quarta-feira, 11 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20722: (De)Caras (148): O Amílcar Cabral, desde o início e até ao fim, fez tudo para mobilizar os dignitários fulas para a causa da luta, sem qualquer sucesso. E isto não era uma mera coincidência. Os mesmos dignitários, imbuídos de realismo e pragmatismo, diziam-lhe: "Deixem os brancos porque eles são o garante da paz na província e, no dia em que se forem embora, nós vamos recomeçar as nossas guerras do passado recente"... Premonitório: 46 anos depois da independência, continuamos estagnados entre guerras e paz podre... (Cherno Baldé)

1. Comentário do Cherno Baldé, nosso colaborador permanente, ao poste P20720 (*) [, tem mais de duzentas referências no nosso blogue; nasceu em Fajonquito há 60 anos; é um 'homem grande', sábio, a viver em Bissau]:

Caro Valdemar,

Escreves um texto cheio de sentimentos de saudade e também de compaixão para com os vossos recrutas tão jovens, quase crianças. Todavia, olhando bem para vossa foto conjunta, tu apareces com uma maior quantidade de pêlos no corpo, mas também eras quase tão puto quanto eles.

Não deverão ter morrido de velhice, porque eram todos um pouco mais velhos que eu que neste momento estou na casa dos sessenta e não me sinto um velho, provavelmente o stress traumático, durante e depois da guerra, terá contribuído para o desaparecimento precoce desses jovens soldados.

Como é que se fazia o recrutamento nas aldeias e regulados fulas???...

Era simples e ninguém podia recusar. O régulo ou seu representante convocava os chefes das diferentes localidades sob a sua jurisdição e dizia que precisavam de um número X,  a pedido do Governo e o resto ficava a cargo dos chefes das aldeias e um agente da administração onde cada morança listava uma ou duas pessoas da família para o efeito. 

Todavia, os critérios das escolhas nunca eram claros de um lado e do outro. Se os chefes e o agente podiam ser tentados a fazer negociatas, os pais e chefes das moranças, pensando na utilidade no seio do núcleo familiar, procuravam listar os menos úteis nos trabalhos do sustento e reprodução familiar.

Luis, não concordo quando dizes que os fulas "estavam condenados a fazer a guerra....". 

Na minha opinião, longe de ser uma "condenação", era uma opção clara e sem equívocos por diferentes razões de caracter politico-ideológico, de natureza religiosa, do fundamento, motivações e da necessidade da própria luta. 

Não se fala muito disso, mas na verdade o Cabral desde o início e até ao fim, fez tudo para mobilizar os dignitários fulas para a causa da luta, sem qualquer sucesso. E isto não era uma mera coincidência. Os mesmos dignitários, imbuídos de realismo e pragmatismo, diziam ao A. Cabral: "Deixem os brancos porque eles são o garante da paz na província e, no dia em que forem embora nós vamos recomeçar as nossas guerras do passado recente". 

...E 46 anos depois da independência ainda continuamos entre as guerras e uma paz podre que impede o país de avançar para frente.

Valdemar, gostaria de poder ajudar, mas preciso de referências certas sobre as tabancas e regiões de origem. No entanto, receio que seja tempo perdido, pois já se passou muito tempo e nem todos ficaram com boas recordações do seu passado militar, um pouco como acontecia entre vós, até há poucos anos. (**)

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé
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Nota do editor:

(*)  Último poste da série >  10 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20720: (De)Caras (120): O que é feito destes 'putos-soldados' da CART 11 e da CCAÇ 12 ? (Valdemar Queiroz)

Guiné 61/74 - P20721: Parabéns a você (1768): Artur Soares, ex-Fur Mil Mec Auto da CART 3492 (Guiné, 1972/74) e Joaquim Sequeira, ex-1.º Cabo Canalizador do BENG 447 (Guiné, 1965/67)


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Nota do editor

Último poste da série de 10 de Março de 2019 > Guiné 61/74 - P20718: Parabéns a você (1767): Joaquim Cruz, ex-Soldado Condutro Auto Rodas do BCAÇ 4512 (Guiné, 1972/74)

terça-feira, 10 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20720: (De)Caras (147): O que é feito destes 'putos-soldados' da CART 11 e da CCAÇ 12 ? (Valdemar Queiroz)


Guiné > Região de Bafatá > Contuboel > CIM - Centro de Instrução Militar > Março de 1969 > Recruta dos futuros soldados das futuras CART 11 e da CCAÇ 12 > Samba Baldé (Cimba), nº mec 82110969... Futuro Ap Metr Lig HK 21, 3º Gr Com 3º Gr Comb [Comandante: alf mil inf 01006868 Abel Maria Rodrigues [, bancário reformado, Miranda do Douro], 1ª secção [fur mil at inf Luciano Severo de Almeida, já falecido]...  De origem fula.


Guiné > Região de Bafatá > Contuboel > CIM - Centro de Instrução Militar > Março de 1969 > Recruta dos futuros soldados das futuras  CART 11 e da CCAÇ 12 > Salu Camara, nº mec 82103469. Provavelmente de origem futa.fula. Integrou a CART 11.


Guiné > Região de Bafatá > Contuboel > CIM - Centro de Instrução Militar > Narço de 1969 > Recruta dos futuros soldados das futuras  CART 11 e da CCAÇ 12 >  Sori Baldé, nº mec 82111069,  De origem futa. Integrou a CCAÇ 12, como sold at inf. Pertenceu O 4 º Gr Comb [, comandante: alf mil  at cav  10548668 José António G. Rodrigues, já falecido, vivia em Lisboa], 3º secção [1º Cabo 00520869 Virgilio S. A. Encarnação, vive em Barcarena]... [O Valdemar Queiroz identifica-o, erradamente, como sendo o Tijana Jaló, esse sim, devia pertencer à CART 11, mas com outro nº mecanográfico... Estou bem recordado do Sori Baldé, um dos meus soldados, quando estive no 4º Gr Comb.]


Guiné > Região de Bafatá > Contuboel > CIM - Centro de Instrução Militar > Março de 1969 > Recruta dos futuros soldados das futuras CART 11 e da CCAÇ 12 > Mamadu Jaló, nº mec 821179669, De origem futa. Integrou a CCAÇ 12, como sold arvorado. . Pertenceu ao 1 º Gr Comb 3ª secção [, fur mil at inf 19904168 António Manuel Martins Branquinho, reformado da Segurança Social, Évora, já falecido]


Guiné > Região de Bafatá > Contuboel > CIM - Centro de Instrução Militar > 1º trimestre de 1969 > Recruta dos futuros soldados das futuras CART 11 e da CCAÇ 12 > Alceine Jaló, nº mec 82114669, De origem futa ou futa-fula. Pertenceu à CART 11.

Fotos (e legendas): © Valdemar Queiroz (2020). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Contuboel > CIM - Centro de Instrução Militar  > c. março / abril de 1969 > CART 2479 / CART 11 (1969/70) > > O Valdemar Queiroz, com os recrutas Cherno Baldé, Sori Baldé e Umarau Baldé (que irão depois para a CCAÇ 2590 / CCAÇ 12).

Estes mancebos aparentavam ter 16 ou menos anos de idade. Eram do recrutamento local. Os da CCAÇ 12 eram fulas, oriundos do chão fula e em especial dos regulados do Xime, Corubal, Badora e Cossé.

Foto (e legenda): © Valdemar Queiroz (2014). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do Valdemar Queiroz [ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70]


Data: terça, 5/11/2019, 23:22

Assunto: O que será feito dos 'Putos-Soldados' do CIM de Contuboel

O que será feito dos 'Putos-Soldados'?

Passaram 50 anos que muitos 'putos' foram chamados prá tropa e receberam instrução militar em Contuboel-

Alguns apresentaram-se descalços, com as suas roupas usadas habituais e notava-se que eram muito jovens, mas diziam que tinham 18 anos.

Soube-se mais tarde que houve situações de recrutamento forçado, mas na maioria apareceram com vontade ser soldados. 'Manga de ronco' e 'manga de patacão' que lhes iria acontecer.

Não sabemos, eu não sei nem me lembro de contarem, como foram contactados e por quem (régulo/chefe de tabanca), e se lhes foi dito que iriam ser soldados para entrarem directamente na guerra, que eles já tão bem conheciam.

Não sei se vieram assentar praça, como um serviço militar obrigatório se tratasse, com a diferença de serem ainda menores, ou como uma espécie de voluntariado forçado (ideias de Spínola a fazer lembrar o recrutamento de crianças pelos nazis no final da guerra?).

E assim se formaram a CART.11 e a CCAÇ.12.

Também não soubemos se queriam ser soldados para fazerem guerra contra os 'bandidos' ou para ajudar (como já acontecera em séculos anteriores) os portugueses na guerra contra, neste caso, o PAIGC que queria a independência da Guiné.

Mas, a guerra acabou. Felizmente a guerra acabou.

Os 'putos-soldados' deixaram de ser soldados do Exército Português e passaram, automaticamente, à peluda da sua desgraça. Muitos houve que fugiram para não serem sumariamente executados, muitos outros não tiveram essa sorte e foram assassinados, os restantes resignaram-se voltando, já homens, às suas tabancas para serem o que já tinham sido. Foi sempre assim quando acabam as guerras.

E passados 50 anos o que será feito daqueles que conseguiram sobreviver?

Os que eram mais jovens devem ter, agora, 66/67 anos de idade. O que será feito deles?

Julgo que eram todos Fulas e maioritariamente eram das regiões de Gabu/Piche, os da CART.11, ou de Bambadinca/Xime, os da CCAÇ.12.

O Alceine Jaló era do meu Pelotão, casou-se muito novo com uma bajuda (Saco ou Taco?) e levou-a com ele para Guiro Iero Bocari. As mulheres e os filhos dos nossos soldados também dormiam connosco nas valas e aí aguentavam quando havia ataques à tabanca.

O que será feito deles?

Gostava muito de saber deles e peço um favor muito especial ao nosso grande amigo Cherno Baldé de tentar saber se eles ainda são vivos.

Como curiosidade com os 'putos', havia quatro soldados arvorados, e frequentavam a escola de cabos, em cada Pelotão sendo a escolha feita entre eles e um da nossa escolha. Dos quatro do meu Pelotão o da nossa escolha recaiu no Saliu Jau por ser impecável, mas deu algum recusa por parte dos restantes por o considerarem 'ser djubi mesmo pra cabo'.

Valdemar Queiroz

PS - Anexo fotos de alguns 'putos-soldados' , falta a do Umaru Baldé, talvez o 'puto mais puto', e que me foi oferecida quando estive com ele na Amadora.


2. Resposta do editor Luís Graça:

Valdemar, folgo em saber de ti... E obrigado pela tua "lembrança"... Reconheço estes putos ou pelo menos três, os que pertenceram à CCAÇ 12, e que fizeram a guerra comigo (*)...

Quanto ao Umaru Baldé [c. 1953-2004), o "menino de sua mãe", tens aqui uma foto dele, à direita... Ele tem mais de vinte referências no nosso blogue. 

Soldado do recrutamento local, nº 82115869, tirou a recruta e a especialidade no CIM de Contuboel. Foi exímio apontador de morteiro 60, soldado arvorado e depois 1º cabo at inf  da CCAÇ 12 (1969-1972), no 4º Gr Comb,  3ª secção [, comandada pelo fur mil 11941567 António Fernando R. Marques: DFA, vive em Cascais, empresário reformado, membro da nossa Tabanca Grande].

O Umaru Baldé [, que era de Dembatacpo ou Taibatá, tendo sido  recrutado em 12/3/1969], foi depois colocado,em 1972,  em Santa Luzia, Bissau, no quartel do Serviço de Transmissões, onde ficou até ao fim da guerra. Conheceu, em mais de metade da vida, a amargura e a solidão do exílio. Veio morrer a Portugal, no Hospital do Barro, Torres Vedras. Contou apenas com o apoio e a ajuda de alguns dos seus antigos camaradas de armas.

Valdemar: se me mandaste,  em tempos, este material que agora se publica , ficou para aí na "picada"... Vá temos falado sobre este tema, que nos é caro, a nós os dois (**).

Afinal, fomos instrutores destes putos, no CIM de Contuboel e eles estiveram sob as nossas ordens na guerra, tu na região de Gabu, setor de Nova Lamego, eu na  região de Bafatá, setor L1 (Bambadicna) Foram extraordinários soldados e grandes camaradas, estes "meninos-soldados" (***).

Vamos ver se alguém mais se recorda destes nossos putos, "meninos de sua mãe", parafraseando o título de um extraordinário, pungente, poema de Fernando Pessoa.

3. Aproveito para reproduzir aqui um comentário meu que já tem 14 anos, sobre  "a lista dos Baldés" da CCAÇ 12, e que volto a subscrever: eram 100 os "baldés", que foram integrados na CCAÇ 2590 / CCAÇ 12, muitíssimos poucos estarão vivos hoje, talvez menos de 5%  (****):

(...) É também um pequeno, modestíssimo, gesto de elementar justiça para com aqueles guineenses que lutaram ao nosso lado, que fizeram parte da CCAÇ 12 e, portanto, da nova força africana com que sonhou Spínola e que tanto atemorizou o PAIGC. Infelizmente, uma parte deles (quantos, exactamente?) já não hoje estarão vivos. Uns foram fuzilados, como o Abibo Jau (...), outros terão morrido de morte natural, que a sua esperança de vida era muito menor que a nossa, em 1969...

Eu estou à vontade para publicar esta lista: sempre critiquei a africanização da guerra da Guiné, embora longe de imaginar que, no dia seguinte à nossa retirada, começasse a caça aos traidores, aos contra-revolucionários, aos mercenários, aos colaboracionistas... 


Em 1969, ainda estava vivo o Amílcar Cabral e eu admirava-o, intelectualmente... Achava que na Guiné, depois da independência, tudo seria diferente, e não aconteceriam os ajustes de contas que se verificaram noutras revoluções ou guerras civis, na Rússia, na China, na Espanha franquista, na França depois da libertação, etc. Pobre de mim, ingénuo...

Mas, por outro lado, também fui cúmplice da sua integração no nosso exército: mesmo sendo de da especialidade de armas pesadas, e não fazer parte formalmente de nenhum dos quatro grupos de combate da CCAÇ 12, participei em muitas das operações em que estes participaram, fui testemunha da sua coragem e do seu medo, dormi com eles nas mais diversas situações, incluindo nas suas tabancas... Foram meus camaradas, em suma.

Soldados ex-milícias, a maior parte com experiência de combate, os nossos camaradas guineenses da CCAÇ 12 (originalmente, CCAÇ 2590), eram oriundos do chão fula e em especial dos regulados do Xime, Corubal, Basora e Cossé, com excepção de um mancanhe, oriundo de Bissau.

“Todos falam português mas poucos sabem ler e escrever", lê-se na história da CCAÇ 12 (O que só verdade, 21 meses depois de os termos conhecido e instruído em Contuboel, em junho e julho de 1969). Foram incorporados no Exército como voluntários, acrescentou o escriba, para branquear a insustentável situação dos fulas, condenados a aliarem-se aos tugas. (...)

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(***) Último poste da série > 12 de fevereiro de  2020 > Guiné 63/74 – P20644: (De) Caras (119): Um pequeno texto, cuja essência teve o BLOGUE na sua concepção (António Matos)

Guiné 61/74 - P20719: Ser solidário (228): Consignação de 0,5% do IRS à Associação "Afectos com Letras"...levando mais esperança e educação às meninas guineenses





Guiné-Bissau > Bissau > s/d> c. 2020 > Biblioteca do Lar de Betel


Guiné-Bissau >  Bissau > s/d > c. 2020 >  Escola de Djoló, cofinanciada e patrocinada pela ONGD Afectos com Letras através do Projetco Baoba - apadrinhamento de turmas à distância - desde 2010.


Fotos (e legendas): Afectos com Letras (2020). [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] (c om a devida vénia...]


1. Mensagem da ONGD Afectos com Letras, que tem sede em Pombal, com o NIF 509301878, e página no Facebook:


De: Afectos com Letras <afectoscomletras@gmail.com>

Data: quinta, 5/03/2020 à(s) 15:46

Assunto: Consignação de IRS à Afectos com Letras - Querem fazer parte desta mudança? Contamos convosco!


Querid@s amig@s,

Está a chegar aquela altura do ano em que temos que pensar no IRS e na possível Consignação a uma entidade sem fins lucrativos. A Consignação do IRS permite-vos doar 0,5% do imposto a favor do Estado à Associação Afectos com Letras.

E por isso gostávamos de apelar à vossa solidariedade e espírito de entreajuda, dando-nos a possibilidade de levar até à Guiné-Bissau mais esperança e educação às meninas, mais dignidade às mulheres e mais qualidade de vida às famílias.

Em 2019, a vossa ajuda traduziu-se numa máquina descascadora de arroz. Outras podem chegar às aldeias guineenses e mudar vidas com uma pequena cruz na vossa folha de IRS.

Querem fazer parte desta mudança? Contamos convosco!

Associação Afectos com Letras, ONGD

Rua Engº Guilherme Santos, 2

Escoural, 3100-336 Pombal

NIF 509301878

tel: (+351) 918 7 86 792

email: afectoscomletras@gmail.com

venha estar connosco no www.facebook.com/afectoscomletras

Conta Caixa Geral de Depósitos
PT50 0035 0127 0005 5604 03038
Bic: CGDIPTPL




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Guiné 61/74 - P20718: Parabéns a você (1767): Joaquim Cruz, ex-Soldado Condutro Auto Rodas do BCAÇ 4512 (Guiné, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de Março de 2019 > Guiné 61/74 - P20710: Parabéns a você (1766): Cor Art Ref (DFA) António Marques Lopes, ex-Alf Mil Art da CART 1690 (Guiné, 1967/69)

segunda-feira, 9 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20717: (D)o outro lado do combate (58A): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - VI ( e última) Parte (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)





Fotogramas do filme "Tarrafal: Memórias do Campo da Morte Lenta",  produzido e realizado por Diana Andringa (Portugal, 2009, 90' ).

1. Quinta e última parte dos excertos, que temos vindo a publicar no blogue,  do manuscrito "Memórias da Luta Clandestina" (entretanto publicado, na Praia, capital de Cabo Verde,e lançado, no passado dia 30 de janeiro) (*) 

A reprodução desses excertos, no nosso blogue, foi-nos devidamente autorizada por Carlos de Carvalho, filho de Inácio Soares de Carvalho, e que aceitou o nosso convite para integrar a Tabanca Grande. Nascido na Guiné, Carlos de Carvalho é arqueólogo e historiador de profissão, vivendo na Praia, capital de Cabo Verde.

 Inácio Soares de Carvalho (1916-1994)


Nasceu na Praia em 29 de Abril de 1916. Foi em criança para a Guiné com os pais. No seu tempo haveria 1700 cabo-verdianos no território, muitos deles tendo posições de destaque na vida económica, social, cultural e político-administrativa da colónia portuguesa. Trabalhou no BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, desde 1939, até ser detido pela PIDE em 15/3/1962.

Envolveu-se na luta política, filiando-se em 1956 no MLG – Movimento para Libertação da Guiné, por influência do seu compadre e colega de Abílio Duarte.

Inácio Soares de Carvalho, que nunca viveu na clandestinidade, contrariamente ao Rafael Barbosa, será preso pela primeira vez pela PIDE, na filial do BNU em Bissau, onde trabahava há mais de duas dezenas de anos. É então deportado, para o Tarrafal (, a partir da Ilha das Galinhas), aonde chega no início de setembro de 1962, numa leva de 100 presos, guineenses. Três anos depois, em 16/10/1965 e transferido para colónia penal da ilha das Galinhas, no arquipélago dos Bijagós.

Em 7/2/1967, é solto, pela primeira vez. Em 1972 e 1973, volta a passar pela experiência da prisão, em Bissau, até conhecer a liberdade definitiva com o 25 de Abril de 1974. Há uma escassa meia dúzia de documentos no Arquivo Amílcar Cabral com o seu "nome de guerra", Nassi ou Naci ou Nacy Camará.


Pertencia à "secção de informação e controle" do PAI (sigla original do PAIGC) em Bissau, ele e o Rafael Barbosa (c. 1926-2007), reportanto diretamente a Amílcar Cabral, que vivia em Conacri. Em outubro de 1961, Rafael Barbosa, de etnia papel (, Zain Lopes, na clandestinidade), é nomeado Presidente do Comité Central do PAIGC.

Nos final dos anos setenta, Inácio Soares de Caravalho regressa à sua terra natal, Praia, Cabo Verde, e afasta-se praticamente da vida política activa. Vem a falecer em dezembro de 1994, sem ter visto publicadas as suas memórias políticas que comecçou a escrever, "após incessantes insistências dos filhos", e que deu por concluídas em 1992. "Nelas o autor narra factos novos, desconhecidos da maioria dos militantes, pois, infelizmente, poucos foram os combatentes da clandestinidade, sobretudo na Guiné, que deixaram escritos sobre essa vertente da luta protagonizada pelo PAIGC." (Informações biográficas fornecidas pelo filho, Carlos de Carvalho, nascido na Guiné, complementadas por LG.)

É possível haver um lançamento do livro em Lisboa. Em Cabo Verde, a edição é de autor e teve vários patrocínios.

2. Excertos do livro "Memórias da Luta Clandestina" - V ( e última) Parte (*)


Campo de Concentração de Tarrafal de Santiago, no arquipélago de Cabo Verde 


Na noite de nossa chegada [, aoTarrafal], distribuíram a cada um de nós uma esteira que serviu de cama.

No dia seguinte, de manhã cedo, mostraram-nos um sítio um pouco afastado da caserna que era destinado para casa de banho, melhor dizendo, sanita. Quando acabamos de utilizar a sanita mandaram-nos para a bicha a fim de tomarmos o pequeno-almoço que era uma caneca de café e um pão sem nada para cada um de nós.

Depois do pequeno-almoço, fizeram a distribuição de nossas “pertences” para a nossa vida diária no Campo: uma cama de ferro galvanizado e duas esteiras, que nos serviu de colchão; uma manta, como cobertor; uma caneca e uma colher de alumínio para as refeições e para beber; calções feitos pelos alfaiates do Campo; alguns eram largos demais e outros apertados.

[...] Já no Campo, permanecemos 45 dias sem tomar banho. Muitos começaram a ter doenças na pele, as sarnas.

[...] Quando chegamos, já lá estavam os nossos irmãos angolanos que foram levados para lá em Fevereiro do mesmo ano [, 1962].

O Director da Colónia Penal nessa altura era um tal [José Pedro]Queimado Pinto e os polícias eram maioritariamente europeus vindos de Angola.


[...] O “regresso” dos prisioneiros à Guiné 

2° grupo de prisioneiros libertos 

Um grupo de mulheres havia solicitado a libertação de seus maridos presos no Tarrafal. Reagindo a esse pedido, foi autorizada a libertação de mais 5 prisioneiros.

Assim, no dia 16 de outubro de 65, o segundo grupo de prisioneiros guineenses foi posto em liberdade. Desse grupo faziam parte os prisioneiros: Inácio Soares de Carvalho, Bruno Dantas Pereira, Manuel Mamadú Korca Djaló, João Lobo de Pina e Manuel Vaz Horta Santi.

Fomos conduzidos à cidade da Praia onde passamos a noite.

[...] No dia seguinte, 17, fomos embarcados no Porto da Praia, às 16 Horas da tarde, num barco grande de que já não me lembro o nome.


A primeira libertação de ISC 


No dia 7 de fevereiro de 1967, foram 3 agentes da PIDE à Ilha das Galinhas buscar nós os 4, os “regressados” da Colónia Penal do Tarrafal, a fim de nos porem em liberdade [1]. Viemos, de novo, via Bolama e só chegamos a Bissau no dia 8.

Naquele dia mesmo, no período da manhã, o inspector Miguel Cardoso chamou-nos de novo ao seu gabinete e falou outra vez muito connosco a respeito da política que era só prejuízo para nós e que ia nos pôr em liberdade e que contava com a nossa colaboração [2]. Disse-nos ainda que o mal feito já passou e para não pensarmos mais no passado. Falou muito de mim sobre a minha declaração que prestei quando fui preso em 62, e que não neguei nada do que fiz e eu era responsável por aquilo que fiz. E que assim mesmo é que um homem deve ser.

Depois de toda a conversa mandou para nos passarem uma Declaração para levarmos à Administração na qual constava que não devíamos pagar o imposto.

Como podem constatar, nós, os 4 libertos, havíamos passado quase 5 anos presos, repartidos entre as prisões de Bissau, Mansoa, Ilha das Galinhas, Colónia Penal de Tarrafal - Cabo Verde, Bissau, de novo Ilha das Galinhas, para finalmente ganharmos a liberdade, a 8 de fevereiro de 1967.


[...] ISC e Guerra Ribeiro, “Chefe” da Guiné, - o “confronto” 


Após a nossa libertação, dirigimo-nos à Administração para apresentar a Declaração passada pela PIDE e na qual constava que estávamos isentos do pagamento de imposto. Mas, naquela altura, o Administrador era o famoso Guerra Ribeiro [3].

Este, quando chegou à Guiné, começou por trabalhar numa Casa Comercial. Pouco tempo depois foi para Câmara Municipal. Esteve lá poucos anos, e então passou para o Quadro Administrativo como funcionário, ou seja, Aspirante. Depois foi nomeado como Chefe Administrativo. Passado pouco tempo, foi nomeado Secretário Administrativo. Dali teve grande sorte passou para Administrador de Concelho. Teve grande sorte no princípio de sua vida, pois, no tempo do Salazarismo o mais criminoso é que tinha acesso e foi por esta via que Guerra Ribeiro se tornou num grande criminoso na Guiné-Portuguesa.

Na época, já se dizia que quem mandava em Bissau, podia-se dizer que mandava em quase metade da Guiné, era ele, Guerra Ribeiro.

 [...] Assim, ele, ignorando a Declaração, entendeu que devemos pagar imposto daquele ano. Quando nos disse isso, eu então quis lhe mostrar que já estivemos muito tempo presos e não tínhamos condições para pagar o imposto. Ele exaltou-se contra mim proferindo palavras odiosas e incriminatórias, dizendo-me no meio de toda aquela gente que eu tinha muita sorte e estava ainda a falar. Disse que se fosse ele que me tivesse prendido, naquela altura, eu já não estava a ver sol.

A uma dada altura da conversa, ele foi chamado para ir tratar de um assunto no seu Gabinete; Adolfo Ramos, que era um funcionário da Administração, aproveitou a oportunidade para me dizer para conservar muito calado porque Guerra Ribeiro é que está a mandar em quase toda a Guiné e que Deus há-de nos ajudar a arranjar maneira de encontrar dinheiro para pagarmos o imposto.

Como resultado da conversa com Guerra Ribeiro, ele deu-nos o prazo de um mês para pagarmos imposto. Isto confirma de facto o poder que ele tinha na Guiné, pois já nem seguia ou obedecia ordens do Inspector da PIDE.

[...] O regresso à casa 


Quando chegamos às nossas casas, no dia 8 de Fevereiro de 67, as nossas famílias, homens e mulheres, claro, ficaram todas satisfeitas.

Depois de contar à minha mulher a estória com Guerra Ribeiro, ela ficou num estado que não posso explicar mesmo. Só me perguntou se não sabia quem era Guerra Ribeiro, na Guiné. E voltou para mim, e disse-me: “tu nasceste de novo felizmente...e custe o que custar, temos que pagar o imposto”.


[...] Notícia de fim da luta de libertação 


No dia 29 de abril de 1974, terminou para sempre o nosso martírio e sofrimento na Ilha das Galinhas. Efectivamente, quando era mais ou menos 1 hora, da tarde, do dia em que completei 58 anos de idade, o António Namorado estava a cortar-me cabelo e alguns companheiros vinham e gozavam comigo, a dizer-me que eu tinha que pagar qualquer coisa no «Cadjique», porque estava a tornar um rapaz novo. 

E naquela brincadeira, de repente ouvimos algumas vozes a gritarem bem alto na rua. Festa na Bissau. «Djintidi PIDE é prindidu tudu». Com aquela gritaria de contentamento, os rapazes queriam fazer manifestação logo naquele momento. Mas eu, de imediato, chamei-lhes à atenção para que esperassem ainda a confirmação do sucedido, isto porque lembrei-me logo da tentativa de golpe de Estado levado a cabo em dezembro de 61, a partir do Quartel de Beja.

[...] Mas, poucos momentos depois, apareceu um Segurança a gritar-me todo entusiasmado:

- Homi Garandi, nó ganha djá guerra, bim, bim, obi rádio de Bissau, i na fala ná bós, presos di PIDE. Nó toma dja nó tchon...Viva Amílcar Cabral, Viva PAIGC».

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Notas do Carlos de Carvalho:

[1] Inácio Soares de Carvalho, Bruno Dantas Pereira, Korca Djaló e João Lobo de Pina. De lembrar que o 5° elemento dos libertos na 2ª leva do Tarrafal, Horta Santy, fora definitivamente liberto logo depois de chegados a Bissau.

Segundo ISC (documentos avulsos), Korca Djaló era 2° Chefe de Esquadra e Lobo de Pina era Funcionário da Administração.

[2] De recordar que o inspector Miguel Cardoso é o mesmo que havia falado com os « libertos do Tarrafal » aquando do regresso à Guiné.

[3] Guerra Ribeiro e sua fama ficaram imortalizados na história da Guiné pelo já citado José Carlos Schwarz e sua Banda « Cobiana Jazz »,  num dos LP gravados nos anos 70 do séc. XX.

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 7 de março de 2020 Guiné 61/74 - P20708: (D)o outro lado do combate (58): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte V (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)

Postes anteriores:


5 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20705: (D)o outro lado do combate (57): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte IV (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)

3 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20701: (D)o outro lado do combate (56): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte III (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)

2 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20698: (D)o outro lado do combate (55): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte II (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)

29 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20695: (D)o outro lado do combate (54): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte I (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)

Guiné 61/74 - P20716: Notas de leitura (1271): “Bacomé Sambu”, por Afonso Correia; edição de autor, Lisboa, 1931 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Fevereiro de 2017:

Queridos amigos,
Dentro do inventário que Leopoldo Amado fez ao período ascensional da literatura colonial guineense, ele faz uma chamada de atenção a este livro apodando-o de paternalista e moralizador, já que a personagem Bacomé Sambu aparece como um produto acabado das regas da civilização dos brancos. Não contestando a base paternalista, acho que Afonso Correia nos legou uma obra com variados méritos: é a primeira vez, no século XX, que se dá a conhecer Cacine, o povo Nalu, os seus usos e tradições, as contendas religiosas advindas do islamismo; Afonso Correia é manifestamente crítico dos "branquinhos", os diretos exploradores dos indígenas.
Estamos em 1931, dera-se a pacificação, Cacine era uma parcela recentíssima da Guiné Portuguesa e Afonso Correia desvela vícios e impreparação da nossa administração colonial. Nada mau para conhecer com um certo grau de isenção essa nova porção do Império.
E goste-se ou não Bacomé Sambu é o primeiro romance escrito por um branco sobre a Guiné.

Um abraço do
Mário


Bacomé Sambu, o primeiro romance sobre a Guiné

Beja Santos

Chama-se “Bacomé Sambu”, o seu autor é Afonso Correia, é apresentado como romance negro, trata-se de uma edição de autor, Lisboa, 1931, capa de Alfredo Cândido. Em Guineidade e Africanidade, Leopoldo Amado estuda este fenómeno da aurora da literatura colonial guineense em torno de Bolama e o aparecimento de periódicos como O Comércio da Guiné. Amado refere o paternalismo dessa literatura, a sua inserção num período de pacificação e de instalação da administração colonial, são narrativas literárias limpadas de exotismo, fascínio da selva, uma literatura pontuada por situações de primitivismo, feitiçaria, embates religiosos. Não se consegue apurar quem foi Afonso Correia, porém, um dos exemplares que se pode comprar online tem a sua dedicatória para Armando Cortesão, muito provavelmente Correia foi funcionário colonial, percebe-se facilmente que não fala de ânimo leve do palco em que se desenrola o seu romance, a região de Cacine, terá mesmo conhecido a outra margem do rio, na Guiné Francesa.

Atribuo uma certa importância a esta obra. Logo quando nos diz (o que era inteiramente verdade naquela época) que “A Guiné Portuguesa, preciosidade africana que o mar beija com tanta sofreguidão, não possui uma história esclarecida da sua colonização, nem abundam elementos escritos que habilitem o observador imparcial a fazer a resenha da sua existência de quase cinco séculos”. E adianta outros pormenores sobre a vida colonial e os seus preconceitos: “O povo selvagem encastelava-se no isolamento das tabancas, entregue aos seus destinos bárbaros por muito tempo, mas onde havia uma civilização a seu modo, uma civilização cujos ensinamentos bons ainda hoje podem servir de lição a muitos homens arquicivilizados”.

O que quer que Afonso Correia tenha feito na Guiné, é manifestamente crítico da composição da administração e explica porquê: “Quando os militares graduados deixaram os postos de comando e regressaram à metrópole, os serviços administrativos ficaram entregues a elementos civis. Quem eram esses elementos? Soldados rasos de ontem, passados à reserva, com umas calças de cotim branco e um chapéu de palha. Nada mais, além de uma compleição psicológica afeita a todas as possíveis brutalidades”. Mas ajuíza que nem todos os civis foram maus nem todos o são felizmente. Aliás foi um desses bons administradores que originou a fatura deste romance, pelo seu acrisolado patriotismo.

O romance Bacomé Sambu desenrola-se em Cacine, terra de Nalus. Chegaram uma nova autoridade, ele pôs ao seu serviço particular “um pretito dócil”. Deram-lhe um nome diferente, Bacomé, enquanto ele estudava e aprendia as regras dos brancos, à sua volta dardejavam-lhe os comentários mais ácidos: “Não vês que um preto nunca pode chegar a branco? Este livro não te muda a cor e o teu pior destino, a tua mais horrível condição, como a nossa, é essa cor negra, eternamente negra”. Mais tarde, o administrador teve de sair de Cacine, “por motivos a que não era alheia a trica indígena do fabrico dos brancos, a trinca dos aventureiros”.

Bacomé já está em litígio com os usos e costumes da sua tabanca de Nalus, irá refugiar-se na selva, esta é o melhor aconchego dos mártires. Maravilham-no as belezas que dali se avistam até ao Tombali, o fritambá, a onça, a selva é espaço de formação: “É o cadinho onde se depuram sentimentos agrestes e onde se forma o carácter, no contexto exclusivo da Natureza. Viveu na selva, mesmo por momentos, é tatear o mistério, desvendar as incógnitas do Além, chegar ao paraíso”. A tabanca de Bacomé, o seu berço natal é Cametobã, ele foge para a selva porque não se quer sujeitar às regras do fanado e por lhe ter sido negada a rapariga mais formosa da tabanca. O régulo Queta manda-o procurar no mato, em vão, Bacomé atravessa o rio Cacine e chega ao contacto com uma família francesa cujo chefe se chama Antoine Dumont, “tem as faces inchadas, cor de rabanete e ostenta uns louros e fartos bigodes farfalhudos”. Tinha dois filhos, um corajoso caçador profissional e uma linda estampa da selva. O francês fala-lhe no macholi, o poderoso irã dos Nalus. Desperto pela curiosidade, Bacomé vai até à tabanca de Cabudu onde o respetivo régulo lhe propõe uma prova de resistência, irá procurar defuntos. Regressa triunfante e recebe como prémio uma bela mulher. Toma a decisão de voltar à sua terra natal.

Neste ponto da obra Afonso Correia introduz novos elementos que nos ajudam a interpretar o que seriam as grandes questões que se punham à administração naquele período da pacificação, ainda na década de 1920. Há uma crítica explícita aos mouros, que riscam da vida indígena todos os naturais extintos do trabalho, é impensável que alguém possa trabalhar nos campos com aquelas indumentárias próprias para dias de festa. E escreve-se claramente que “o fanado, o macholi e o mauritanismo são os três maiores tornados que devassam a loira seara da vida forte”. O romancista aproveita para criticar a duplicidade religiosa do régulo Queta, um alarve que namoriscava as fórmulas de Maomé sem esquecer as práticas do feiticismo primitivo. Bacomé, pelo seu grau de civilização, torna-se um educador muito apreciado pelas crianças, diz-lhe abertamente: “O rei Queta que vos ensina a derrota que sofreu quando, há anos, abandonou o seu chão para ir provocar os fulas. Estes, segurando as armas fornecidas pelos brancos, aplicaram-lhes um grande castigo”.

Faz-se uma exposição sobre o fanado e o batuque, assiste-se a uma cerimónia fúnebre do rei Camará, régulo vizinho. Bacomé diz às crianças que “os homens são todos iguais ao nascer, seja qual for o colorido da pele que o irã lhes dá. Há brancos e branquinhos, estes são os que vivem à custa dos brancos, andam no mato a farejar os negócios, comem-nos tudo”.

Afonso Correia conhecia seguramente ao milímetro este território, diz-nos que os Nalus de Cacine procuravam o território francês para as suas relações comerciais, económicas e cíveis, mas também esclarece que não procurava a autoridade francesa procurava sim os Nalus, seus irmãos, os sossos, seus aliados e aparentados. Afonso Correia discreteia entusiasticamente sobre os encantos da parte mais setentrional da Guiné, exalta a produtividade agrícola, aquelas terras davam milho, feijão, amendoim, coconote, borracha, arroz, todas as culturas hortícolas dos países brancos. E não ilude os gravíssimos erros da administração que fustigava os indígenas em vez de os acarinhar.

E ficamos-lhe a dever uma impressiva discrição de Cacine:
“Cacine, ao tempo, era um pequenino burgo indígena, sem ruelas, sem becos, um largo terreiro a embranquecer-lhe a face, algumas colheiras, uns débeis pezitos de coqueiros, dois barracões velhos, esburacados, cobertos de zinco que semelhava largos crivos de regadores, quando a chuva tamborilava sobre ele; a branca e pequena casa do secretário e o casarão abarracado, de madeira velha, com resguardos exteriores de zinco pintado a negro, onde se instalava, opípara e majestosamente, o “comandante Espinha”. Uma varanda erguida a toda a roda do casarão, com pavimentos de cimento armado, desenhos e cores de asfalto, duas bonitas laranjeiras a esconderem as arestas angulares da frontaria, uma cozinha estreita, mas severa de cortes, uma casa de banho, improvisada, um jardinzito amigo e terno, rosas a abrirem-se, brisas do rio a mordê-las, pássaros a debicarem nas pétalas, o rio largo, a ponte estreita e curta, barriga de pedregulho e cimento, quebrada com o longo e insistente martelar das águas salgadas”.

Admito que Bacomé Sambu não tem a qualidade literária que vai surgir, em 1934, com Auá, o romance premiado de Fausto Duarte e incensado por Aquilino Ribeiro. Mas não deixa de ser um retrato impressivo desse Sul da Guiné que até há dezenas de anos era território francês cedido como contrapeso à perda do Casamansa. Mais uma razão para se ler os comentários críticos, a denúncia da exploração e até da religiosidade trazida pelos mauritanos, ao arrepio dos usos e costumes dos Nalus.
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20707: Notas de leitura (1270): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (48) (Mário Beja Santos)

domingo, 8 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20715: Blogpoesia (664) : No Dia Internacional da Mulher: "Como todos os meus passos levam a ti..." (JUvenal Amado)

1. Mensagem do Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), autor do livro "A Tropa Vai Fazer de ti um Homem":
Data: domingo, 8/03/2020 à(s) 13:36

Assunto: dia da mulher


Talvez quando chegamos a esta idade nos apercebemos que na nossa vida foram sempre dias da mulher sem que nos apercebemos ou não quisemos aceitar o facto tal a importância que tiveram as nossas vidas .

Fui uma pessoa que se pode dizer abençoada pela sua constante presença. As minhas avós, tias, minha mão, mulher e por último filha sempre cercaram de atenções e eu nem sempre as mereci na realidade.

Passados que foram os anos de brasa onde as correrias quase não nos deixavam olhar para trás é hoje que faço esse compasso analítico e revejo a importância de tudo o que me deram sem esperar retribuição

Para não deixar de assinalar mais este Dia Internacional da Mulher aqui deixo um pequeno apontamento sem o valor da Calçada de Carriche, de António Gedeão mas mesmo assim de boa vontade.

Juvenal Amado
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Como todos os meus passos
           levam a ti
Uma dúvida transforma-se em certeza.
A Lua nova esconde-se e faz a escuridão 

           dona da noite,
Assim como areia fina e o vento quente
           provoca o tornado,
Também os carreiros de tanto serem 
percorridos 
           são transformados em caminhos,
nas gotas de água germinam riachos ,
rios na terra castanha fecunda
           transformam esta em seara,

Também tu me transformaste,
            mataste a minha sede
fizeste mim o homem que sou
e as minhas ausências,
            foram sempre preludio dos meus regressos

Juvenal Sacadura Amado

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Nota do editor:

Último poste da série > 8 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20713: Blogpoesia (663): "Por sendas e becos...", "O verso que falta" e "Pás do moinho", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P20714: Blogues da nossa blogosfera (125): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (40): Palavras e poesia


Blogue Jardim das Delícias, do Dr. Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com a devida vénia, reproduzimos esta publicação da sua autoria.


IN LIMINE

ADÃO CRUZ

© ADÃO CRUZ


Pelos caminhos de prantos e sorrisos
dentro de um tempo farto de horas sem minutos
a vida vai colhendo flores que murcham
por não serem simples flores ou flores simples
sem exigências de estufa ou jardim
flores de terra húmida
céu por cima e sol de permeio.
Em tudo o que me é vida
interfere a vergonha de ser adulto.
Descortino as janelas
que me disseram haver dentro dos homens
e só vejo muralhas.
Nada de crianças.
Os homens comeram as crianças
os homens comeram-se crianças
os homens pariram-se adultos.
Os pongídeos chegaram a homens.
Quinze milhões de anos
para o homem ser bicho…!
Bicho erecto
rastejo de púrpura.
Eu nasci na erva e dormi no feno
e acordei com a voz dos melros e rouxinóis
e saltitei com os pardais
vesti-me de sol e despi-me de luar
estreei o mundo no abraço das árvores e no beijo dos rios.
Meus olhos dormidos casavam a noite e o dia
no mesmo silêncio de sonho-menino.
A vida viveu em mim
crescendo todos os tamanhos
e medindo todos os céus.
Também eu fui criança
e matei em mim a criança que procuro
ao pensar que eram de amor
as mãos que a mataram.
Passei a vida a correr tropeçando nas sombras
arrumei ao canto da luz mil horas vazias
sangradas a curricular futuros
para ser gente na praça dos homens.
Pisei os passos pequeninos nos avessos da verdade
e palmilhei léguas vagarosas a tossir poeira.
Vestido de ausências
fui renascendo de amor pela vida fora
nos infinitos da fantasia
que outros foram matando lentamente
com fruído prazer.
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Nota do editor

Último poste da série de 1 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20697: Blogues da nossa blogosfera (123): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (39): Palavras e poesia

Guiné 61/74 - P20713: Blogpoesia (663): "Por sendas e becos...", "O verso que falta" e "Pás do moinho", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados, entre outros, ao nosso blogue durante a semana, que continuamos a publicar com prazer:


Por sendas e becos…

Por sendas e becos cirandam macacos.
Se perderam do bosque.
Ou fugiram da jaula.
Parecem sorrir e não sabem falar.
Soltam grunhidos.
Trepam às árvores e saltam nos ramos como ninguém.
Vieram à estrada e ficaram especados:
Outros macacos esquisitos.
De nariz empinado.
Usam camisa e gravata.
Fazem a barba e rapam a nuca que brilha ao sol.
Só andam ao alto e com as patas no chão.
Não lhes ligam nenhum.
Inchados,
Ficam contentes
Porque, só com uma corda, escalam rochedos e se julgam gigantes.
Não prestam para nada.
À beira daqueles,
São uns coitados.
Parecem uns vermes.

Bar, 7Momentos, 4 de Fevereiro de 2020
11h19m
Jlmg

********************

O verso que falta

Vou à procura do verso que falta.
Em vão esperei por ele todo o dia.
Sua viagem é uma incógnita.
Não sei donde ele vem nem mora.
Costuma abrir a manhã.
Jubilosamente, se faz sol.
Tristonho e macambúzio, se chove ou faz ventania.
Minha esperança não desespera.
Acaba por me bater à porta, nem que seja de madrugada.
A abro prazenteiro e ficamos na conversa, noite fora.
Um copo de bom vinho.
Me conta suas deambulações.
Por onde anda e com quem vai.
Sua escolha é cuidadosa.
É a dedo e não se engana.

Mafra, 6 de Março de 2020
21h33m
Jlmg

********************

Pás do moinho

As pás do moinho
Incessantes, rodam ao vento
As pás do moinho.
Silvam soturnas.
De noite e de dia.
Inverno e verão.
Geram energia,
Sustento da vida.
Trabalham de graça.
Moem farinha.
Fabricam o pão.
Velas acesas não ardem.
Batalham sem medo.
Não se deixam vencer.
Casinhas redondas,
Pintadas de branco,
Debruadas de azul.
Alegram os montes,
Caravelas do ar.
Quereriam ser remos
Dum barco à vela,
Sobre as ondas do mar
.


Mafra, 5 de Março de 2020
18h23m
Jlmg

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Nota do editor

Último poste da série de 1 de Março de 2019 > Guiné 61/74 - P20696: Blogpoesia (662): "Lírios à borda da estrada", "Para minha defesa..." e "Planeta Terra", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P20712: Manuscrito(s) (Luís Graça) (179): Poema de circum-navegação ou o fado dos amantes no Dia Internacional da Mulher









Lisboa > Praia de Pedrouços > 5 de janeiro de 2020 > Partida do navio-escola "Sagres" para a viagem de 371 dias nas celebrações do quinto centenário da circum-navegação de Fernão de Magalhães.


Fotos (e legenda): © Luís Graça (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Poema de circum-navegação ou o fado dos amantes

por Luís Graça




Uma rosa não é nada
Neste Dia da Mulher
P'ra quem, amor, minha amada,
Tem tanto p'ra te dizer.

Se sete vidas tivesse,
Uma não queria perdê-la,
Para que contigo vivesse,
Provando sempre merecê-la.

Ao mundo uma volta dava,
Em barca que fosse forte,
Mas contigo naufragava,
Noutra ilha que nos desse sorte.

Fortuna, porém, não rima
Com os negócios do coração,
Nem creio na obra-prima,
Nem no génio da criação.

Importa o aqui e o agora,
Não o depois nem o antes,
Mas, quando me for embora,

Cumpre-se o fado... dos amantes!


Lourinhã, 8 de março de Vinte-Vinte,
... e que os bons irãs protejam os amantes 
dos novos coronavírus que por aí andam... 
à solta!
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Guiné 61/74 - P20711: Ser solidário (227): Vamos ajudar a "Ajuda Amiga", consignando-lhe 0,5% do nosso IRS... Recebeu em 2019 a importância de 2.240,48 euros... Vamos utrapassar esta verba este ano.


CONSTRUÇÃO DO COMPLEXO ESCOLAR AJUDA AMIGA, EM NHENQUE >

Esta escola irá resolver uma uma situação dramática, pois as crianças têm que atravessar uma bolanha com mais de um quilometro com crocodilos para irem à escola de Bera que fica do outro lado, devido à falta de escolas nesta zona. As crianças para conseguirem passar pelos crocodilos atravessam acompanhadas por familiares mais velhos, que levam paus para afastarem os crocodilos e as defenderem dos seus ataques. (*)


CONSTRUÇÃO DO PRIMEIRO MÓDULO EM 2021

PRECISAMOS DA TUA AJUDA

CONSIGNAÇÃO DE 0,5% DO IRS


A consignação dos 0,5% do IRS é uma receita importante para a Ajuda Amiga, tendo recebido em 2019 a importância de 2.240,48 €, referente à consignação dos 0,5% do IRS. (**)

A Ajuda Amiga agradece sensibilizada este vosso gesto solidário, e apela para que mobilizem outras pessoas para esta declaração solidária, para tal basta indicar no campo 11 da declaração o NIF da Ajuda Amiga e uma cruz no IRS como a seguir se indica.

É um gesto que irá permitir aos nossos voluntários que nada pedem para si ou para as suas despesas nos projetos, poderem criar infraestruturas para que as crianças tenham uma escola onde possam aprender a ler e a escrever, um poço com água potável, e livros para aprenderem, os quais defendem e promovem igualmente a língua portuguesa.




11
Consignação de 0,5% do IRS
Entidades Beneficiárias
Instituições particulares de solidariedade social ou pessoas coletivas de utilidade pública (art.º 32, n.º 6 Lei n.º 16/2001)
NIF
508617910
IRS
X


Com pouco podemos ajudar muito

Donativos em Dinheiro > Conta da Ajuda Amiga


NIB 0036 0133 99100025138 26


IBAN PT50 0036 0133 99100025138 26


BIC MPIOPTPL

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Guiné 61/74 - P20710: Parabéns a você (1766): Cor Art Ref (DFA) António Marques Lopes, ex-Alf Mil Art da CART 1690 (Guiné, 1967/69)

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Nota do editor

Último poste da série de 28 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20689: Parabéns a você (1765): José Rodrigues, ex-Fur Mil TRMS da CCAÇ 1419 (Guiné, 1965/67)