segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21595: (De)Caras (166): Frei José Marques Henriques, da Ordem dos Frades Menores, 44 anos de vida sacerdotal na Guiné-Bissau, antes e depois da independência, como capelão militar e missionário


Frei José Marques Henriques (1970)


Frei José Marques Henriques (2020)

Fonte: Folha do Domingo, Faro, 18 de maio de 2020 (com a devida vénia...)


1. O frei José Marques Henriques,  da OFM -  Ordem dos Frades Menores (franciscanos), celebrou em 17 de maio de 2020,  em Faro, os  50 anos de vida sacerdotal, dos quais 44 foram vividos na Guiné-Bissau, antes e depois da independência, tendo sido também capelão militar, de 28 de abril a 9 de outubro de 1974. (*) 

Do jornal Folha do Domingo, Faro, edição de 18 de maio de 2020, retiramos alguns excertos e algumas partes do testemunho deste sacerdote português (e nosso camarada) sobre a sua experiência pessoal e religiosa na Guiné-Bissau. (**)


Os anos difíceis a seguir à independência


(...)  
Ordenado em Lisboa no dia 17 de maio de 1970, com mais quatro padres, pelo cardeal D. Manuel Cerejeira, seguiu para terra de missão. “A minha ideia é que seria melhor se me desse totalmente aos outros. E totalmente seria como missionário”, explicou o frei José Henriques ao Folha do Domingo, garantindo que os “primeiros anos da independência” “foram mais difíceis ainda” do que os já “difíceis” anos da guerra. 

“Não havia nada e era difícil até encontrar um fósforo. Durante muito tempo não tinha nada para comer de manhã. E ao almoço era só arroz. Se havia batatas, era uma ou duas para três ou quatro pessoas”, relata.

A guerra colonial: tiros das NT contra a missão franciscana 
[em Bula ] e intervenção de Spínola


(...) Antes, já tinha vivido a dura e traumatizante realidade de uma guerra colonial que ninguém compreendia. “Uma vez fomos atacados de noite e eu estava no internato com as crianças”, conta, lembrando os tiros nas portas “porque a 100 metros havia um quartel”.

 “Uma vez, os militares portugueses dispararam uns tiros para a nossa missão [em Bula ]. Então o Superior avisou o general Spínola de que estávamos a ser atacados pela nossa própria tropa e ele disse-lhes que nunca mais um tiro poderia cair naquela missão”, relata, explicando que os guerrilheiros do movimento de libertação da antiga colónia nunca atacaram a sede franciscana porque as crianças à sua guarda eram os seus próprios filhos. 

“O próprio Spínola é que os tinha posto lá”, conta, explicando tratar-se de crianças de povoações que tinham sido invadidas.


Pós-indepedência: prisões e fuzilamentos


Já no tempo da independência chegou a presenciar a prisão de dois jovens que estavam a preparar a festa de Santo Antão. Só a missiva que enviou ao então primeiro-ministro 'Nino' Vieira diz ter motivado a sua libertação. 

Na memória permanece-lhe ainda a ocorrência de um fuzilamento de cinco pessoas no campo de aviação da sua missão [Canchungo]. “Levaram as crianças das escolas para assistir, dizendo que iam assistir a um comício”, recorda com mágoa.


44 anos na Guiné: 10 anos em Bissau
 e os restantes no mato


(...) À pergunta se nunca pensou regressar nessa altura a Portugal, dá uma resposta perentória. “Nem nessa, nem nunca. Vim em 2014 porque vi que as forças já não davam mais”, assegurou.

Os primeiros três anos na Guiné passou-os como coadjutor da paróquia da catedral de Bissau e o ciclo da sua vida missionária naquela antiga colónia portuguesa em África completou-se com o regresso àquela comunidade para ser pároco nos últimos dois anos, antes de regressar a Portugal. 

No total esteve 10 anos em Bissau, tendo nos restantes cinco passado por mais duas paróquias que ajudou a desmembrar noutras. “Algumas, só na catequese tinham 3000 pessoas”, lembra, fazendo contas aos quilómetros percorridos por “acessos dificílimos”. 

Ao longo daqueles anos foi fundador de muitas comunidades perdidas no mato.


O regresso definitivo a Portugal, em 2014, 
apenas por razões de saúde


(...) Regressou a Portugal em 2013 e rumou ao Algarve por problemas de saúde e durante sete meses manteve-se por cá. Ainda voltou ao país africano, mas regressou à diocese algarvia definitivamente em 2014 para fazer parte da comunidade franciscana no Algarve e hoje é o guardião da Fraternidade Franciscana de Faro. 

Sobre o balanço deste meio século de ministério sacerdotal em que diz ter procurado “ser fiel”, entende que “só Deus é que poderá fazê-lo”. Assegura, no entanto, terem sido “anos de muita felicidade, mas também de sofrimento e muitas dores”. 

De entre os momentos positivos destaca ter testemunhado a cura de uma criança guineense com paludismo cerebral por quem rezou e que entregou aos cuidados médicos. (...)

Fonte: Excertos do jornal Folha do Domingo, (Faro) > 18 de maio de 2020 > Frei José Henriques celebrou 50 anos de sacerdócio, 44 na Guiné e os restantes no Algarve

[Adaptação, subtítulos, revisão, fixação de texto para efeitos de edição neste blogue. LG]

__________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 30 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21594: Os nossos capelães (13): José Marques Henriques, ofm, esteve no CTIG, de 28/4/1974 a 9/10/74 (João Crisóstomo, Nova Iorque)

Guiné 61/74 - P21594: Os nossos capelães (13): José Marques Henriques, ofm, esteve no CTIG, de 28/4/1974 a 9/10/74 (João Crisóstomo, Nova Iorque)



José Marques Henriques, sacerdote
da Ordem dos Frades Menores (Franciscanos)ofm), 
vigário paroquial da Conceição de Faro e Pechão.
 

1. Do João Crisóstomo (Nova Iorque) recebemos a seguinte mensagem;

Date: domingo, 29/11/2020 à(s) 21:26
Subject: Resposta ao email sobre os capelães

Caro Luís Graça,

Ainda sobre os capelães na Guiné… acabo de receber algo:

A 24 de Outubro enviei um email ao P. José Marques [Henriques] que está no Algarve. Acredito que esse email nem chegou ou o computador dele considerou-o como "junk" e o meu amigo nem o chegou a ver. 

Há dias liguei para o irmão dele (que era do meu curso) e chegou mesmo a ser franciscano mas saiu e vive agora no Algarve. 

E através dele confirmei os contactos e,  depois de falar com ele ao telefone,    enviei novo email, ( de que te fiz conhecimento em Bcc). 

Aqui está a resposta que acabo de receber. A informação não é muita mas mas é mais uma "janela" , a meu ver interessante e elucidativa.

Um abraço de saudades de nós dois para vocês os dois...

João e Vilma

2. Mensagem de José Marques Henriques, enviada ao João Crisóstomo (e que este partilha com a Tabanca Grande);

Subject: Resposta ao email sobre os capelães

Date: November 29, 2020 at 2:15:54 PM EST

Amigo João Crisóstomo, aqui vão alguns dados sobre a minha vida de capelão militar:

Parti para a Guiné como capelão, num avião da força aérea, no dia 27 de abril de 1974 (apenas dois dias depois do 25 de abril). 

Fui colocado no batalhão de cavalaria, em Bula, mas assistindo mais outros dois batalhões, estacionados em Canchungo e Cacheu. 

O meu trabalho desenvolveu-se, portanto, no território dos mancanhas e manjacos. Regressei a Portugal em outubro deste mesmo ano de 1974, num paquete cujo nome não recordo perfeitamente neste momento, mas que julgo ser o Niassa.

Antes de partir para a Guiné como capelão, estive a trabalhar no quartel da Amadora, desde o início de fevereiro de 74, como ajudante do capelão que aí estava colocado. Não fui para a Guiné logo a seguir ao curso, como pretendia, e apesar de ter sido o único a disponibilizar-me para partir para lá, porque fui rejeitado. Colocaram-me na Amadora para me conhecerem melhor. 

Tinha vindo da Guiné para o curso de capelães e, como é natural, durante esse curso dei o meu testemunho sobre o que se estava lá passando, e sobre os reais motivos que estiveram na origem da guerra desencadeada pelo PAIGC contra o regime colonial, mas parece que esse testemunho não agradou a Marcelo Caetano nem aos oficiais superiores do regime, a célebre brigada do reumático

Esta a razão por que só me deixaram partir para a Guiné como capelão, depois do 25 de abril. Aí assisti ao arrear da nossa bandeira e ao içar da bandeira dos Libertadores. O comandante de Bula - o coronel César - não se conformava. Dizia mesmo que tinha vergonha de ser português. 

Perante esta atitude, os capitães de abril e majores, tenentes e alferes, que estavam no terreno, resolveram, através dum abaixo-assinado, proceder ao seu saneamento. O que aconteceu, com a minha anuência. Só pus uma condição: não ser o primeiro a assinar.

Um abraço bem apertado deste teu amigo José Henriques 

3. Comentário do editor LG:

Obrigado, João. Tu nunca "brincas em serviço",  levas as coisas até ao fim e a "carta a Garcia". Agora, e na volta do correio, convida o nosso capelão a juntart-se à Tabanca Grande: tenho um lugarzinho bom para ele, à sombra do nosso poilão, o nº 822.

Recolhemos, na Net, mais os seguinte dados sobre o teu amigo e colega e nosso camarada José Marques Henriques_

(i) é da colheita de 1944 (faz anos a 3 de agosto);

(ii) natural de Ourém;

(iii) foi ordenado padre em 17  de maio de 1970;

(iv) foi missionário na Guiné-Bissau durante 44 anos, antes e depois da independência;

(v) mora em Faro;

(v) é o vigário paroquial da Conceição de Faro e Pechão.

Fonte: Directório da Diocese do Algarve > Pe. José Marques Henriques

Fonte: Jornal Folha do Domingo, (Faro) > 18 de maio de 2020 > Frei José Henriques celebrou 50 anos de sacerdócio, 44 na Guiné e os restantes no Algarve

Tem página no Facebook onde se vê que continua a ser muito acarinhado pelos cristãos da Guiné-Bissau, e nomeadamente os do chão manjaco (, ele esteve como missionário no Canchungo até há uns anos atrás, voltando a Portugal por razões de saúde)... 

Veja-se aqui este testemunho de Rita Gomes, em 22 de maio de 2020:

(...) Pai Henrique, todo o mundo está a sentir a sua falta, o seu ensino, a nossa igreja em Canchungo,  Cacheu nunca mais vai ser a mesma, alguns de nós eram crianças, pre-adolescentes e adolescentes, que saudade,  estou emocionada,  a presença do Senhor naquela época deixou a marca no coração de cada um de nós, que Deus lhe abençoe e protega cada dia da sua vida o nosso Pai Henrique, Amén. (...)
_____________

Nota do editor:



17 de setembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19023: Os nossos capelães militares (9): segundo os dados disponíveis, serviram no CTIG 113 capelães, 90% pertenciam ao Exército, e eram na sua grande maioria oriundos do clero secular ou diocesano. Houve ainda 7 franciscanos, 3 jesuitas, 2 salesianos e 1 dominicano.

domingo, 29 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21593: Manuscrito(s) (Luís Graça) (194 ): À laia de despedida de uma Garça gentil...




Lourinhã > Praia da Areia Branca > Foz do Rio Grande > Uma garça-real (Ardea cinerea)

Fotos (e legenda): © Luís Graça (2020). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 
1. Anteontem, de manhã, à maré-vazia, quando fui dar os "meus passos em  volta" , na foz do rio grande da minha infância, agarrado à minha canadiana, voltei a encontrar a minha Garça solitária (*)

Gosto dela, é resiliente e resistente, lutando contra ventos e marés, indiferente a quem passa pela ponte sobre o rio, desde que não lhe apontem a caçadeira do caçador...

Como eu ia apenas munido de uma pacífica máquina fotográfica (e auxiliado no andar por mais uma estranha perna...), ela não se assustou, não tugiu nem mugiu, lá continuou atenta ao peixe que nessa manhã ela se esforçava para que caísse no seu prato... 

Imagino que, como todas as criaturas de Deus, a minha Garça  tenha de comer todos os dias como eu que, nessa manhã, já levava a vantagem de ter comido o meu pequeno almoço: uma banana, uma pera rocha, um quivi, metade de um dióspiro,  pedaços de nozes e um iogurte natural, sem acúcar,,, Não descobri, claro,  qual foi o pequeno almoço da minha Garça... mas talvez alguma incauta taínha,

Digo "minha Garça" sem qualqer sentido possessivo: as aves do céu, da terra e do mar não têm, não devem ter dono... De qualquer modo, ela está aqui há anos, dizem, e é uma excelente pescadora. Não sei se ela tem o certificado de residência legal, nem sei se passou pelo controlo do SEF - Serviço de Estrangeiros e Fronteiras... Mais: nem sei qual é a sua nacionalidade, sexo, idade... 

Gosto de a rever, de quando em vez, alegra-me encontrá-la, aparentemente saudável, nestes dias tristes em que a pandemia de Covid-19 nos obriga a andar mascarados. E sós. 

E eu tenho inveja dela, que é mais livre do que eu, não tem horas para trabalhar, comer, descansar, dormir, namorar, acasalar (, admitindo que, de vez em quando, lá encontre um macho ou uma fêmea da sua espécie, que eu por aqui só sei que há, entre os residentes,  uma galinhola e um quarteirão de patos reais, e de vez em quando uns maçaricos, enfim, tudo espécies diferentes, logo seres não compatíveis em termos de acasalamento e reprodução).

Sem pedir autorização a ninguém, batizei-a com o nome da minha neta: Clarinha. E espero um dia possibilitar um encontro entre as duas Clarinhas.

2. Mas também me lembrei (, que raio de memória,  a dos humanos!) de um poema que escrevi, em finais de julho de 2013, e que tinha justamente por título "À laia de despedida de uma Garça"...

Na altura, na organização onde eu trabalhava, iam cortar um posto de trabalho, por questões, imagino, de "racionalidade técnico-organizacional" ou em consequência de alguma "análise de custo-benefício"... 

Na época não havia pandemia nenhuma, mas estávamos estávamos a atravessae o mar das tormentas da tremenda crise económica e financeira de 2008, e, em 2013,  depois de conseguir vir ao de cima, bracejar, respirar e nadar, estávamos a tentar  não morrer na praia... Aliás, como agora.

E a propósitpo: Crises, crises, crises ?!... Por quantas não passámos já nós, a malta da nossa geração,  ao longo destes últimos 70 anos,  antes e depois da guerra que nos coube em sorte como combatentes ?!...

Abreviando a história: a minha Garça (Graça, de seu nome próprio, não tendo nenhum laço de parentesco comigo, que sou Graça de apelido...) foi vítima de uma decisão do gestor do departamento de informática (ou da empresa de "outsourcing" que trabalhavapara o departamento de informática, não interessa: foi despedida, ou melhor, "dispensada"...).

Na altura, no último dia de trabalho (era fim de julho e íamos todos de férias, e portanto era a melhor altura para despedir, ou melhor,  "dispensar",  alguém nas empresa...), escrevi este texto que partilhei com as pessoas da minha organização... 

Por razões óbvias, não indentifico nem pessoas nem lugares, nem isso agora e aqui é  relevante; e se fui respescar este texto, entretanto  revisto, é porque estas situações repetem-se, com demasiada frequência nas nossas sociedades, com ou sem pandemias... 

A razão mais imediata para ter ido, não sei como, desenterrar este texto,  é porque eu voltei a encontrar, há dias, a  minha Garça (, agora Garça Clarinha), que reside na foz do rio grande da minha infância...

Não sendo budista, não acredito na transmigração das almas... Mas há pessoas que, de uma maneira ou doutra, nos tocam, que interagem connosco, nos dizem alguma coisa, de quem perdemos o rasto, e de quem guardamos sempre uma pontinha de saudade...E que gostaríamos de rever um dia...

Esta Garça nem sequer era  minha amiga. era apenas conhecida, era colega de trabalho, e sobretudo era gentil... Era uma Garça gentil... E eu gosto da gentileza humana, que é um traço humano distintivo. Os deuses e os heróis não são (nem podem ser) gentis, os homens (e as mulheres) podem sê-lo.  

Onde quer que ela esteja, a viver e a trabalhar, a Garça gentil do meu texto poético, gostaria que ela me pudesse ler e reconhecer...


À laia de despedida de uma Garça gentil

por Luís Graça

Deixem-me dizer-vos, amigos, uma palavrinha antes que o dia acabe 
E passe o verão do nosso contentamento descontente… 

Segunda feira começa o agosto, o nosso querido mês de agosto, 
Seguramente o mês  em que os portugueses ficam mais próximos 
Do puro estado de felicidade… 
Os portugueses de dentro e os de fora… 

Pois, na próxima segunda feira, já seremos menos um nesta casa, 
Onde se estuda e se trabalha, qualquer que seja seja o piso.
Pelo menos, a nossa Garça já não estará cá em setembro, 
No piso tal, no departamento tal, no gabinete tal,,,

E já não trabalhará cá,  para, sempre solícita e gentil, 
Poder responder aos nossos SOS 
De utentes atrapalhados  com as partidas das máquinas 
De quem somos cada vez mais tecnicodependentes… 

Pois é, a nossa querida e gentil Garça vai-nos deixar 
Pela simples razão de que a empresa  
Que gere o nosso "back office" informático, 
Vai dispensá-la. (Ou, tanto faz,  a empresa de "outsourcing" 
A que ela pertencia.

Posso não entender, 
Mas também não discuto, as razões dos gestores 
Que são soberanos, 
E que todos os dias têm de decidir da vida das pessoas 
Que trabalham nas suas/nossas empresas. 

Dir-me-ão que a Garça deixou de caber no algoritmo da empresa 
Que a contratou para trabalhar connosco e para nós.

As nossas vidas são simples, 
As contas é que são complicadas, 
E os contos ainda mais… 

Pelo menos, é o que ouvimos dizer todos os dias: 
"A economia, seu estúpido!" 
Pois seja, a economia, meu estúpido, digo eu para mim mesmo,
Mas não é ela, a estúpida da eonomia,  
Que nos vai matar os sonhos!... 
Nem as nossas gentis garças que se atravessam, em voo raso, 
Na nossa autoestrada da vida, ou nos atalhos
Em que a gente se mete, sem medir às vezes os trabalhos.

Já lá vai quase uma década 
Que eu vi a jovem e tímida Garça, 
A entrar pela nossa casa  adentro, 
E a competir, taco a taco, 
Com os machos informáticos de barba rija,
No terreno que era (ou tinha sido) o deles.
 
Era minha vizinha, a Garça, da Estremadura,
Mas podia ser de Trás-os-Montes, 
Ou da Ucrânia, ou da Guiné-Bissau, tanto fazia.
E depois habituei-me a vê-la, 
No meu querido mês de agosto, 
Na minha não menos querida praia das férias de verão, 
Já com os rebentos pela mão… 

Sim, porque entretanto, também foi mãe, 
Como todas as garças deste mundo.
Tinha sido mãe, nestes anos que passaram por ela e por mim, 
Assim tão de repente, e sem a gente se  dar conta.

Eu sei que a Garça é  uma mulher lutadora 
E que leva daqui um portfólio, como se diz agora, 
De competências cognitivas e não-cognitivas (, que palavrões!)
Competências não só técnicas 
Mas também humanas e relacionais, 
Que a vão ajudar a voltar rapidamente 
Ao mercado de trabalho... das presas e dos predadores.

Mas, perdoem-me a fra(n)queza, 
Eu vou ter saudades da nossa Garça, 
Da sua voz aguda, e do seu sorriso, 
E daquele seu jeito de, mesmo debaixo de stresse, 
Me dizer, com a maior gentileza do mundo: 
"Professor, deixe aí o seu portátil, 
Que a gente já resolve o problema"… 

O único consolo que me resta, 
Enquanto faço o luto pela sua perda, 
Valioso recurso humano da casa de todos nós, 
É que eu vou já encontrá-la, na segunda feira, 
Na minha querida praia das férias de verão,

E vou convidá-la para tomar uma bica, 
E, como diria um bom alentejano, 
Tabaquear o caso, com ela… 
Ou,   por outros palavras,  
Dar à íngua,  pôr a conversa em dia, 
Puxar umas fumaças (ela, não eu que sou ex-fumador há muito…). 

Vamos recordar as pequenas histórias 
Com que a gente tece, colectivamente, 
A malha da grande História… 

Mesmo sem direito a retrato institucional, 
Que esse é prerrogativa dos nossos maiores
A Garça faz parte da nossa pequena história, 
 
Porque um dia, essa Garça,gentil,  franqueou 
O portão do nosso casarão que nem sequer tem  número de polícia,
E voou até ao departamento de informática, 

E porque as nossas organizações devem ter um rosto, 
E porque o melhor delas somos nós, 
A acreditar nos livros do gurus da gestão, 
As equipas e os trabalhadores de equipa,  e os seus líderes, 
Então eu atrevo-me  a falar em nome das garças que não têm voz, 
E mesmo sem legitimidade institucional para o fazer, 
Para simplesmente lhe dizer: 
"Obrigado, Garça, vamos sentir a tua falta. 
Mas também sabemos que tens asas e força para voar! 
Força e perícia! 
E nos teus novos voos por novos céus, 
E nos teus passeios, à cata de comida, por novas águas pantanosas,
Não te esqueças de nós, 
Que gostamos sempre que os amigos voltem e nos visitem,
Sempre que quiserem e puderem!
Muita saúde e longa vida,  porque tu mereces tudo! "

Luís Graça, Lisboa, 31 de julho de 2013, revisto hoje.

PS -Nunca mais voltar a ver a Garça gentil... Oxalá esteja bem ou ainda melhor do que da última vez que a vi, em finais de julho de 2013.
 
__________

Nota do editor:


Guiné 61/74 - P21592: Blogpoesia (707): "Hecatombe de estrelas", "A Criação" e "A sobriedade dos gestos", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. A habitual colaboração semanal do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) com estes belíssimos poemas, enviados, entre outros, ao nosso blogue durante esta semana:


Hecatombe de estrelas

Hecatombe de estrelas,
perdidas pelo universo,
deambulam penadas,
curtindo e penando suas penas.
Uma reabilião entre elas,
Pôs fim ao estado de paz e felicidade
Que lhes brindara o Criador.
Grassa nelas a angústia e o desespero.
Nunca mais verão céu.
Se lhe apagou a luz.
Viajam negras.
Perdidas.
Secaram-lhes todas as cores.
Passam e ninguém as vê.
Ficarão assim, eternamente.


Berlim, 24 de Novembro de 2020
8h52m
Jlmg


********************

A Criação

Criar é amar. Cada ser é um acto de amor.
Por isso, existe este universo, imenso e esplendoroso.
Das galáxias em altar.
Desta Terra onde viaja a humanidade.
Utilizando-a como um navio no mar alteroso da vida.
Ao seu serviço, pronto e total.
Desde os tempos das cavernas.
Quando o homem vestia sua nudez,
Com a pele de animais.
Para chegar à modernidade,
Com maus tratos de toda a ordem.
Desvirtuando-lhe o clima.
Com experiências atómicas
E as mixórdias da poluição.
Tudo, pela sua voragem irracional.
Do ter e do poder.
Por isso, advêm as hecatombes.
Os dilúvios e tsunamis.
Até que um dia, O Criador, cansado, a lançará, com sua ira,
No deserto da inexistência.


Berlim, 25 de Novembro de 2020
8h54m
Jlmg


********************

A sobriedade dos gestos

Com toucados e vestes arrojadas,
Não germina a sobriedade.
Virtude vital
Onde a vida cresce e frutifica.
Ser belo só por si,
É ociosidade.
Onde cresce o erro e se manifesta a frustação.
Ser feliz só para si,
Também não é bem.
A felicidade só surge da partilha desinteressada.
Dar só para alardear,
É terreno da vaidade.
Ostentação e vacuidade.
Jardim de cactos.
Onde crescem os espinhos e a tentação.
A fonte de todos os vícios e também do mal.
Para isso, a vida nada vale.


Berlim, 27 de Novembro de 2020
9h58m
Jlmg

____________

Nota do editor

Último poste da série de 22 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21567: Blogpoesia (706): "Pedra a pedra", "Onde mora a alegria?" e "Rude e rústica", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P21591: Bombolom XXIX (Paulo Salgado): "Dezasseis anos depois", um poema meu, que li em Santarém, no encontro anual da CCAV 2721, em Abril de 1986, onde esteve presente no final do almoço o Salgueiro Maia (1944-1992)


Guiné > Região do Oio > Olossato > CCAV 2721 (1970/72) > 1970 > O Alf Mil Cav Salgado, dando uma mãozinha ao pessoal dos serviços de saúde


Foto (e legenda): © Paulo Salgado (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Paulo Salgado (ex-Alf Mil Op Esp da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), autor dos livros, "Milando ou Andanças por África", "Guiné, Crónicas de Guerra e Amor" e "7 Histórias para o Xavier":


Data - segunda, 26/10/2020, 16:14
Assunto . Um poema

Meu caro Luís Graça,
Meus Caros Editores,

Junto um poema que fiz em Abril de 1986. Li-o em Santarém no encontro anual da minha Companhia - CCAV 2721.

Esteve presente no final do almoço o capitão Salgueiro Maia. que veio dar um abraço à malta, em especial ao seu camarada Mário Tomé.

Peço-vos o favor - se for publicado no nosso Blogue - de atender à separação das estrofes. Obrigado.

Um abraço a todos.
E votos de resistência.

Paulo Salgado



DEZASSEIS ANOS DEPOIS

por Paulo Salgado


Anos de setenta

de surpresas e desventuras,

de guerra e de paz,

de ódio e de amor,

de carnificina e fraternidade.

 

As viaturas lançando poeira vermelha.

O cigarro fumado à sombra do mangueiro.

As crianças atraídas pela nova gente.

Os velhinhos dizendo chacota e piada.

As casas cobertas de capim.

O arame farpado rodeando o imenso terreiro.

Mulheres e homens de olhar indiferente.

As casas comerciais antigas.

As casernas  os abrigos  as valas

Os postos de sentinela o longe mirando

O rio correndo ao fundo pelos matagais

A floresta e a bolanha de grandeza nunca vistas

Os carreiros por entre matas serpenteando

- Pedaços de Abril de setenta

 

Anos de setenta

de surpresas e desventuras ,

de guerra e de paz,

de ódio e de amor,

de carnificina e fraternidade.


 P’ra trás ficou Bissorã,

Mansoa, Bissau, o Pidgiguiti cais

da luta sangrenta de operários e arrais

lá onde acostou o “Carvalho Araújo”,

(com nome do bravo marujo)

trazendo no seio carne para canhão.

 

A viagem foi lenta e segura.

Levar a bom porto tal gentalha

(que a guerra há tanto tempo dura)

p’ra alimentar de novo a fornalha.

Cada qual chorando os entes queridos,

alguns, do porão, lançando vómitos repetidos,

outros, amigos, conversando na amura.

 

Mar alto, mar de calma,

muitos companheiros nunca olharam,

mas outros antanho navegaram,

fosse Zarco ou Tristão, Nola ou Gama,

aqueles que sonharam com impérios

(se tais sonhos, loucos, ousaram)

de Lisboa até à Oceânia

vivos, agora, lançariam vitupérios

à desordem, à guerra, à infâmia

que de guerras tantas sofreram.

 

Anos de setenta

de surpresas e desventuras ,

de guerra e de paz,

de ódio e de amor,

de carnificina e fraternidade.


Olossato, Cansambo, Canicó,

Cansonco, Fajonquito, Nemanacó,

Amina Dala, Canjaja, Morés,

Iracunda, Bissancage, Maqué,

e outra belas tabancas,

de fulas, mandigas, balantas

mil etnias desta Guiné.

 

Destruídas, arrasadas, queimadas,

incultas, nuas, abandonadas,

terras que deram fruto e vida

agora chão fratricida.

Irmãos de raça ou de cor

lutando no lado de lá

com armas deitando fogo.

As voltas que a vida dá.

 

Já não se saboreiam cajus,

já não se cultivam bolanhas

nem se colhe o bom feijão

apenas se ouve o obus

e se contam as façanhas

de cada guarnição

 

Quem imagina um passeio

rio acima de canoa

ou viagem a Mansoa

Bafatá ou Farim?

Não passará de anseio,

quem pensa coisa assim?

Mancebo quer casar

bajuda formosa, nubente.

Como podem eles folgar

ao som do batuque dançar

e amarem-se no palmar

se a pobreza está presente?

 

Mistério este incompreendido

por deus.

lá no alto dos céus

bem por cima dos poilões

ele não vela

não vê o que se passa na Terra.

Terra

Negra Terra

Dura

Obscura

em que os homens são caminheiros

de estradas cortadas

esbarrando no arame farpado.

Com as mãos sangrando

aos seus deuses gritando:

Acabaram-se os sonhos?

Acabou-se o amor?

Não vedes, ó deuses,

as crianças de olhar parado e triste?

 

Anos de setenta

de surpresas e desventuras ,

de guerra e de paz,

de ódio e de amor,

de carnificina e fraternidade.


Troaram metralhadoras

e cantaram “costureirinhas”

pelo tarrafo lá ao fundo

e pelo rio atá à foz.

E a nossa voz

é um grito profundo

 

Quantos padeceram

a doença e o sofrimento

da fome e da solidão!

Quantos se picaram

e se vergastaram

pelo movimento

dos corpos suados!

Tristeza no coração.

 

Tapámos os olhos para não ver

o sangue escorrendo nas carnes feridas.

Tapámos os ouvidos para não ouvir

os ais lancinantes de desesperança

que brotavam das bucas sujas,

cheias de terra.

  

 Ah, o nosso mundo não é este.

Nos dedos escorre a morte   a dor   o suor.

Os olhos choram companheiros

sem sorte.

Nós queremos erguer

a bandeira branca

e cantar

e ouvir

canções contra a injustiça

contra as trevas

contra a infâmia maldita

que lançaram sobre o nosso destino.

 

Anos de setenta

de surpresas e desventuras ,

de guerra e de paz,

de ódio e de amor,

de carnificina e fraternidade.

 

Tantos anos já passaram

desde aquelas horas

à chuva

ao calor

ao cansaço

ao sofrimento…

 

Dezasseis anos passaram

depois de tantos homens

e tantas mulheres

e tantas crianças

morrerem

sofrerem

no mato

na bolanha

na tabanca ardida

incendiada

violada.

 

Dezasseis anos passaram

cheias de mortes,

anónimas, algumas concretas   próximas   desesperantes

vivas.

 

Dezasseis anos já passaram.

A nossa memória

paira na poeira do tempo

e da história .

Não esqueceremos

o capitão,

o Sebastião

a Kadi mulher

e os homens e mulheres

que na guerra se encontraram.

 

Tantos anos depois

não esqueceremos.

 

Anos de Abril de setenta

sonhando com Abril próximo

Abril sem ódio e sem guerra.

Com paz e fraternidade

na nossa terra.

 

Paulo Salgado

Abril de 1986 

(nas vésperas do encontro da nossa Companhia – CCAV 2721, 

em Santarém).

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Nota do editor:


Último poste da série > 27 de novembro de  2020 > Guiné 61/74 - P21587: Bombolom XXVIII (Paulo Salgado): Saudação e participação