quinta-feira, 11 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19089: In Memoriam (330): Diamantino Gertrudes da Silva (1943-2018), ex-comandante da CCAÇ 2781 / BCAÇ 2927 (Bissum, 1970/72), "capitão de Abril", escritor (Carlos Matos Gomes)

O capitão de Abril Gertrudes da Silva;~
comandou a CCAÇ 2781
(Bissum, 1970/72)
1. Poste do Carlos Matos Gomes na sua página do Facebook, partilhada pela nossa, a Tabanca Grande Luís Graça, com data de ontem, às 20h00:

 ·
Os portugueses não conhecem o Diamantino

por Carlos Matos Gomes


As portuguesas e os portugueses não conhecem o Diamantino. Antes do Diamantino também não conheceram o Corvacho, nem o Tomaz Ferreira, nem o Vila Lobos, nem o Ramiro, nem o Ernesto, o Melo Antunes, nem o Varela, o Gomes, nem o Victor, o Crespo, os portugueses não conhecem os portugueses que estiveram no dia 25 de Abril de 1974 no comando das operações na Pontinha, nem nas unidades que tomaram o poder

Nem dos que estiveram em Bissau, em Luanda, ou em Nampula a assumir a responsabilidade histórica de resolver um problema colonial que se arrastava desde a Conferência de Berlim (1884), que fora causa da queda da monarquia, da implantação da República, da entrada de Portugal na I Grande Guerra, da instauração da ditadura em 1926 e de uma guerra colonial de 13 anos.
O desconhecimento desses nomes e o conhecimento de outros, de futebolistas e comentadores de TV, de cantores e de apresentadores de TV, de cabeleireiros e cozinheiros, de alfaiates e famosos das relações públicas representa a glória dos anónimos militares como o Diamantino.

O Diamantino morreu hoje (**). O Diamantino teve um papel decisivo no 25 de Abril, comandando a coluna militar que controlou o centro do país. Os portugueses não conhecem o Diamantino, nem os camaradas que o acompanharam nesse dia e nessa acção. O desconhecimento do Diamantino é a sua maior condecoração. O Diamantino e os seus camaradas fizeram o que fizeram para que os comentadores comentassem, os cantores cantassem, os famosos se exibissem. O Diamantino e os seus camaradas são anónimos para que os portugueses tenham nome e possam tê-lo. O Diamantino e os seus camaradas fizeram o que fizeram para que os portugueses tivessem um serviço nacional de saúde e também um multibanco. 

O Diamantino morreu ontem. Nasceu em 1943, na Beira Alta, em Moimenta da Beira. Filho de gente humilde – não se trata de neo-realismo – frequentou o seminário e depois a Academia Militar, onde entrou em 1963. Conheci-o ainda de missal, expressão séria, a sair da caserna para ir à missa. Eu, três anos mais novo, já agnóstico. Nunca falámos de religião, de deuses, de salvação. Respeito. Ele infundia respeito, mesmo quando acreditava no que me merecia radicais oposições: eu dispensava a ideia de Deus, ele ainda a respeitava, não como amparo pessoal, mas como instância de justiça, julgo.

Ao longo da minha vida conheci pessoas extraordinárias. Sorte a minha. O mais extraordinário de
todos, se me perguntarem, Samora Machel. Mas, falando apenas dos que já morreram, conheci também Aquino de Bragança (informem-se sobre a personagem), e Spínola (escrevi sobre ele no Expresso na data da sua morte), e Costa Gomes, e Varela Gomes, e Fernando Salgueiro Maia, e o comissário político da brigada Lister na guerra civil de Espanha, e Santos e Castro, fundador dos comandos e comandante de mercenários, fui amigo do Jaime Neves… e apoiante da Maria de Lurdes Pintassilgo. Fui amigo do Diamantino…

Quando, como é da história, nas revoluções se separam águas entre os que a fizeram, eu e o Diamantino ficámos na mesma margem. Foi depois do 25 de Novembro de 1975. Numa tarde, ou noite clandestina, encontrámo-nos em Viseu, a sua base, a conversar sobre o que era possível salvar, não da esperança, mas da parte do poder que devia caber aos que, sujeitos a séculos de dependências, iniciavam a descoberta da liberdade de decidirem o seu presente e o seu futuro. Poder popular, se não for descoberta outra designação aos sans culottes que, aqui em Portugal, viviam a sua revolução francesa no Portugal rural e eclesiástico após o 25 de abril. O “Comunismo” nos sermões dos padres lúbricos e guardadores de rebanhos.

O Diamantino formou-se em História, em Coimbra. Ele, e um outro destes capitães, também já desaparecido, o Monteiro Valente. Conheci-os, relacionei-me com eles como mais um privilégio que a vida me concedeu. O Monteiro Valente foi o único (julgo) capitão que teve de disparar a sua arma para impor o 25 de Abril numa unidade militar!

A História concedeu a Portugal, aos portugueses que não sabem quem eles foram, o privilégio de ter os capitães dos seus exércitos de terra, mar e ar no local certo, no tempo certo, para realizarem a 25 de Abril de 1974 aquilo que era necessário fazer e foi feito da forma exemplar que a História reconhece como a “revolução dos cravos”. 

O Diamantino pertenceu a essa gesta de anónimos capitães que Portugal e os portugueses tiveram a sorte histórica de encontrar generosamente disponíveis e culturalmente preparados para assumirem os riscos de lhes traduzirem os anseios de liberdade e de paz. Ele escreveria ensaios e fições sobre a sua geração.(**)

A morte do Diamantino, capitão de Abril, ocorre no tempo em que emerge do lado de lá do Atlântico, no Brasil a quem tanto nos une, um capitão de negrume, de nome Bolsanaro…um fantasma da História. Figura recorrente de abutre militar…

O capitão Diamantino, que morreu em Viseu, era a face luminosa dos militares de qualquer parte do mundo que estão do lado da História e dos seus povos…

Será enterrado singelamente. Como um militar digno. Com as “sem honras” que a sua vida merece.
Que a semente do seu exemplo frutifique…

[O ex-comandante da CCAÇ 2781, Bissum, 1970/72, capitão de Abril e escritor, Gertrudes da Silva, tem 8 referências no nosso blogue. Infelizmente não temos nenhum representante desta companhia no nosso blogue; a minha sugestão é que este nosso camarada, que foi comandante operacional no TO  da Guiné, entre para a Tabanca Grande, a título póstumo.]
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Notas do editor:


(**) 13 de março de 2008 > Guiné 63/74 - P2632: Coronel Gertrudes da Silva: A Guiné, a guerra colonial e o 25 de Abril (Virgínio Briote)

(...) Nota de Virgínio Briote:

O Coronel Diamantino Gertrudes da Silva foi admitido na Academia Militar em Outubro de 1962. Nº 1 do Curso de Infantaria, com o posto de Alferes foi mobilizado para Angola (região de Bessa Monteiro), integrado na CCaç 1642.

Em 1970, comandou a CÇAÇ 2781 na Guiné, que esteve destacada em Bissum, permanecendo no território até 1972, data em que a Companhia regressou à Metrópole. Colocado nesse ano em Viseu, no RI 14, aí permaneceu até à véspera do 25 de Abril de 1974. À frente das tropas que conseguiu reunir, deslocou-se para Lisboa e Peniche onde teve acção preponderante no desenrolar dos acontecimentos que se seguiram ao movimento militar.


É autor de várias obras (...)

Guiné 61/74 - P19088: Parabéns a você (1510): Benito Neves, ex-Fur Mil Cav da CCAV 1484 (Guiné, 1965/67); Eduardo Campos, ex-1.º Cabo TRMS da CCAÇ 4540 (Guiné, 1972/74) e Patrício Ribeiro, ex-Fuzileiro Naval (Angola, 1969/72), residente na Guiné Bissau



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Nota do editor

Último poste da série de 10 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19086: Parabéns a você (1509): Manuel Resende, ex-Alf Mil Art da CCAÇ 2585 (Guiné, 1969/71)

quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19087: Bibliografia de uma guerra (93): “Tu não viste nada em Angola”, por Francisco Marcelo Curto; Centelha, 1983 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Agosto de 2016:

Queridos amigos,
Nunca me passou pela cabeça que o socialista autogestionário Marcelo Curto tivesse apanhado a guerra de Angola logo em meados de 1961, lançado no Norte, em locais quentes.
Não privilegio outras literaturas de guerra que a da Guiné mas de tempos a tempos gosto de ser surpreendido pelos termos de comparação. Neste caso, um território com alturas e funduras, uma guerra de capacete, com contingentes militares acompanhados de voluntários, com tiradas racistas impensáveis em território guineense, aqui o problema da cor era outro, bem como os problemas coloniais tinham outra feição.
É um documento raro, um alferes que leva sebentas para a comissão militar, devia imaginar que viria em breve fazer exames...
Uma surpresa da literatura de guerra que partilho com enorme satisfação convosco.

Um abraço do
Mário


Quando a guerra, toda ela, dava pelo nome de Angola (1)

Beja Santos

Francisco Marcelo Curto (1937-2001) foi fundador do Partido Socialista, membro do governo, conceituado especialista em Direito do Trabalho, e no meio político e sindical conheceu grande notoriedade devido às suas simpatias com o processo autogestionário e por ter criado a Esquerda Laboral.

Escreveu um só livro na sua vida abreviada: “Tu não viste nada em Angola”, Centelha, 1983. O seu livro é uma surpresa e uma revelação, é um registo de notas entrosado com memórias plasmadas sob a forma de água-fortes. Surpreende pela sinceridade, nada do que consta dessa obra pode ter sido decantado em laboratório, denota, toda a obra, o cunho da mesma personalidade e tem uma margem plausível da história temporal do combatente, há para ali a experiência de uma comissão em marcha.

Estamos em Julho de 1961, quando ele começa a registar páginas do seu diário: a descrição sumária da cidade de Luanda, as conversas sobre os batalhões a caminho de Nambuangongo, a adaptação à comida (muamba, um molho grosso de óleo de palma e muito gostoso, com galinha e arroz ou funge), anota que o funge se pega à boca e o jindungo, visitas aos cabarés, ficamos a conhecer os seus soldados, o Sorna, o Azinheira. O grande choque é dado quando visita os primos, as conversas não escondem os sentimentos racistas destes colonos, a queixa a que os pretos eram criminosos, os brancos tinham-se viso obrigados a unirem-se em milícias armadas. Em Agosto, já estava em Toto, demoraram dois dias de viagem, encontraram abatizes, fazendas abandonadas: “Toto vive de um tipo que tem palmeiras e negoceia em óleo de palma e café. As sanzalas à volta de Toto estão destruídas. Há um restaurante onde o bife é pago a preço de ouro. A mulher dele usa chicote e berra”. Não esconde a veneração pela mãe, a sua relação com Matilde, a mãe do filho, está profundamente abalada ou exausta. Aqui e ali, vai pontuando o texto de poesia, esta não passará à história.

E temos uma coluna para o Catete: “Rua ao centro, um grande casarão ao fundo, e à volta sanzalas e mais sanzalas. Na prisão da administração um preto leva porrada com uma moca. Foi caçado ontem – informa o cipaio – e não quer cantar. Mais vai cantar – assegura. Também está de amarelo como os soldados, com um bivaque pequeno, ridículo, e bate pouco de cada vez, uma, duas, três porradas, depois espeta a moca na barriga do preto”. Há profunda contestação entre a tropa àquela cena de porrada. Marcelo Curto maneja a dureza da cena: “Dava só uns urros torcidos como o raio. A cara não mexia. Ao cipaio é que parecia estar-lhe a doer qualquer coisa”.

As colunas convocam a inevitabilidade da guerra, há o permanente ambiente de perigo, o coração em ânsias, as hastes do capim roçam o rosto e as fardas, sente-se o bater seco das espingardas na armação de aço da viatura e a prosa torna-se lírica, pesarosa, naquela madrugada fosca, já se abandonaram as viaturas, a coluna é uma fila de lagarta à procura de um pequeno rio, passou-se uma sanzala destruída, há aquela tensão de silêncios retesados, e depois rebentam as rajadas na encosta, é fogo de pouca dura. E tudo termina bem: “Voltamos para trás e seguimos pela encosta por onde viemos, duas armas fazem fogo para os montes do Pete, baixos em direcção à maldita metralhadora que ergue poeira amarela no capim, depois a encosta, descansamos até à caminhada para a posição em frente, exaustos, salvos”.

Os nomes que ele invoca são os da Angola de 1961: Caipemba, Quipedro, Quindaca, Nova Caipemba. São longos os estirões pela mata, e a tensão parece aliviar quando aparecem sinais de vida: “Passávamos sanzalas de capim crescido mas ralo, é capim novo, as árvores vão rareando, encontramos leiras de feijões, feijões mesmo, uma pequena horta, um alto e um vale do outro lado, subindo o olhar das bananeiras para o negro no fundão do vale via-se terra desmatada há pouco, pontos-pessoas-negras-calmas a fazerem pequenas fogueiras, alheados dos guerreiros que aos poucos surgiam e já puxavam da espingarda. Onde estava eu? Deslumbrado”.

Acompanham o dispositivo militar voluntários, muitos deles irão morrer. Há conversas com fazendeiros, há bailundos que estão na debulha do café. Nosso alferes é transferido para Nova Caipemba, assim descrita:
“Doze ou catorze casas de um lado e outro de uma rua larga de terra batida. Em cada um dos extremos o posto e a igreja. Dois comerciantes brancos, dos cinco que havia antes das makas.
Muitas fazendas à volta. No vale do Loge três estão ocupadas pelos gerentes, empregados dos donos que estão em Luanda. Aqui mais perto, duas ocupadas pelos voluntários e outra por um representante do proprietário (…) Distribuímo-nos pelas casas abandonadas. Ir buscar água para o lado da fazenda dos voluntários, aqui é arriscado. Os postos de vigia (oito) em cima das torres feitas de troncos e as rondas à noite são a maior distração destas paragens, depois da cerveja, dos churrascos e do jogo das cartas. Vai-se ao Uíge buscar correio, escoltam-se viaturas civis, são descidas íngremes, com as viaturas a patinar na lama”.

Os patrulhamentos são sempre apresentados de uma forma tensional, é nos pormenores que o leitor descansa, nos comentários brejeiros. Escreve sobre a condição em que se encontram: “As faces lavradas pela expectativa, o suor por baixo do capacete, as armas apertadas, as folhas de verde negro, os passos enlameados, entram na sanzala. Depois, o carreiro sobe, o capitão enfia meio do terreiro da sanzala, há para ali cabras assustadas”. Seguir-se-ão tiros e a descrição de tudo quando aconteceu: “Espio-me, as balas zunem, estou exausto e o sangue corre, ensopa o lenço do Martinho, o analfabeto, aflito, a chorar, apertando a perna do Leal, tapando a fonte de sangue, ninguém deu por nada, os tiros lá partem sem mim, ouço-os nas costas, na cabeça, viro-me e os ramos das árvores parecem quietos, o combate – agora é um emaranhado de tiros e o sangue do Leal, morto logo que regressámos, era inevitável”. E Martinho soluçava. O furriel de minas e armadilhas não foi precavido, ficou num escombro, a mina que montara inutiliza-o: “O homem sem mãos parece-me que as tripas à mostra. Agita-se o corpo negro feito de farrapos queimados a balançar. Seguram-no pelos sovacos, pelas pernas que arrastaram por cima das tábuas (…) A voz gordurosa do nosso furriel sem mãos, negro e vermelho, com pedaços de metal cravados no corpo, pequenos rios pelo negro, pelos farrapos, pela paz”.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18695: Bibliografia de uma guerra (92): Um Barco Fardado, por Eduardo Brito Aranha; Roma Editora, 2005 (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P19086: Parabéns a você (1509): Manuel Resende, ex-Alf Mil Art da CCAÇ 2585 (Guiné, 1969/71)

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Nota do editor

Último poste da série de 9 de Outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19083: Parabéns a você (1508): José Carmino Azevedo, ex-Soldado Condutor do BCAV 2868 (Guiné, 1969/71)

terça-feira, 9 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19085: A galeria dos meus heróis (10): o "Felgueiras", 1º cabo hortelão, empresário, autarca, padrinho... (1943-2017) - II (e última) Parte (Luís Graça)

Luís Graça, Contuboel, junho/julho de 1969
Segunda e última parte do texto elaborado para a "Galeria dos meus heróis", série literária da autoria do nosso editor Luís Graça.

O  "Felgueiras", 1º cabo hortelão, empresário, autarca, padrinho... (1943-2017) - II (e última) parte


Foi aqui, em pleno "chão manjaco", que o nosso cabo descobriu que tinha jeito para os negócios. E mais: que tinha a estrelinha da sorte a brilhar no seu céu… Um ano depois, voltou a Felgueiras e a Amarante, as suas "duas terras natais".

Vir de férias à metrópole era um luxo só reservado a alguns, aos oficiais e sargentos, milicianos ou do quadro. Raros eram as praças (soldados e cabos) que podiam desembolsar as seis notas de conto que custava a viagem de ida e volta na TAP. Alguns, coitados, faziam das tripas coração, só para poder estar um mês com a família, sendo já casados e com filhos (que mal conheciam ou não conheciam de todo).

Numa região com grande tradição de emigrantes de torna-viagem (Brasil, França…), o "Felgueiras" fez questão de voltar exibindo alguns sinais exteriores de riqueza… Até um carro alugou, no Porto, só para impressionar a família e os amigos que cá deixara. (Poucos, de resto, a maior parte deles espalharam-se pelo mundo fora: uns na Invicta ou em Lisboa, outros na França, outros ainda na guerra do ultramar).

− Sorte ao jogo, azar no amor ?!... Vamos lá testar a roleta da sorte…

De há muito que o "Felgueiras" tinha uma paixão, "assolapada", não correspondida, por um antiga colega do colégio de Amarante, a "morgadinha". A rapariga pertencia a uma família com pretensões a ter "origem fidalga"… Fizera o antigo 5º ano do liceu e o melhor que arranjou, por ali perto, foi um emprego na Câmara Municipal, como administrativa.

Durante o primeiro ano de comissão, o "Felgueiras" e ela trocaram algumas cartas e aerogramas, mas sempre na condição de "amigos, vizinhos e colegas de escola"… Não se namoravam, mas ela também teria um fraquinho por ele.  Aliás, os pais opunham-se, e tinham outros planos para a rapariga, que era filha única: ao que parece, o eleito era um professor primário, que andara a estudar para padre, e que também estava na tropa, em Moçambique, como alferes miliciano. Seguramente, um melhor partido do que o filho do "rendeiro da Lixa"…

Os pais da rapariga não tinham, alegadamente, "dinheiro para mandar cantar um cego" e, muito menos, para mandar restaurar a arruinada fachada da casa, "com brasão", onde viviam, nos arredores de Amarante, herança de um tio-bisavô, cónego da Sé de Braga.

O filho do rendeiro, operário da Tabopan, não era, na verdade, nessa época, um "bom partido", pelo que o "Felgueiras" voltou para a Guiné com um "amargo de boca"…

10. Convencido de que o dinheiro pode "comprar tudo (ou quase tudo), até o amor", acabada a comissão, o "Felgueiras" voltou com uma malota cheia de notas ("escudos", legítimos, da metrópole, trocados pelos "pesos", o patacão, sujo, sebento, da Guiné, lá no Banco Nacional Ultramarino e na "candonga", nos comerciantes de Bissau que cobravam uma taxa de 10%).

Depositou a malota aos pés da rapariga e pediu-a aos pais em casamento, assim, de chofre, à bruta, sem mais cerimónias. Os "fidalgos" nunca tinham visto na vida tanto nota de banco, em maços separados, atados por uma fita… Até desconfiaram que fosse produto de algum assalto…

Estranhamente, a rapariga levantou-se, lívida, sem pinga de sangue, para logo a seguir correr para o quarto, lavada em lágrimas, num pranto… Os pais esboçaram um pedido de desculpa, mais embaraçados e envergonhados que o pretendente à mão da filha. 

A partir deste dia, o "Felgueiras" esqueceu, para sempre, a sua "morgadinha"… 

No dia seguinte, rescindiu o contrato de trabalho que ainda o ligava à Tabopan, e decidiu comprar um bilhete da TAP para visitar Luanda,onde tinha um irmão estabelecido desde que terminara a tropa em 1963.

– Um homem das Arábias, o nosso "Felgueiras" – conclui eu.

− Não, um homem das Áfricas – emendou o Arlindo.− Partiu para Angola com o coração destroçado.

Ex-furriel, camarada do "Felgueiras", maquinista da CP reformado, pai do Jorge, meu vizinho do Marco de Canaveses, voltei a encontrá-lo, ao Arlindo, depois do casamento do filho, mais duas ou três vezes. E foi através dele que fui sabendo mais histórias do "Felgueiras" que, segundo os meus cálculos, terá regressado da Guiné logo em janeiro de 1969…

Sabemos que foi ter com um dos irmãos, o mais velho, o Tó, que se radicara em Angola: foi dos primeiros militares a ir para lá, em meados de 1961, tendo sido um dos bravos da Operação Pedra Verde. Em finais de 1963, terá rumado para a Lunda, e andado metido com "garimpeiros". Depois acabou por abrir um pequeno restaurante em Luanda, lá na Mutamba, na parte baixa da cidade. As coisas melhoraram quando o irmão mais novo, o "Felgueiras",  se tornou sócio. Trouxe dinheiro fresco e sobretudo o tal "jeito para o negócio", talento que tinha descoberto na região do Cacheu, na Guiné.

O início da década de 1970, antes da crise petrolífera de 1973, foi ouro sobre azul para quem tinha "porta aberta" em Luanda. O "dinheiro sujo" da guerra era ali "branqueado". O "ventre de Luanda" regurgitava, os "comes & bebes", a "diversão noturna" e a "indústria do sexo" deram muito "kumbú" (dinheiro, em calão de hoje) a ganhar a muita gente. Havia até um restaurante, o "Floresta", que servia sardinhas assadas de Peniche acabadas de chegar do avião da TAP... 

Inesperadamente, em princípios de 1973, seis meses antes da crise, o "Felgueiras" vendeu a sua quota ao "kota" do irmão Tó, just in time, na hora certa. Parece que adivinhava que o mundo ía ficar louco e que nada voltaria a ser como dantes...Alegava que "queria correr mundo e encontrar a futura mãe dos seus filhos"...

Em troca terá recebido do mano velho um saquinho de "vidrinhos", guardados no fundo de um bau, desde o tempo da Lunda, como uma espécie de pé de meia. O "kota" insistiu que estava ali uma pequena fortuna, mas ele nunca tentara sequer trocar as "pedrinhas" por dinheiro vivo. A Diamang, dizia-se, tinha um braço comprido e o contrabando de diamantes (a "kamanga", como se dizia em bom angolês...) era severamente reprimido. Era um Estado dentro de outro Estado, justificava-se o "kota, seguramente menos "atiradiço" (e "com mais escrúpulos"...)  que o caçula da família.

Por razões óbvias, por se tratar de um assunto "delicado, íntimo", eu nunca puxei a conversa para esse lado, das poucas vezes em que ainda estive (ou falei, ao telefone) com o "Felgueiras", nestes últimos anos, depois do casamento do Jorge e da Clara. Nunca saberei, pois, como é que ele conseguiu eventualmente aumentar a sua conta bancária, com o valor de um saquinho de "vidrinhos". Mesmo para o Arlindo, era uma "assunto-tabu".

− Por favor, camarada, quando voltares a estar (ou falar) com ele, nunca toques na história dos diamantes...Ele ficaria muito aborrecido, se não mesmo melindrado...

Quando conheci o "Felgueiras", ele tinha um passado de "empresário de sucesso", acionista do BPN ("pequena accionista", emendou ele), e chegara a ser inclusive uma "figura grada" da política local e regional. Recordo de me ter confidenciado:

− Nunca fui do reviralho, se é isso que queres saber. Antes do 25 de Abril não me interessava por política. Tocava a minha vidinha… No dia 26 de Abril, apanhei o comboio da democracia, como muito boa gente. E até viajei em 1ª classe. Fui dos primeiros a ter 'cartão partidário'...

− O "abre-te, Sésamo" do novo regime − ironizei eu... mas julgo que ele não percebeu a piada.

Numa região com grande tradição de caciquismo, é fácil, para quem tem o poder (económico e/ou político), tornar-se cacique. O "Felgueiras" não gostava da palavra... Como também não gostava nada de falar desses tempos nem da sua "pública e notória" participação nos acontecimentos do "verão quente de 75".

Considerava-se, antes de mais, "um português, patriota" (...), "com o coração talvez mais à esquerda e a razão seguramente mais à direita" (...), "mas hoje afastado das lides político-partidárias" (...) "onde quem manda é a canalha, que nunca foi à tropa e muito menos à guerra".

− Limito-me a ter as quotas em dia… Mas já ninguém me escreve, ou telefona, pede conselho, convida ou visita. Parece que tenho lepra...

Começou, "modestissimamente" (sic), como autarca, presidente da junta de freguesia da sua terra natal. Ajudou o partido a ganhar as eleições municipais. Foi eleito vereador municipal, e chegou inclusive a substituir, por uns tempos, o seu grander amigo e correligionário que iria depois ficar à frente dos destinos do município. 

"Os maiorais da distrital do Porto" chegaram a sondá-lo para aceitar um lugar, elegível, nas listas do partido, como candidato à Assembleia da República, mas ele recusou, com orgulho e desprezo:

− Lisboa ?!... Nem pensar!

Tocou os seus negócios, alargou o seu estaleiro de construção e obras públicas, ganhou uma fortuna (um "pequena fortuna", como gostava de precisar...) com os contratos de empreitada por adjudicação direta, "fez estradões, pontes, escolas, creches, lares de idosos, campos de futebol, redes de água e saneamento, rotundas, repuxos, viadutos,túneis, quartéis de bombeiros"…

− Levei o progresso a quase todo o lado, aqui no Vale do Tâmega, em vários concelhos... Ganhei e dei a ganhar muito graveto. Aliás, este sempre foi o meu lema de vida, ser grato e estimar sempre quem te quer bem… Perdi dinheiro, isso, sim, e muito, com o túnel do Marão. Veio a crise, vieram os tubarões do fisco e da segurança social, fechei a empresa, mandei mais de 100 homens para o desemprego, dezenas de máquinas e camiões foram parar à sucata… Mas estou vivo, graças a Deus!

− Lamento imenso, é uma vida de trabalho... E o futebol ?

− Ainda fui tentado, no início dos anos 90, nos meus anos de ouro, a meter-me no futebol. Por vaidade, ou por influência de falsos amigos, bajuladores, que gostam de te oferecer presentes envenenados.

− Mas era a tua "coroa de glória"! ?...

− Nem pensar, percebi logo que aquilo era um sorvedouro de dinheiro e um ninho de víboras… O futebol, camarada, é uma amante cara!... E às tantas, deixas de ter sossego, vida privada e corres o risco de teres de recorrer ao teu mealheiro para pagar os ordenados ou os prémios e as avenças dos técnicos e dos jogadores. Hoje é tudo uma canalha, essa rapaziada que gira à volta da bola… E já há não amor à camisola!... Como não há amor à Pátria!...

− E muita ingratidão também, não ?!

− Um gajo passa facilmente de bestial a besta. O povo hoje é ingrato. Tanto te põem-te no pedestal, erguem-te uma estátua, como no ano seguinte já estão a apear-te… Vê o que se passa com o homem da tua terra,  a quem o Marco tanto deve, perdeu as eleições, e já querem tirar-lhe o nome do estádio e da avenida principal… Ingratidão, é um dos nossos piores defeitos, podes escrever aí.

− Deixa-me ser franco contigo: não concordo que, em vida, se dê o nome a ruas, praças, avenidas, estádios, escolas, aeroportos, etc., a gente que ainda está viva. Hoje podes ser um herói, e amanhã um proscrito social. Vê o que aconteceu ao nosso Zé do Telhado, Torre e Espada, desterrado para Angola…

− O Zé do Telhado, o memso que limpou ao Zé Pequeno, e lhe cortou a língua, por traição, aqui na  Lixa!...

− Sim, isso mesmo. Vejo que estás por dentro da história da tua terra.

− Já o meu avô me contava essas peripécias... Eu também tenho um pouco esse jeito do Zé do Telhado, que roubava aos ricos para dar aos pobres...

− Exageros do Camilo Castelo Branco de quem foi amigo nba Cadeia da Relação, no Porto, por volta de 1860...

− Eu, por mim, gosto é de fazer o bem, e muitas vezes sem olhar a quem. Não é por acaso que me chamam (ou chamavam o "padrinho")… Tenho montes de afilhados na região, o Jorge é mesmo o último. Também já fechei este departamento, que me ficava caro, e trouxe-me dissabores.

− Padrinho... ?!

− Sim, padrinho, tenho muitos afilhados, de batismo, crisma, casamento. E no bom tempo, quando eu ainda mandava qualquer coisinha, meti muita cunha para muito boa gente, a começar pelos que tinham mais mérito e necessidades, para empregos nas autarquias, nas empresas, na banca, nas escolas, nos centros de dia, nos lares de idosos, eu sei lá. Até na tropa, quando ainda havia serviço militar obrigatório… Até ao bispo cheguei a ir...

−… Sem olhar a quem ?!

− Sim, sem olhar a quem!... As pessoas também fazem o favor de serem minhas amigas. E eu não me faço rogado quando me convidam para ser padrinho de casamento. Ainda para mais quando o pedido vem de um antigo camarada da Guiné… Neste caso, não foi um pedido, foi uma ordem!

− Sei que ainda voltaste à Guiné…

− Sim, há uns largos anos atrás, para "matar saudades". Fui com malta de uma ONGD, com trabalho realizado no setor de Canchungo, e para a qual eu fazia as minhas doações, em géneros e em dinheiro. Levaram um contentor com vestuário, material escolar, livros, mobiliário… Havia (não sei se ainda há) uma missão católica que fazia a distribuição. Mas, confesso, fiquei triste com o que vi...

O "Felgueiras" voltou, de facto, aos sítios por onde andara entre 1967 e 1968… Mas aí teve uma "experiência desagradável"… Uma mulher, na casa dos seus quarenta, abeirou-se do jipe dele e gritou: 

− Tu és o meu pai!

Na realidade, era filha de uma mulher manjaca, cristã, com quem o "Felgueiras" tivera um relacionamento, de apenas "dois ou três meses", no segundo ano da comissão. Ele ajudava a família com comida e dinheiro, mas nunca deu conta de que ela estivesse grávida, muito menos dele. Ambos tomavam "algumas precauções" (sic)... Feitas as contas, a mulher que dizia ser sua filha, tinha nascido em finais de 1972 ou princípios de 1973. Nunca poderia ser sua filha, já que ele estava a viver em Angola desde 1969…

− E se fosse minha filha, eu estaria disposto a reconhecê-la e a ajudá-la, inclusive a obter a nacionalidade portuguesa… O meu capitão, esse, ao que parece, é que lá deixou um filho, toda a gente sabia dessa história que, em boa verdade, me entristece.

O "Felgueiras" nunca me quis falar desse caso que manifestamente o incomodava. Foi o Arlindo quem, mais tarde, falou, com mais detalhe e à vontade, da história do capitão da companhia do "Felgueiras". Dizia-se que tinha feito um filho à lavadeira, mas nunca chegou a conhecer e a reconhecer a criança, que terá nascido ainda antes da comissão terminar, por volta do Natal de 1968. Um dos furriéis da CCS do batalhão, que editava o "jornal de caserna", até fez uma quadra popular, brejeira e satírica, alusiva ao “Santo António”… Toda a malta achou logo que assentava que nem uma luva na figura do comandante da companhia do "Felgueiras".

− Tornou-se popular no Batalhão, viemos a cantá-la no "Uíge", de regresso a casa, com música de fado e tudo… Nas costas do capitão, pois claro... Se bem me lembro, rezava assim:

Santo António foi à guerra,
Na Guiné perdeu os três,
Foi bajuda lá da terra
Quem o menino lhe fez.

Ao que parece, o "Felgueiras" achava a brincadeira de mau gosto, e mesmo ofensiva do bom nome do seu comandante, por quem tinha grande admiração e estima. O capitão era, de resto,  popular entre a rapaziada da companhia, mas motivo de chacota pelo resto do batalhão.

− O meu coração ficou na Guiné – disse-me um dia o Felgueiras", com alguma emoção no tom de voz... 

− E Angola ?...

− Em Angola até vivi mais anos, mas era outra gente. Enfim, Angola foi boa para os negócios.

Não lhe perguntei como nem porquê. Também nunca mais o vi. Também soube que casara, que tinha tido 2 filhos e 4 netos, e que entretanto enviuvara para, logo a seguir, no ano passado, morrer de cancro no pâncreas. Uma morte quase fulminante, em menos de três ou quatro meses. Um choque para todos, família, amigos e afilhados. E até para os seus inimigos, políticos, que ele também os tinha e não eram poucos.

− Os anos não perdoam. E os de África contam sempre a dobrar – lamentou-se o Arlindo, que perdeu "um bom amigo e um melhor camarada". O seu compadre não tinha completado ainda os 75 anos de idade.

E eu, por mim, só soube da notícia em agosto passado, quando estive no Norte, antes das vindimas. A minha homenagem, tardia, chega agora, sob a forma desta história de vida do "Felgueiras" (1943-2017). Lamento a sua morte precoce e tenho pena que ele não tenha chegado a reencontrar o "Paranhos", seu braço direito, nem a conhecer os régulos e demais camaradas da Tabanca de Matosinhos.

Talvez algum leitor conheça o "Paranhos" e ainda lhe possa dar, mesmo atrasada, a triste notícia da morte do seu amigo e camarada "Felgueiras". É de todo improvável que o "Paranhos" conheça este blogue... como a maior parte dos camaradas da Guiné, agora no ocaso da vida.

[Costuma-se prevenir o leitor de textos literários como este, de que qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência. Por razões éticas e legais de proteção de dados, os nomes aqui referidos são fictícios, exceto os dos países, os dos lugares públicos e os das figuras públicas. Todos os factos aqui narrados podem ou não inspirar-se em factos reais. Se no final o leitor se sentir desconfortável, peço-lhe que volte para a cama e continue a dormir, descansado, como eu faço: afinal a guerra colonial nunca existiu, foi apenas um pesadelo, para alguns, como nós. Boa noite.]
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Nota do editor:

Último poste da série > 9 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19084: A Galeria dos meus heróis (9): o "Felgueiras", 1º cabo hortelão, empresário, autarca, padrinho... (1943-2017) - Parte I (Luís Graça)

Guiné 61/74 - P19084: A galeria dos meus heróis (9): o "Felgueiras", 1º cabo hortelão, empresário, autarca, padrinho... (1943-2017) - Parte I (Luís Graça)


Luís Graça, Contuboel, c. junho/julho de 1969
Texto, em duas partes, escrito, no fim do verão, para a série literária "A galeria dos meus heróis", do nosso editor Luís Graça.


O  "Felgueiras", 1º cabo hortelão, empresário, autarca, padrinho... (1943-2017)



1. Conhecemo-nos, por um mero acaso, num casamento em Braga, a terra dos arcebispos (um dos quais, o lourinhanense Dom Lourenço Vicente, do séc. XIV, meu conterrâneo). 

A sua história já me tinha sido contada, muito por alto, pelo pai do noivo. Antigos camaradas da Guiné, tinham estado ambos no mesmo batalhão, colocado no setor de Teixeira Pinto (hoje Canchungo), na região do Cacheu. Estavam em diferentes companhias de quadrícula, a uma distância de 20 a 30 km, um do outro, mas encontraram-se, algumas vezes, na sede do batalhão. Foram e vieram no mesmo navio: para lá no "Niassa", para cá no "Uíge"...

Por nascimento e residência, eram de concelhos vizinhos, do Norte. Conheceram-se na tropa e ficaram amigos desde então. O pai do noivo era do Marco de Canaveses, filho e neto de ferroviários, ele próprio maquinista da CP, já reformado.

Eu é que vinha do Sul e sentia-me ali um pouco deslocado, apesar dos laços afetivos que criara (e que mantinha) na região do Vale do Tâmega, desde há cerca de 40 anos, berço, juntamente com o Vale do Sousa, deste pequeno, belo, velho e cansado país que se chama Portugal.

Eu fazia parte do grupo dos convidados da noiva. Tinha sido orientador da sua dissertação de mestrado, na área da gestão em saúde, na Escola Nacional de Saúde Pública / NOVA. Acabámos por estabelecer relações de convívio e até de amizade. Conheci o Jorge, o noivo, por ocasião da discussão, em provas públicas, desse trabalho académico.

O Jorge era médico, interno de medicina geral e familiar. Não tive pretextos nem argumentos  para recusar o insistente e amável convite da Clara (e, por extensão, do Jorge) para ir a Braga ao seu casamento. 

Confesso que nunca gostei de bodas e batizados, e muito menos de funerais. Mas neste caso não consegui arranjar desculpa consistente e convincente para declinar o convite.

Mas não vou falar mais dos noivos, jovens, simpatiquíssimos e felizes, nem da festa, belíssima, que deram num hotel de charme, nos arredores de Braga, rodeado de vinhedos e de carvalhos.

A figura do padrinho do noivo, ou melhor, a sua história de vida, é que me prendeu a atenção, logo de imediato. Encorpado, de estatura meã, olho azul, verbo fácil, sotaque tipicamente nortenho, bom copo – e, no passado, "melhor garfo" −, simpático, sedutor, bem humorado, às vezes também sarcástico e truculento, pareceu-me logo à partida que ficaria bem na minha série dos "Contos com mural ao fundo".

−"Felgueiras", um seu criado! – e estendeu-me a mão, em gesto franco, amistoso e descontraído.


Gostei logo da sua apresentação, sem pompa nem circunstância. Fiquei a saber que "Felgueiras" era "nome de guerra", como de resto já o suspeitava.

−Na tropa e, depois, na Guiné, éramos conhecidos, não pelos apelidos paternos – os Silva, os Ribeiro, os Magalhães… − mas pelos nomes das terra donde provínhamos: o Alenquer, o Peniche, o Setúbal, o Paranhos… Eu era (e continuo a ser) o Felgueiras.

−Então hoje já aqui estamos pelo menos três antigos camaradas da Guiné – respondi eu, beneficiando da cumplicidade do pai da noiva que fez as despesas da minha apresentação.


No contexto festivo de uma animada, ruidosa e farta boda nortenha, o topónimo "Guiné" funcionou logo como uma espécie de senha ou palavra-passe. A par do Alvarinho que foi servido com os aperitivos, ajudou de imediato a quebrar eventuais barreiras.

−Então, à saúde dos noivos! – atalhou logo o "Felgueiras".

− À saúde dos noivos! – repeti eu. – E também à nossa, aos velhos camaradas da Guiné que, como tal, tratam-se por tu! – acrescentei logo de seguida, sabendo que o tratamento por tu, noutras circunstâncias forçado, deslocado, indelicado e até deselegante, contribuiria aqui para criar um clima propício à confidência, à desinibição, à cumplicidade e à partilha de memórias entre três veteranos de guerra.

−Então, à saúde da noiva e do noivo, e dos seus convidados!... E, já agora, à memória dos rapazes que por lá ficaram naquelas terras de Cristo! – brindou o Arlindo, o pai do Jorge, o noivo.

− Mouros e morcões, somos todos iguais, todos portugueses! – brincou comigo o "Felgueiras", visivelmente bem disposto e feliz.

Tinha-se dado o clique para, ganhando a confiança dos meus interlocutores de ocasião, poder explorar melhor (e até aprofundar) a história, algo insólita, do "Felgueiras". Um pouco de fora ficava o pai da noiva, que não tinha feito o serviço militar (ou esteve na tropa já depois o 25 de Abril), sendo mais novo do que nós os três.

Ao longo do dia, e sobretudo depois do copioso e demorado almoço, com as diversas iguarias da mesa minhota, fomos dando uns dedos de conversa, enquanto o "Felgueiras" fazia sala com o noivo e os seus convidados, como lhe competia. Mas, de tempos a tempos, vinha ter comigo e com o Arlindo, puxava-me o braço e retomávamos o fio à meada, entre uns golos de uísque velho que foi o nosso digestivo com o café.

Enfim, com o "material" recolhido nesse dia e com mais umas conversas posteriores, com ele e com informantes privilegiados que o conheciam, a começar pelo Arlindo, pude traçar um primeiro retrato-robô do "Felgueiras", de resto uma figura em tempos conhecida e até popular, na região do Vale do Tâmega. Os mais novos, naturalmente, já não se lembrarão dele.

Não confessei a ninguém, como me convinha, a minha intenção de pôr o "Felgueiras" na "galeria dos meus heróis". Para o leitor, também não preciso de justificar a minha escolha. No final, fará o seu juízo crítico. Por mim, trata-se de uma figura tão digna como as outras que lá estão, afinal seres humanos como eu, com as suas pequenas misérias e grandezas, tendo como traço de união a guerra que um dia se travou na Guiné, entre 1961 e 1974, "guerra colonial", para uns, "guerra do ultramar", para outros, "guerra de libertação" para os militantes e simpatizantes do PAIGC.

O nosso camarada tinha sido 1º cabo de infantaria e estado na Guiné, entre finais de 1966 e princípios de 1969. Passo por cima de detalhes mais concretos, porque ainda há muita gente viva desse tempo e dos lugares por onde passou o "Felgueiras" (bem como o Arlindo e demais camaradas aqui citados).

Era apontador de armas pesadas de infantaria mas, por "azar", não fora colocado num pelotão de morteiros, como ele tanto gostaria. Coube-lhe, isso sim, integrar o 4º pelotão de uma companhia de caçadores, pelotão esse que só tinha 2 furriéis. Na prática, iria comandar uma seção de atiradores, ao substituir um 2º sargento do quadro permanente que ficara em Lisboa com uma úlcera no estômago, a primeira "baixa" da companhia.

− A Dona Úlcera no Estômago foi uma boa madrinha de guerra para alguns safados − atirou o "Felgueiras".

Na realidade, o "Felgueiras" não dera as habilitações literárias corretas, aquando da inspeção militar. Não era caso virgem, outros o fizeram antes e depois dele... Apresentou apenas o diploma da 4ª classe da instrução primária e indicou como profissão a de operário fabril. Queria, intencionalmente, safar-se do Curso de Sargentos Milicianos (CSM), e de uma mais que provável mobilização para o ultramar como "furriel atirador"… 


Ainda teve a veleidade de sonhar com uma especialidade que o tirasse do mato: cripto, escriturário, ou até mesmo sacristão, mecânico ou estofador… "Condutor auto, nem pensar", por causa das colunas logísticas e das minas. "E enfermeiro, ainda pior: sempre tivera horror ao sangue". Mas orgulha-se de não ter posto cunha a ninguém, muito menos ao seu patrão, o industrial José Joaquim Gonçalves de Abreu, político de peso do regime, presidente da câmara local, futuro deputado e comendador.

E, no entanto, o melhor que lhe coube na rifa foi o posto de 1º cabo atirador de armas pesadas de infantaria.

−Vou ficar no quartel, pensei. Ele haverá lá um morteiro 81, um canhão sem recuo…

− Seguramente uma Breda, ou uma Browning… −acrescentei eu.

 Santa ingenuidade!, fui logo parar à 'tropa-macaca', a que saía para o mato! – lamentou-se o "Felgueiras". 

E explicou:

− Azar o meu: quando cheguei ao quartel, o morteiro 81 já tinha dono, havia lá uma secção de um pelotão de morteiros, uns gajos já velhinhos, completamente 'apanhados do clima'…

Mas lá conseguiu convencer o capitão de que tinha outras competências, da vida civil, que valeria a pena aproveitar e pôr ao serviço da companhia…

Acabou por ficar no quartel com a responsabilidade da horta e do espaldão da Browning 12.7, tendo para o efeito um abrigo "privativo", cheio de cunhetes de munições até ao teto, incluindo balas tracejantes. 

− Ainda fiz o gosto ao dedo, num dos grandes ataques ao quartel. Era um arma do carago, a Browning!... Devo ter despachado uns gajos mais cedo, com carimbo para o inferno, nesse ataque, em que eles vieram quase ao arame farpado...

Enfim, foi o início de um "período de mordomias" que ele nunca teria se fosse um simples "furriel atirador"…

Tinha de facto alguns conhecimentos (básicos) de hortofruticultura. Quando miúdo, ajudava o pai e os irmãos mais velhos na quinta que trabalhavam, de renda, na Lixa, em Felgueiras, em regime da parceria agrícola, versão moderna da servidão da gleba. O pai chegou a estar emigrado em França, onde tratava de cavalos num "château" da região do Loire.

Com as remessas de dinheiro, "suado e poupado", que mandava de França, lá conseguiu pôr o filho mais novo a estudar, primeiro no seminário menor da diocese do Porto, e depois num colégio privado em Amarante.

O "Felgueiras", "mau aluno, cábula",  não chegou a acabar o almejado 5º ano do liceu, para grande desgosto do pai que lhe desejava melhor sorte do que a de "filho de rendeiro". E este não teve outro remédio senão o de dar ordens terminantes à mãe para pôr o filho a trabalhar na Tabopan, logo que completasse os 16 anos. Tinha lá um tio materno que era encarregado e que o podia, de algum modo, proteger.

A Tabopan, na altura, era uma das grandes fábricas da região, dava trabalho a muita gente e era o sustento de muitas famílias de Amarante e arredores. Isto ainda antes da febre da indústria do calçado que, no caso do concelho de Felgueiras, irá enriquecer alguns e desgraçar muitos, sobretudo depois da entrada do País na CEE, em 1986, e da vinda de pipas de massa para a modernização das empresas… 

De facto, de um dia para o outro o pobre "sapateiro remendão" deu lugar a um "garboso industrial" que se pavoneava de Ferrari vermelho, entre Felgueiras e a Foz do Douro… As máquinas que os "sapateiros" (alguns, não generalizemos...) compraram, foram os famigerados Ferraris, que puseram Felgueiras no mapa…
 
− Por más razões...− reconheceu o "Felgueiras", quando eu abordei este tema... delicado para os felgueirenses.

Para o nosso cabo, a Tabopan foi uma das suas "faculdades da Universidade da Vida" (sic), a par da tropa e, depois, da Guiné.

−Abriram-me os olhos!

Self made man, gosta muito de evocar a "escola da vida" em que se formou e não esconde o seu desdém pelos "doutores de Coimbra".

−Mais vale um ano de tarimba do que dez de Coimbra!... Era o que se dizia até à reforma do Marquês de Pombal… − contemporizei eu.

−No meu caso, valeram mais os quatro anos de Tabopan e outros tantos de tropa, Guiné e, depois, Angola. (Fiquei a saber que ele também tinha passado por Angola, depois de vir da Guiné.)

Na Tabopan, com as boas graças do tio que procurou puxar por ele, o "Felgueiras" percorreu quase todas as secções, desde a produção à distribuição, do armazém ao escritório, onde aprendeu a escrever à máquina no teclado HCESAR.

−Quando assentei praça, já era um homem feito e vivido. Mas já que estamos aqui entre amigos e camaradas, juro que nunca fui um gajo 'putanheiro' e muito menos… 'azeiteiro'.

−O que é bem diferente de dar uma facadinha no matrimónio, de vez em quando – acrescentou, timidamente, entre dentes, o Arlindo, olhando em redor, não fossem as senhoras ouvi-lo...

−Ora… quem as não deu?! –interrogou-se o “Felgueiras”.

−Jesus Cristo, que, tanto quanto se sabe, não era casado…− galhofei eu.

Sete ou oito meses depois, lá vai o 1º cabo "Felgueiras" (mais o furriel Arlindo) no T/T Niassa a caminho da Guiné.

Mas passemos por cima dessas peripécias da pequena história pátria: não se deu mal com as novas funções que lhe foram atribuídas, a de 1º cabo hortelão da companhia (uma especiaidade que, diga-se de passagem não existe na tropa).

A horta cresceu e ajudou a equilibrar as "finanças" da companhia.

−Não sei se havia essa categoria no exército, a de 1º cabo hortelão… Não me lembro –repliquei eu.

−Os furriéis, que eram quase todos do Norte, chamavam-me o "Pencas", os alferes que eram do Sul, puseram-me a alcunha do "Couves"… Os meus camaradas, soldados e cabos, esses, tratavam-me, como sempre me trataram, desde o IAO, por "Felgueiras"… E foi essa alcunha que vingou.

− "Pencas"… mas porquê ?

− Imaginem que no segundo Natal que passámos no mato, em 1967 (e ainda haveríamos de passar um terceiro…), eu apostei com o meu capitão, que era nortenho, que ele iria ter pencas (a couve "tronchuda"…) na noite da Consoada, a acompanhar o bacalhau…~

−Meu capitão, arranje-me o bacalhau e as batatas, que eu trago-lhe as pencas. Para si, para mim e para o resto do pessoal.

Ele não acreditou e perdeu a aposta (100 pesos, ainda se lembrava o "Felgueiras"=…

−No primeiro Natal, mal chegámos, em finais de 1966, comemos uma merda liofilizada, uns grelos, um desconsolo.

O clima da Guiné não ajudava a criar pencas, a couve portuguesa, devido às temperaturas elevadas… Por outro lado, não fazia frio nem geada, muito menos neve, para "cozer" as "tronchudas", antes do Natal… Mas a verdade é que o "Felgueiras" conseguiu obter sementes pelo correio… mais uns "pozinhos de perlimpimpim" (sic). Em dezembro, afinal, fazia frio de rachar, à noite!... 


Com o "Paranhos", seu "ajudante de campo", conseguiu operar "o milagre das pencas" lá na região do Cacheu. Primeiro, fez um viveirinho de plantas. Depois, plantou-as e pôs, a toda a volta, no talhão das couves, uma rede em tecido camuflado para as pencas não apanharem o sol direto (ou em excesso) e evitar a passarada… 

Ninguém acreditava, até o comandante de batalhão foi lá um dia visitar a horta… 

− Sim, senhor, nosso cabo... Bela horta!

Enfim, "houve bacalhau com batatas e tronchudas na noite de Natal, se calhar pela primeira vez na Guiné!"...

− Foi uma alegria, sobretudo para a rapaziada do Norte, do Minho e do Douro Litoral… Sim, porque os gajos de Trás-os-Montes têm a tradição do polvo, e vocês, os alfacinhas, a mania do peru recheado... Com a tua licença, uma merda afrancesada...

Foi um sucesso, a horta. E as "tronchudas" ficaram na memória de todos, mesmo que nem todas vingassem. A horta cresceu e multiplicou-se para gáudio do capitão, do 1º sargento e do furriel vagomestre…

O nosso cabo tinha especial habilidade para descobrir talentos, tendo desde logo garantido o concurso do tal "Paranhos", que também trabalhara num quinta do Porto, antes da tropa.

− No tempo em que ainda havia quintas no Porto, justamente em Paranhos… Hoje o betão e o alcatrão tomaram conta de tudo – esclareci eu que ainda conheci o Porto… "rural", em 1975.

− E consegui depois arranjar mais dois ou três civis de uma tabanca próxima. Tinham em tempos trabalhado na horta das missões católicas do Cumeré, se não me engano. Eram manjacos, cristãos, falavam razoavelmente o português. Foram-me recomendados pelo capelão do batalhão, um gajo do Norte, também porreiraço. Eram pagos em patacão e em géneros. Formávamos uma bela equipa, tenho saudades deles, confesso... Chamavam-me o "irmão hortelão". O meu braço direito era o "Paranhos", que sabia muito mais de horta do que eu.

Foi aproveitada uma antiga "ponta", abandonada, que pertencera em tempos a um cabo-verdiano, da Ilha da Brava. A terra era fértil e a água doce abundante. Até tinha um poço com uma nora, desconjuntada.

− Na realidade, a "ponta", com uns bons hectares, não tinha sido totalmente abandonada. De facto, uma parte, junto à casa, continuara a ser cultivada por uma família manjaca, cristã, que trabalhava para o cabo-verdiano, ainda antes da guerra.

− O que é que lhe aconteceu, ao dono ? − perguntei eu.

− Nunca soube ao certo, contavam-se várias versões da história. Dizia-se que era compadre do Amílcar Cabral e que estaria em parte incerta. Uns juravam que tinha ido para Conacri. Outros garantiam que tinha sido morto em 1962, quando se deslocava na sua camioneta até Canchungo. Também era comerciante de arroz e mancarra.

− Não seria um tal Brandão ?

− O nome já não me lembro, nem para o caso aqui interessa. Era conhecido dos meus manjacos, e não seria mau tipo: deixou boas recordações.

Veio-se a descobrir, mais tarde, por finais de 1964 ou princípios de 1965, graças ao "trabalho de sapa" do agente da PIDE de Teixeira Pinto, que o tal manjaco, que fora empregado do cabo-verdiano, e que desde 1962 tomava conta da "ponta", fazia parte de uma "célula civil" do PAIGC… Foi acusado de ajudar (e até de abastecer) os "turras do Choquemone".

− Acho que se chamava Gomes e ainda por cima era o sacristão da igreja local, o sacana… – acrescentou o "Felgueiras" – mas isso não era do meu tempo… nem da minha conta.

Foi preso, interrogado, torturado e, com sorte, deportado, sem julgamento, para a Ilha das Galinhas, nos Bijagós. Um ano antes teria ido parar ao Tarrafal.

− Houve quem, por menos, tivesse acabado numa vala comum ou na bolanha com um balázio na testa – confidenciou o "Felgueiras"... – Pelo menos os meus manjacos contaram-me algumas merdas que a polícia administrativa  de Canchungo terá feito no início da guerra.

− A polícia ou a milícia do régulo…? Como é que ele se chamava ?

− Não me lembro, mas adiante… Disseram-me que mais tarde o Gomes foi solto, já a gente tinha acabado a comissão. Deve ter sido por volta de 1969, por ordem do Spínola.

O administrador do Canchungo acabou por tomar conta da propriedade e, em data posterior, cedeu-a à tropa. Tinha uma bela casa de sobrado, de traça colonial, que foi logo ocupadas pelos alferes.

A mulher e os filhos do Gomes foram recambiados para a ilha de Pecixe, donde eram originários. A casa e a horta foram cercados de arame farpado, passando a ser integradas no perímetro do quartel que, de resto, confinava com a tabanca.

A "ponta" sempre dera boa e abundante fruta tropical como a banana, o mango, a lima, a papaia, o abacate, o abacaxi… O nosso cabo introduziu culturas hortícolas europeias, adaptadas ao clima e ao terreno, graças a sementes que conseguiu obter da granja de Pussebé onde, por ironia, tinha trabalhado o engº Amílcar Cabral, e outras que encomendou à Intendência ou mandou vir da metrópole, pelo correio, através de um antigo colega, mais velho, do colégio de Amarante, que se formara como regente agrícola. 


Os terrenos, por sua vez,  foram lavrados e estrumados. Bosta era coisa que não faltava na "vacaria" do quartel… Como estavam de pousio, começaram logo a produzir em grande.


A produção de frutas e legumes dava para abastecer não só a companhia como o pessoal da CCS  e a outra unidade de quadrícula que estava em Teixeira Pinto. Para gáudio do médico do batalhão que, logo de início, alertara o comando para as insuficiências nutricionais que os militares iam sofrer ou já estavam a sofrer. Havia muita falta de "frescos", frutas e legumes, as companhias eram abastecidas, com alguma irregularidade, quer por colunas terrestres quer por avioneta (que também trazia o correio).

Com os restos do rancho e com as sobras da horta, o nosso cabo montou uma pocilga (uma "corte") e um galinheiro. Passados escassos meses, a companhia já era autossuficiente em galinhas, frangos, ovos e até leitões.

Quando o furriel vagomestre foi evacuado
 para o Hospital Militar 241, em Bissau, e dali para a Metrópole, com uma hepatite (o raio de uma doença que "toda a gente queria apanhar", já  que dava, na altura, direito a evacuação imediata para o Hospital Militar de Belém, especializado em doenças infecto-contagiosas…), o capitão, por sugestão do 1º sargento, achou que o "Felgueiras" era o homem certo para o lugar certo. Para já, não havia nenhum sargento ou furriel disponível para o lugar de vagomestre e, quanto ao substituto, já pedido, só viria lá para as calendas gregas. 

Interinamente, o nosso cabo, "até porque tinha estudos", ficaria a desempenhar o cargo de vagomestre. Como, de resto, ficou, até ao fim da comissão, "a contento de todos".

− A ganhar como 1º cabo, estás a ver?!

Por outro lado, o 1º sargento ia também, muito em breve, deixar a companhia para frequentar, em Águeda, a Escola Central de Sargentos. Tratava o "Felgueiras" de modo algo paternal, e os dois sempre tiveram uma boa relação desde a IAO (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional). De resto, a companhia irá ficar sem sargentos: um outro 2º sargento do quadro permanente,que era operacional, teve um problema disciplinar, e acabou por ser colocado em Bissau. O 1º sargento não chegou a ser substituído em tempo útil. Na prática, foi o capitão quem assegurou o serviço de secretaria com o 1º cabo escriturário.

O "Felgueiras", que sabia escrever à máquina, e era voluntarioso, também ajudou a montar a secretaria da companhia e até chegou a fazer alguns trabalhos, a "stencil", quando o "escritas", o 1º cabo escriturário, não dava conta do recado. E os dois, o 1º sargento e o "Felgueiras" lá se entendiam com a "contabilidade criativa" da horta e da pecuária, incluindo a vacaria que tinha sempre meia de dúzia de cabeças de gado vacum, que o "Felgueiras" ia comprar aos fulas de Sonaco.

− Foi um pai e um mestre, para mim! – disse-me o "Felgueiras", já no fim da tarde, quando os mais novos, na festa do casório,  se divertiam ao som de uma banda de música rock… − Nunca mais o vi. Pena que t
enha morrido, cedo, com o posto de capitão SGE, ao que me disseram. 

Para o comandante da companhia, capitão de infantaria, miliciano, 33 anos, solteiro, "homem bom", antigo seminarista, professor de português num colégio particular, a "horta", a "corte", a "vacaria" e o "galinheiro" da companhia foram uma bênção do céu. Resolveram uma grande parte dos problemas de abastecimento e de segurança alimentar da companhia (e até do batalhão). 


O capitão ficou, por outro lado, bem visto pelos seus superiores hierárquicos, pelo empenho e apoio que deu a estas iniciativas. E até os comandantes das companhias em redor não lhe regateavam elogios. Mas "ninguém mexeu uma palha para seguir o seu exemplo"...

Por outro lado, com a "contabilidade criativa" do 1º sargento, a companhia passou a ter um "histórico superavit". Não cabe aqui contar, neste espaço, como é que o capitão reinvestiu esse patacão em obras para a melhoria do bem-estar dos militares (camaratas, casas de banho, campo de futebol…) e da população civil (posto escolar, centro médico, chafariz…), juntamenente com o patacão que vinha do batalhão para a "psico-social". Até deu para fazer obras de ampliação e beneficiação da pequena igreja local, para contentamento do capelão.

− Um homem com H, um grande capitão, mesmo que já não tivesse grande jeito (nem idade) para alinhar no mato e comandar tropas… 

− Voltaste a encontrá-lo ?

− Sim. Estivemos, pelo menos,  em dois encontros, em convívios anuais da companhia, que eu organizei por aqui perto, um em Fafe, e outro no Marco de Canaveses. 

− No Marco ?

− Sim, na tua terra... Ainda hoje, vinte e tal anos depois, a malta fala da grande almoçarada que eu proporcionei: a vitela assada à moda de Fafe, em Fafe, num ano; e logo, a seguir, num outro ano, o anho assado com arroz de forno,  lá no Marco… Até convidei o Ferreira Torres, de quem eu era amigalhaço, mas o homem nessa data tinha outros compromissos. Mas, mesmo assim, foi lá de propósito só para me dar um abraço e saudar a rapaziada.

− E essa história da padaria e dos leitões assados, de que me falou aqui o nosso camarada (e teu compadre) Arlindo ?

− Foi a cereja no bolo, camarada! – respondeu o "Felgueiras", orgulhoso. − Vim no "Uíge", fizeram-me uma festa de despedida, fui car
regado em ombos… Até parecia que eu era um herói de guerra, carago!

− Conta lá como isso foi, camarada. Se me deres licença, quero tomar boa nota dessa história.

− Pois, foi assim … Quando substitui o vagomestre (que Deus nosso Senhor o tenha em bom descanso!), havia muitas queixas das nossas praças, em relação ao pão que era servido às refeições. Até então, andava tudo de bico calado… Quando eu assumi funções, não houve cão nem gato que não reclamasse. "O casqueiro está uma merda, ó Felgueiras!"… 

− O costume, dá a mão ao vilão, morde-te logo a mão! − atalhou o Arlindo que estava a seguir a conversa.

− Bom, tive que tomar providências imediatas. O capitão deu-me carta branca. Arranjei um rapaz do Carregado, o "Alenquer", que andava a coçar o cu pelas tabancas, e promovi-o a ajudante de padeiro. Já era padeiro na vida civil. Em contrapartida, o padeiro da companhia era um básico, que nasceu sem jeito para nada a não ser para a sornice. Melhorámos a mistura das farinhas, fizemos obras no forno, começamos a fazer pão com chouriço e torresmos ao fim de semana… E às tantas um leitãozinho. E não é que a coisa pegou ? 

E depois, já com um brilhozinhonos olhos, o "Felgueiras" arrematou:

O Schulz, não, mas o Spínola, ainda "periquito", chegou a lá ir atrás do cheiro, ainda em 1968. Ele adorava o nosso pão… O leitão, às tantas, não chegava para as encomendas. Começámos também a "trabalhar para fora", até para restaurantes em Bissau… A rapaziada fazia umas "horas extraordinárias", mas todos comíamos da 'gamela'… 

− Queres dizer... ?

− Isso mesmo, ao fim do mês, havia mais patacão para cada um poupar ou gastar… Tudo com o "ámen" do capitão que nestas coisas tinha vistas largas... Pergunta ao "Paranhos", se um dia o encontrares lá nessa tal Tabanca de Matosinhos, de que me falaste, e que eu não conheço, mas um dia ainda tenho mesmo que lá ir… Almoço à quarta-feira, é isso ?

− Sim, vou-te dar os contactos e as coordenadas... Vais adorar, há lá malta do teu tempo e da região do Cacheu.

(Continua)




Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Setor L1 > Missirá> Pel Caç Nat 52 > c. 1973/74 > A horta,  Não havia quartel ou destacamento que não tivesse a sua horta... E hortelãos diligentes e trabalhadores, na maior parte dos casos mal aproveitados...

Foto (e legenda): © Luís Mourato Oliveira (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].

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Nota do editor:

Último poste da série > 24 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18949: A galeria dos meus heróis (8): os seminaristas (Luís Graça)

Guiné 61/74 - P19083: Parabéns a você (1508): José Carmino Azevedo, ex-Soldado Condutor do BCAV 2868 (Guiné, 1969/71)

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Nota do editor

Último poste da série de 8 de outubro de  2018 > Guiné 61/74 - P19081: Parabéns a você (1507): Luís Mourato Oliveira, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 4740 (Guiné, 1972/74)

segunda-feira, 8 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19082: Notas de leitura (1107): “Livro Negro da Descolonização”, por Luiz Aguiar; Editorial Intervenção, 1977 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Fevereiro de 2018:

Queridos amigos,

O "Livro Negro da Descolonização", surgido em 1977, ao tempo em que se apostrofava o apocalipse da descolonização, introduzia um elemento novo, hoje completamente abandonado pelos teóricos do ultranacionalismo: tinha-se ultrapassado depois do processo de desenvolvimento operado fundamentalmente em Angola, Guiné e Moçambique, a parti de 1961 a fase colonial, vivia-se o estádio da autodeterminação onde Marcello Caetano recusava a consulta direta às populações. Tivesse havido consulta e outro galo cantaria, diz Luiz Aguiar e todos aqueles que contribuíram para estas mais de 700 páginas profusamente documentadas. A tese foi varrida por múltiplos acontecimentos, jaz numa gaveta da História, mas convém não a esquecer e o que pretensioso ela encerrava, mesmo em 1977.

Um abraço do
Mário


Livro Negro da Descolonização, por Luiz Aguiar (1)

Beja Santos

“Livro Negro da Descolonização”, por Luiz Aguiar, Editorial Intervenção, 1977 é o primeiro documento ideológico em que os ultranacionalistas se apresentam com uma tese sobre os caminhos da autodeterminação ultramarina que teria sido atraiçoada por apressados descolonizadores. São mais de 700 páginas e com muita documentação consultada. Não custa crer que Luiz Aguiar é um nome fictício para uma equipa que trabalhou afincadamente em torno de uma tese. Qual? Diz-se claramente no prefácio:

“Examina-se a situação na Guiné, Angola e Moçambique e mostra-se que, em 1961, além de subdesenvolvimento, havia ainda nestes territórios, colonialismo. A solução, para homens sensatos, não era, porém, a demissão, mas, a partir do muito de altamente positivo que representara a soberania de Portugal, buscar uma sociedade em que não houvesse colonialismo e, paralelamente, levar o efeito, em ritmo acentuado, um processo de desenvolvimento. Mostra-se que estes objectivos foram alcançados antes do 25 de Abril e que em 1974 seria fácil validar a obra realizada, através da vontade das populações destes territórios, validamente expressa”.

Ao longo de todo este longo documento, como aliás é peculiar no pensamento ultranacionalista, não existem tendências mundiais, não houve ventos da História, passa-se à margem do pensamento anticolonialista, houve descolonização apressada para entregar territórios autodeterminados a potências estrangeiras, mormente ao imperialismo soviético.

A tese é seráfica: os erros do colonialismo estavam ultrapassados graças ao trabalho ingente iniciado em 1961, chegara-se a uma fase madura de autodeterminação, mas os atropelos revolucionários inverteram a vontade as populações, permitiram a chegada de poderes tirânicos que estragaram a obra feita.

Segue-se a exposição de factos e a apresentação dos responsáveis, com Mário Soares, Almeida Santos, Melo Antunes, entre outros, no topo. Mas a equipa que dá pelo nome de Luiz Aguiar não deixa de zurzir Spínola e até Galvão de Melo. Não estava previsto no documento-base do MFA descolonizar. E cita-se, não sei com que grau de convicção, o reconhecimento do direito de autodeterminação dos povos coloniais da Carta das Nações Unidas. Afinal, por uma interpretação enviesada da Lei 7/74, de 27 de Julho, passou-se rapidamente do reconhecimento da autodeterminação para a concessão de independência sem consulta das populações. Um dos autores procede a uma vasta leitura jurídica para chegar a tal interpretação.

Spínola não é poupado, cita-se abundantemente o que escreveu em “Ao serviço de Portugal” em que o antigo presidente deplora os largos milhares de mortos, a demissão de unidades militares que se recusavam a combater, o fuzilamento de militares leais à bandeira portuguesa, as teias de cumplicidades entre as cúpulas marxistas da revolução e os militares subversivos. Luiz Aguiar trata-o como um político incapaz, um transigente que abriu a porta aos piores despautérios e a entrega das populações a grupo comunitários.

Mas voltemos à ideologia da autodeterminação em curso. Luiz Aguiar procura demonstrar que não havia exploração dos preços das matérias-primas, como a copra, o amendoim, o algodão ou o sisal, que se ultrapassara o quadro vivido no Estatuto do Indigenato e que Marcello Caetano tivera sérias responsabilidades por não ter compreendido que devia ter havido consulta popular para reduzir a pó os “movimentos de libertação”. O autor diz mesmo que uma década após a eclosão do terrorismo em Angola, os radicados no Ultramar entendiam que já estava ultrapassado o período da colonização, havia que recorrer a uma consulta às populações com base num homem/um voto. Esses radicados no Ultramar teriam recebido com entusiasmo o 25 de Abril, supondo que chegara a hora da autodeterminação.

Numa tentativa de balanço sobre a “descolonização” passa-se em revista o que se passou em Angola, na Guiné, Moçambique e outras colónias. Vejamos como interpretam a situação da Guiné. Luíz Aguiar e a sua equipa estão bem documentados, insista-se. Fala-se na visita dos três membros do Comité de Descolonização da ONU que visitam as “áreas libertadas”, em 1972.

Esses três membros chegam à Guiné Conacri e partem para a região fronteiriça em 1 de Abril, não longe de Guileje, reúnem-se com Pedro Pires, entram em território da Guiné e fazem uma longa marcha na direção Noroeste, atravessam rios por pontes primitivas e perigosas. A 3 de Abril chegaram ao setor de Balana, uma base do exército do PAIGC, quartel-general do Comissário Político. Deixaram a base em direção ao setor de Cubucaré, passam perto do quartel de Bedanda. Em Cubucaré ficaram duas noites, visitaram a escola e pessoas que viviam em 14 aldeias; ao amanhecer de 7 de Abril chegaram à base do Comissariado Político da Região Sul e daqui seguiram para a Guiné Conacri.

Luiz Aguiar faz a seguinte interpretação desta missão: deslocaram-se a pé, mormente pela calada da noite em regiões de floresta e pântanos; o quartel-general do Comissariado Político era constituído para várias tendas e barracas, e este relatório comprova que as pretensas regiões libertadas não eram mais do que áreas onde o PAIGC tinha conseguido a adesão de uma parte da população, onde tinha refúgios, mas onde não exercia a soberania.

E Luiz Aguiar acrescenta que a situação militar na Guiné tinha melhorado a partir de 1968, o direito das populações à autodeterminação levava seguramente a que estas escolhessem outra solução que não a proposta pelo PAIGC. E explana quanto à situação militar no 25 de Abril. Diz ele que se podia afirmar que a guerra na Guiné estava ganha, embora isto não fosse tão evidente como em Angola.
E escreve-se:

“Tinha-se levado a efeito uma descolonização autêntica e estavam garantidas todas as condições para que, através de um processo autodeterminativo, a nossa presença na Guiné não pudesse continuar a ser contestada pelos defensores do direito dos povos à autodeterminação – muitos dos quais vieram depois a mostrar que apenas lhe interessava o avanço da estratégia soviética. Estava criada uma situação que nos permitia submeter a resolução do problema à prova real, que nos dava toda a capacidade de argumentação quando, em face da persistência da actividade guerrilheira, deixássemos de ter como invioláveis os seus refúgios além fronteira”.

Vale a pena recapitular o que traz de novo este pensamento ultranacionalista: nunca se fala no império colonial português, fala-se que o colonialismo dera lugar a um quadro propício à autodeterminação, o que tinha faltado a Marcello Caetano, por ser pusilânime, fora ter recusado a consulta direta para validar a autodeterminação. Políticos oportunistas, militares subversivos e agentes do imperialismo soviético estragaram tudo.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 5 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19073: Notas de leitura (1106): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (54) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P19081: Parabéns a você (1507): Luís Mourato Oliveira, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 4740 (Guiné, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 7 de Outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19077: Parabéns a você (1506): Jorge Rosales, ex-Alf Mil Inf da 1.ª CCAÇ (Guiné, 1964/66)

domingo, 7 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19080: (De)Caras (119): Marco Paulo, um dos nossos camaradas, hoje famosos, que passaram pelo CTIG... Era o 1º cabo escriturário João Simão da Silva, e foi colocado no QG/CCFAG, na Fortaleza da Amura


Guiné > Bissau > Junho de 1969 > Fortaleza da Amura >   QG/CCFAG (Quartel General do Comando Chefe das Forças Armadas da Guiné) > O Virgílio Teixeira, numa das vezes que foi ao QG / CCFAG, na fortaleza da Amura,  em data que já não pode precisar (c. 1967/68), encontrou no Bar de Oficiais o cantor Marco Paulo ("era 1.º cabo, e o responsável pelo Bar").


Foto (e legenda): © Virgílio Teixeira (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Houve camaradas nossos, que passaram pelo TO da Guiné, e que depois se tornaram famosos, nas suas atividades profissionais: políticos, artistas, desportistas, médicos, jornalistas, etc. Famosos, quer dizer, conhecidos do grande público... 

É o caso, por exemplo, do cantor Marco Paulo, que foi 1.º cabo escriturário, e que esteve colocado no QG/CCFAG (Quartel General do Comando Chefe das Forças Armadas da Guiné), na fortaleza da Amura... Não sabemos a sua unidade, nem exatamente em que período lá esteve: talvez entre 1966 e 1968, cerca de 18 meses; e talvez em rendição individual.

Vários camaradas já referiram aqui o seu nome: 

O Hugo Guerra (ex-alf mil, hoje Coronel DFA, Pel Caç Nat 55 e Pel Caç Nat 50, Gandembel, Ponte Balana, Chamarra e S. Domingos, 1968/70), encontrou o Marco Paulo, que ele não conhecia,  nos correios de Bissau, na época natalícia de  dezembro de 1968. Tiveram um pequeno "desaguisado" por causa dos botões da camisa (*)...

Por sua vez, o Virgílio Teixeira (ex-al mil SAM, CCS/BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, set 1967 / ago 1969) escreveu que, nas suas  visitas a Bissau,  foi várias vezes ao QG, na fortaleza da Amura , e que "numa delas encontrei no Bar de Oficiais o cantor Marco Paulo, que já o conhecia do Porto, morava perto de mim, e já começava a ser conhecido". E acrescenta: "ele era 1.º cabo, e o responsável pelo Bar, servia no balcão ele ou outros em serviço. (...) Depois acabou por dar espectáculos em alguns lugares da Guiné, mas eu nunca vi nem assisti a nenhum". (**)

O Virgílio Teixeira esclarece, em comentário (**), que "o Marco Paulo, já depois de chegarmos da Guiné, morava por aí perto de mim, ao lado da casa de uma irmã minha, e só por isso o via raramente, quando visitava a minha irmã [, no Porto]".

Também num blogue do Luís de Matos (ex-fur mil, da CCAÇ 1590 / BCAÇ 189, Os Gazelas, 1966/68), havia uma referência ao Marco Paulo: ele chegou a Bissau, a 11 de agosto de 1966 e foi dar uma volta à noite com vários camaradas, alentejanos.   O blogue já não está mais disponível na Net (o link era: http://luisdematos.blog.com/2007/7/) mas aqui vai um excerto (*)

(...) O furriel miliciano Charneca, que é natural de Beja, ou arredores, não sei bem, pertence à CCS do meu batalhão, o [BCAÇ]  1894, disse-me que há um nosso camarada, já 'velho', o que equivale a dizer que não é 'periquito', que está no rádio do Quartel-General com o Marco Paulo, um artista da rádio e da TV e também alentejano, de Mourão.Vamos lá ter com eles, para nos mostrarem como é isto. Ou pelo menos, aquele meu amigo vai connosco. Estava uma noite escura como breu. Não me recordo de mais nada. O que sei é que me vi dentro dum táxi, com o Charneca e o tal amigo do QG, por um trilho, em que o capim era bem mais alto que o nosso transporte e fomos parar a uma vivenda onde havia música. Muita música cabo-verdiana e dança, frangos no churrasco, cerveja e whisky. (...)


2. Em tempos publicamos dois extractos de entrevista com o Marco Paulo (, nome artistico de João Simão da Silva, nascido em Mourão,  na margem esquerda do Guadiana, Alentejo, em 21 de janeiro de 1945).  

Uma das entrevista era do  Correio da Manhã, de 9 de junho de 2007:

(...) –Fez tropa na Guiné durante dois anos. Do que se recorda?

– Recordo-me de ter pedido a todos os santos para não ir, acima de tudo porque eu sabia que se fosse para a Guiné possivelmente quando regressasse já não podia dar seguimento à minha carreira. A minha sorte foi que o meu produtor, Mário Martins [, da Valentim de Carvalho], fazia sempre questão que eu viesse de férias. Durante esse período eu gravava, e quando voltava para a Guiné a editora lançava o disco. Por isso nunca caí no esquecimento.

– Chegou a sentir medo?

– Quando cheguei à Guiné não foi fácil. Pensei: “Olha, vou para o mato. Levo lá um tiro na cabeça e pronto!” Só que fui para o quartel da Amura, para a secção de Justiça, como escriturário. Ouvia os bombardeamentos, mas não deu propriamente para sentir medo. Depois, como a rádio lá passava muitos discos meus, eu era aproveitado para abrilhantar as festas militares.

– Compreendeu, à época, as motivações daquela guerra?

– Eu não estava por dentro dos assuntos da política. Disseram-me que Guiné era Portugal e eu acreditei. Hoje, olhando para trás, vejo que foram dois anos perdidos.


Outra das entrevistas, com o Marco Paulo, "a propósito dos 35 anos de carreira e dos 3 milhões de discos vendidos". conduzida pelo jornalista e escritor Luís Osório, e publicada nas Selecções do Reader's Digest - Portugal - Revista, em nembro de 2011, pode ler-se:

(...) Luís Osório [LO] - Sei que está a comemorar mais um ano de carreira..

Marco Paulo [MP] - E são já 35 anos a cantar, imagine só. Tanto tempo que quase parece, bem, quase parece que a pessoa que sou hoje nada tem a ver com a pessoa que fui... Passei muitas dificuldades no início, não foram apenas rosas.

LO - Que tipo de dificuldades?

MP - No início tive de cumprir 18 meses de serviço militar obrigatório, depois tive também de viver com o que diziam e faziam os meus críticos. Durante muitos anos o meu nome esteve vetado na televisão. Fui muitas vezes mal tratado. (...)

(...) LO: Voltando um pouco atrás. Onde cumpriu o serviço militar? 


MP: Na Guiné. Quando fui para a guerra, já tinha gravado dois ou três discos, discos sem grande sucesso mas que passavam na rádio e que já vendiam alguma coisa. Ao regressar da guerra, não fazia ideia do que seria a minha vida no futuro, não era líquido que o meu futuro passasse pelas cantigas.

LO: Recorda o dia em que partiu para a guerra?

MP: Muito bem. No fundo, não sabia para onde ia. Foram dias muito inquietantes, mas por sorte acabei por ir parar a Bissau. Os meus pais choraram quando se despediram de mim, choraram tanto como eu. Aliás, lembro-me de ter chorado duas vezes na minha vida: nessa ocasião e quando me deram a notícia de que tinha um cancro. Não é nada fácil alguém me ver chorar, nada fácil mesmo.

LO: O estatuto de cantor beneficiou-o de alguma forma durante a Guerra Colonial?

MP: De forma nenhuma. Por sorte, não estive nos sítios onde se vivia a guerra, limitei-me a estar numa zona mais resguardada. Fui obrigado a ir. Estava numa secção de escritório a fazer cartas, para mim foram quase umas férias. Só me apercebia de que existia guerra quando me convidavam para ir cantar a algum hospital ou à Força Aérea; no sítio onde estava não percebia nada. Deu-me muito prazer cantar na Guiné, os meus camaradas pediam-me e eu nunca recusava. (...)

Infelizmente, não dispomos de nenhuma foto do nosso camarada Marco Paulo, do tempo da Guiné.  Nem conhecemos o "sítio oficial" do popular cantor (***).
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