quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20519: Historiografia da presença portuguesa em África (194): A eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (7): "As rotas da escravatura, 1444-1888”, por Jordi Savall (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Janeiro de 2019:

Queridos amigos,
Juntam-se últimas considerações e achegas para a interminável polémica sobre o racismo no colonialismo português. Como tem escrito o estudioso e romancista José Pedro Marques, há que contextualizar em todas as circunstâncias as caraterísticas do nosso colonialismo e fugir aos chavões de críticas desmioladas. Igualmente, na minha opinião devemos saber afrontar as práticas racistas que exercemos, em vários continentes.
Junta-se um conjunto de imagens sobre marcos de fronteira em chão Felupe, é certo e seguro que haverá surpresas, o blogue fica mais rico, como também a cultura luso-guineense.

Um abraço do
Mário


A eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (7)

Beja Santos

A instituição esclavagista vem da noite dos tempos, da captura dos vencidos que se tornam servos, mão-de-obra ou gado. Foi matéria muito delicada para as principais religiões teístas, começaram por não querer afrontar os proprietários dos seus servos, as posições polémicas virão com padres como Las Casas ou António Vieira. Houve escravatura nas naves romanas, no trabalho intelectual, na prostituição, foram práticas universais, dispomos de relatos que não se confinam à Grécia ou a Roma, nem aos mongóis nem aos potentados africanos. O tráfico negreiro assumiu novas proporções com os Descobrimentos Portugueses e com o Novo Mundo, os Estados sulistas norte-americanos dele beneficiaram e foi por causa da abolição da escravatura que se envolveram na guerra da Secessão. Discutiu-se se os negros e os índios tinham alma. E na alvorada da ciência antropológica começaram os estudos das raças e procurou-se argumentação sólida para definir as bases das raças superiores e das raças inferiores. A ascensão meteórica dos direitos humanos leva a que hoje se façam críticas completamente descontextualizadas, e nalgumas delas vem o colonialismo português, que usou o tráfico negreiro, a exploração mais despudorada desta mão-de-obra e houve práticas raciais mesmo que, como se verificou na época dos totalitarismos nazi-fascistas, nunca fomos mais longe de que num conceito completamente nebuloso da raça portuguesa, nunca ninguém teve o desplante de nos arregimentar ao arianismo, porque todos sabemos quem foram os nossos ancestrais ao longo dos milénios em que se veio a formar o português em que nos tornámos.
E curiosamente, em tantos casos do colonialismo praticado pelos portugueses juntaram-se escravos e gentes de outras origens, como vamos agora apreciar com a escravatura em S. Tomé no século XVI, de um estudo de Isabel Castro Henriques (publicado na Revista Internacional de Estudos Africanos, n.º 6-7, 1987).

Diz a autora que o processo de colonização fez apelo a uma população heterogénea: portugueses, fundamentalmente degradados, judeus castelhanos, comerciantes portugueses, castelhanos, franceses e genoveses, escravos negros da Guiné, Benim e Manicongo, assim arrancaram as plantações do açúcar, vieram depois plantas importadas.

E regista-se um regime de trabalho bem singular, e a autora cita um estudo de Francisco Tenreiro: “Os negros vinham do Benim, da Guiné e do Manicongo e o seu regime de trabalho era muito curioso. Só se aceitavam negros acasalados que tinham por obrigação trabalhar toda a semana para o senhor, excepto aos sábados que reservavam para si próprios. Com quatro dias mensais inteiramente livres pagava-se o trabalho árduo das semanas; o senhor não fazia qualquer despesa com eles com vestuário, alimentação e habitação. Eles próprios providenciavam no dia livre semanal às suas necessidades… Relacionando este regime de trabalho com as ordens dadas aos vários donatários no sentido de serem estimuladas as ligações entre brancos e negros e devendo considerar-se livres as mulheres e os seus ‘frutos’, sou levado a concluir que o africano, por esses tempos de S. Tomé, não estava sujeito a um regime de escravidão pura; era antes um servo a quem se pedia trabalho, mas a quem por outro lado se permitia uma relativa liberdade na prática dos seus hábitos”.

Se bem que houvesse ordens régias proibindo as relações dos portugueses com mulheres negras, eram ignoradas, constituiu-se um grupo mestiço, que terá um papel fundamental na reprodução do sistema esclavagista e a autora conclui que esta singularidade da escravatura em S. Tomé deve ser analisada não à luz de comparações com situações posteriores mas de acordo com a realidade económica do século XVI em que o escravo africano é fundamentalmente procurado como mão-de-obra e não ainda, como acontecerá um século mais tarde, como mercadoria cuja transação iria permitir lucros fabulosos. A matéria da escravatura chega aos nossos tempos e é relembrada, até porque há novas práticas de servidão, roubo de seres humanos para novas rotas da escravatura, para a prostituição e até o tráfico de órgãos humanos. A arte, a todos os níveis, colabora nessa lembrança. Lembro o monumental trabalho de Jordi Savall, “As rotas da escravatura, 1444-1888”, à frente da Capela Real da Catalunha, Hespério XXI, até nele se refere o pungente relato de Zurara, na Crónica do Descobrimento e a Conquista da Guiné sobre a chegada de 235 escravos a Lagos, em 1444. Jordi Savall lembra que há atualmente mais de 21 milhões de escravos, rememora o passado de todo este tráfico, lembra a costa ocidental africana, mas também o mediterrâneo, a escravatura ao longo dos séculos, dá-nos a sua cronologia, e depois toda a música escolhida tem a ver com estas rotas. Esta infame mercadoria que tem mais de 5 mil anos, que já existia em África antes das expedições massivas de portugueses e de espanhóis traduz-se em música para dar a conhecer os dados essenciais de tão funestos acontecimentos em que a música assume uma surpreendente vitalidade e emoção graças a estas músicas conservadas das antigas tradições dos descendentes dos escravos: desde as costas da África Ocidental, do Brasil, do México, das Caraíbas, Colômbia e Bolívia, mas também do Mali, de Marrocos e Madagáscar, um diálogo com as formas musicais hispânicas inspiradas nos cantos e bailes dos escravos e dos indígenas, em consonância com as tradições africanas, mestiças ou índias.
E escreve:  
“Ao mesmo tempo que rendemos uma emotiva homenagem a este período sombrio através das músicas dos descendentes dos escravos, também queremos apelar para que cada um de nós tem o dever de reconhecer a extrema inumanidade e os terríveis sofrimentos causados a todas as vítimas daquele horrível comércio”.
E não deixa de observar que a tragédia continua para milhões de seres humanos de todas as idades, a nossa tolerância devia ser zero e este livro CD-DVD procura contribuir para a continuação desse combate.

Aqui se põe termo a uma curta série de textos em torno do colonialismo e das práticas raciais portuguesas, não esquecendo que o racismo assume várias caras, em que a discriminação e o preconceito são as mais evidentes.

É com enorme satisfação que se junta o esplêndido contributo da doutoranda Lúcia Bayan que gentilmente oferece ao blogue um conjunto de imagens referentes a marcos fronteiriços na região do seu estudo, o Chão Felupe, seguramente são imagens que vão impressionar muitos de nós. E a Lúcia Bayan, como nos cabe, se agradece sentidamente o valor de tal oferta, é não só um enriquecimento para o nosso blogue como para a cultura luso-guineense.

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Marcos fronteiriços em imagens, Lúcia Bayan

Como sabemos, os marcos fronteiriços identificam limites de uma linha de fronteira terrestre entre países. São geralmente feitos de pedra ou betão, com a identificação e data de colocação gravadas, e colocados em pontos críticos da linha de fronteira.

Por razões políticas e de segurança, a fronteira entre a Guiné e o Senegal foi demarcada tardiamente. Por um lado, Portugal, em Maio de 1886, cedeu a Casamansa à França em troca do apoio deste país para a pretensão portuguesa ao território do Mapa Cor-de-Rosa, e da região de Cacine, no Sul. Os trabalhos de delimitação da fronteira de Casamansa iniciaram-se em 1888, mas só terminaram em 1905, cerca de 20 anos após o acordo entre Portugal e França. Sobre esta questão ver Esteves, Maria Luísa (1988), A Questão do Casamansa e a Delimitação das Fronteiras da Guiné, Lisboa, IICT-INEP.

Por outro lado, os Joola sempre dificultaram a entrada no seu chão. Primeiro aos exploradores e comerciantes e depois às autoridades coloniais. Lembremo-nos do célebre "desastre de Bolor", em 30 de Dezembro de 1878. René Pélissier, em História da Guiné, portugueses e africanos na Senegâmbia 1841-1936, (1989), Lisboa, Estampa, apresenta uma longa lista de acções militares portuguesas em chão Felupe, com vitórias e derrotas para ambos os lados, sendo que a última foi em Março de 1935.

Depois de "pacificados", os Felupe adoptaram a "revolta pacífica", palavras de Pélissier. Um bom exemplo é a história, que já relatei, sobre o marco colocado perto de Suzana, nas comemorações do V Centenário da chegada de Portugal à Guiné (1946), pressupostamente no local onde terá existido a primeira tabanca felupe, denominada Sabotul.

A linha fronteiriça entre o Senegal e a Guiné-Bissau atravessa o chão de dois subgrupos Joola, os Baiote e os Felupe. Os limites do Chão das sociedades tradicionais africanas não são fixos, mas podemos dizer que a linha fronteiriça que atravessa este Chão começa com o marco n.º 158, situado a cerca de 7 km a sul de São Domingos, e o último é o marco n.º 184, junto ao Cabo Roxo, sendo que o marco n.º 175 separa o Chão destes dois subgrupos Joola. Ou seja, do marco n.º 158 ao marco n.º 175, a linha fronteiriça atravessa Chão Baiote e, deste marco até ao marco n.º 184, atravessa Chão Felupe. O meu trabalho de terreno permitiu-me conhecer e atravessar por diversas vezes a linha fronteiriça em zonas juntas a alguns destes marcos, mais precisamente os marcos 173, 175, 180 e 184. A meu ver, as fotos destes marcos, além do seu valor simbólico, mostram a história e o valor social que adquiriram.

O marco 184, instalado junto ao Cabo Roxo, foi recuperado durante a guerra colonial, como se pode ver na inscrição.

Após a independência da Guiné-Bissau, a zona onde está este marco, bolanhas a cerca de 1 km a sul de Kabrousse, início da zona turística do Senegal, passou a ser gerida, não oficialmente, mas na prática, por este país. A delimitação fronteiriça foi mesmo discutida entre Senegal e Guiné-Bissau, durante as disputas, entre estes dois países, para a criação da Zona de Exploração Conjunta (ZEC) de petróleo, criada em 1993.

É uma zona calma e com pouco trânsito de pessoas.


Do marco 180 pouco resta! É também o mais difícil de encontrar, porque está escondido no mato e porque poucos se lembram dele!
Está situado junto de um caminho, muito percorrido por pessoas a pé, de bicicleta e de moto, que liga as tabancas Basseor, na Guiné-Bissau, e Kahème, no Senegal.

Para os Felupe estas duas tabancas são apenas dois bairros da tabanca Hassuka, a capital religiosa Felupe. Hassuka é constituída por estas duas tabancas e mais Sucujaque, Tenhate e Caroai, na Guiné-Bissau.

Basseor e Kahème, distam cerca de 1,8 km e, como bairros, há uma enorme movimentação entre eles. Além disso, a imagem mostra também que este marco está numa zona de conflito.
De facto, em 22 de Agosto de 1991 houve aqui um grande conflito. Perto de Kahème existia um quartel do exército senegalês que foi atacado pelo MFDC e por habitantes desta tabanca. Em retaliação o exército senegalês destruiu Kahème, matando e prendendo muitos homens. Os sobreviventes fugiram para Caroai e Sucujaque. Kahème permaneceu abandonada até 2012, ano em que a população começou a regressar, para ser possível realizarem a cerimónia de iniciação masculina, o Bukut.


O marco 175 está junto a um caminho que liga Budjim, na Guiné-Bissau, a Youtou, no Senegal, duas tabancas a cerca de 4 km, em linha recta, uma da outra. É uma zona de bolanhas e o caminho que liga estas duas tabancas é, em grande parte, feito pelas divisórias das bolanhas. Por isso, este caminho é, quase exclusivamente, feito a pé pelos agricultores destas bolanhas.


O marco 173 está situado em Chão Baiote, junto à tabanca Kassu, na praia de um dos muitos cursos de água da Baixa Casamansa. A linha de fronteira atravessa Kassu, deixando um bairro na Guiné-Bissau e outro no Senegal. O marco está instalado num espaço aberto, apenas frequentado por vacas que, para fugirem às moscas, buscam as zonas perto de água.

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Notas do editor:

Por lapso do editor não foi publicado em tempo útil o 7.º poste de "A eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português". Aqui fica a reparação com as nossas desculpas ao Mário Beja Santos.

Postes anteriores de:

6 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20318: Historiografia da presença portuguesa em África (182): A eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (1): Questionário Etnográfico elaborado pelo Capitão Vellez Caroço (Mário Beja Santos)

13 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20341: Historiografia da presença portuguesa em África (186): A eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (2): "Portugal Vasto Império", por Augusto da Costa (Mário Beja Santos)

20 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20366: Historiografia da presença portuguesa em África (187): A eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (3): "Racismos, Das Cruzadas ao Seculo XX", por Francisco Bethencourt (Mário Beja Santos)

27 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20389: Historiografia da presença portuguesa em África (188): A eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (4): "Portugueses e Espanhóis na Oceânia", por René Pélissier (Mário Beja Santos)

4 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20414: Historiografia da presença portuguesa em África (190): A eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (5): "O Império Marítimo Português”, por Charles Ralph Boxer; Edições 70, 2017 (Mário Beja Santos)

11 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20440: Historiografia da presença portuguesa em África (191): A eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (6): "O Império Marítimo Português”, por Charles Ralph Boxer; Edições 70, 2017 (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 25 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20499: Historiografia da presença portuguesa em África (193): Relatório Anual do Governador da Guiné (1921-1922) - Velez Caroço e um relato incontornável para a história da Guiné (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20518: Parabéns a você (1733): Margarida Peixoto, Amiga Grã-Tabanqueira - Penafiel

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Nota do editor

Último poste da série de 31 de Dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20515: Parabéns a você (1732): Adelaide Barata Carrelo, Amiga Grã-Tabanqueira

terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Guiné 61/74 - P20517: In Memoriam (359): Carlos Marques dos Santos (1943-2019), um camarada afável e generoso, um "viriato" da CART 2339 (Fá Mandinga e Mansambo, 1968/69), um veterano, "futrica", da Tabanca Grande, e a quem dizemos "adeus, camarada, até qualquer dia!"


Coimbra > Santo António dos Olivais > Aguarela da igreja paroquial. Autoria: Sofia Santos, s/d, filha do Carlos Marques dos Santos (1943-2019), com formação superior em pintura.

Foto ( e legenda): © Carlos Marques dos Santos (2006). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

O CMS no destacamento do rio Udunduma
(c. junho/julho de 1969)
1. Alguns depoimentos / comentários de camaradas nossos, no Blogue e no Facebook, que conheciam e estimavam o Carlos Marques dos Santos (1943-2019), ex-fur mil, CART 2339, "Os Viriatos" (Fá Mandinga e Mansambo, 1968/69) (*)


(i) Luís Graça:

Bolas!, o Carlos ia fazer os 77 anos no próximo dia 2 de janeiro... Há já uns anos que eu não tinha
notícias dele... Sabia, sim, que tivera em tempos uns problemas de saúde, de coração, que o afastaram do nosso convívio... Depois da Ameira, de Pombal, da Ortigosa...

É um duro golpe para todos nós, camaradas da Guiné, em geral, e para os camaradas, em particular, que o conheceram em Bambadimca e em Mansambo (em 1968/69)... Para mim, que convivi algumas vezes como ele quando ia Coimbra, sua terra natal, em trabalho, na Faculdade de Ciências e Tecnologia... Conheci-o, de resto, na Ameira, em 14/10/2006: foi ele quem organizou, com o Paulo Raposo, o nosso I Encontro Nacional... E também ajudou o Vitor Junqueiro a organizar o segundo, em Pombal, no ano seguinte.

Tinha um grande amor pela sua terra, Coimbra, e em especial pelo seu "chão", a freguesia  de Santo António dos Olivais. Os nossos camaradas Victor David (CCAÇ 2405) e o Carlos Marques Santos (CART 2339) eram primos, nados e criados em Santo António dos Olivais onde tradicionalmente havia uma rua dividida pelo famoso "paralelo 98": uma linha imaginária que nenhum estudante podia transpôr, sob pena de sofrer as devidas consequências...

Era, por outro lado,  um homem de grande afabilidade. E eu posso testemunhar o carinho ele que tinha pela família (a esposa Teresa, as filhas Inês e Sofia...). Que dizer-lhes, neste grande momento de dor ? Que o nosso coração está com elas... e que o Carlos não ficará na vala comum do esquecimento... Luís Graça

(ii)  Carlos Vinhal:

Tenho, como data de nascimento do Carlos,  o dia 2 de Janeiro de 1943, embora ele tenha embarcado para a Guiné em 1968, portanto um pouco tarde. Talvez tenha pedido algum adiamento.Já contactei via mail a sua filha Inês a quem, em nome da tertúlia e dos editores, apresentei as nossas condolências.

(iii) Jorge Picado:

A todos os familiares deste nosso camarada Carlos Marques Santos, mais um que nos deixa, os meus sinceros pêsames.

E assim vão acabando os ex-combatentes da Guerra Colonial, para descanso de quem nos (des)governa.

Até um dia, camarada!

(iv) Jorge Cabral:

Os meus mais profundos sentimentos! Conheci-o ainda na Guiné. Piriquito, fui render o seu Pelotão na Ponte do Udunduma, no fim de Junho de 1969. A minha total solidariedade com a Família e com os Amigos!

(v) José Martins:

É com tristeza, mas infelizmente sem surpresa, [que damos conta]  da partida dos camaradas que presamos e com quem, mesmo à distância, convivemos.

Foi aqui, neste espaço virtual, que nos conhecemos, nos respeitámos e passamos a ser camaradas e, mais que tudo isso, AMIGOS.

Vivemos na mesma terra lá longe e foi isso que nos uniu. Em breve voltaremos a encontrar-nos.

Condolências à família, amigos e camaradas.

(vi) Jorge Araújo:

À família e amigos do nosso camarada Carlos Marques envio as minhas sentidas condolências pela sua morte.

Descansa em paz, camarada.

(vii) Juvenal Amado:

É sempre difícil saber que partiu mais um elemento desta grande família e mais difícil quando parte alguém com quem privamos nalgumas ocasiões. Estive com ele à conversa na Tabanca do Centro onde ouvi as suas estórias da sua comissão. Lamento saber que se calou para sempre. à família enlutada envio os meus mais sinceros sentimentos.

(viii) Hélder Sousa:

É com tristeza que agora mesmo tomei conhecimento do falecimento do Carlos Marques Santos
O meu contacto com ele foi logo que me apresentei aqui na "Tabanca",  para o Encontro em Pombal [, em 2007]. Foi com ele que me "mandaram" contactar para poder integrar esse Encontro.

Portanto, em pessoa, foi ele o primeiros "rosto" deste local de memórias. E agora é de memórias que estamos falando. Que a memória do Carlos não se perca!

Sentidos pêsames.

(ix) Virgínio Briote:

Que é que se há-de dizer quando se perde um Camarada?

Condolências á Família.

(x) Albano Costa:

Encontrei-me com ele através do basquete e comunicamos também através do nosso blogue. Foi uma surpresa esta triste notícia. Os meus sentimentos à sua família.


2. Reprodução de um dos textos, mais antigos,  do Carlos Marques dos Santos (**)

Sendo o meu berço de nascimento [, Santo António dos Olivais, Coimbra]  e porque na altura almoçámos juntos lá perto (eu, tu e o Victor David) envio a título pessoal uma imagem real da Igreja  [, foto à esquerda,] e uma aguarela feita pela minha filha Sofia, licenciada em Pintura. Esta aguarela tem alguns anos e foi realizada ainda antes de entrar em Pintura [, vd imagem acima].

Tenho lido tudo o que se tem escrito [, no blogue]. É imparável e riquissimo o teu / nosso  blogue, mas tal como tu, já quase não consigo organizar ideias e novos documentos. Vou vêr se consigo participar, ponto por ponto, com algo de interesse.

A minha história militar - que é de 41 meses de tropa (hoje falava-se de no mínimo 36 meses), pois fui mobilizado no último dia possível e a minha classificação indiciava que iria para Timor ou S. Tomé - é talvez algo diferente, como já te disse, porque nós vivemos no mato, em Mansambo, dentro de arame farpado, sem populações, sem água, sem luz, picando a estrada para irmos a Bambadinca durante 17 kms, muitas vezes com o apoio dos obuses 105 mm.

Recordo que um dia, numa coluna de reabastecimento de materiais para a edificação de Mansambo, foram precisos 2 (dois) dias... Era na época das chuvas...

17 kms em 2 dias? Quem, a não ser nós, acreditaria nisto?!

Ficámos abrigados numa tabanca no meio do percurso, com toda a coluna atascada. Transportávamos 30.000 kgs de diverso material de construção.

Apanhámos, com o consentimento dos nativos, os frangos disponíveis e fizemos churrasco, temperado com as pastilhas de desinfecção da água (seria Sal?).

Digo com o consentimento, porque houve alturas em que não havia consentimento nenhum. Com os Balantas, de Fá de Baixo, era correr atrás dos leitões, apanhá-los e largar para um churrasco.

Enfim, experiências de vida.

Um abraço, Luís,
CMS

3. Comentário de Luís Graça:

Escrevi em 7 de fevereiro de 2006: 

(...) "Estive hoje em Coimbra, nos Olivais, com o nosso camarada Carlos Marques dos Santos, ex-furriel miliciano atirador de artilharia, da CART 2339 (Mansambo, 1968/69), bem com o seu primo, o Vitor David, que foi alferes miliciano da CCAÇ 2405 (Galomaro, 1968/69).

"Este último prometeu entrar para a nossa tertúlia e esclarecer alguns pontos (polémicos) da travessia do Corubal, no Cheche, que esteve na origem na tragédia do dia 6 de Fevereiro de 1969, já aqui ontem evocada. O Vitor não participou na Op Mabecos Bravios, ficou no aquartelamento com o seu grupo de combate, mas assistiu, com a angústia na alma, à recepção, na sala de cripto, das mensagens com a lista dos mortos...

"Proporcinou-se estar com estes dois camaradas, que tiveram a gentileza de me ir buscar e levar ao comboio, estação de Coimbra-B (...)  Almoçámos juntos, matámos saudades, juntos, dos tempos da Guiné e até mandámos vir rancho (!) para o almoço.

"Prometi voltar aos Olivais onde, nos bons velhos tempos, os futricas impunham a lei aos estudantes, impedindo-os de ultrapassar o famoso paralelo 98... Por sorte o serviço (académico) que eu tinha a fazer era para aqueles lados, na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Espero lá voltar mais vezes, até por que fiquei com enorme pena de não poder visitar a belíssima igreja de Santo António dos Olivais. Tanto o Carlos como o Vitor são excelentes cicerones e têm o privilégio de continuar a viver no chão que nos viu nascer e criar. "(...)

 PS - "Futrica" era o nome que os estudantes de Coimbra davam a todos aqueles que não eram estudantes...

Guiné 61/74 - P20516: Pequeno dicionário da Tabanca Grande, de A a Z (8): edição, revista e aumentada, Letras I, J, K e L


Guiné > Região do Boé > Madina do Boé > CCAÇ 1589/BCAÇ 1894 (Nova Lamego e Madina do Boé, 1966/68). > Uma Kalash, ou Aka, capturada ao PAIGC... Foto do álbum fotográfico do nosso camarada Manuel Caldeira Coelho, ex-fur mil trms, CCAÇ 1589 (Nova Lamego e Madina do Boé, 1966/68).

Foto (e legenda): © Manuel Coelho (2011). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região do Cacheu > Teixeira Pinto > c. 1971/73 A à esquerda, o alf mil 'comando' da 35ª CCmds Rui Andrade, e à equerda o alf mil cav Francisco Gamelas, cmdt do Pel Rec Daimler 3089..

Foto (e legenda): © Francisco Gamelas (2016). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].



Letra I



IAO - Instrução de Aperfeiçoamento Operacional

IMVF - Instituto Marquês de Valle Flor: criado em 1951 como instituição privada de utilidade pública, o IMVF é uma Fundação para o desenvolvimento e a cooperação, tendo iniciado atividade como ONGD em 1988 em São Tomé e Príncipe; a partir dos anos 90 expandimos a sua ação a outros países, com predominância aos de língua oficial portuguesa, e alargou as suas áreas de atividade; é hoje considerada uma entidade de referência nos domínios da cooperação, da cidadania global e da reflexão sobre o desenvolvimento.

IN - Inimigo; guerrilheiros e população sob o seu controlo (gíria)

INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (Guiné-Bissau), que sucedeu ao Centro de Estudos da Guiné Portuguesa (que  publicou durante 28 anos, entre 1946 e 1973, 110 números normais do Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, e um número especial [, este, em outubro de 1947].Esta publicação periódica é considerada  de excecional interesse para o conhecimento científico da presença histórica portuguesa na Guiné-Bissau, e portanto para a história do país antes da independência. Não tem paralelo em outras publicações nos outros territórios ultramarinos portugueses. Foi criada ao tempo do governador geral Sarmento Rodrigues.

Infante - Militar de infantaria (gíria)

INT - Intendência

Ir no mato - Fugir (ou ser levado) para uma zona controlada pelo PAIGC (crioulo)

Irã - Ser sobrenatural que, para os animistas (balantas, papéis, manjacos, etc.), habita as florestas (e em especial os poilões) (crioulo)

Irã-cego - Jiboia (crioula)

IRAN - Acrónimo de "Inspect and Repair As Necessary" (FAP)

ISCSPU - Antigo Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina, hoje ISCSP - Instituto de Ciências Sociais e Políticas. Tevem, antes do 25 de Abril de 1974, um papel importante na formação de antropólogos e administradores coloniais.



Letra J


Jacto do Povo - Foguetão 122 mm; Graad (PAIGC, gíria)

Jagudi - Abutre (crioulo)

Jamara (lê-se:djarama) - Obrigado (fula)

Jambé (lê-se djambé) - Instrumento de percussão africano, em forma de cálice invertido (crioulo)

Jornal de caserna - Jornais das unidades ou subunidades, em geral policopiados (, reproduzidos a stencil).



Letra K

K3 -lugar mítico e muito perigoso, do tempo da guerra colonial, assim designado  por se localizar a 3 quilómetros a sul de Farim, na estrada Mansabá-Farim, e que era um local onde, além deste itinerário principal, se cruzavam outros, como era o caso do "corredor" do Olossato e Bissorã, bem como o da mata do Morés, ocupada pelo PAIGC.
  
Kacur - Cachorro (crioulo)

Kalash - Espingarda Automática AK 47 (PAIGC)

Kalashnikovmania - Pode ser definido como uma forte atracção pelo armamento do... IN. No TO da Guiné, incluía kalash e outras armas. Era "manga de ronco" usar ou exibir armas apreendidas ao PAIGC. Eram verdadeiros "troféus de caça". 

Trata-se de um neologismo, inventado pela Tabanca Grande, que paga direitos de autor; um dia irá figurar nos novos Dicionários da Língua Portuguesa, como muitos outros termos que usávamos na guerra: por exemplo, dila=dilagrama, LGFog=lança-granada foguete, ameixa=granada...

Kasumai - Saudação em dialecto felupe

Kora - Instrumento musical mandinga, de cordas, tipo cítara, inventado pelos antepassados do mestre Braima Galissá (músico do Gabu, a viver em Portugal) (crioulo). Em português, está grafado como "corá", do francês "kora", oriundo do mandinga).



Letra L


La Lys (Batalha de) - Nome por que foi conhecida a grande  ofensiva militar das tropas alemãs, de 7 a 29 de abril de 1918), focada ao norte da fronteira franco-belga, na região da Flandres, durante a Primeira Grande Guerra,e que teve consequências brutais, para o Corpo Expedicionário Português (CEP), comandando pelo gen Gomes da Costa. O colapso da da 2ª divisão do CEP aconteceu na madrugada de 9 de abril de 1918. 


Lassas - (i) Abelhas selvagens; (ii) alcunha por que era conhecido, pelo PAIGC, o pessoal da CCAÇ 763 (Cufar, 1965/66)

Lava-tudo - Referência às lavadeiras que, além de lavarem e passarem a ferro a roupa dos militares, também faziam "favores sexuais" (Gíria). Vd. "Parte catota", "parte punho"...

LDG - Lancha de Desembarque Grande (Marinha)

LDM - Lancha de Desembarque Média (Marinha)

LDP - Lancha de Desembarque Pequena (Marinha)

Levirato - 
Lei, de origem hebraica, que obrigava um homem a casar com a viúva de um irmão quando do defunto não houvesse herdeiro; era (e ainda é) seguida por povos mulçulmanos, como os fulas.

Lerpa - Jogo de cartas, geralmente a dinheiro (gíria)

Lerpar - (i) Perder (à lerpa); (iii) apanhar um castigo; (iii) morrer (gíria)

Levar com os patins - Demissão de comandante, em geral de batalhão, por decisão de Spínola (por ex., "O Pimbas levou com os patins"; "Pimbas" era o nominho ou alcunha do 1º comandante do BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70, ten cor Pimentel Bastos).


LFG - Lancha de Fiscalização Grande (Marinha)

LGFog - Lança-granadas-foguete, bazuca

Lifanti - Elefante (crioulo)

Lion Brand - Conhecida marca de repelente de mosquitos 

LM - Laboratório Militar (que fornecia o essencial da farmácia militar)

Lobo Mau - Helicanhão (FAP) (gíria)

Lubu - Hiena (crioulo)

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Nota do editor:

Último poste da série > 28 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20506: Pequeno dicionário da Tabanca Grande, de A a Z (7): edição, revista e aumentada, Letras F, G e H

Guiné 61/74 - P20515: Parabéns a você (1732): Adelaide Barata Carrelo, Amiga Grã-Tabanqueira

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Nota do editor

Último poste da série de 27 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20502: Parabéns a você (1731): José Pedro Neves, ex-Fur Mil Op Esp da CCAÇ 4745 (Guiné, 1973/74)

segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Guiné 61/74 - P20514: Notas de leitura (1251): “Dias Sem Nome, Histórias soltas de um médico na guerra da Guiné”, por João Trindade; By the Book, edições especiais, 2019 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Dezembro de 2019:

Queridos amigos,
Sem nenhum desprimor para tudo quanto nos conta sobre Bedanda e Aldeia Formosa, é na sua tormentosa estadia em Guidage que João Trindade redige uma das mais pungentes peças literárias de toda a guerra, doravante deve ser lido e cotejado com a Crónica dos Dias de Guidage, o pungente relato de Salgueiro Maia, que por ali cirandou naquele cenário dantesco.
João Trindade não tinha mãos a medir, foram largas dezenas de flagelações, inúmeros feridos, mortos para os quais foi imperativo fazer um cemitério de ocasião, tal era a ameaça da cólera. Como numa oratória, a sua voz, as suas confissões íntimas pairam sobre aquela atmosfera que ele partilha, onde ganha a possível distância e depois volta ao seu mister, salvar vidas, como aquela desgraçada mulher que perdeu as pernas e que ele veio reencontrar em Bissau, hossanas a quem sobreviveu àquele teatro de horrores.
E estamos a seu lado quando as lágrimas lhe saltam perante aqueles jovens mortos, aquelas lágrimas eram a mais afetuosa das condecorações por quem dá a vida e dela é ceifado, sabe Deus porquê.

Um abraço do
Mário


O médico que presenciou os dias infernais de Guidage (2)

Beja Santos

As páginas capitais desta literatura memorial de João Trindade prendem-se com a sua presença em Guidage, em maio de 1973. Ele já nos contou a sua ida a Mafra, a sua preparação descolorida em Lisboa, estava no Hospital Militar quando recebeu guia de marcha para a Guiné, desembarca e vai para Bedanda, presta serviço também no Quebo e quando é transferido para Bissau lembra as suas consultas em Bubaque e no Hospital Civil de Bissau. É neste entrementes que o seu livro “Dias Sem Nome, Histórias soltas de um médico na guerra da Guiné”, por João Trindade, By the Book, 2019, caminha para uma atmosfera apocalítica, Guidage. Viaja até Binta, segue-se uma coluna, havia que passar a bolanha de Cufeu para chegar à povoação sitiada. Estão a caminho, ouvem-se os bombardeamentos.  
“O cenário passava em câmara lenta com partitura sonora monótona e por vezes assustadora. O sol já nos acompanhava havia longas horas, a crescer, a subir, a tornar insuportável a roupa colada ao corpo.
Começámos, entretanto, a notar um cheiro esquisito, depois fétido, logo a seguir nauseabundo. O lenço para nos proteger a boca do pó serviu também para nos aliviar, um pouco, do mau cheiro. Estávamos perto da bolanha onde duas ou três colunas tinham sido atacadas, tiveram de regressar e deixaram alguns mortos. Esses mesmos que agora víamos numa clareira da mata, disformes, cobertos de insetos, inchados, irreconhecíveis e fonte do terrível odor da morte que os ceifara havia dias”.

Os sapadores não têm mãos a medir, progride-se sobre uma terrível tensão até que se dá o encontro com os fuzileiros. São recebidos em Guidage com a fuzilaria do PAIGC. O médico surpreende-se com o agitado comandante da companhia sediada em Guidage, completamente desnorteado, precisou de ser acalmado.  
“Pensei em tanta coisa antes de adormecer! Pensei que o 13 de maio de 1973 poderia vir a ser o dia de uma fé renascida, pensei nas duas filhas que queria ver crescer, na minha ação e postura como médico, de auxílio, abnegação, entrega, sem desfalecimento, de apoio na desventura dos menos afortunados. Acordado, enfrentei o inevitável; o dia seguinte. Nasceu então um novo dia e com ele o início de uma outra aventura longa e difícil de mais dezassete dias”.

O que João Trindade nos transmite são os sobressaltos de viver numa atmosfera de cerco, rodeado de gente exausta, feridos de todas as qualidades e mortos que aguardam urnas. Fala dos morteiros, do silêncio ofegante, do pânico instalado dentro daquele arame farpado.
“Guidage, só no período em que lá estive, foi flagelada quarenta e duas vezes. Tornou-se um verdadeiro campo de desesperos e de terrores. Lembro episódios dispersos, indefinidos, desarrumados. Um dos quais que ainda perdura é o daquela mulher que me trouxeram da tabanca sem as duas pernas. Foi ao mato, inadvertidamente, contrariando ordens e conselhos, a buscar alimentos da horta para o seu homem e seus filhos. Pisou uma mina. Não morreu. Embrulhada em panos coloridos de estampas e sangue, ao colo do marido, com cara de ódio, gemia em sons contínuos e lancinantes. Não gritava, gemia apenas. E os seus gemidos faziam as nossas almas gemerem também. No rudimentar posto médico sedei-a com o que tinha na farmácia, pusemos um soro glicosado a correr rápido e limpámos, demoradamente, os coutos cheios de terra, pequenas esquírolas ósseas e folhas de arbustos que serviram do primeiro penso que quem a socorreu decidiu utilizar (…) Vim a encontrá-la mais tarde no Hospital Civil, operada a preceito, numa cama de enfermaria, tendo na face um sorriso a meia haste. Como se pode esquecer isto?”.

É um médico que não tem mãos a medir, os feridos e mortos não paravam de aumentar, as dificuldades do socorro médico eram enormes e indescritíveis. “Não havia antibióticos nem analgésicos, esgotaram-se em poucos dias, não havia material esterilizado nem processo de o esterilizar. Não havia caixões, não havia madeira nem solda para os fazer e fechar, pelo que se criou um necrotério num pequeno armazém existente junto ao arame farpado. Tratámos cada cadáver com o que foi possível para minorar os cheiros da degradação. Mais não podíamos oferecer àqueles bravos rapazes na flor da vida. As nossas lágrimas foram as suas primeiras condecorações”.
É neste contexto que surge a notícia da operação “Ametista Real”.
Que lhe ficou vincada na memória:  
“Recordo, com uma imagem bem nítida, a entrada pela porta de armas do quartel de Guidage, dos militares regressando da operação. Arrastando pernas e arma, cabeça caída, olhos no chão, passo lento de exaustão. A cada um, o seu comandante dizia palavras de orgulho e de estímulo. Fui chamado para junto das forças de comando para assistir à entrada dos soldados. Mas um deles vinha de cabeça bem erguida, orgulho estampado na cara, passo de militar convicto. E o seu comandante, chamando-o.
- Foste um herói Mamadu Baldé e, com a concordância e autorização do nosso Comandante, promovo-te, neste momento, pela tua ação corajosa e decisiva em combate, a Alferes do Exército Português.
E, pedindo-me licença, retirou-me os meus galões e colocou-os nos ombros do seu guerreiro”.

João Trindade não esquece o apoio dado pela Companhia de Comandos 121:  
“Tiveram baixas, não muitas, mas que demonstraram as duras ações em que estiveram a combater. Recolhi os seus mortos e juntei-os a todos os outros. Um deles, porque entrou com vida no quartel, morreu-me nos braços. Um cheiro fétido exala por toda a Guidage, os riscos à saúde pública são mais do que óbvios, está-se na eminência de uma epidemia de cólera. Construiu-se um cemitério provisório, os paraquedistas deram muita resistência, não queriam deixar os seus camaradas ali enterrados. Desenhámos e localizámos, com azimutes rigorosos, os locais onde cada cadáver foi enterrado com a respetiva identificação.
Embrulhámos cada corpo em mantas de oleado de tendas, sepultámo-los e a cada campa coube uma tosca cruz de madeira. As honras militares, os soldados, respeitosa e comovidamente perfilados e as salvas de tiro da praxe ainda hoje me arrepiam a pele e enchem os olhos de lágrimas”.

Os ataques a Guidage terminaram no fim do mês de maio, João Trindade regressa sobre a proteção dos fuzileiros e paraquedistas, vêm os feridos e os mortos mais recentes. Em Binta embarcam em helicópteros. João Trindade entra esgotado no Hospital Militar 241.

“Fiquei internado dois dias. Chorei lágrimas retidas de sustos e medos interiorizados. Respirei alívios. E rezei. Agora, sim. Lembro-me bem. Rezei e agradeci tudo.
Fiquei a saber, nesta sofrida experiência da minha vida militar, que um homem, cada um de nós, supera tudo e agarra-se à vida quando não pode decidir nem fazer mais nada”.

E regressou à vida hospitalar, recauchutou-se, volta a descrever episódios e peripécias sobre os doentes que lhe chegam em condições deploráveis. E um dia regressa a Lisboa. As suas memórias também passam pelas peripécias no transporte aéreo, pelas amizades feitas.
Obra profusamente ilustrada, a ver se o autor tem a generosidade de nos facultar algumas delas.
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Notas do editor

Poste anterior de 23 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20490: Notas de leitura (1249): “Dias Sem Nome, Histórias soltas de um médico na guerra da Guiné”, por João Trindade; By the Book, edições especiais, 2019 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 27 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20504: Notas de leitura (1250): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (38) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P20513: In Memoriam (358): Carlos Marques Santos (Coimbra, 1943-2019), ex-Fur Mil Art da CART 2339 (Mansambo, 1868/70)

IN MEMORIAM

Carlos Marques Santos (1943-2019)


 Carlos Marques Santos
Ex-Fur Mil Art da CART 2339 (Mansambo/Guiné, 1968/1970)


Soube do falecimento do nosso amigo e camarada de armas Carlos Marques Santos no facebook, e confirmei através da sua filha Inês Santos que prontamente respondeu a uma mensagem que lhe enviei no sentido de confirmar o triste acontecimento.

O Corpo do Carlos estará a partir das 15 horas de hoje em Câmara Ardente na Capela de Santo António dos Olivais, em Coimbra, onde amanhã, pelas 11 horas, será celebrada Missa de Corpo Presente, seguindo-se o funeral.

Em nome da tertúlia e dos editores deste Blogue, apresento à família do nosso amigo Carlos Marques Santos, especialmente à sua esposa Teresa, filhas, netos e demais familiares, as mais sentidas condolências.

O Carlos apresentou-se à tertúlia em Dezembro de 2005 - P380 de 28 de Dezembro. Foi, portanto, um dos primeiros membros da nossa Tabanca Grande. Tem mais de 9 dezenas de referências no nosso blogue.  Foi também um dos históricos do nosso I Encontro Nacional, na Ameira, em Montemor-o-Novo, em 2006, de que ele foi o organizador.

Bambadinca, 1969 > Carlos Marques Santos, à esquerda, na fila de trás.

Bambadinca, 1969 > Carlos Marques Santos em primeiro plano

Mansambo > Cumprimentando o Régulo da Tabanca

Penafiel, 2008 > Convívio da CART 2339 > Carlos Marques Santos, ao centro, na segunda fila.

Encontro da Tabanca Grande, Ortigosa, 2008 > Carlos Marques Santos e Mário Beja Santos
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20397: In Memoriam (357): Eduardo Jorge Pinto Ferreira (1952-2019): missa do 7º dia, na igreja do Vimeiro, Lourinhã, domingo, 1 de dezembro, às 11h00... Testemunhos do filho Rui Ferreira (Inglaterra) e dos amigos Rui Chamusco (Malcata, Sabugal; e Lourinhã) e João Crisóstomo (A-dos-Cunhados, Torres Vedras; e Nova Iorque)

Guiné 61/74 - P20512: 15 anos a blogar, desde 23/4/2004 (16): Pierre e Ivette Fargeas, em viagem de heli AL III a Bafatá, pilotado pelo Jorge Félix, em 1969

1. Pierre Fargeas tem uma escassa meia-dúzia de referências no nosso blogue.

A malta da FAP que esteve na BA 12. Bisslanca, entre 1969 e 1974, sabe de quem é que eu estou a falar.  

O Pierre Fargeas, nascido em 1932, era o técnico francês da Sud-Aviation, a  fábrica dos heli Alouette III, que prestava assistência a estas aeronaves. [ Foto aqui à esquerda a ser condecorado, em 1970, pelo cor pilav Diogo Neto: imagem publicada no blogue Especialistas da BA 12. Guiné 65/74.]

Viveu em Bissau, com a esposa Ivette Fargeas, durante cerca de cinco anos, desde 1969 a 1974, até ao 25 de abril.  Depois o  casal regressou a casa, tal como os últimos soldados do Império, e meteu-se noutras aventuras... Em 1975 estavam os dois em El Aaiun, a capital do Sará Ocidental, ex-colónia espanhola, hoje ocupada por Marrocos.

Sei que o Pierre Fargeas se reformou em 1988 e vive (ou vivia em 2014) no sul de França, em Saint Raphael. Fez-se, entretanto, radioamador, com o  indicativo F4TJS.

Pierre e Ivette Fargeas sempre  tiveram um grande carinho por Portugal, a Guiné-Bissau, a FAP, o pessoal da BA 12, Bissalanca, do seu tempo... 

Pierre tem  inclusive mantido contactos com algums camaradas, nossos, da FAP, como é o caso do Jorge Félix ou do Vitor Barata,  régulo da Tabanca de Bissalanca (, tendo como adjuntos o João Carlos Silva, o Marto Aguiar e o Paulo Moreno).

Por outro lado, há alguns vídeos dele no You Tube (cenas da vida quotidiana da Guiné, mas também um viagem ao sul...), de que falaremos mais tarde.

Ivette Fargeas, expondo na sala de convívio
 do pessoal da CCP 112 / BCP 12, BA 12,
Bissalanca, s/d,c. 1973. Fotograma de
vídeo de Pierre Fargea
s,
disponível no You Tube.
Um desses vídeos já aqui passou, pelo menos, duas vezes... Mas não fica mal passar uma terceira vez, justamente porque é um dos melhores postes que publicámos nos últimos 15 anos (*)

PS - Madame Ivette Fargeas fez, em Bissau, no período em que lá viveu, uma exposição de cerâmica e outra de "panos africanos", segundo a técnica do batique [, recorde-se que o batique: (i) é uma técnica artesanal de tingimento, que consiste em cobrir de cera as partes do tecido que não devem ser tingidas, mergulhá-lo num banho de cor e remover a cera posteriormente, repetindo o processo para cada cor utilizada; (ii) é tecido tingido por meio dessa técnica].



Vídeo (2' 44'') > Bafatá >  c. 1969 > Alojado no You Tube (Cortesia de Jorge Félix).

©  Jorge Félix / Pierre Fargeas  (2009). Todos os direitos reservados. (Música de fundo: Te Espero, Charles Aznavour, reproduzida com a devida vénia...Vd. página oficial aqui)


O Jorge Félix
e a Ivette Fargeas
2. Vídeo que o Jorge Félix fez com imagens que lhe foram enviadas pelo francês Pierre Fargeas, o técnico da fábrica dos Alouettes III, que fazia a sua manutenção em Bissalanca, no período entre  1969 e 1974. (**)

Escreveu o Jorge:

"Fiz uma pequena montagem das imagens, onde estou a guiar o heli, segue ao meu lado esquerdo a esposa do Pierre, Ivette Fargeas, e depois uns senhores que não me recordo o nome. O Coronel é o meu comandante Diogo Neto."

Pierre Fargeas
Sinopse:

(i) O heli parte de Bissalanca e faz uma viagem até Bafatá, sobrevoando o Rio Geba, as bolanhas, as tabancas, a avenida principal da bela vila colonial, a "princesa do Geba"  (ainda não tinha o estatuto de cidade em 1969, só em março de 1970), a casa Gouveia, a catedral, o mercado, o hospital... 

(ii) Não no heliporto,mas numa rua de  Bafatá,  são recebidos por militares, onde se incluem os oficiais superiores. 

(iii) Na despedida, um deles, de camuflado, parece-nos ser o cor Hélio Felgas, comandante do Cmd Agrupamento nº 2957, a que pertencia o o nosso camarada Fernando Gouveia.

(iv) O Pierre Fargeas faz depois, a pé, com a esposa,  um visita ao encantador mercado de Bafatá, de arquitectura revivalista.

(v) O heli regressam entretanto,  a Bissalanca, à BA 12, ao longo do Rio Geba e da estrada Bafatá-Bambadinca...O  Pierre Fargeas, de óculos graduados sem armação, aparece, no vídeo, no regresso a Bissalanca. A sua esposa, a belísisma  Ivette, surge de  novo ao lado do piloto, Jorge Félix.

(vi) Não sabemos em que circunstâncias. ou a que título, o casal. viajou até Bafatá, um dos poucos sítios da Guiné, de então, para além de Bubaque nos Bijagós, que se podia visitar (e valia a pena visitar), "by air", em segurança...  Muito simplesmente, o casal deve ter "apanhado uma boleia".

(vi) Recorde-se que, no nosso tempo, meu (1969/71)  e do Fernando Gouveia (1968//0), Bafatá nunca sofreu qualquer ataque ou flagelação por parte do PAIGC; haverá, sin,  um ataque, mais tarde, em 28/8/1972, com foguetões 122 mm, mas sem consequências.

Presumimos que a gravação tenha sido feita pelo Pierre Fargeas e pela esposa, Ivette. Ou pelo próprio cor pilav Diogo Neto. A montagem é do Jorge Félix. [É pena que o Jorge Félix nunca tenha respondido a (ou comentado) algumas das minhas questões.]


3. Comentário de L.G.:

Pedi ao Fernando Gouveia para comentar:

"Tem cenas sobre Bafatá (***)... (e tem a Ivette Fargeas, que é de uma beleza perturbadora...). Quero inclui-lo na tua/nossa série Roteiro de Bafatá... Um abraço. Luis". 

E ele respondeu (em 1/12/2013):

"Não tenho muito a comentar, além do agradável que é, rever Bafata. A única coisa estranha que me pareceu foi que a aterragem se fez numa rua e não no heliporto junto à pista."

São imagens relativamente raras. Temos fotos aéreas, naquela época  já havia boas máquinas fotográficas, mas não gravadores de vídeo. Este pequeno filme terá sido feito com câmara de filmar de 8 mm, sendo depois o filme convertido para vídeo.

Escrevi na altura,  no nosso Facebook (Tabanca Grande Luís Graça), em resposta ao Jorge Félix:

"É um vídeo que eu vejo e revejo... Por muitas razões: por ti, amigo e camarada do meu tempo; pelo regresso ao passado;  pelas saudades da doce, tranquila e bela Bafatá; pelos nossos 20 anos. tão generosos quanto verdes;  pela beleza (pertubadora) da Ivete Fargeas; pela "canción desesperada" do Ch. Aznavour... Uma combinação perfeita!... Um Alfa Bravo".

Já tinha comentado anteriormente, em 2009  (**):

(i) Que nostalgia, que saudade, que doçura triste! ... 

(ii) Perfeita a escolha da música do Charles Aznavour, a sua canção Te espero, em espanhol, com seu sotaque meio francês e meio arménio... Um rapaz do mundo, com idade de ser nosso pai (n. 1924...), pai da nossa geração, a dos baby boomers...

(iii) Pasa el tiempo y sin ti no sé vivir / la razón es para mí siempre sufrir / y ahora el viento al pasar me da a entender / que en la vida sólo a ti esperaré  (****). 

(iv) Uma canción desesperada, uma canção, eterna, para um amor talvez impossível,  um amor sofrido, uma canção que fica aqui tão bem quando olhamos para o passado,  quando tínhamos vinte anos e estávamos na guerra...

(v) Jorge: Gosto muito do plano em que estás tu, aparentemente concentrado na tua missão de comandamte daquela nave, mas de repente viras-te para trás... e pedes um cigarro!... (Aí temi pela segurança... do heli e da tua preciosa carga...).

(vi) Como éramos todos tão apaixonados pelas vida (e pelas lindas mulheres....),  como éramos todos tão conscientemente irresponsáveis,  como éramos todos tão sem jeito,  como éramos todos tão inconscientemente loucos,  como éramos todos tão optimistas e generosos,  como éramos todos já tão maduros e tão sofridos,  como éramos todos... 

(Porra, Jorge, que me fazes chorar! )...

___________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 23 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20487: 15 anos a blogar, desde 23/4/2004 (15): O meu último Natal, 1966, em Bissau, no QG/CTIG (Virgínio Briote)

(**) 1 de dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12375: Roteiro de Bafatá, a doce, tranquila e bela princesa do Geba (Fernando Gouveia) (7): By air... (Vídeo de Jorge Félix / Pierre Fargeas)

(***) Vd. também poste de 3 de julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4635: FAP (31): Uma viagem de heli a Bafatá, em 1969, com o cmdt Diogo Neto e o casal Ivette e Pierre Fargeas (Jorge Félix)

(***)  Último poste da série > 30 de novembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12369: Roteiro de Bafatá, a doce, tranquila e bela princesa do Geba (Fernando Gouveia) (6): O café do sr. Teófilo (Parte II): um homem amargurado que sabia demais? (Manuel Mata)

 (****) Letra de Charles Aznavour, canção Te espero (1967).reproduzida com a devida vénia:

Pasa el tiempo y sin ti no sé vivir,
la razón es para mí siempre sufrir,
y ahora el viento al pasar me da a entender
que en la vida sólo a ti esperaré.

Yo recuerdo tu mirar y tu besar,
tu sonrisa bajo el sol primaveral,
estoy solo sin saber lo que tú harás,
en mi alma hay dolor al esperar.

Ven... a mí ven, no tardes más,
ven, por favor, te ruego yo,
no podré esperar, ven a mí,
yo quiero saber si has de venir,
por fin así, dímelo, amor.

Es la herida que envejece sin piedad,
más mi amor siempre será eternidad,
en mis blancas noches tú revivirás
el recuerdo de mi amor al despertar.

En mi mente siempre como un altar
y tu rostro grabo en mí para soñar,
el momento ha de llegar muy pronto ya
y veré la realidadal despertar.

Ven... ven a mí ven, ven, no tardes más,
ven, por favor, te ruego yo, 
 no podré esperar,
ven... oh ven a mí yo... yo quiero saber
si has de venir por fin así, dímelo,  amor.....

______________

Notas do editor.

domingo, 29 de dezembro de 2019

Guiné 61/74 - P20511: Blogues da nossa blogosfera (117): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (32): Palavras e poesia


Blogue Jardim das Delícias, do Dr. Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com a devida vénia, reproduzimos esta publicação da sua autoria.

ENTRE AS MÃOS E O SONHO


ADÃO CRUZ

©: ADÃO CRUZ


Entre as mãos e o sonho
nascem as coisas
e as coisas são de pedra e água
dor e alegria
cor e sombra
realidade e fantasia.
E também são de poesia
as coisas que nascem
entre as mãos e o sonho.
A criação não precisa de donos
mas de sentimentos
de encontros e desencontros
no desenrolar de cada dia.
As coisas não nascem por destino
mas de acasos
nascem das horas sem tempo
dos dias vividos
entre o ontem e o amanhã
entre a realidade e absurdo
do hoje e agora.
A eterna beleza permanece
entre as mãos e o sonho
a sua luz incendeia a esperança
onde vive a angústia
e o que somos por dentro
desnuda a forma das coisas.
Entre as mãos e o sonho
um vale profundo
uma montanha mágica de silêncio
uma calma harmonia do mar
que nos fazem emigrar
para fora do mundo.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 24 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20378: Blogues da nossa blogosfera (115): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (31): Palavras e poesia

Guiné 61/74 - P20510: Estórias do Juvenal Amado (63): Galomaro, 1972 - Outros Natais

1. Em mensagem de hoje, 29 de Dezembro de 2019, o nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), autor do livro "A Tropa Vai Fazer de ti um Homem", enviou-nos mais uma das suas estórias, esta passada no Natal de 1972.


OUTROS NATAIS

O Natal é uma época que traz ao de cima o que há melhor de nós e em que temos a sensibilidade mais à flor da pele.
É ponto assente.

Somos assaltados por recordações de Natais passados, diferentes, saborosos tendo em conta, que éramos mais jovens, onde muitos dos nossos entes queridos participavam e hoje são só recordação e saudade.

O consumismo e as televisões emboscadas espreitam para dentro das nossas compras divulgando o que compramos e o que vamos comer e por vezes onde o vamos comer.
As tragédias dos outros e para as quais não haverá nunca remédio, são sempre bem assunto para se escarrapachar se bem, que daí nada resulte na mudança da vida dessas pessoas para além dessa noite.

Para mim é um exercício marcado pela extrema falta de respeito para com os visados, que estão sós nessa noite da família. As razões que levaram à rua estas pessoas por vezes de extratos sociais bem diferentes, não são facilmente catalogados, embora nesta época se olhe para eles de forma diferente e haverá quem nunca olha para eles senão nesta altura. Mas fazer alguma coisa por eles também serve de expiação, conforta-nos, dá-nos uma visão de dever cumprido, quando afinal as nossas escolhas no tipo de sociedade cada vez mais desumanizada e materialista onde duvidamos cada vez mais das intenções dos outros, provocam essa mesma exclusão.
Diz-se que fazer algo pelo nosso vizinho ajuda a mudar o Mundo, pelos resultados é o mesmo que acreditar, que uma borboleta bate as asas na Ásia e provoca uma tempestade no Continente Americano.

Celebramos o nascimento de um menino pobre, perseguido e também refugiado, que os pais procuraram segurança para ele noutro país. No fundo é o que procuram os refugiados de todo o Mundo e, é doloroso defendermos esses valores e aplicarmos outros, condenando milhares de seres a vidas miseráveis à separação e à morte. Os meninos daquela terra, bem como de outras terras, continuam a ser perseguidos e mortos, perante a indiferença dos poderes vigentes, pese as grandes intenções nas palavras comovedoras dos discursos de ocasião.

As razão das migrações são profundas, talvez não seja o local indicado aqui para se aflorar o tema, se bem que ninguém é dono da razão absoluta e seria frutífero que cada um pensasse no assunto longe dos comentários facebookianos.

Após este intróito passo a contar uma história com 47 anos e da qual só tomei conhecimento neste ultimo dia de Natal.

********************

Estávamos Galomaro em 1972, tinha sido um ano ruim para o nosso Batalhão com mortos no Saltinho e Cancolim, e a CCS do 3872 também não tinha escapado, pois em Novembro tivemos um morto numa mina, passado uma semana outro por doença e mais uma semana um ataque ao arame felizmente sem consequências graves para nós.

Era segundo Natal à porta longe das nossas famílias e ainda não sabíamos que lá passaríamos outro.
O Furriel Sapador Fernandes estava de regresso das suas férias e de que se havia de ter lembrado em boa hora? Já que não tinha levado muita roupa e também não precisava de trazer pensou:
- E seu levasse alguma coisa de diferente para a malta?
Se assim o pensou melhor o fez e dirigindo-se a uma mercearia fina que havia em Mangualde, resolveu comprar frutas cristalizadas, pinhões, amêndoas, avelãs etc, ingredientes com os quais se confecciona o bolo-rei tão apreciado e tão ligado às nossas tradições natalícias.

Falou com o nosso Furriel Enfermeiro Graça, que estava ligado familiarmente ao ramo da panificação, que lhe deu algumas indicações e conselhos de como se fazia o afamado bolo.

E assim, no dia combinado com o padeiro Léo, que não faço ideia como é que foi ocupar esse posto uma vez que era carteiro na vida civil e na tropa pertencia ao Pel Rec. Sem desprimor para nenhum padeiro ele era excelente a confeccionar uns pães individuais, que para além de serem bem saborosos, nas sandes vendidas na cantina, acompanhavam as rações de combate e evitavam o desperdício, que acontecia com o pão grande que a malta do miolo fazia bolas para atirar uns aos outros.

O Léo disse que dava bem para mais de uma dúzia de bolos-reis o que encheu de satisfação o Fernandes.
Às escondidas pela noite dentro, o Furriel Sapador, que nada percebia de fazer pão, acabou como pasteleiro a confeccionar bolo-rei, que como se bem se sabe não é para todos.

E que bolo maravilhoso.
Sabia a tudo que tínhamos cá deixado, lembrava o perfume das nossas casas, transportava-nos para uma realidade bem diferente. Tudo mercê da inspiração de quem pensou nos cento e muitos homens naquele pontinho do Mundo, quando resolveu trocar outras coisas da maleta da TAP por aquela ideia solidária, que faz de nós camaradas mais que irmãos, como tão bem descreve o escritor António Lobo Antunes.

A surpresa foi geral, a felicidade estampada nos nossos rostos deve ter sido a melhor prenda que aquele jovem furriel, que também escondia uma apuradíssima sensibilidade, acusado de ser tão exigente com os seus soldados recebeu na vida.

Como eu, penso que a grande maioria não soube até ontem e se de facto se temos sabido naquela hora como bem diz o nosso camarada Luciano (ex-TRMS), o tínhamos atirado ao ar e carregado em ombros.

O nosso comandante também não escapou à satisfação geral e desconfiando da fartura, mandou chamar o Fernandes para saber como raio tinha sido aquilo feito? Ele contou-lhe e perguntou-lhe se tinha gostado. O rosto do Coronel José Maria de Castro e Lemos alargou-se num grande sorriso (coisa rara nele) disse que tinha sido a melhor prenda de Natal da sua vida.

Nunca mais me esqueci, mas só agora sei a verdadeira história e não resisto a contar o segredo daquela noite mágica em que aconteceu o milagre de bolo-rei na ceia de Natal em Galomaro, na zona Leste da Guiné, o que prova que o Natal não é só quando um homem quer, mas especialmente como o quer, e a prova disso foi o Fernandes fazer a diferença.

Um abraço

PS: - Pedi a devida autorização ao Fernandes, que para além de excelente fotografo é caçador inveterado e continua a exercer a profissão de topografo para além de cultivar amizades.

Bem haja por tudo.
Juvenal Amado


O Fur Mil Sapador António Maria Fernandes com o resultado de uma caçada

 O Fur Mil Sapador António Maria Fernandes com o 2.º Sarg Silva da "Ferrugem"

O Fur Mil Sapador António Maria Fernandes com o Pelotão de Sapadores. É o primeiro à direita, de pé.

Fur Mil Sap António Maria Fernandes com os Fur Mil Claudino, Sousa e Marques, e 2.º Sarg Silva

 Fur Mil Enfermeiro Graça

O famoso bolo-rei num prato

Além dos camaradas já ref. está também o Pereira Nina da Liga que me parece ter começado o processo da minha ida lá

O 3872 presente. Pereira, Dulombi; Alcains, CCS; Juvenal Amado; João Romano, Saltinho e Cansamba; Fernandes e Luciano, CCS
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de setembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19029: Estórias do Juvenal Amado (62): O Vilela, num conto com bolinha vermelha

Guiné 61/74 - P20509: Blogpoesia (653): "Noite de Natal", "Depois do Natal" e "Com açafates", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados, entre outros, ao nosso blogue durante a semana, que continuamos a publicar com prazer:


Noite de Natal

Noite serena e luminosa.
De alegria, paz e de saudade daqueles que já não estão.
Mesa farta de iguarias.
Um pinheiro de Natal.
Na manjedoira um presépio simples
com as figurinhas simples da Família Santa e dos pastores.
Está a Família inteira reunida.
Vieram de longe os ausentes.
A união e a harmonia.
A lareira acesa.
O calor do fogo divino.
É a noite da consoada.
O avô cansado e seu gato inseparável, dormitam no preguiceiro junto ao lar.
A avó anda feliz na sua lide.
Tem todos os seus ao pé.
A criançada gravita impaciente pela festa do abrir as prendas.
Até a cadelita irá ter a sua.
Bendita a bênão do menino Jesus, o Salvador!...

Ouvindo Schubert
Berlim, 25 de Dezembro de 2019
20h10m
JLmg

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Depois do Natal

Raios de luz incendeiam de sol os céus.
Reina a paz nas consciências reconhecidas pela luz.
Se abraçam amorosamente as vidas num clamor de fraternidade.
Sossegam todas as tormentas e tempestades.
Vai abrir-se ao mundo um novo ano.
Oxalá impere, finalmente, a justiça e a solidariedade entre os povos desta terra peregrina.

Berlim, 27 de Dezembro de 209
9h51m
Jlmg

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Com açafates

Não importa o peso.
Com açafates alargamos nossos dons.
Fruta. Pão. Flores.
Tudo bom para dar ou para vender.
Num gesto de bem-fazer.
Cada um tem seu jeito e dom.
O que importa é criar amor.
Receber e dar.
Viver bem.
Semear felicidade.
Tornar mais leve e grata a vida.
Colorir o céu e a terra.
Com azul e verde.
Levar mais longe os frutos da minha horta e jardim.
Trazer para casa os dons que pude comprar.
Regalar os meus.
Ser quem sou e sou capaz...

Berlim, 24 de Dezembro de 2019
9h22m
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20482: Blogpoesia (652): "Encontrei Praga", "Nevoeiro de Praga" e "Enxurradas de Agosto", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P20508: Fotos à procura de... uma legenda (122): a bela e misteriosa senhora da BA 12, Bissalanca, que, não sendo militar nem esposa de nenhum militar, fez mais de duas comissões de serviço, no CTIG, entre 1969 e 1974?







Guiné > Região de Bissão > BA 12, Bissalanca, 1969/74

1. Quem é esta "bela e misteriosa" senhora que fez mais do que duas "comissões de serviço" na Guiné, tendo vivido em Bissau entre 1969 e 1974? 

Uma dica: não era enfermeira paraquedista, não era esposa de nenhum militar português, mas conviveu com a malta da BA 12, técnicos especialistas de manutenção aeronáutica, pilotos e pilotos aviadores (em especial do heli AL III), enfermeiras paraquedistas, pessoal do BCP 12...

Outra dica: fez, em Bissau, no período em que lá viveu,  uma exposição de cerâmica e outra de "panos africanos", segundo a técnica do batique   [Batique: (i) técnica artesanal de tingimento, que consiste em cobrir de cera as partes do tecido que não devem ser tingidas, mergulhá-lo num banho de cor e remover a cera posteriormente, repetindo o processo para cada cor utilizada; (ii) tecido tingido por meio dessa técnica.]

Caros/as leitores/as: toca a adivinhar!,,,

Fotos: arquivo do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2019)
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Nota do editor:

Último poste da série > 22 de novembro de 2019  > Guiné 61/74 - P20370: Fotos à procura de uma... legenda (113): Camaradas artilheiros, quando media, em comprimento, o conjunto Berliet ou Mercedes ou Matador + reboque + obus 14 ou peça 11,4?.. 15 metros!... E quanto pesava? 15 toneladas!... Façam lá o TPC: 9 bocas de fogo, mais 9 rebocadores, mais 9 Unimogs e Whites, mais 300 homens em armas... mais 500 granadas... Qual o comprimento (e o peso= de uma coluna destas, a progredir numa picada, no mato, de Piche, a caminho da fronteira, "Acção Mabecos", 22-24 de fevereiro do século passado, numa guerra do outro mundo?!..