segunda-feira, 15 de abril de 2019

Guiné 61/74 - P19683: A galeria dos meus heróis (27): Éramos todos bons rapazes!...(Luís Graça)

Luís Graça, CIM Contuboel, c. jun/jul 1968
A galeria dos meus heróis > Éramos todos bons rapazes!...


por Luís Graça


 − E no fim quem levou a taça foi o capitão!... Chegou a major, ainda a guerra não tinha acabado para nós...

A taça ?!...− ouviu-se a voz do "Vagomestre", que estava com um ouvido atento à conversa do grupinho do "Campanhã", e outro orientado para as graçolas do "Peniche" que assegurava que ainda queria mudar de sexo...

−  Quer-se dizer, mais uns galões, mais graveto ao fim do mês…

−  Mas, ó "Campanhã", era a vida dele, a carreira dele! – atalhou o ex-alferes miliciano Azevedo, transmontano, que nada tinha perdido do seu espírito de subserviência em relação a todas as hierarquias deste mundo.

 E depois nós éramos milicianos, estávamo-nos nas tintas para as divisas e os galões! – atalhou o "vagomestre", tentando, com sua proverbial falta de sentido de humor, deitar água na fervura.

− E, nós, soldados do contingente geral! – ripostou o "Campanhã".

 Estávamos todos metidos no mesmo barco, essa é que essa!  opinou, por sua vez, o "Pastilhas", agora o "xô dôtor" Andrade.

 Mas mesmo assim havia diferenças, carago! No meio daquela merda toda – desculpem lá a expressão, que eu sou um homem do Norte! – vocês até eram uns fidalgotes: tinham patacão, graveto; tinham messe, bar, bebidas estrangeiras; iam matar a malvada a Bafatá; comiam umas garinas, pretas ou verdianas, de vez em quando, em Bafatá e em Bissau; iam de férias, na TAP, à Metrópole…

E lá continuou o reguila do "Campanhã" a vociferar contra os privilegiados dos milicianos que na guerra tinham messe, com direito a comer de garfo e faca, toalha branca na mesa e... criados de libré!... 


Recorde-se que o capitão, um minhoto (de sangue azul, dizia-se, com solar lá na terra, e todo cheio de nove horas), até lhes arranjou, aos impedidos na messe, uma farpela a condizer!... Um deles era o "Peniche", soldado básico, ex-desertor ou ex-refractário, que tinha vindo a "ferros" no Niassa.
 

 Criados de libré, que coisa mais ridícula! − comentou, à nossa mesa, o "Campanhã".

 Dizia o nosso capitão que era para "os senhores oficiais e sargentos se sentirem em casa"...  recordou o Azevedo.

 Alguns de vocês, alferes e furriéis (não vale a pena aqui citar nomes) até nem queriam outra vida se não fosse terem de andar com a puta da canhota no mato, a embrulhar e a foder o coirão!... Mais: alguns milicianos que eu conheci, na tropa e depois na Guiné, nunca tinham ganho um tostão na puta da vida, a não ser talvez a mesada do velho…

 Calma aí e pára o baile, ó "Campanhã"! Estás a ser injusto, ao fazer generalizações abusivas ! - interrompeu, de chofre, o Azevedo, que tinha vindo direitinho do seminário para a Máfrica e depois para Lamego.

−  Ó "Campanhã", muitos de nós, furriéis e alferes, já trabalhávamos... - comentei eu, ajudando a cortar o fio à meada do seu discurso torrencial, e sabendo que os primeiros goles da zurrapa do espumante do Zé dos Leitões começava a abrir as goelas da desinibição.

 Cá o Zé Soldado como eu já era chefe de família e há muito que fossava no duro, antes de ir parar com os quatros costados à Guiné. É bom que não se esqueçam disto, carago!... Quanto ao resto, reconheço que éramos todos iguais, brancos e pretos, oficiais, sargentos e praças, que elas no mato não traziam código postal!

O "Campanhã", o nosso valente "Campanhã", o "herói da companhia"!... Era com emoção, com alguma emoção, mal disfarçada, que eu voltava a abraçar, ali na Anadia, num lá longínquo ano de 1991, o "Campanhã", com o seu inimitável sotaque tripeiro e a franqueza que era timbre da boa gente do Norte.


Tínhamo-nos tornado amigos (ou, talvez melhor, confidentes e cúmplices um do outro, camaradas, no sentido etimológico do termo, já que na tropa não havia amigos do peito, mas apenas gente que partilhava a mesma condição, o mesmo chão, a mesma caserna, o mesmo bivaque, o mesmo abrigo, a mesma tenda, o mesmo beliche, a mesma cama, o mesmo buraco) nessa longa noite em que viajáramos juntos, de comboio, do Campo Militar de Santa Margarida até ao cais de embarque, em Lisboa, no Cais da Rocha Conde de Óbidos.

Entre dois tragos de bagaço de vinho verde, rasca, o "Campanhã" fora-me contando a sua vida, os seus sonhos, os seus projectos, mas também os seus tropeções, a mim, seu confidente de circunstância, vizinho de lugar e companheiro de infortúnio, lucidamente deprimido, à medida que o comboio da CP, requisitado pela tropa, galgava as terras 
banhadas pelo Tejo, sonolento e lúgubre, pela calada da noite, e o "quarteleiro" tirava uns acordes sinistros da sua sanfona.

Muitos de nós ainda nos tratávamos pelas alcunhas da tropa. E, em rigor, eu já não me lembrava sequer dos nomes próprios da maioria dos meus camaradas de companhia. O "quarteleiro", por exemplo, sempre o conheci por "quarteleiro" e era um gajo impecável que nos punha a G3 sempre num brinquinho, quando regressávamos do mato, cobertos de pó ou enlameados, a tresandar a merda.

Do "Campanhã", tinha, porém, tomado notas, no meu diário, da sua dura história de vida. Lá em Baião, o último concelho do distrito do Porto, ficava uma infância pobre, e no Porto, em Campanhã, uma adolescência truculenta, uma filha de mãe solteira, um futuro incerto de operário da ferrugem. Filho de pequenos rendeiros pobres, cedo pegara na trouxa, num ato de rebeldia contra o "pai e patrão", para apanhar o comboio da Linha do Douro e assentar arraiais numa "ilha" na freguesia de Campanhã, razão de ser da alcunha que lhe deram na tropa. Tinha um irmão mais velho, operário na CP, que trabalhava na manutenção da via férrea.

 Parti, sem a benção do meu pai, e com a minha mãe em alta berraria, em som estereofónico que era para as vizinhas ouvirem bem... Fui em busca de melhores dias no Porto, já que em casa o caldo, a broa e a pinga mal chegavam para dez bocas. Nem sequer tinha graveto para comprar o bilhete. Viajei escondido num vagão de mercadorias.

 Falas em fome... mesmo, a sério ?   insinuei eu, timidamente.

 Não, vocês, lá na capital, nem sabem o que é isso: uma sardinha para três em dia de festa; um bocado de toucinho quando se matava o porco lá pelo Natal; o ranço da salgadeira na loja quando eu ia buscar o verdasco; um caldo de água quente, pencas e pão de milho esfarelado para aconchegar o estômago; batatas com batatas, quando as havia… Mas um homem habitua-se a tudo... Fome, fome, não. Digamos que passei ...necessidades!... Até ir para o Porto, nunca soube o que era o leite da vaca, nem queijo nem manteiga, nem muito menos cerveja. Nem calças sem remendos. Sabe o que são socas ?

 Não, não faço ideia!

 Tarocas, tamancos, chinelos, um calçado aberto, com um tira de couro por cima e sola de pau... Era o que a gente usava, quando ia à vila ou à escola.
E no Porto, na sua Campanhã (onde ainda hoje mora), zona popular e operária da cidade na altura, faria entretanto a sua "universidade da vida": marçano, barbeiro, trolha, futebolista júnior, empregado de café, barman, "chulo de puta fina" – "azeiteiro, como se diz na minha terra"…  – até descobrir o duro caminho que o levaria aos portões da ferrugem (leia-se: da fábrica).

 "Cães grandes" ?!.. Aprendi a tirar-lhes o chapéu e a cuspir-lhes na sombra desde o dia em que, de socas, mas já com pêlo na venta e os tomates inchados, depois de feita a 4ª classe, acompanhava o velho pai na visita anual à Casa da Fidalga, pelo São Miguel, para acertar a renda e renovar o contrato: dois terços do vinho, metade do milho, a melhor fruta para a senhora, a viúva de um juiz salazarista do Supremo Tribunal de Justiça que tinha mais quintas na zona, entre o Marco e Baião, do que eu dedos na mão…


"Cães grandes" era uma expressão que lhe era querida, e suficientemente ampla para nela caber todos os que lhe podiam morder o fundilho das calças e "foder o coirão", do 1º sargento ao oficial superior. Em Santa Margarida, tinha levado uma porrada do "sorja" por evidente abuso do poder do seu superior hieráquico, acrescento eu, que fui contemporâneo dos acontecimentos...


Já não me recordo ao certo que se passou, em Santa Margarida: o 1º sargento era um "chicalhão" de cavalaria e não gozava das simpatias de ninguém, a começar pelos furriéis milicianos... Por outro lado, esperava ir passar apenas umas férias na Guiné, antes de ser chamado para a Escola Central de Sargentos em Águeda. Às praças não perdoava que se esquecessem de lhe bater a pala!... Foi o azar do "Campanhã", para mais "reguila" desde o início da formação da companhia. Andava já debaixo de olho do "nosso primeiro"...

De nada valeram os pedidos pungentes que lhe fizemos, para rasgar a participação. Era um homem inflexível, e irascível, para mais oriundo da arma de cavalaria como o Spínola. E alguns de nós até tinham um certo ascendente sobre ele, começámos, ainda em Santa Margarida, a dar-lhe explicações de português, francês, matemática e outras disciplinas essenciais para uma futuro tenente SGE (Serviços Gerais do Exército)... 


O "Campanhã", que era uma figura popular, acabou mesmo por levar uma porrada, na véspera de ser promovido a cabo, e lá partiu para a Guiné, "com muita raiva", como simples soldado de infantaria. O capitão, que precisava dos bons ofícios do 1º sargento, para mais logo no início da formação da companhia, nada fez para limpar a ficha do "Campanhã", o que causou evidente mal-estar entre alguns de nós , milicianos.

Falava do seu velho pai, com ternura contida e com o respeito comovido que lhe mereciam os mortos de que a História não fala. Tinha falecido em fevereiro de 1969, nas vésperas da ordem da sua mobilização para a Guiné.

 As alegrias passam, meu furriel. Só as desgraças e as injustiças nunca se perdoam e nem se esquecem. A "porrada", injusta, do nosso 1º sargento ainda me dói, e vai-me continuar a doer pela Guiné fora. Fui despromovido, podia ir hoje, no "Niassa", com as divisas de 1º cabo, com toda a cagança e mérito, porque as conquistei com muito suor... Acha justo eu ir comandar uma secção com o reles posto de soldado ?... Nunca lhe perdoarei, àquele "cão grande"...

E prosseguiu:


 As tainadas, as bezanas, tudo isso a gente caga e mija... As fodas, um gajo vem-se e, ala, moço, que se faz tarde... Qual amor, qual carapuça!... Nunca soube o que era isso.

Não conseguiu disfarçar uma lágrima quando evocou a figura do pai:

 − Veja o meu falecido pai: trabalhou uma vida inteira como uma besta de carga para morrer pobre como Jó, sem um cantinho a que chamasse seu, como qualquer cabaneiro ou cigano sem eira nem beira. Sem saber sequer uma letra, nunca foi à escola, tal como a minha mãezinha que Deus já lá tem, um e outra. Sem nunca ter ido sequer ao Porto visitar-me e ir à Foz, de elétrico, para ver o mar… Nunca viu o mar, o meu velho!... Nem ele nem ela... Conheceu muitos 'fidalgos', como ele chamava aos senhorios ou patrões… Sempre o conheci de chapéu na mão, agradecendo a suas senhorias o grandessíssimo favor de continuar na terra por mais um ano, uma casa térrea e uns socalcos, depois do São Miguel… Viveu uma vida emprestada, viveu por favor dos que mandavam neste mundo... É isso que me revolta, carago. E é por isso que me chamam reguila, corrécio, estroina ou pior...Mas eu digo-lhe: há coisas que um homem nunca esquece por muitos tombos que dê na puta da vida, por muitas bezanas que apanhe ou por muitas sacanices que faça… E eu já fiz muita merda, nesta meia dúzia de anos em que me tornei homem. Olhe, até fiz uma filha a uma gaja, menor, com quem fui obrigado a casar...

Recordo estas palavras, ouvidas com empatia, no tal comboio da noite que transportava carne para canhão, no longínquo ano de 1969... Curiosamente, verificava ali naquele almoço de convívio de antigos combatentes, vinte anos depois de "tudo ter acabado em bem", como dizia o safado do Azevedo, que nenhum de nós se desculpava por feito aquela guerra e, muito menos, não de a ter perdido, mas de ter perdido a sua juventude. 

Para alguns de nós, por ventura para a maior parte de nós, agora "despidos e despedidos" (, a expressão era do Oliveira), desfardados, paisanos, passados à peluda, nus de corpo e alma como no dia em que fomos à inspecção, alcunhados de ex-combatentes do ultramar, últimos guerreiros do império colonial português, "mal amados" (pelo poder democrático do pós-25 de Abril) - "mas vivinhos da costa como o carapau, graças a Deus!" (era a voz efeminada do "Peniche", o básico, que sempre acabara por ir parar à "vida artística da noite") - , tinha sido afinal a primeira e a última grande aventura das nossas vidas cinzentas, um rito de passagem, uma iniciação (entre dolorosa e divertida) à vida adulta. 

 Uma espécie de acidente de percurso. Um pesadelo climatizado. Uma trovoada fantasmagórica numa bela noite de verão tropical. Um abcesso. Um furúnculo. Uma dor de dentes...- completou, a meu lado, irónico, o mais lúcido de todos nós, o ex-furriel de transmissões, o Oliveira, que era de Coimbra e que, entretanto, se formara em direito.

− Um longo parto, meu furriel, um longo parto! - arrematava o "Peniche", no meio da galhofa geral.- Ainda hei-de ficar grávido e dar à luz, com a ajuda da ciência.

Talvez, eu, ingénuo, esperasse ouvir a confissão pública de alguém que, agora, à distância dos acontecimentos e na atmosfera distendida do restaurante do Zé dos Leitões, quisesse tomar partido e se levantasse para fazer um discurso puro e duro sobre a traição dos capitães de Abril, do Spínola, do Caetano e de todos os gajos que andaram a gozar connosco. Ou então sobre o trágico equívoco que fora a anacrónica, tardia, guerra colonial, ceifando vidas, gastando cabedais, hipotecando o futuro. Mas não, nenhum dos presentes levantara o copo de espumante para gritar "Viva ou Morra" !...

 Éramos todos bons rapazes! 
 confidenciei eu para os meus botões...

É que todos fazíamos o jogo da cumplicidade e da camaradagem, jogo cujas regras tacitamente ninguém estava disposto a violar. Porque o momento era único, era mágico, e todos sabíamos que nunca mais voltaria a repetir-se, apesar das trocas de cartões e de fotos da família e das promessas de, para o ano, irmos comer uma valente feijoada à transmontana e provar a famosa posta mirandesa, para lá do Marão "onde mandam os que lá estão" (assegurava o Azevedo, "agora autarca do poder local democrático" e empresário do setor agroalimentar).

 Para o ano em França de Bragança, camaradas!... São todos meus convidados!

 Eu já lá pus os butes, na França de Bragança, na quinta do Azevedo, e bibu no Porto, é longe como o carago!... O nosso alferes faz o favor de continuar a ser meu amigo e camarada - ironizou o "Campanhã" que continuava, amiúde, a trocar os vês pelos bês, sentindo que ainda lhe achavam alguma graça, os gajos do Sul.

No fundo, sabíamos que, na vida, há momentos irrepetíveis, pelo que nem os fantasmas, dolorosos, do passado, nem as paixões, ainda mornas, do presente, nem muito menos as inquietações, imperceptíveis, do futuro no século XXI que se aproximava a passos de gigante, deveriam perturbar este insólito e fugaz encontro de umas escassas dezenas de ex-combatentes da Guiné, mesmo quando, já no fim do almoço e depois de uma nova rodada de uísques (de duas Old Parr de 1970 que o vagomestre trouxera de lembrança, daqueles ainda com a etiqueta "From Scotland with love to the Portuguese Armed Forces"), alguém tivera o mau gosto (ou o azar) de evocar os mortos da companhia...

 Agora é que foderam tudo! – exclamou, desolado, o "Campanhã".

Nunca conheci nenhuma alma tão sensível como a dele. Ou melhor: nenhum ator, nenhum pantomineiro, com lágrima tão fácil como a dele...Ele e o "Peniche" eram verdadeiros "artistas" da palavra e do sentimento, nunca se sabendo ao certo quando falavam "a sério" e abriam o "livro"...


Foi o primeiro encontro da companhia, depois do regresso da Guiné, não foi fácil descobrir nomes, endereços e telefones...E juntar "boas vontades". Faltou muita gente, a começar pelo ex-capitão, ainda no ativo, agora na Guarda Fiscal ou na GNR, ninguém sabia ao certo. E alguns disseram ao organizador: "Guiné, meu ?!... Nunca mais!"...

Estavam presentes sobretudo alferes e furriéís e outras tantas praças, primeiros cabos e soldados, sobretudo do Centro e Norte. Ao todo uns quarenta e picos, cerca de um quarto da companhia. O "vagomestre", de alcunha, o "Unhas de fome", fora o organizador. Era de Aveiro, e tinha agora uma empresa de contabilidade ligada ao setor das pescas. O Oliveira, o "transmissões", esse, ia fazendo pela vida, sendo assessor jurídico de uma poderosa federação de sindicatos, ligada à CGTP-IN.

Por seu turno, o "Pastilhas", a quem fazíamos tropelias no nosso "bunker" feito de troncos de cibe, chapa de bidão e terra, era agora tratado com outra deferência: conseguira, logo a seguir ao 25 de Abril, entrar em medicina, feito o exame "adhoc"... Concorrera para saúde pública e era médico do trabalho numa fábrica de montagem de motores para automóveis.

O "Campanhã", esse, ninguém sabia ao certo o que fazia agora: mas apresentava alguns sinais exteriores de riqueza, a avaliar pelo BMW (, "em segunda mão, nada de insinuações!",)com que viera do Porto, com 
mais dois ou três camaradas "da corda". Eu, ainda continuava, infeliz e mal pago, num jornal diário, onde trabalhava como jornalista, desde os tempos de Saramago. 

O único que tinha "subido na vida" era, na realidade, o Azevedo, autarca social-democrata e empresário (deu-me o cartão de visita, que guardei, faço coleção, tenho centenas de cartões de gajos que têm subido na vida)... E o "Peniche", esse, continuava a ser o mesmo "básico" de sempre, o "bobo da companhia", mas agora talentoso e popular artista de circo. Não sei como ele nos descobriu, ou se fomos nós que o descobrimos...

Falou-se pouco da guerra. E de mortos e feridos. E de minas e armadilhas. E de emboscadas. E de ataques e flagelações ao quartel e aos destacamentos da companhia,que era de quadrícula. E de prisioneiros e de interrogatórios de prisioneiros... Havia um lado "sujo" da guerra que ninguém queria relembrar, pelo menos naquela hora e lugar. E eu, ingénuo, descobri que, nestes convívios, só se falava das coisas boas da guerra, as tainadas, as bajudas, as lavadeiras, as anedotas...

Por outro lado, nenhum destes "bravos da Guiné" fora condecorado por feitos em combate, à exceção do "Campanhã" que, esse, sim, tivera uma cruz de guerra do Spínola depois de, "em luta corpo a corpo", ter "limpo o sebo" a um roqueteiro do PAIGC que, atrás de um bagabaga, se preparava para arrancar a cabeça do Azevedo. 

Esta foi, pelo menos, a versão do Azevedo que, sendo o segundo comandante da companhia e o comandante da operação, fez o relatório do sucedido e foi, em abono da verdade, advogado em causa própria... (Sendo embora um bom operacional, gostava sempre de ficar bem na fotografia!)


O "Campanhã" fazia parte da 2ª secção do 1º Grupo de Combate, que era comandado justamente pelo "ranger" Azevedo. O "Campanhã", que era reconhecidamente um grande operacional, um "chanfrado dos cornos", também manteve sempre ess versão oficiosa que alguns, talvez "mais invejosos", consideravam "fantasiosa"... Eu não posso confirmar ou infirmar os factos que ocorreram nessa operação. Estava com paludismo nessa ocasião, safei-me desse embrulhanço mas não de outros, que não foram melhores. Era o comandante da 3ª secção. Andávamos sempre na frente.

E eu era o único furriel do 1º pelotão. Os outros dois foram mais espertos do que eu, e procuraram outros ares. Não apareceram no convívio, para meu conforto e minha tranquilidade de espírito. Não tinha mesmo vontade nenhuma em revê-los, sobretudo ao Pires, que desertara, aproveitando a licença de férias na metrópole, em 1970, segundo notícia que nos deu depois o capitão, e que nos deixou, a todos, "descolhoados"... Nada o fazia prever, nem nunca ele tinha dado a entender que o poderia fazer... Para todos nós, o Pires era o exemplo do mais que improvável desertor...

De qualquer modo, sempre achei que a cruz de guerra, com mais ou menos água benta da caldeirinha do padreco do Azevedo, ficava bem no peito do bravo "Campanhã".

Ao que parece, a 1ª secção do 1º grupo de combate já estava na "zona de morte" de um grupo IN emboscado, com o Azevedo e o nosso guia Jero à frente. O "Campanhã", que vinha com a 2ª secção, viu o tubo do RPG2 a sair do bagabaga, com a granada pronta a disparar.

 Parecia um c... das Caldas, a sair do forno, a passo de caracol. Só tive tempo de gritar: 'Todos pró chão, seus c...!', e disparar uma rajadada, a matar, sobre o vulto que estava por detrás do bagabaga. Despejei-lhe um carregador em cima do bucho!...


Não terá havido nenhuma luta corpo a corpo. Mas quem conta um conto, acrescenta-lhe sempre um ponto... O "Campanhã" recuperou apenas o RPG2 com a granada e salvou a secção do Azevedo de um massacre. Este ficou-lhe reconhecido para o resto da vida... Ainda hoje são amigos e o "Campanhã" é visita da sua casa em Bragança... No relatório, redigido e assinado pelo Azevedo, "o IN teve várias baixas, uma confirmada e 3 estimadas, pelos rastos de sangue"...


Lembro-me do gozo interior, e do ar sereno, do "Campanhã", quando recebeu, de peito inchado, a cruz de guerra e o capitão lhe voltou a pôr as divisas de 1º cabo, no 2º ano da nossa comissão, já o "nosso primeiro" tinha seguido para a grande escola de guerra de Águeda...

 Tenho pena que esse "cão grande" já não esteja aqui entre nós... Fazia questão de lhe enfiar a cruz de guerra pelo cu acima e depois mandar-lhe uma traulitada direta à caixa dos fusíveis ...- disse-me ele ao ouvido, no gozo. 


Naturalmente que eu desculpava-lhe este lado de fanfarrão a que também têm direito os heróis de guerra. Confesso que conheci muito poucos: o "Campanhã" foi um deles e o Azevedo nunca chegou a sê-lo, com muita pena dele. "Herói ou santo", era o lema de vida do Azevedo, já do tempo de menino e moço. Nunca foi uma coisa nem outra, e soube, entretanto, que infelizmente já morreu há dois ou três anos... A vida prega-nos destas partidas. De resto, nunca mais estivera com ele depois do convívio na Anadia, em 1991.

Mas, em verdade, nenhum destes heróis existiu. Nem poderiam ter existido: afinal, perdemos a guerra, justamente por falta de heróis improváveis como o "Campanhã". Não foram heróis, não se consideravam heróis, eram apenas bons rapazes que, agora, no ocaso da vida, se juntavam para comer e beber, e matar saudades do tempo perdido. Em todo o caso, qualquer semelhança com a realidade é sempre, nestas histórias de guerra e paz, pura coincidência.

Revistro: 24/11/2022
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Nota do editor:

Último poste da série > 4 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19647: A galeria dos meus heróis (26): Aquele rapaz de Cinfães que queria ser pintor em Montmartre (Luís Graça)


Alguns dos postes da série, mais recentes (2019/2018):

23 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19614: A galeria dos meus heróis (25): E na hora da nossa morte, ámen! (Luís Graça)

9 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19564: A Galeria dos Meus Heróis (24): Cirurgião no Hospital Militar de Bissau - II (e última) Parte (Luís Graça)

8 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19563: A Galeria dos Meus Heróis (23): Cirurgião no Hospital Militar de Bissau - Parte I (Luís Graça)
12 de fevereiro e 2019 > Guiné 61/74 - P19491: A Galeria dos Meus Heróis (22): O "Duque de Palmela" ou o pão que o diabo amassou - II (e última) Parte (Luís Graça)

11 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19489: A Galeria dos Meus Heróis (21): O "Duque de Palmela" ou o pão que o diabo amassou - Parte I (Luís Graça)

23 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19431. A Galeria dos meus Heróis (20): - A Nucha ou a difícil arte do envelhecimento (III e última Parte ) (Luís Graça)

22 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19428: A Galeria dos Meus Heróis (19): A Nucha ou a difícil arte do envelhecimento (Parte II) (Luís Graça)

21 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19426: A Galeria dos Meus Heróis (18): A Nucha ou a difícil arte do envelhecimento (Parte I) (Luís Graça)

1 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19353: A Galeria dos Meus Heróis (17): Os caminheiros do parque da cidade - II (e última) parte (Luís Graça): com os meus votos para o novo ano que aí vem, o 2019. Porque a saúde, afinal, não serve para mais nada... a não para sermos livres e felizes! (Luís Graça)

1 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19352: A Galeria dos Meus Heróis (16): Os caminheiros do parque da cidade - Parte I (Luís Graça)


9 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19085: A galeria dos meus heróis (10): o "Felgueiras", 1º cabo hortelão, empresário, autarca, padrinho... (1943-2017) - II (e última) Parte (Luís Graça)

9 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19084: A Galeria dos meus heróis (9): o "Felgueiras", 1º cabo hortelão, empresário, autarca, padrinho... (1943-2017) - Parte I (Luís Graça)


24 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18949: A galeria dos meus heróis (8): os seminaristas (Luís Graça)


Guiné 61/74 - P19682: Notas de leitura (1169): Um luso-cabo-verdiano que amou desmedidamente a Guiné (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Novembro de 2016:

Queridos amigos,
É tempo de tirar do limbo uma figura altamente representativa da cultura luso-guineense, Fausto Duarte, escritor singular, divulgador emérito e um desbravador de documentos históricos guardados na poeira dos arquivos. Tinha formação superior e revelou ao longo da sua curta vida uma enorme paixão pela cultura guineense. Impôs a temática logo em "Auá", romance premiado em 1934.
Deixou o seu nome ligado a projetos incontornáveis, os anuários da Guiné de 1946 e 1948 e o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa.
Merecia ser melhor estudado por portugueses e guineenses.

Um abraço do
Mário


Um luso-cabo-verdiano que amou desmedidamente a Guiné (1)

Beja Santos

Entrei na Biblioteca da Gulbenkian para consultar uma obra sobre património africano, acabei nos reservados a ler uma tese de doutoramento de Benjamim Pinto Bull sobre o escritor Fausto Duarte, documento de leitura aliciante. Fausto Duarte não merecia o injusto silêncio que rodeia hoje o seu nome, foi grande escritor e investigador e deixou uma obra assinalável na Guiné.

A tese de Pinto Bull começa por contextualizar os ambientes de Cabo Verde e Guiné. Fausto Castilho Duarte nasceu na Praia, ilha de Santiago ou em 1902 ou 1903, não se sabe exatamente, era filho de padre. Passou a infância na Praia, foi enviado, concluída a instrução primária, para Lisboa, percorreu vários liceus, o Pedro Nunes, o Passos Manuel, o Camões, o Gil Vicente. Vivia no Colégio Universal, na Calçada de Santana n.º 180. Findo o liceu, inscreveu-se no Instituto Superior de Agronomia onde estudou principalmente Geodesia e Topografia. Em 1928, fez exame final do curso de Topografia e Elementos de Geodesia. Nesse ano viaja para a Guiné e trabalha para um empresário alemão, Frederick Karsten, como agrimensor. Entre 1929 e 1930 trabalha na delimitação das fronteiras da Guiné sob a direção do Tenente-Coronel Soares Zilhão, mais tarde o Governador da Guiné.
Ao percorrer a colónia, entusiasma-se com a natureza luxuriante e caprichosa, deixará as observações das suas descobertas na sua obra, caso dos morros de bagabaga que descreve no livro “Negro sem Alma”:
“A termiteira lembra uma pirâmide egípcia em miniatura. Um é habitação de vivos, outras jazida de mortos, mas ambas são fantasias de arquitectura ciclópica, ambas objectivam encarcerar a sombra e fazer dela o manto de um rei cujo corpo mumificado zomba dos cegos, ou de uma rainha-insecto extravagante – que governa com despotismo, porque perpetua a espécie, porque seu abdómen é um constante viveiro; ambas são ogivas de pedras trabalhadas por gerações inteiras. Numa falta a unidade interior, na outra há a fronteira religiosa. Desfeita a pirâmide, que resta da termiteira? Simples torrões, habitados por insectos que se refugiam instintivamente na treva, porque elas lhes extinguiu para sempre a luz dos olhos”.

Regressa a Lisboa em 1931, casa com Ilda Massano Sereno e volta à Guiné. No ano seguinte, temo-lo novamente em Lisboa onde vem frequentar o Curso Superior Colonial, que termina com brilho quatro anos mais tarde. Em 1934, publica "Auá", que obtém o primeiro prémio de literatura colonial desse ano. Tem 32 anos. Já deram pelos seus dotes Aquilino Ribeiro, Vitorino Nemésio, faz amizades, uma delas com um distinto médico, o professor Fernando da Fonseca, encontraram-se em Berlim. Nesse mesmo ano de 1934, na Exposição Colonial do Porto faz uma conferência sobre o tema “Da literatura colonial e da morna”.

Segue-se a novela “Um crime” e depois “O Negro sem Alma” e “Rumo ao Degredo”. Em 1936, regressa à Guiné, fora nomeado Secretário-Geral da Câmara Municipal de Bolama. Em 1942, publica “A Revolta”, que obtém o segundo prémio do concurso de literatura colonial. Em 1945, aparecem em Lisboa os contos “Foram estes os vencidos”. De 1946 a Janeiro de 1953, Fausto Duarte participa ativamente na redação do Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, tem a seu cargo a secção “História da Guiné”. Em 1950, depois de uma longa estadia na Guiné, é colocado no Gabinete de Urbanismo do Ministério do Ultramar. Em 1952, descobre-se que tem um cancro no estômago. Escreve sem parar, nessa época a censura exige-lhe a supressão de parágrafos no seu livro mais recente “Mãe Joaninha”. É operado duas vezes e morre em 1953, com 51 anos.

Inegavelmente que foi o romance "Auá" que lhe deu notoriedade como escritor, a Guiné encontrara um narrador de altíssima qualidade. O tema do romance é o conflito permanente entre duas civilizações, a europeia e a africana, mais precisamente a civilização ocidental e a civilização arábico-islâmica. Quem personifica esse conflito? Entre Malam, jovem Fula, que vem trabalhar para a cidade de Bissau como criado de um casal alemão, e que se vai imbuindo de preconceitos e valores ocidentais, e outro jovem Fula, Abdulai, que permanece enraizado nas suas tradições e convicções. Malam volta à sua terra para casar com Auá que 10 meses depois dá luz um bebé “branco”. Malam rejeita a criança enquanto na povoação todos afirmam que “o filho pertence a Malam porque foi gerado no ventre da mulher que ele escolheu. É uma recompensa de Deus”.

Para o leitor ocidental, esta trama tem o poderoso ingrediente de uma escrita cuidada, que detalha perfis e situações. Mais adiante, dar-se-ão exemplos da cultura europeia deste escritor embevecido com as culturas guineenses onde se mostra com solidez os seus conhecimentos de etnografia e religião islâmica. Benjamim Pinto Bull aventa a hipótese de que este mestiço que tinha orgulho em ser cabo-verdiano e que tinha uma forte atração pelas linhas dominantes da cultura europeia sentia-se vexado pelos preconceitos raciais que experimentou, tendo sido a experiência mais dolorosa a sua visita à Alemanha, num período já de ascensão nazi, que nunca mais esqueceu. A sua resposta foi o desenvolvimento de um processo cultural singular, onde predominava uma linguagem cultíssima, quase de pesquisa laboratorial, e o apego à temática colonial, em diferentes situações. Revelou-se um estudioso de gabarito, qualidades que lhe foram reconhecidas por outros estudiosos, como Teixeira da Mota. O topógrafo transforma-se em homem de secretária e dedica-se a projetos de fôlego, caso de dois trabalhos de indiscutível qualidade como foram os anuários de 1946 e 1948, hoje obras de consulta obrigatória dado o acervo de informações que ele coligiu, apensando imagens elucidativas, muitas delas aproveitadas das edições do Boletim Cultural da Guiné Portuguesa.

Vejamos agora como "Auá" é um monumento literário referencial da Guiné colonial. Para o leitor mais interessado, recomenda-se o que sobre "Auá" já se escreveu no blogue:

Guiné 63/74 - P3716: A literatura colonial (2): Auá, novela negra, de Fausto Duarte, uma obra-prima (Beja Santos)

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 12 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19673: Notas de leitura (1168): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P19681: Parabéns a você (1604): António Pimentel, ex-Alf Mil Rec Inf do BCAÇ 2851 (Guiné, 1968/70)

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Nota do editor

Último poste da série de 12 de Abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19669. Parabéns a você (1603): Francisco Alberto Santiago, ex-1.º Cabo TRMS do BART 3873 (Guiné, 1972/74)

domingo, 14 de abril de 2019

Guiné 61/74 - P19680: Memórias de Gabú (José Saúde) (81): Recordando o saudoso camarada Damásio (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem. 



As minhas memórias de Gabu

Recordando o saudoso camarada Damásio

Camaradas, 

Lancei, há tempos, no nosso blogue - Luís Graça & Camaradas da Guiné - um tema onde falo da fatídica morte do soldado Damásio.

Não vou exceder-me em considerações sobre o trágico acontecimento, entendo sim como preferível voltar a recolocar parte do meu texto, acrescentado agora uma obra cuja narração refere o horroroso caso.

Tudo se prende com a chegada à minha mão do livro “HERÓIS LIMIANOS da Guerra do Ultramar” cujo autor é Mário Leitão, um dos nossos companheiros nestas lides bloguistas, precisamente num espaço que é de todos e para todos,com o qual tive oportunidade em almoçar a seu lado no último convívio anual que teve lugar em Monte Real, aliás, como vem sendo hábito.

A minha convicção é que todos temos direito a imitar opiniões pessoais e comentar textos, mas alertando que “a perna não deve ir para além do lençol”.Digo bem “chefe” Luís Graça?

A possibilidade em introduzir este tema surgiu quando o meu amigo de longa data Manuel Lourenço Casteleiro Góis, um ex-furriel miliciano que passou, também, como camarada de armas pela Guiné, me falou de um livro que tem em seu poder e que refere em determinado momento o meu nome.

O Mário Leitão, farmacêutico e professor aposentado, faz uma descrição de mortes de vários camaradas limianos que morreram na guerra do Ultramar e lá está o meu companheiro Damásio.

Refere camaradas com os quais lidei diariamente no interior do arame farpado. Fala do processo de averiguações conduzido pelo alferes Santos, sendo o escrivão o furriel Dias, um rapaz de Setúbal, e adianta os nomes das testemunhas ouvidas.

Na página 97 lá está o nome do furriel Saúde que por determinação do QG de Bissau se encarregou de prestar assistência à família. É verdade. Mas adianto mais: todo o espólio angariado foi da minha inteira responsabilidade. Reuni literalmente todos os seus bens pessoais entregando-os depois ao capitão Rijo, comandante da nossa companhia.

Com a devida vénia ao Mário Leitão, reproduzimos uma pequeníssima parte do livro “HERÓIS LIMIANOS da Guerra do Ultramar” do qual é autor, onde refere a morte do soldado Damásio e a angústia de uma família que se deparou com a infeliz notícia.

Obrigado Mário pela tua gentileza. 

“Foi socorrido momentos depois pelo médico militar Dr Amílcar Silva de Nobre Neto, que se encontrava na placa de estacionamento a preparar as referidas evacuações, quem declarou o óbito.

O processo de averiguações, conduzido pelo Alf Mil Cav Manuel Ribeiro dos Santos e assistido pelo escrivão Fur Mil SAM Leonel Vicente de Jesus Dias, teve como testemunhas : 1.º Cabo José Augusto Oliveira, 1.º Cabo Armando Fernandes Alves de Sousa, 1,º Cabo José Luís de Magalhães Pacheco, Sold Manuel Marques Rodrigues, Braima Daimô (civil, condutor da firma TECNIL) e José André Dias (civil). O Fur Mil José Romeiro Saúde foi encarregado de prestar assistência à família, por determinação do QG de Bissau. 

O Relatório de Cerimónias Fúnebres do CTIG, datado de 25 de Abril de 1974, refere que nesse dia, na Casa Mortuária do Hospital Militar de Bissau, foram prestadas homenagens a três militares: Fur Mil José Manuel Augusto Rosa (CCaç 3545/BCaç 3883), Sold Damásio Cervães e Sold Manuel Agostinho Mendonça Oliveira (CCaç 4150). “Após a velada de armas foi celebrada Missa de Corpo Presente e seguidamente as urnas foram transportadas, cobertas com a Bandeira Nacional, para a Casa Mortuária do Cemitério de Bissau”, estando presentes oficiais do Batalhão de Intendência, do Hospital Militar, do Comando-Chefe e Senhoras do MNF.

Sua irmã Marinha Fernandes Cervães, então com 18 anos, estava hospedada em casa de uma senhora, na Rua da Junqueira, quando trabalhava na Marinha, na Cordoaria Nacional (extinta em 1974). Alguns dias depois do desastre chegou um carteiro a sua casa com um telegrama. “Isto não é para mim! Não, deve ser para a senhora da casa! Não, é mesmo para a menina!” Foi um diálogo curto, com o carteiro a fugir. De repente a jovem caiu em si. Percebeu o sentido dos sonhos que a atormentaram durante a semana, especialmente aquele em que o irmão lhe dizia que só ela o poderia salvar. Vagueou durante horas em lágrimas pelas ruas de Belém, até que foi para a casa. A senhoria levou-a ao comboio. Para trás deixou na modista um vestido que andava a provar, que ficaria guardado para a festa da chegada do Damásio. No comboio foi confortada por um jovem, que lhe partilhou a dor pessoal por ter perdido um irmão no Brasil. Adormeceu durante a viagem e quando acordou sentiu que tinha ouvido a voz do irmão pedindo-lhe que tivesse força, porque os pais precisavam dela.

Quando entrou em casa, na Lacada, seu pai estava sentado na cozinha, a chorar. “Era eu que devia ter morrido! Não o meu filho!” Repetia sem cessar essas palavras, exausto de tanto chorar. A mãe estava no quarto, deitada e aos gritos, sem querer ver ninguém. Marinha, cheia de força, contou-lhe pouco a pouco sobre a voz do irmão que ouvira no comboio. Foi surpreendente! Lentamente a mãe foi deixando o torpor em que se encontrava, abriu os olhos e abraçou a filha, tentando posteriormente animar o marido. Outro telegrama havia chegado a Lacada, trazido por um carteiro apressado que viera de bicicleta entregar uma morte ao domicílio, como já tantas vezes fizera. Lucinda, irmã mais nova de Damásio, conta-nos como foi: Quando a tristeza se abateu sobre a nossa casa (caixa), 


No ano de 1974, tinha eu 7 anos de idade, era a mais nova de 4 irmãos. Os meus pais eram pessoas simples, agricultores que trabalhavam arduamente para terem o seu sustento. Nesse ano de 1974 só eu me encontrava a viver com os meus pais, pois meus irmãos já estavam a começar as suas vidas de adultos: o meu irmão mais velho encontrava-se na tropa, na Guiné; o segundo já estava casado e até já tinha dois gémeos; e a minha irmã estava a trabalhar em Lisboa como funcionária da Marinha de Guerra. Só eu estava em casa com os meus pais, frequentando a escola e ajudando-os conforme a minha condição de criança permitia. 

Num determinado dia de 1974, a minha mãe estava a trabalhar num campo perto de casa, quando cá chegou um senhor que se identificou como sendo dos Correios. Trazia um telegrama para a minha mãe e pediu-me que eu a chamasse, dizendo-me, entretanto, para eu assinar um papel. A minha mãe chegou e perguntou: – “Que se passa!? Não gosto nada de receber telegramas!”. O senhor respondeu-lhe, simplesmente: - “Minha senhora, o seu filho morreu, na tropa”. 

Nesse instante, o mundo desabou para a minha mãe. Esqueceu tudo que a rodeava, ficando tolhida, apática e esquecendo-se até de mim, que ali estava ao seu lado, a olhar para ela sem saber o que fazer nem o que se passava. O homem só dizia para mim: -“Assina! Assina!”.

Depois de ele ir embora, a minha chorava descontroladamente e gritava como eu nunca vira. Eu não entendia o que se passava. Levou muito tempo até eu compreender realmente tudo, o que era natural, pois só tinha 7 anos.

Cá em casa nunca mais foi a mesma coisa. Nunca mais houve festas de família e eu não tenho nenhumas recordações do Natal da minha infância, porque, havia sempre a lembrança de meu irmão.

Eu cresci sempre a ouvir os meus pais, os meus irmãos e os amigos a falarem do que ele gostava. Tenho poucas memórias dele, pois era 16 anos mais velho do que eu. Mas como sempre ouvi a minha mãe a falar dele acabei por o conhecer melhor, criando uma imagem mental das suas feições, da sua maneira de ser e da sua vida.

E deste sofrimento familiar, tudo veio! Todos os problemas de saúde que minha mãe sofreu pela vida fora foram derivados desse triste acontecimento. E com o meu pai aconteceu o mesmo, pois o desgosto abalou para sempre a sua saúde.

Já estão os três juntos, na Eternidade! E sei que onde o meu irmão Damásio, a minha mãe e o meu pai estiverem, se encontrarão em paz e serenos, pois sabem que alguém está a deixar a lembrança de um filho querido que morreu na tropa.

Por isso, um bem hajam a todos os que estão envolvidos neste projecto, porque não se esqueceram destes Heróis Limianos que perderam as suas vidas em defesa da Pátria. O meu muito obrigado!

a) Lucinda de Jesus Fernandes Cervães

Foram dois pais sofredores, que tiveram que andar pelos médicos ao longo das suas vidas, porque socos no estômago desta violência afectam irreversivelmente os nossos cérebros e, por tabela, abalam todos os sistemas orgânicos. A Medicina sabe bem o que é o stress pós-traumático e conhece as suas consequências psicossomáticas. Os governantes é que não. Está sepultado em Estorãos”.


Damásio (à esquerda) com o enfermeiro Dinis no navio Niassa a caminho da Guiné (foto do saudoso Dinis retirada do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)

Aquela morte estúpida na pista de aviação

Damásio, até sempre!

Diz-nos o teor da veracidade do BART 6523 que nos 14 meses de comissão em território da Guiné, o seu efetivo não registou baixas em combate. É certo que o período normal de incumbência das nossas tropas naquela antiga província ultramarina ia para além deste ciclo, porém, a Revolução de Abril de 1974 acelerou o regresso do nosso exército das três frentes de guerra – Angola, Moçambique e Guiné - com as quais Portugal estava envolvido.

O meu Batalhão, sediado em plena região de Gabu, não obstante os ataques noturnos, particularmente às companhias destacadas no mato – Madina Mandinga e Cabuca -, teve a sorte em não se deparar com eloquentes baixas resultantes de confrontos diretos com o IN, nem tão-pouco deparar-se com rebentamentos das famigeradas minas antipessoais ou anticarros que originavam efetivos para abater nas contas do exército português. As operações feitas no terreno passaram isentas de eventuais baixas que serviam para engrossar a lista de infelizes que perderam a vida em pleno campo de batalha.

A manhã destinou-se para receber correio, transportar feridos que normalmente chegavam a Nova Lamego e receber mantimentos frescos vindos de Bissau. O Damásio integrou o grupo de jovens soldados e lá partiu feliz da vida na esperança que a sua presença na pista seria certamente útil. Predispôs-se em ajudar e tomar conhecimento de camaradas que partiam para Bissau mas na condição de evacuados. 

Porém, sem que nada o fizesse prever o nosso camarada Damásio foi colhido por uma das viaturas e teve morte imediata. O instante foi de dor e de extrema revolta. Ficámos estupefactos e a rapaziada exausta. Lembro o seu corpo inerte num chão vermelho mas onde as lágrimas de camaradas lançavam laivos de raiva numa guerra onde a imprevisibilidade da morte era uma constante. 

Não foi fácil lidar com a situação. O Damásio era um moço educado. Fazia amigos, facilmente. Eu fui um deles. Sei que guardei durante vários anos um documento onde tinha descriminado todas as suas pertenças pessoais que na altura tinha como destino os seus familiares. Nada faltou. Lembro-me desse derradeiro adeus. O choro dos camaradas que o viram partir para a eternidade. Um jovem que vivia, certamente, um mundo de sonhos. 

Senti o vazio nas almas que se abateu sobre os seus familiares. Como explicar-lhes tamanha fatalidade! E nós, homens que convivíamos com ele diariamente, lá longe sem nada podermos transmitir aos seus entes queridos. Impunha-se aconchegar o seu profundo desespero, mas a distância ditava, apenas, o carpir de mágoas pelo seu infeliz último adeus. Ficavam as despedidas mas estas integradas na sumptuosidade de amarras que nos atiravam meramente para um profundo silêncio.

O Damásio ficou-me perpetuamente na memória. Até sempre, camarada!

Conclusão: como foi dura a guerra do então Ultramar!... 


Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
___________

Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em:

16 DE MARÇO DE 2019 > Guiné 61/74 - P19594: Memórias de Gabú (José Saúde) (79): Resquícios de uma guerra que nos fora cruel. Abandonados. (José Saúde)

Guiné 671/74 - P19679: Jorge Araújo: Ensaio sobre as mortes por afogamento no CTIG: Parte I - Corpor 'recuperados' e 'não recuperados'


 Foto 1 > Guiné > 1965 > Fuzileiro especiais durante uma operação militar,   com percurso na água,  [foto retirada da Net, com a devida vénia: sítio Lugar do Real: autor não identificado; recolhida por Sara Viana Caseiro; cedida por Manuel de Sousa Caseiro].



Foto 2  > Guiné > 1966 > Manuel de Sousa Caseiro, fuzileiro especial, natural de Antas, concelho de Esposende, atravessa, com outros militares, um rio, na Guiné, durante uma operação militar. [Foto retirada da Net, com a devida vénia: sítio Lugar do Real: autor não identificado; recolhida por Sara Viana Caseiro; cedida por Manuel de Sousa Caseiro].





Jorge Alves Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger, CART 3494 (Xime-Mansambo, 1972/1974); coeditor do blogue desde março de 2018


ENSAIO SOBRE AS MORTES POR AFOGAMENTO DE MILITARES DO EXÉRCITO DURANTE A GUERRA NO CTIG (1963-1974):  Parte I - CORPOS 'RECUPERADOS' E 'NÃO RECUPERADOS' 





1. INTRODUÇÃO


Como sobrevivente no naufrágio tido pela minha secção (+) do 1.º Gr Comb da CART 3494 (1972-1974), no qual participou também o camarada Cap Art [hoje Cor] Pereira da Costa, de que resultaram, lamentavelmente, três baixas, duas das quais não recuperadas, ocorrido em 10Ago1972 (5.ª feira), no rio Geba, na zona do Xime, por influência do «macaréu» [P10246 e P13482], tomei a iniciativa de proceder a um "ensaio", quantitativo e qualitativo, sobre o número de militares do Exército que morreram afogados nos diferentes planos de água existentes na Guiné, durante o conflito armado (1963-1974), dividindo-o em dois grupos: "recuperados e "não recuperados" e as suas Unidades.

Com efeito, o levantamento que hoje trago ao conhecimento do fórum é resultado dessa pesquisa, efectuada através da consulta a diferentes fontes, entre oficiais e não oficiais. Porque se trata, como foi referido, de um "ensaio", este apuramento pode vir a ser alterado em função de outras colaborações e/ou informações complementares que possam, eventualmente, surgir após a avaliação realizada por cada um de vós.

Por razões metodológicas e estruturais do presente trabalho, nesta primeira parte não se referem os nomes dos naufragados em cada uma das diferentes ocorrências, opção que será alterada a partir da segunda parte, com a identificação das Unidades que não conseguiram recuperar os corpos dos seus náufragos [último quadro desta parte I], bem como a descrição, a possível, do contexto em que as mesmas tiveram lugar.


2. A HIDROGRAFIA DA GUINÉ-BISSAU

A grande maioria da actividade operacional das NT era planeada e executada em função da geografia e hidrografia de cada local. Cada situação era um caso particular, pois o seu território, constituído por zonas do litoral e do interior, apresenta-se mapeado por uma linha (a do limite das marés) dividindo-o em duas zonas hidrograficamente distintas, que influenciavam a mobilidade daqueles que nelas tinham de circular, desafiando a vida de cada um, com particular incidência dos menos preparados e dos mais descuidados.

De acordo com a literatura consultada, a primeira, a do litoral, é a zona das planícies, das rias, dos vales muito largos, invadidos pelas marés de água salgada, enquanto a segunda, para o interior, só existem rios de água doce, não navegáveis, devido às cheias e rápidos.



Foto 3 > Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Saltinho > Rio Corubal > 18 de Abril de 2006, dia 8 (da viagem Porto-Bissau) > 19h16 > Os banhistas de fim da tarde. Foto do nosso amigo e grã-tabanqueiro Hugo Costa.

Foto (e legenda): © Hugo Costa / Albano Costa (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Lu+is Graça & Camaradas da Guiné]


Esta linha marca o limite da navegação e separa os tipos de vegetação. Há uma área enorme - cerca de 4.000 Km2, mais de 10% da totalidade do território - que fica coberta de água, o que ocorre entre a praia-mar e a baixa-mar, cuja amplitude chega a ser próxima dos 7 metros, em alguns locais. Durante as "marés da conjunção", encontro das águas dos rios com a praia-mar, observa-se nos rios Geba e Corubal - o mais extenso da Guiné - o chamado fenómeno do "macaréu", que consiste numa grande onda, como um depósito de água corrente que, num instante, enche o leito do rio que transborda e inunda de água salgada extensas zonas das baixas margens daqueles rios. 

No interior das rias existem portos naturais e a extensão das vias navegáveis, por navios de longo curso, é da ordem dos 300Km. Nas vias iluviais, a navegação faz-se em cerca de 950Km. As principais são o Cacheu, Mansoa, Rio Grande de Buba, Tombali, Cumbijã e Cacine. No Geba, que termina pela chamada ria de Bissau, situa-se o porto natural da capital. Os cursos de água da zona interior, ao contrário do que acontece na zona do litoral, não têm água salgada, por não chegar a eles o efeito das amplas marés; são de caudal muito variável ao longo do ano, reduzindo-se na época seca de tal forma que, muitos dos rios secundários deixam de ter água. A existência de rápidos [foto acima] só permite que sejam navegáveis em pequenas extensões. As três principais bacias hidrográficas são a do Cacheu, do Geba e do Corubal. A Guiné apresenta ainda, principalmente na época das chuvas, importantes lagoas que cobrem extensas áreas de terrenos planos e desaparecem, em geral, na época seca.

No interior das rias existem portos naturais e a extensão das vias navegáveis, por navios de longo curso, é da ordem dos 300Km. Nas vias iluviais, a navegação faz-se em cerca de 950Km. As principais são o Cacheu, Mansoa, Rio Grande de Buba, Tombali, Cumbijã e Cacine. No Geba, que termina pela chamada ria de Bissau, situa-se o porto natural da capital. Os cursos de água da zona interior, ao contrário do que acontece na zona do litoral, não têm água salgada, por não chegar a eles o efeito das amplas marés; são de caudal muito variável ao longo do ano, reduzindo-se na época seca de tal forma que, muitos dos rios secundários deixam de ter água. A existência de rápidos [foto acima] só permite que sejam navegáveis em pequenas extensões. As três principais bacias hidrográficas são a do Cacheu, do Geba e do Corubal. A Guiné apresenta ainda, principalmente na época das chuvas, importantes lagoas que cobrem extensas áreas de terrenos planos e desaparecem, em geral, na época seca.


3.  OS DADOS DO "ENSAIO" – QUADROS ESTATÍSTICOS 

Partindo da coleta de dados apurada, o tratamento estatístico que seguidamente se dá conta está representado por quadros de distribuição de frequências, simples e acumuladas, conforme se indica em cada um dos títulos. Cada quadro relata os valores quantitativos de cada um dos elementos das variáveis categóricas ou quantitativas relacionadas, tendo em consideração os objectivos que cada contexto encerra.



Quadro 1 – Da análise ao quadro supra, verifica-se que o número total de militares do Exército que morreram por afogamento no CTIG (1963-1974), e que constituíram a população deste estudo, é de 144.

 Verifica-se, também, que desse total, 113 (78.4%) eram soldados; 22 (15.3%) 1.ºs cabos; 7 (4.9%) furriéis; 1 (0.7%) 2.º sargento e 1 (0.7%) major. Quanto aos anos em que se registaram maior número de casos: em 1.º lugar está o de 1969, com 51 (35.4%) mortos. 

Para esta cifra contribuiu significativamente o episódio da «Jangada de Ché-Che», ocorrido em 06Fev1969, no Rio Corubal, com 47 mortos. Em 2.º lugar está o ano de 1965, com 20 (13.9%) mortos, dos quais 8 pertenciam ao PMort 980 registados na sequência do acidente no Rio Cacheu, em 05Jan1965, durante a «Operação Panóplia». No ano de 1972, verificou-se um outro acidente, o 3.º, desta vez no Rio Geba, em 10Ago1972, envolvendo o 1.º GrComb da CArt 3494, com 3 mortos.




Quadro 2 – Da análise ao quadro supra, verifica-se que o número total de militares do Exército que morreram por afogamento no CTIG (1963-1974) cujos corpos não foram recuperados é de 63 (43.8%). 

Verifica-se, também, que desse total, 48 (76.2%) eram soldados; 10 (15.9%) 1.ºs cabos; 4 (6.3%) furriéis e 1 (1.6%) 2.º sargento. Quanto aos anos em que se registaram maior número de casos: estes correspondem aos mesmos indicados no quadro 1, ou seja: 1969 com 49 (77.8%) casos, 47 dos quais relacionados com a «Jangada de Ché-Che», no Rio Corubal; 1965 com 4 (6.3%) casos, 3 dos quais na «Operação Panóplia», no Rio Cacheu, e 1972 com 3 (4.8%) casos, sendo 2 no Rio Geba (CArt 3494) e 1 no Rio Cacheu (CArt 3417).



Quadro 3 – Da análise ao quadro supra, verifica-se que o número total de militares do Exército que morreram por afogamento no CTIG, durante o 1.º triénio (1963-1965) é de 34 (23.6% do total). 

Verifica-se, também, que desses, 24 (70.6%) eram soldados, 6 (17.6%) 1.ºs cabos, 3 (8.8%) furriéis e 1 (3.0%) 2.º sargento. O número de corpos não recuperados neste período foi de 7 (20.6%). O número de Unidades Militares que contabilizaram estas perdas foi de 24. 


Quadro 4 – Da análise ao quadro supra, verifica-se que o número total de militares do Exército que morreram por afogamento no CTIG, durante o 2.º triénio (1966-1968) é de 27 (18.8% do total). 

Verifica-se, também, que desses, 25 (92.6%) eram soldados e 2 (7.4%) furriéis. O número de corpos não recuperados nesse período foi de 3 (11.1%). O número de Unidades Militares que contabilizaram essas perdas foi de 24, número igual ao período anterior (quadro 3).



Quadro 5 – Da análise ao quadro supra, verifica-se que o número total de militares do Exército que morreram por afogamento no CTIG, durante o 3.º triénio (1969-1971) é de 63 (43.7% do total). 

Verifica-se, também, que desses, 49 (77.8%) eram soldados; 11 (17.4%) 1.ºs cabos; 2 (3.2%) furriéis e 1 (1.6%) major. O número de corpos não recuperados nesse período foi de 50 (79.4%). O número de Unidades Militares que contabilizaram essas perdas foi de 18, menos 6 do registado nos anteriores trimestres (quadros 3 e 4).



Quadro 6 – Da análise ao quadro supra, verifica-se que o número total de militares do Exército que morreram por afogamento no CTIG, durante o 4.º triénio (1972-1974) é de 20 (13.9% do total). 

Verifica-se, também, que desses, 15 (75%) eram soldados e 5 (25%) 1.ºs cabos. O número de corpos não recuperados nesse período foi de 3 (15%). O número de Unidades Militares que contabilizaram estas perdas foi de 18, menos 6 do registado nos dois primeiros triénios (quadros 3 e 4) e igual ao triénio período anterior (quadro 5). 



Quadro 7 – Da análise ao quadro supra, verifica-se que o número total de militares do Exército que morreram por afogamento no CTIG (1963-1974) cujos corpos não foram recuperados é de 63 (43.8% do total).

 Quanto aos corpos não recuperados, verifica-se que a CCaç 1790, com 26 (41.3%) casos, e a CCaç 2405, com 19 (30.1%) casos, foram as Unidades Militares que contabilizaram maior número, sendo estes consequência do acidente da «Jangada de Ché-Che» em que elementos das duas Companhias de Caçadores estiveram envolvidos. Segue-se o PMort 980, com 3 corpos não recuperados, no Rio Cacheu, na «Operação Panóplia", e a (minha) CArt 3494, com dois, no Rio Geba (Xime), durante uma missão, não cumprida, a Mato Cão, situado na margem direita desse rio. Das 16 Unidades Militares que não conseguiram recuperar os corpos dos seus naufragados, 11 (17.5%) tiveram apenas um caso.

Nota:

Em função das fontes consultadas, não nos foi possível completar todas as variáveis categóricas, como é o exemplo dos locais (n/n) de alguns afogamentos. Caso alguém disponha de informações mais precisas, faça o favor de dizer.

Por outro lado, considerando que são referidos nomes de rios, que desconheço, transcritos como o indicado nos documentos oficiais, é possível que alguns deles contenham erros ortográficos. Aguardo a sua correpção.

Continua…

Fontes consultadas:

Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; Tomo II; Guiné; Livro I; 1.ª edição, Lisboa (2014); pp 16-17.
Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 8.º Volume; Mortos em Campanha; Tomo II; Guiné; Livro 1; 1.ª edição, Lisboa (2001); pp 23-569.
Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 8.º Volume; Mortos em Campanha; Tomo II; Guiné; Livro 2; 1.ª edição, Lisboa (2001); pp 23-304.

Outras: as referidas em cada caso.

Termino, agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.

Jorge Araújo.

01Abr2019.

Guiné 61/74 - P19678: Blogpoesia (615): "Serra do Pilar", "Baladas perdidas" e "A leveza do ar", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

Da Serra do Pilar desfrutam-se as melhores vistas sobre a cidade do Porto. Nesta foto, a Ponte Luiz I e o que resta da Muralha Fernandina mandada construir por D. Afonso IV, terminada no reinado de D. Fernando. À esquerda, a Sé Catedral e o Paço Episcopal. Visível, um pouco atrás, a esguia Torre dos Clérigos.
Foto e Legenda: Carlos Vinhal


1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados, entre outros, ao nosso blogue, que publicamos com prazer:


Serra do Pilar

Contraforte de Gaia, bem preso ao chão, não vá o Douro a leve ao mar.
Se armou com um quartel.
Ali especou, mirando o Porto
e a ponte que lhe passa à porta.

Sentinela atenta.
Só passa quem vai por bem.
Ali passou Isabel.
Jovem rainha.
Foi uma festa.

O Xá da Pérsia e a Farah Diba.
Já foi há tanto!...

Tanta vez, a palmilhei a pé.
De Trancoso à Sé e a Vilar.
Como bem eu lembro.
Ainda eu era jovem...

Berlim, 10 de Abril de 2019
17h22m
Jlmg

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Baladas perdidas

Perdi minhas baladas do Rio Minho, pelas terras verdes de Caminha.
Onde a floresta de pinhais fazia a sombra que nos regalava no campismo dos verões.
Onde as marés, em marcha certa, ponham à mostra meio rio.
Muitos barquitos ficam inertes sobre o lamaçal de lodo negro.

Aquele monte cinza de Santa Tecla que nunca mais pára de subir pró céu.
As esplanadas de ócio benfazejo onde se passavam ricas tardes.
Os passeios de liberdade e segurança, com a família, pelas trilhas da serra imensa.
O lendário Vilar de Mouros que, cada ano, regalava a juventude.
Quando a vida era uma luta e a família um baluarte.
Para ali íamos anos a fio, porque ninguém queria ir para outro lado...

Berlim, 10 de Abril de 2019
9h52m
Jlmg

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A leveza do ar

Mergulhados na vida, precisamos de ar, condição fatal.
Diáfano e azul, nimbado de luz, frescura de mar.
Nossos olhos sorriem. Saciados de cor.
Vibra de alegria nossa alma.
A esperança no futuro reverdece.
Ferve nosso sangue pelo corpo.
Arde em labaredas o fogo dos desejos.
Queremos viajar pelo mundo.
Ir à lua e ao sol.
Dormir numa ilha tropical.
Viver encantado na eternidade...

Ouvindo Carlos Paredes
Dia cinzento
Berlim, 13 de Abril de 2019
8h58m
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de31 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19636: Blogpoesia (614): "De S. Bento à Régua e ao Pinhão", "Desaires" e "Nostalgia", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728