega para toda a gente.
Se nada mais houvesse, além do essencial,
estaria muito melhor o mundo.
É como o leito do rio.
Sem ele, não há rio
porque esborda e se desfaz.
É vertical.
É o prumo do equilíbrio.
O secundário ou acessório
Só escurecem ou fazem sombra.
Os ramos adventícios são caducos e inúteis.
Sua poda atenta e constante se impõe para se conservar o tronco.
Nada sobrevive sem o essencial.

Berlim, 24 de Agosto de 2018
11h46m
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE AGOSTO DE 2018 > Guiné 61/74 - P18936: Blogpoesia (580): "Portão da poesia...", "Pingantes à borda do mar" e "Se alguém me vier bater à porta não terei poema para lhe dar...", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P18954: (Ex)citações (343): porquê tantos ex-seminaristas nas fileiras do exército, durante a guerra colonial? (António J. Pereira da Costa / Virgílio Teixeira / José Nascimento / A. Marques Lopes / Juvenal Amado)


Capa do livro "Cabra-cega: do seminário para a guerra colonial", de João Gaspar Carrasqueira (pseudónimo do nosso camarada A. Marques Lopes) (Lisboa, Chiado Editora, 2015,  582 pp. ISBN: 978-989-51-3510-3, Colecção: Bíos, Género: Biografia).

Seleção de comentários ao poste P18949 (*)

(i) José Nascimento:

O saudoso alferes Joaquim da Costa Marques,  comandante do 3.º Pelotão da Cart 2520  (Xime e Quinhamel, 1969/70) também foi oriundo do seminário.

Pouco fiquei a saber dele, era uma irmandade de 9 ou 10 elementos, creio que de uma família modesta. Ainda me lembro que, no dia do meu aniversário em 1969 na Guiné, fez o seu voto de felicidades em Latim. Obrigado Marques, até um dia.

(ii) Juvenal Amado:

Seminarista: o capitão Lourenço do Saltinho. [Referência à CCAÇ 3490, que esteve no Saltinho (1971/74) e que teve uma trágica história (a emboscada do Quirafo em abril de 1972)]...

Seminário: para além do "Cabra Cega", temos o livro "Gente Feliz Com Lágrimas" de João Melo. Niassa, o cheiro no porão a vomitado, urina, nafta e maresia, o nosso miserável regresso 27 meses depois...

(iii) Anónimo:

É uma entrevista? Um diálogo entre dois camaradas seniores com muita experiência de vida? A sua leitura entusiasma, todas as questões humanas, sociais, laborais, políticas, religiosas, de guerra, são abordadas com o realismo, a lucidez, a verdade, de quem é adulto e sabe que a vida é finita.

Virgílio Ferreira no livro "Manhã Submersa" retrata bem o pesadelo desses garotos de doze anos, sobretudo dos meios rurais do interior do país, sem liberdade religiosa e sem liberdade de expressão por imposição dos pais, dos professores, dos padres e dos governantes, quando entravam nos espaços limitados e claustrofóbicos dos seminários e ficavam privados da liberdade de circulação pelas ruas das aldeias e pelos caminhos de terra dos campos onde a sua natureza de potros selvagens se expandia e conseguia nesse contacto sem barreiras com a natureza mais agreste da Terra sacudir o peso de imposições familiares e sociais.

Passei lá um ano, os meus irmãos, três, também passaram por lá, eu confesso que foi o pior ano de "tropa" da minha vida. Quase todos os filhos de lavradores, pequenos, médios e até grandes, da minha aldeia, da minha geração e da seguinte, fizeram essa malfadado tirocínio. Também é verdade que a maior parte se não o fizessem ficariam para sempre a lavrar e cavar a terra. Dessas gerações nenhum saiu padre.

Porque como os outros que procuram fazer a paz com a consciência, a verdade e o passado, eu confesso que só fui para a Guiné, por falta de coragem. Digo falta de coragem, porque eu nesse tempo para lá de alguma agricultura pouco ou nada sabia fazer.

Fui para lá convencido de que era uma guerra perdida e admirei muito os que pensando assim deram o "salto". O espaço do Blogue do Luís Graça e Camaradas da Guiné é um espaço livre, ninguém dúvida disso. Eu gostaria que pelo menos alguns desses "fugitivos" fizessem alguns depoimentos neste espaço.

Muito obrigado ao Luís Graça e ao outro camarada quase anónimo, que eu desconheço, sou doutros anos. Fico à espera da segunda parte e doutras se quiserem.

(Comentário de Francisco Baptista, não assinado por lapso)

(iv) António J. Pereira da Costa:

Ainda gostava de saber por que é que o número de ex-seminaristas era tão elevado nas companhias.

Em 1968, em 4 alferes possíveis 3 eram ex-seminaristas e havia mais nas outras CArts do BArt 1896. Mais tarde, em Mansabá, dos 3 existentes um era ex-seminarista e bastante avançado nos estudos. Quando no encontrámos recentemente fiquei a saber que quando ele saíu do seminário, só lá ficaram 10.

Era uma "crise de vocações" ou a Igreja que tinha deixado de responder às necessidades espirituais das pessoas, neste caso dos jovens seminaristas e futuros padres?

Jogo nesta última hipótese à qual teremos de adicionar o ambiente sócio-psicológico que se vivia em Portugal e a conivência da hierarquia com "o sistema". Era frequente encontrarmos "dissidentes" e críticos, mas só na parte baixa da estrutura, como era o caso do capelão do BCaç 4612. Mas era um fenómeno inexorável a deserção do seminário. Claro que a "tropa" aproveitava-se... atiradores, com alguma tendência para liderar (que se aprendia desde o início no treino dos seminários) faziam sempre falta.

(v) Virgílio Teixeira:

Eu julgo, em resposta ao António Costa, que existiam muitos seminaristas nos batalhões e companhias, mas a nível de furriéis e alferes, devido à escolaridade, pois no seminário era fácil fazer o 5.º para furriel e o 7.º para alferes, e depois deram o salto do seminário porque cá fora já podiam ter uma vida melhor, com a escolaridade que trouxeram do seminário.

Não contavam, talvez, que iriam fazer uma missão bem pior na guerra, do que a de seminarista e depois padre. Se bem se lembram, nos anos 60 não havia assim tanta gente com escolaridade para as funções na tropa de furriel e alferes, o mesmo não se pode dizer do soldado raso, pois desta matéria não faltou durante uns tempos.

Sei alguma coisa, mas não muito, o meu pai também esteve no seminário, saiu com uma grande escola de vida, que nunca teria se não o metessem no seminário, mas pouco mais sei, porque ele sempre muito fechado, nunca se abriu muito sobre estas questões.

Eu próprio, poderia ser hoje um ex-seminarista, ou um ex-padre, pois quando acabei a primária, acho que o meu pai tinha ideia de me mandar para lá, só que eu era rebelde demais para isso, e entretanto como foi mobilizado para a Índia, em 1955, não houve tempo para essas formalidades, e quando voltou passados quase 3 anos já era tarde demais, e assim me safei dessa!

Estou a falar nisto pela rama, mas pormenores não os sei, era tudo muito fechado.

(vii) A. Marques Lopes:

Só uma observação: não considero que o meu "Cabra-cega" seja "romance"... Usei, eu próprio, um pseudónimo como autor e outro como personagem do livro, dei também nomes fictícios a outras personagens reais. Mas os factos são reais, não são romance.   (**)
 ______________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 24 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18949: A galeria dos meus heróis (8): os seminaristas (Luís Graça)

(**) Último poste da série > 23 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18865: (Ex)citações (342): O patacão da guerra: 1043 contos de 'ajudas de custo [de embarque] e adiantamento de vencimentos' foi quanto levantei em agosto de 1967 para o meu batalhão (Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, CCS/BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69)

Guiné 61/74 - P18953: Os 54 sargentos que tombaram no CTIG (1963-1974), por doença (n=24), em combate (n=17) e por acidente (n=13) (Jorge Araújo)


Lisboa (Cais da Rocha Conde de Óbidos), 6 de Outubro de 1964, 3.ª feira. Desfile de despedida do contingente da Companhia de Caçadores 726 [CCAÇ 726], momentos antes do embarque a bordo do N/M «Uíge»,  rumo a Bissau, unidade comandada pelo capitão Martins Cavaleiro [foto de autor desconhecido editada no cmjornal em 05.06.2010, in: http://www.cmjornal.pt/mais-cm/eu-reporter-cm/correio-do-leitor/detalhe/cacadores-726-convivem (com a devida vénia)].




Jorge Alves Araújo, ex-Furriel Mil Op Esp  / Ranger, CART 3494 
(Xime-Mansambo, 1972/1974);
 coeditor do nosso blogue; tem mais de 180 referências



OS 54 SARGENTOS QUE TOMBARAM NO CTIG [1963-1974] (POR ACIDENTE, COMBATE E DOENÇA) 
(Jorge Araújo)


1. INTRODUÇÃO

Este projecto de actualização das listas dos camaradas que tombaram no CTIGuiné durante a «Guerra do Ultramar» ou «Guerra Colonial» (1961-1974), estruturado por patentes segundo a tríade em que foram agrupadas as causas das suas mortes – acidente, combate e doença – teve o seu início com os «Alferes» [P18860], seguindo-se depois os «Furriéis» [P18925, P18927 e P18935].

Hoje, apresento ao Fórum a lista dos camaradas «Sargentos» dos três ramos das Forças Armadas, organizada segundo a metodologia anterior, os mesmos quadros de categorias e ordem cronológica.

Continuamos a considerar a hipótese desta lista estar incompleta, tal como as já publicadas, na justa medida em que existem casos de militares que tombaram nos diferentes TO que estão ainda por registar e/ou recensear.

Quanto aos camaradas «Sargentos do Exército», que faleceram em combate na Guiné, recordo os nomes dos três primeiros casos, por sinal os únicos ocorridos ao longo do ano de 1965, ou seja, dois anos após o início do conflito, e que foram:

● Em 28FEV1965 – o 1.º Sargento Inf Joaquim Lopo Covas Balsinhas, da CCAÇ 726,

● Em 19JUL1965 – o 2.º Sargento Inf Leandro Vieira Barcelos, da CCAÇ 763,

● Em 11AGO1965 – o 2.º Sargento CMD Rodolfo Valentim Oliveira, da 4.ª CCAÇ.


Guileje, na manhã a seguir ao 1.º ataque (30NOV1964), vendo-se a cozinha, o refeitório, a GMC e a armação de uma das tendas, onde o 1.º sargento Joaquim Balsinhas está identificado com a letra “A”.



Idem. Em “A” continua a ser o 1.º sargento Joaquim Balsinhas; “B”: o fur enf Manuel Rodrigues; “C”: o 2.º sargento José Bebiano; “D”: o fur trms Carlos Cruz e “E” elementos da CART 495 [fotos do camarada António Pires (Teco), com a devida vénia (P2360)].


2. AS PRIMEIRAS TRÊS BAIXAS EM COMBATE NO EXÉRCITO

2.1. A 1.ª BAIXA:  1.º SARGENTO INF JOAQUIM LOPO COVAS BALSINHAS, DA CCAÇ 726, EM 28FEV1965

Da História da CCAÇ 726 [Guileje, Mejo e Cachil, 1964-1966] consta que esta Unidade foi mobilizada pelo Regimento de Infantaria 16 [RI 16], de Évora, tendo desembarcado em Bissau a 14 de Outubro de 1964, 4.ª feira, rendendo a CART 676 no dispositivo e manobra do BCAÇ 600. Sob a orientação da CCAÇ 508, fez a adaptação operacional na zona de Quinhamel, perto da capital. Em 28 de Outubro e 17 de Novembro de 1964, foram destacados para Guileje o 1.º GrComb e o 2.º GrComb, respectivamente.

Em 25 de Novembro de 1964, 4.ª feira, todo o colectivo da CCAÇ 726 estava colocado no Sector de Guileje, então criado [daí ser considerada a primeira Companhia a ocupar Guileje], primeiro na dependência do BCAÇ 513, depois na do BCAÇ 600 e ainda na do BCAÇ 1861. Anteriormente Guileje esteve ocupado por um GrComb da CART 495 [Fev1964-Jan1965].

A CCAÇ 726, ao longo da sua permanência neste Sector, só ou em conjunto com outras subunidades, tomou parte em diversas operações, patrulhamentos e emboscadas no chamado "Corredor de Guileje". Por períodos variáveis forneceu, também, Gr'sComb para reforçarem, temporariamente, as guarnições de Gadamael e Cacine.

Em 30 de Março de 1965, 3.ª feira, na sequência da «Op. Arpão» ocupou a povoação de Mejo, aí ficando instalados dois GrComb. Em 27 de Janeiro de 1966, 5.ª feira, destacou dois GrComb para o Cachil, para reforçar a CCAÇ 1424, então na zona de acção do BCAÇ 1858. Em 2 de Julho de 1966, sábado, passou a integrar o dispositivo do BCAÇ 1858, por rotação com a CCAÇ 1424, assumindo a responsabilidade do subsector de Cachil, mantendo ainda um GrComb em Mejo.

Em 16 de Julho de 1966, sábado, foi substituída pela CCAV 1484, do Capitão Cav Rui Pessoa de Amorim, seguindo para Catió, onde se manteve até à chegada da CCAÇ 1587, do Capitão Mil Inf Pedro Reis Borges. Em 6 de Agosto de 1966, sábado, seguiu para Bissau, onde no dia seguinte embarcou a bordo do Paquete «Rita Maria» de regresso à Metrópole.

A CCAÇ 726, durante a sua comissão de vinte e dois meses, teve três comandantes: o Capitão Martins Cavaleiro, o Capitão Inf Arménio Teodósio e o Capitão Art Nuno Rubim. [vidé P2360 e P10576].

Entretanto, numa das missões de contra-penetração efectuadas no «Corredor de Guileje», morre em combate, em 28 de Fevereiro de 1965, domingo, por efeito de explosão de uma armadilha IN, o 1.º Sargento Inf Joaquim Lopo Covas Balsinhas, natural de S. Brás e S. Lourenço, Elvas.

A morte de Joaquim Balsinhas, considerada a segunda baixa do contingente da CCAÇ 726 [a 1.ª foi a do Furriel António Gonçalves da Silva, natural de Penude, Lamego (P18927), ocorrida em 29NOV1964, durante um ataque à tabanca e ao quartel de Guileje (P2360)], ficou grafada na historiografia da Guerra no CTIG como a primeira em combate de um Sargento do Exército, numa altura em que o conflito armado somava, então, vinte e cinco meses.


2.2. A 2.ª BAIXA: - 2.º SARGENTO INF LEANDRO VIEIRA BARCELOS, DA CCAÇ 763, EM 19JUL1965

A morte do 2.º Sargento Inf Leandro Vieira Barcelos, natural de Porto da Cruz, Machico (Madeira), ocorrida em 19 de Julho de 1965, 2.ª feira, é considerada a segunda na cronologia dos Sargentos do Exército falecidos em combate no CTIG, e a primeira da CCAÇ 763 [Cufar, 1965-1966].

Da História da CCAÇ 763 ("Nobres na Paz e na Guerra") consta que esta Unidade foi mobilizada pelo Regimento de Infantaria 1 [RI 1], Amadora, Oeiras, tendo embarcado a 11 de Fevereiro de 1965, 5.ª feira, a bordo do T/T «Timor» rumo a Bissau, onde desembarcou seis dias depois, em 17 de Fevereiro de 1965, 4.ª feira. Aí chegada, a CCAÇ 763 ficou instalada em Santa Luzia no BCAÇ 600, aguardando ordens para seguir para Cufar, região de Tombali, na Frente Sul, de modo a reforçar o BCAÇ 619, sediado em Catió. O seu regresso à metrópole aconteceu a 26 de Novembro de 1966, sábado, a bordo do N/M «Niassa».

Quanto à descrição do contexto onde ocorreu a morte do 2.º Sargento Leandro Vieira Barcelos vamos encontrá-la no livro de memórias "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" do nosso camarada Mário Vicente [Mário Fitas, ex-fur mil op esp da mesma companhia], o qual faz parte do riquíssimo espólio deste blogue.

No P17130 é referido: […]

"Em 8 de Julho de 1965 [5.ª feira], a Companhia [CCAÇ 763] embarca em Impungueda a fim de levar a efeito a «Op Satan». Pelas quatro horas da madrugada as três LDM que transportam a CCAÇ [763] encontram-se frente a Caboxanque. Detectadas, as forças do PAIGC abrem fogo contras as NT, as lanchas conseguem acostar e o primeiro GrComb a desembarcar contra-ataca, desalojando os guerrilheiros.

Conseguindo progredir através de Caboxanque e depois Flaque Injã, pelas 07h00 consegue-se detectar e assaltar um acampamento, o qual foi destruído bem como várias instalações e uma grande escola do PAIGC, onde é apreendido bastante material e documentação. Entre a documentação são encontradas várias fotografias, uma das quais de "Nino" [Vieira, 1939-2009] em Pequim.

Na descida de Flaque Injã para Caboxanque somos emboscados. Reagindo bem, a Companhia consegue abater seis guerrilheiros, capturar uma espingarda automática e diverso equipamento. No cais de Caboxanque, onde se nos juntara a 4.ª CCAÇ de Bedanda, enquanto se aguardava o embarque, fomos de novo fortemente atacados, mas o IN foi repelido. Sofremos um ferido grave que foi evacuado de helicóptero para Bissau. […]

[Em 18 de Julho de 1965, domingo] voltámos a Cabolol. O guia vindo do Batalhão [BCAÇ 619] garante-nos haver um novo acampamento, mas não encontramos nada. Leva-nos ao antigo acampamento que verificamos continuar destruído. Divergimos para a tabanca de Cantumane que verificamos encontrar-se deserta. Procedimento normal em termos de anti-guerrilha, proceder à revista de todas as moranças e depósitos de arroz.

Quando o grupo destinado executava essa tarefa, a CCAÇ 763 foi violentamente atacada por um numeroso grupo IN que se encontrava emboscado na mata a norte. Três ataques sucessivos cor armas ligeiras e RPG, verifica-se a impossibilidade de utilização de morteiros, resultante da proximidade em que as forças se encontram.

Nessa ocasião é-nos dada a oportunidade de contactarmos com um novo, para nós, método de
emboscada: a utilização de abelhas.

[imagem de cortiço de abelhas africanas]. Fonte: iStock, com a devida vénia.

Os cortiços são postos em pontos estratégicos e, ao desencadearem a emboscada, fazem fogo sobre os 
referidos cortiços. As abelhas "lassas" saem lançando-se enfurecidas sobre os nossos homens, desarticulando completamente o dispositivo dos grupos de combate, ficando muita gente incapacitada para o combate, e para responder à emboscada [vidé P7674].

Com algum esforço, consegue-se fazer o envolvimento do IN provocando-lhe várias baixas confirmada. Por parte das NT sofremos mais um ferido grave que não viria a resistir, o nosso "Madeira". O 2.º sargento Leandro Vieira Barcelos é atingido no fígado por uma bala depois de lhe ter perfurado o rádio. O Barcelos não se aguentou e fina-se no dia seguinte no HM241, em Bissau. A CCAÇ 763 sofre mais três feridos graves por picadelas de abelhas, que foram também evacuados para o Hospital. E assim termina a denominada «Op. Trovão»" [P17130].


2.3 .  A  3.ª BAIXA: - 2.º SARGENTO CMD RODOLFO VALENTIM OLIVEIRA, DA 4.ª CCAÇ, EM 11AGO1965

A morte do 2.º Sargento Cmd Rodolfo Valentim Oliveira, natural de Santiago, Tavira, ocorrida em 11 de Agosto de 1965, 4.ª feira, é considerada a terceira na cronologia dos Sargentos do Exército falecidos em combate no CTIG.

O sargento Rodolfo Valentim Oliveira pertencia à estrutura orgânica da 4.ª CCAÇ [Companhia de Caçadores Nativos (ou indígenas) constituída por praças africanas de Recrutamento Local, que eram enquadrados por oficiais, sargentos e praças especialistas oriundos da Metrópole.

Criada e instalada primeiramente em Bolama em finais de 1959, mudou-se em Julho de 1964 para Bedanda, por necessidades operacionais, uma vez que um dos objectivos intrínsecos para a sua criação foi/era a segurança e/ou a defesa das suas populações, estando assim implícito o conceito de "missão" ou "actividade operacional" na luta contra os grupos da/de guerrilha armados. Três anos após a instalação dos seus primeiros efectivos em Bedanda, esta Unidade é renomeada, em 1 de Abril de 1967, passando a designar-se por Companhia de Caçadores n.º 6 [CCAÇ 6 - "Onças Negras"] (vidé: P18387 e P18391).

Na sequência da actividade operacional da CCAÇ 763, caracterizada pelo camarada Mário Fitas no livro acima referido, da qual resultou a morte do 2.º sargento Leandro Vieira Barcelos, já descrita no ponto anterior, encontrámos uma primeira referência à 4.ª CCAÇ, onde dá-se conta de missões conjuntas envolvendo as duas Unidades.

É a partir dessas vivências colectivas anteriores, partilhadas em palcos comuns, que se vem a saber da morte do 2.º sargento Rodolfo Valentim Oliveira. Por ausência de informações mais precisas quanto aos detalhes que originaram a sua morte em combate, citamos o que foi possível apurar neste âmbito:

"Voltamos a caminhos de Cabolol mas seguindo a estrada, passamos nas bordinhas da mata e vamos atá à tabanca de Cobumba, numa acção punitiva, por a sua população dar guarida a um grupo de guerrilheiros, que teria causado várias baixas à 4.ª CCAÇ estacionada em Bedanda, entre as quais se contava um sargento [Rodolfo Valentim Oliveira]" [P17130].

Para que não fiquem na "vala comum do esquecimento", como costumamos afirmar, eis os quadros estatísticos dos 54 (cinquenta e quatro) sargentos [Ajud., 1.ºs e 2.ºs], nossos camaradas dos três ramos das Forças Armadas, que tombaram durante as suas Comissões de Serviço na Guerra no CTIG, sendo 13 em acidente (24.1%), 17 em combate (31.5%) e 24 por doença (44.4%).

3. QUADROS POR CATEGORIAS E ORDEM CRONOLÓGICA












Fontes consultadas [com cruzamento]:

http://www.apvg.pt/

http://ultramar.terraweb.biz/index_MortosGuerraUltramar.htm (com a devida vénia)

Termino, agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.

Jorge Araújo.
24AGO2018.
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Nota do editor:

Vd postes relacionados com este último:

19 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18935: Furriéis que tombaram no CTIG (1963-1974), por acidente, combate e doença - III (e última) Parte: Por doença (n=14) (Jorge Araújo)

16 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18927: Furriéis que tombaram no CTIG (1963-1974), por acidente, combate e doença - Parte II: Em combate (n=139) (Jorge Araújo)

15 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18924: Furriéis que tombaram no CTIG (1963-1974), por acidente, combate e doença - Parte I: Por acidente (n=68) (Jorge Araújo)

20 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18860: Os 81 alferes que tombaram no CTIG (1963-1974): lista aumentada e corrigida (Jorge Araújo)



26 de4 agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18953: Os 54 sargentos que tombaram no CTIG (1963-1974), por doença (n=24), em combate (n=17) e por acidente (n=13) (Jorge Araújo)