quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21792: Blogues da nossa blogosfera (147): PANHARD - Esquadrão de Bula (Guiné, 1963/1974) (3): Nos dias da guerra: As Panhard em Guidage (José Ramos, ex-1.º Cabo Condutor de Panhard AML do EREC 3432)



Do blogue PANHARD - Esquadrão de Bula (Guiné, 1963-1974), que estamos a seguir e que é editado pelo nosso camarada José Ramos, ex-1.º Cabo Condutor de Panhard AML, do EREC 3432, que esteve em Bula, de 1972 a 1974.


NOS DIAS DA GUERRA: AS PANHARD EM GUIDAGE

O ano de 1973 trouxe ao conflito que nos opunha ao PAIGC, novos desenvolvimentos no terreno com a introdução por parte destes de novo armamento, nomeadamente dos misseis terra-ar Strela-2M e que viriam a condicionar a ação dos meios aéreos. Mas igualmente dos seus objetivos de luta criando uma maior pressão sobre as unidades de quadrícula, ao qual o PAIGC somava vitórias no campo diplomático, e que procuravam igualmente criar condições para uma transição da guerra de guerrilha que até ai desenvolviam para uma guerra de carácter mais convencional. Intenção expressa no então desenrolar do designado INFERNO DOS 3 Gês: GUIDAGE, GUILEJE E GADAMAEL.

Durante o mês de Maio, desse ano o PAIGC desencadeou no Norte da Guiné a “Operação Nô Pintcha” mantendo o aquartelamento de Guidage sobre flagelação com a finalidade de o isolar, levando ao seu abandono e à sua posterior ocupação, através de um cerco realizado por um grande número de forças equipadas com meios de infantaria artilharia, foguetões, morteiros e mísseis.

Para concretizar esse objetivo foram também deslocados um elevado número de elementos e de meios para neutralizar a circulação entre Binta e Guidage através de ações que impedissem qualquer tentativa de abastecimento da unidade.

Ao fim de mais de um mês de cerco e de seis colunas de reabastecimento a Guidage, apenas em Junho o PAIGC voltou a flagelar o aquartelamento, o que indiciava que desistira desse objetivo, agora centrado a Sul em Guileje.


MISSÕES DO ESQUADRÃO

“Ao Esquadrão foram atribuídas diversas missões, em especial, escoltas e proteção a colunas, ações de presença, vigilância móvel dos itinerários e segurança a pessoal em trabalho num campo de minas.”

“Um pelotão foi destacado para reforço do BCaç 3832 até 16Jul72, instalando-se em Jugudul e Mansoa. Por períodos variáveis, cedeu ainda pelotões para reforço de diversos batalhões os quais foram destacados para Bissorã, de 05Out72 a 20Abr73, na dependência do BCaç 4610/72:”

“Para Catió, de 20Abr73 a meados de Set73, na dependência do BCaç 4510/72 e para Mansoa, a partir de 14Set73, na dependência do BCaç 4612/72, com vista a colaborar na segurança e proteção dos trabalhos das estradas em construção e das colunas de reabastecimento e de transporte de materiais.”


Fonte: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) (2002). 7.º Volume – Fichas das Unidades - Tomo II – Guiné. Lisboa: Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). 1.ª Edição.

Como missão específica atribuída, a este ERec, destaca-se a proteção do pessoal da Tecnil na construção das seguintes estradas:

Catió – Cufar
Bissorã – Mamedão
Jugudul - Bambadinca

Na sequência destes destacamentos um PelRec do ERec 3432, destacado em Mansoa, terá integrado uma coluna de reabastecimento a Guidage.

Nota: as fotos publicadas foram retiradas de a "Guerra" Episódio 32, de Joaquim Furtado - RTP1.

Em 15Jun saiu uma coluna auto de Guidage com destino a Binta, abrindo novo itinerário. A força era constituída por 1 GComb/1.ª/BCaç4512/72, Pel Sap do BCaç 4512/72, GMil 342, 1 Sec AM “Panhard” do ERec 3432, Pel Caç Nativos 56 e 65.

Fonte: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) (2015). 6.º Volume – Aspectos da Actividade Operacional - Tomo II – Guiné. Livro III, Lisboa: Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). 1.ª Edição.

Esta referência confirma a ida deste Pel Rec, embora se refira apenas à sua saída.

Esta é também descrita pelo ex. Fur Mil Cav Armando Lopes, ao Correio da Manhã num texto intitulado “A Minha Guerra”.

“Numa operação, tocou-nos dar proteção a uma coluna de reabastecimento para Guidage – um aquartelamento da nossa tropa, praticamente em cima da fronteira com o Senegal, país onde o PAIGC tinha instaladas as bases de apoio. A zona de Guidage escondia as principais rotas dos guerrilheiros para o interior da nossa província. Dias antes da operação, estalara um violento combate entre a nossa tropa e a guerrilha. Quando seguimos para Guidage, colados à coluna de reabastecimento, encontrámos pelo caminho as marcas dessa batalha: vimos as enormes crateras na picada e os destroços calcinados e retorcidos de camiões Berliet de transporte de pessoal. Soubemos, depois, que a tropa portuguesa tinha conseguido aguentar o ataque mas deixou para trás algumas viaturas. A Força Aérea bombardeou as Berliet abandonadas para impedir que caíssem nas mãos dos guerrilheiros. Chegámos sem problemas a Guidage, onde passámos a noite, e no dia seguinte segui com o meu esquadrão a caminho de Mansabá.”

Fonte: https://esquadraodebula.blogspot.com/search/label/Armando%20Lopes

Em conversa posterior, lembra-se que teriam ficado apenas uma noite, dormindo nas Panhard e saído no dia seguinte.
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Notas do editor:

Poste anterior de 3 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21220: Blogues da nossa blogosfera (135): PANHARD - Esquadrão de Bula (Guiné, 1963/1974) (2): Modelo à escala da Panhard AML 60, MX-03-19, do EREC 3432 (1972/74). Autor: João Tavares, da Associação de Modelismo do Montijo (José Ramos)

Último poste da série de 20 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21666: Blogues da nossa blogosfera (146): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (57): Palavras e poesia

Guiné 61/74 - P21791: Usados & Achados: pensamentos para aumentar a nossa resiliência em mais um "annus horribilis": (4) A 'descoberta' da Índia


Fernando Pessoa, 1914. Fonte: Wikipedia
(Imagem do domínio público)


Opiário

É antes do ópio que a minh’alma é doente.

Sentir a vida convalesce e estiola

E eu vou buscar ao ópio que consola

Um Oriente ao oriente do Oriente. (...)


Eu acho que não vale a pena ter

Ido ao Oriente e visto a Índia e a China.

A terra é semelhante e pequenina

E há só uma maneira de viver. (...)


Pertenço a um género de portugueses

Que depois de estar a Índia descoberta

Ficaram sem trabalho. A morte é certa.

Tenho pensado nisto muitas vezes. (...)


E afinal o que quero é fé, é calma,

E não ter estas sensações confusas.

Deus que acabe com isto! Abra as eclusas —

E basta de comédias na minh’alma!

 

                        No Canal de Suez, a bordo. [1914] 


[Publicado originalmente na revista "Orfeu", 1915]



Fonte: Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993), p. 135. Disponível aqui: http://arquivopessoa.net/textos/2456 

(Usado & Achado > A 'descoberta' da Índia > Selecção: LG)



1. Em tempo de confinamento geral (o segundo desta pandemia de Covid-19), algum "humor de caserna", com alguma brejeirice e saudável malícia, será bem vindo, de tempos a tempos, para  amenizar a leitura diária do Blogue e reforçar a nossa resiliência, desde que não infrinja as nossas regras de bom senso e bom gosto, base da nossa política editorial...

Lembrámo-nos por isso de dar início a uma série a que chamamos "Usados & Achados": pequenos textos, pensamentos do dia ou da noite, ideias ou frases, de preferência ilustrados, que nos façam sorrir, rir, sentir, emocionar, sonhar, ou até chorar, gritar, pensar, reflectir, imaginar, meditar, etc.

Não têm, necessariamente, a ver com a tropa, a guerra, a Guiné (o "core business" deste blogue, o seu enfoque principal), mas também podem ter... 

O leque de temas é vasto, podendo ir da saúde ao amor, do trabalho ao lazer, da vida à morte, da paz à guerra, incluindo os comes & bebes, os prazeres da mesa, a história, a etnografia, a geografia, a fotografia, as viagens, etc. Ou seja, tudo o que pode ter a ver com "os nossos seres, saberes e lazeres" (nome de outra série, já consolidada).

Podem ser também anedotas "inteligentes", pequenas séries de provérbios sobre um tema, pequenos poemas ou curtas histórias, de dois ou três parágrafos, originais ou não, mas com alguma "verve" e "irreverência", e também "raridade" e "novidade"... 

Ou seja, não vale a pena mandarem-nos  coisas, "muito giras",  que circulam pelas redes sociais e e que são conhecidas de todo o mundo...

Podem ser, por exemplo, uma sugestão de leitura (de um livro que andam a ler ou de gostaram muito), ou até pequenos excertos de livros ou autores, atuais ou antigos, como os dois que publicámos logo no primeiro número da série, um sobre a "cura" e outro sobre as qualidades (terapêuticas) do "leite" (*).

Hoje selecionámos alguns versos do belíssimo poema do Álvaro de Campos (um dos heterónimos de Fernando Pessoa, o maior poeta, com Camões, da nossa literatura).

Enfim, cada "Usado &  Achado" deve ser algo que se leia mum minuto e que desperte também a curiosidade do leitor e o leve a procurar saber mais, na Internet... (Convém haver sempre um "link"...).

Em contrapartida, devemos evitar o terreno minado a que chamamos RPF (Religião, Política & Futebol)...

Aguardamos a colaboração dos nossos leitores, "confinados" ou não (, os da diáspora lusófona, por exemplo). 

PS - Não sendo os textos originais, convirá sempre citar a fonte e acautelar eventuais direitos de autor e/ou créditos fotográficos.

Guiné 61/74 - P21790: In Memoriam (381): Capitão Quaresma Rosa, ex-Comandante dos Bombeiros Sapadores de Setúbal, ex-1º srgt da CCAÇ 3, Guidaje, 1968/69 (Hélder Sousa, ex-Fur Mil TRMS TSF)

IN MEMORIAM

Capitão João Augusto Quaresma Rosa,
ex-Comandante dos Bombeiros Sapadores de Setúbal


1. Mensagem do nosso camarada Hélder Valério de Sousa (ex-Fur Mil de TRMS TSF, Piche e Bissau, 1970/72), com data de 21 de Janeiro de 2021:

Caros amigos
Junto uma notícia do jornal "O Setubalense" e duas fotos.

Trata-se da comunicação do falecimento de João Augusto Quaresma Rosa, Capitão do Exército, de Artilharia que, durante salvo erro duas comissões, comandou a Companhia de Sapadores Bombeiros de Setúbal e onde desenvolveu incessante trabalho e granjeou bastantes simpatias.

Foi ele que conseguiu transformar um Corpo de Bombeiros Municipais em Bombeiros Sapadores e foi ele que teve possibilidade de inaugurar o seu Quartel, fruto de intensas negociações.

E que tem isso a ver connosco, com a Guiné?

Bem, ele foi nosso "camarada da Guiné".

Integrou, enquanto 1.º Sargento, a Unidade a que, salvo erro, pertenceu Marques Lopes [, CCAÇ 3, Guidaje, 1968/69].

Esteve em Guidaje e ajudou a "dilatar o Império", conforme uma vez me confidenciou, quando durante uma acção de nomadização junto da fronteira com o Senegal, ao reposicionarem alguns marcos que se encontravam derrubados, fizeram-no uns metros mais a norte.

Para o Curso de Capitão contou-me em tempos que o seu competidor, com quem mantinha um despique saudável e que servia para se superarem, era o seu amigo, também já falecido, Capitão José (Zé) Neto.

Estreitámos relações quando ele comandava os Municipais (antes de serem Sapadores) e eu estava na Secção da Natação do Clube Naval Setubalense e era necessária uma viatura para transporte dos nadadores a Lisboa, Algés, Cova da Piedade, etc. e a Câmara Municipal, a quem se solicitava a diligência, endossava para os Bombeiros. Só ao fim de algum tempo é que soubemos que a Guiné tinha sido um destino comum.

A partir daí passamos a interagir mais, a fazer coisas juntas, até que a idade foi-lhe arranjando complicações de saúde e tornou-se mais difícil a disponibilidade para o relacionamento.

Sempre bem disposto, com sentido de humor "corrosivo", recordo uma vez que, tendo-se deslocado ao Quartel das Transmissões em Sapadores onde estava um seu sobrinho, por sinal à época Capitão (hoje é Coronel) e naturalmente de apelido Quaresma Rosa, chegou-se ao sentinela da porta de armas a dizer que pretendia "falar com o Capitão Quaresma Rosa" ao que foi interpelado quem queria falar com o Sr. Capitão, ao que ele muito serenamente disse "Capitão Quaresma Rosa"! O militar de serviço pensou que estava a gozar com ele e mandou chamar o oficial de dia e só depois se fez o esclarecimento devido.

Numa das nossas trocas de comunicação escreveu-me o seguinte:

Olá amigo
Antes de mais uma explicação: - nem todos os dias tenho pachorra para abrir o computa, até por que, está duma lentidão desesperante Tenho que o levar à fisioterapia; melhor dizendo (dizer implica voz, por isso escrevendo), esperando que filho ou neto adquira um novo e faça como com os telemóveis, vão passando para os “ultrapassados” nas novas tecnologias.

Vamos ao assunto:

Daqui um avô com cinco netos e dois bisnetos – a família tem contribuído para que a Europa não fique despovoada ou “islamizada…”-. Parabéns pelo Gustavo, pouco falta para o levar a passear nos jardins da nossa presidente Maria (que, diga-se, estão lindos).

Continua com os seus trabalhos e as “chatices” inerentes aos cargos, ainda bem, por que esta vida do fazer nada é desesperante, leva-nos a ficar presos aos achaques (agora nem Clube Militar funciona às quartas feiras – uns doentes outros foram-se),o que leva, a por falta de uma boa “discussão” agora que tanta matéria existe para tal, a perder vocabulário.

Passando adiante: eu cá ando com as minhas maleitas, já suas conhecidas.

Vou com minhas oito “grandes” cirurgias e mais umas de somenos importância, que levam a fisioterapia permanente.

Não estou retido em casa, vou fazendo umas (muitas) visitas ao Hospital da Luz e fisioterapia 2.ª, 4.ª e 6.ª feira. De quando em vez, conforme o tempo permitir, vou até ao bar existente um pouco antes do PUA não beber um café, mas degustar outra qualquer coisa.

É muito trabalho para a minha motorista (a quem pago pouco).

Pelo que lê, vê que se arranja um tempinho para um café.

Cumprimentos à família e um abraço para si do:
QR


Acabou por falecer no Hospital da Luz-Setúbal e fiquei a dever-lhe mais um café!

Em anexo seguem duas fotos que tirei hoje. Uma quando o carro funerário pára junto ao Quartel dos Bombeiros Sapadores, que foi erigido sob o seu comando, onde lhe foram prestadas honras militares. A outra é no exterior do Cemitério com a "encomendação" proferida por um Tenente-Coronel Capelão dos Pupilos, por indicação do Exército.

Hélder Sousa

Com a devida vénia a "O Setubalense"

Fotos: Hélder Sousa (2021)


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Nota do editor

Último poste da série de 2 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21727: In Memoriam (380): Domingos Fernandes (1946-2020), ex-fur mil at art, CART 2520 (Xime e Quinhamel, 1969/70): membro, nº 825, da Tabanca Grande, a título póstumo

Guiné 61/74 - P21789: Os nossos enfermeiros (12): Os serviços de saúde militar no meu tempo (José Teixeira, ex-1.º cabo aux enf, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , 1968/70)


Guiné > Região de Quínara > Empada > CCAÇ 2381 (1968/70) > O José Teixeira, escrevendo, junto ao memorial da companhia.

Foto (e legenda): © José Teixeira (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Mensagem de José Teixeira, ex-1.º cabo aux enf, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , 1968/70; teve como comandante de pelotão o alf mil José Belo, hoje régulo da Tabanca da Lapónia; o José Teixeira é, por sua vez, régulo da Tabanca de Matosinhos e "senador" da Tabanca Grande, com  mais de 350 referências no nosso blogue:

Data - 19 jan 2021 22:37

Assunto - Os serviços de saúde militar e a guerra colonial [comentário aos postes P21781 e 21782 (*)]

O Dr. Carlos Vieira Reis faz uma leitura muito interessante dos Serviços de Saúde Militar nas guerras de África,  creio que muito centrada em Angola e nos primeiros tempos da guerra.

A realidade nos anos 1968/69/70 era bem diferente. A começar pela estrutura médico sanitária da Companhia, onde não havia médico. Este, existia apenas a nível batalhão ou era colocado no Comando do Sector. 

Cada Companhia tinha nos seus quadros um furriel enfermeiro e três cabos auxiliares de enfermeiro. Note-se que havia a categoria de cabo enfermeiro. A sua preparação era exatamente igual à do auxiliar de enfermeiro, mas o que era classificado como cabo enfermeiro era destinado ao Hospital e o que era classificado como auxiliar de enfermeiro era colocado nas Companhias operacionais.

Deste modo, cada Companhia tinha um enfermeiro por Grupo de Combate (um furriel e três cabos auxiliares de enfermeiro), mas, salvo raras exceções, o furriel refugiava-se no comando e os desgraçados dos cabos auxiliares de enfermeiro marchavam no terreno.

Quanto a médicos, em cerca de três meses que estive em Ingoré, quem pontificava na assistência à saúde era o furriel da companhia ali estacionada, o qual era chamado “dotor” pela população e, na realidade,  atendia a população , receitava medicamentos, assistia a partos, etc.

Era um “apanhado pelo clima” autenticamente maluco, mas que era bom na arte, era! Aprendi muito com ele no pouco tempo em que convivemos, quer em conhecimentos de doenças tropicais e seu tratamento, bem como na minha relação com a população. 

Posteriormente foi castigado e reduzido a soldado raso, como tive oportunidade de saber, quando o encontrei na prisão dos Adidos em Bissau. (Uma estória para contar mais tarde).

Eu, que tive três meses de formação em enfermagem no Serviços de Saúde em Coimbra, onde um Cabo RD [, readmitido,] dava formação do corpo humano, um médico que aparecia uma vez por semana para uma palestra e um 1 º sargento “cheio de África” que nos dava palestras numa linguagem pobre, sobre saúde.

De notar que, num pelotão de cerca de cinquenta homens,  a grande maioria vinha da escola de sargentos onde tinha chumbado, logo, gente revoltada, com conhecimentos científicos (7º ano, professores primários, etc) e vistas largas, que faziam do cabo RD e do Sargento gato sapato. 

Para mim foram umas férias, pois tinha dado o corpo humano no liceu de uma forma muito mais científica e mais profunda. Seguiu-se um estágio de cerca de dois meses no hospital do Porto, numa enfermaria dedicada a medicina interna, onde tomei conhecimento com algumas doenças, treinei a dar injeções e pouco mais.

Entrei pela guerra dentro, com um furriel enfermeiro que tinha o atual 6º ano, um cabo auxiliar de enfermeiro com o curso comercial (corresponde ao atual nono ano), eu com o 9º ano incompleto e um outro com a 4ª classe. 

Uma bela equipa, onde o furriel nunca se encaixou, bem pelo contrário.

Valeram-me a vaga experiência anterior como escuteiro, a minha força de vontade em dar o meu melhor e os conhecimentos adquiridos com o furriel “maluco” em Ingoré e a unidade da equipa dos três estarolas auxiliares de enfermeiro, pois o furriel enfermeiro da minha companhia, creio que sabia muito menos que nós. 

Felizmente nunca precisou de demonstrar os seus conhecimentos na área. Nunca saiu para o terreno e na única vez que caiu debaixo de fogo, numa mudança da companhia, nem se dignou aparecer juntos dos feridos, quando estavam a ser tratados, um dos quais faleceu por hemorragia interna. 

A enfermaria era terreno nosso. Como não nos suportávamos mutuamente, ele aparecia lá pontualmente e deixava-nos à vontade, desde que não implicássemos com ele sobre as idas para o T.O.
 
No sub-sector de Aldeia Formosa, já colocado em Mampatá, como não havia médico, com a ajuda do Alferes José Belo, meu comandante, conseguimos que uma avioneta fosse de propósito a Aldeia Formosa buscar um africano já idoso com graves problemas intestinais. 

Isto nos primeiros tempos da spinolândia. Depois foi lá colocado um médico, todavia quando eu – o “dotor” de Mampatá- , lhe enviei um camarada para ser consultado, vi o rapaz regressar sem ser visto pelo médico, dado que este tinha dado baixa a si próprio e não saía do quarto, queria ir para Bissau exercer a sua especialidade.

Está claro que no dia seguinte fui eu visitar o médico e tivemos uma discussão azeda, até que ele acabou por me aconselhar um medicamento para eu administrar ao doente e tudo passou.

Só voltei a encontrar um médico em fevereiro do ano seguinte em Buba, apesar de Aldeia Formosa, ser uma zona de elevado risco, mesmo nas “barbas” da Mata do Cantanhez e com o corredor de Uane a separar-nos de Buba, até onde íamos para transportar os mantimentos que posteriormente levávamos com muito sangue, suor e lágrimas até Gandembel.

Em Buba, o dr. Azevedo Franco, natural de Matosinhos onde felizmente ainda mora, foi um homem extraordinário para os rapazes das três companhias operacionais, um Grupo do BENG 447, Comandos e Fuzas, um mundo militar para apoio na construção da estrada para Aldeia Formosa. Sempre atento às necessidades, ouvia cada um com toda a atenção, era pródigo em dar baixas.

Falo com orgulho deste médico de quem estimo a amizade que criamos na guerra e que se mantém. O desgaste físico a que eramos submetidos quebrou a resistência física e o dr. Azevedo Franco assumiu o risco de nos ajudar, ao ponto de as três companhias ficarem reduzidas a cerca de um terço. 

As consequências não tardaram: primeiro, uma Junta médica para analisar as baixas que apareceu repentinamente com dois médicos vindos de Bissau para ver no terreno o que se passava; e tiveram azar, porque a malta estava a comer spaguetti com chispe ao almoço e ossos de chispe com spaguetti ao jantar, (ainda hoje não posso ver spaguetti) a alinhar todos os dias para a segurança na estrada em construção (tinha havido atraso na remessa de alimentos com cerca de quinze dias).  Depois a vinda do Spínola em pessoa para fazer um discurso apelativo ao nosso patriotismo.

E perante as nossas queixas virava-se para o major que o acompanhava, “aponta Bruno” Eu, estava ao lado do médico quando o general se aproximou dele e lhe recomendou que desse umas “picas” aos rapazes, “aponta Bruno”, ao que o médico respondeu: "Peixe e carne em quantidade e qualidade!"

Uns dias depois, juntamente com os mantimentos, vierem dois volumes de medicamentos, na sua base, vitaminas. O médico mandou-me devolver tudo a Bissau com a informação que não tinham sido solicitados e não eram necessários.

Em Empada, o médico de Buba aparecia de vez em quando e passava lá uma ou duas semanas e voltava para Buba. Suponho que fazia o mesmo em relação a Aldeia Formosa, mas não posso confirmar.

Está claro que não estávamos em Angola e os tempos eram outros. Uma guerrilha muito mais localizada e próxima, muito agressiva e sobretudo poucos médicos e uma população muito próxima que via em nós o “dotor”.

 Grande parte do tempo que tínhamos quando libertos da ação militar era gasto a receber a população e a dar “mezinho”. Quase não havia descanso para os enfermeiros. (**)

Zé Teixeira  (***)
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Notas do editor

(*) Vd. postes de:

19 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21781: Nota de leitura (1335): Os serviços de saúde militar e a guerra colonial - Parte I (Luís Graça)



(***) O José Teixeira tem uma notável série, a que chamou "O meu diário" (terá sido o primeiro a publicar-se no nosso blogue):

1 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDX: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (1): Buba, Julho de 1968

(...) Buba, 21 de Julho de 1968: Agora me lembro, hoje é Domingo... Saí às cinco da manhã em patrulha de reconhecimento à estrada de Aldeia Formosa. Voltei a Buba onde assento desde ontem pelas treze e trinta, depois de uma marcha de cerca de vinte quilómetros debaixo de sol abrasador. O resto da tarde foi para dormir, estava completamente esgotado (...).

2 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXI: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (2): Buba/Aldeia Formosa, Julho de 1968

(...) Buba/Aldeia Formosa, 24-26 de Julho de 1968: (...) A noite começou mais cedo neste negro dia de vinte e quatro de Julho! Esta vida salvava-se, mas um mal nunca vem só. A viatura atingida era o carro do rádio e consequentemente desde aquela hora (16 h) ficamos completamente isolados do resto do mundo. O ferido mais grave e que veio a falecer era o radiotelegrafista. Isto é guerra... Quando nos dispúnhamos a montar acampamento o radiotelegrafista morreu. Com o impacte do rebentamento tinha ido ao ar e caíu de peito, rebentando por dentro. Eu e o Catarino nada pudemos fazer (...).

(...) Aldeia Formosa, 9 de Agosto de 1968: (...) Um pelotão de milícia de Aldeia Formosa foi bater a zona de Mampatá, para confundir o IN e sofreu dois mortos e três feridos. Trouxe orelhas de vários IN, mortos durante o combate. É horrível, Senhor... dois mortos e três feridos e... orelhas de vários IN mortos. Alguns, foi a sangue frio, segundo dizem, depois de serem descobertos com ferimentos que os impediam de fugir. Tudo isto é guerra, enquanto uns estavam na rectaguarda feridos, outros, autênticas feras, procuravam IN, irmãos de raça, para os assassinarem (...).

2 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXIV: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (4): Aldeia Formosa, Agosto de 1968 

(...) Aldeia Formosa, 28 de Julho de 1968: (...) Encontrei em Gandembel o Mário Pinto, meu colega de escola, contou-me coisas terríveis que se têm passado neste aquartelamento fortificado, junto à fronteira com a Guiné-Conacri que tem como objectivo cortar os carreiros de ligação à estrada da morte, impedindo o IN de fazer os abastecimentos (...).

6 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXVII: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (5): Mampatá, Agosto-Setembro de 1968

(...) Mampatá, 7 de Setembro de 1968: Tenho que reagir. Estou-me portando pior que os outros. Onde está a minha força de vontade de viver segundo o meu projecto de vida ? Sinto-me só... recomeço a luta tanta vez... como fugir ?...Eu não quero matar. Eu não quero morrer. Quero viver, mas esta vida, não (...).

11 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXL: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (6): Mampatá, Setembro-Outubro de 1968 

(...) Mampatá, 17 de Setembro de 1968: Dia de correio. Ainda cedo sentiu-se a avioneta de Sector em direcção a Aldeia Formosa. Aguardamos com ansiedade a viatura que partiu para lá....O Vitor escreveu-me. Por Bissorã nem tudo corre bem. Segundo ele, num pequeno incidente ficaram dois soldados inutilizados para toda a vida, ambos com uma perna amputada e um outro com a cara cheia de estilhaços. Além destes, uma nativa morta e outra sem uma perna. Tudo por rebentamento de minas A/P, montadas pelo IN. Numa saída em patrulha a malta vingou-se fazendo sete mortos e dois prisioneiros. O último a morrer foi o tipo que montou as minas e, pelo que ele conta, teve morte honrosa. Todos os africanos verificaram a eficiência das suas facas no seu corpo (...)

(...) Mampatá, 25 de Setembro de 1968: Como é belo sentir nas próprias mãos o pulsar de um coração novo que acaba de vir ao mundo. Um corpo pequenino, branco como a neve, puro como os anjos e no entanto, este corpo vai crescer, a pouco e pouco a natureza encarregar-se-á de o tornar negro como os seus progenitores, negro como os seus irmãos que hoje não cabiam em si de contentes. É puro como os anjos, a sua alma está imaculada, mas virá o tempo em que conhecerá o pecado, terá de escolher entre o bem e o mal (...).


Guiné 63/74 - CDLIV: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (7): Mampatá, Outubro-Dezembro de 1968

(...) Mampatá, 29 de Outubro de 1968: (...) A família do sargenti di milícia Hamadu (1) estava toda reunida. No meio, um alguidar cheio de vianda (arroz) com um pequeno bocado frango frito:- Teixeira Fermero, vem na cume (Enfermeiro Teixeira vem comer). - Sentei-me meti a mão no alguidar, fiz uma bola com arroz bem temperado com óleo de palma e meti à boca (Em Roma sê romano). Estava apetitoso e eu estava cheio de comer massa com chispe que o cozinheiro confeccionava na cozinha improvisada ao ar livre, porque não havia mais nada. Estamos no tempo das chuvas, a Bolanha dos Passarinhos está intransponível pelo que não há colunas a Buba para trazer mantimentos (...).

19 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXI: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (8): Chamarra, Janeiro de 1969 

(...) Mampatá, 5 de Janeiro de 1969: (...) Admiro esta população de Mampatá. Quando souberam que eu ia de serviço na coluna em substituição do Lemos vieram despedir-se de mim. Fui abraçado, as bajudas beijavam-me e cantavam uma melodia triste. Até dá gosto viver com esta gente. A mãe da Binta veio trazer-ma para lhe dar um beijinho e fazer um festinha como era meu hábito (Pegava nela e atirava-a ao ar dando a miúda e a mãe uma gargalhada). A Maimuna tinha oito luas quando cheguei a Mampatá (...).

(...) Chamarra, 23 de Janeiro de 1969: (...) Ontem ao anoitecer, em Aldeia Formosa, alguém, lançou uma granada de mão para a Messe dos sargentos. Não se sabe quem foi. Branco ou negro. Por vingança, por descuido. Os resultados foram tremendos. Dois soldados, meus camaradas, tiveram morte imediata e houve ainda dez Furriéis feridos, alguns com gravidade. As medidas tomadas pelo Comandante para descobrir o assassino ainda não resultaram. Aqueles dois colegas que casualmente se encontravam à porta encontraram a morte, pela mão de um companheiro cego pela loucura ou pelo ódio, tudo leva a crer (...).

14 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVI: O meu diário (Zé Teixeira) (fim): Confesso que vi e vivi 

(...) Leça do Balio, 17 de Fevereiro de 2006

Ao reler o Meu Dário (que não era diário) onde apontei algumas das situações mais marcantes da minha guerra, apetecia-me queimar tudo e recomeçar de novo. Tudo o que escrevi, não foram historinhas para depois (agora) de velho, contar aos netinhos. São factos verdadeiros escritos a quente, para não perderem o “sal” da realidade que o tempo teima em dissolver

Hoje, com as feridas saradas, talvez romanceasse um pouco. Talvez lhe juntasse outros pormenores, que com o calor dos acontecimentos foram posto em secundário. Talvez lhe juntasse outras situações que vivi e não escrevi, umas por desleixo, falta de motivação de momento, ou até por não encontra razões de história. Outras por medos “pidescos” de poder ser apanhado. (...)

Guiné 61/74 - P21788: Parabéns a você (1923): Dr. João Graça, Médico, Amigo Grã-Tabanqueiro que trabalhou na Guiné-Bissau em 2009

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Nota do editor

Último poste da série 13 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21763: Parabéns a você (1922): Major Enfermeira Paraquedista Reformada Maria Ivone Reis (FAP, 1961/74)

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21787: História da 3ª Companhia de Comandos (1966/68) (João Borges, 1943-2005) - Parte X: atividade operacional, junho de 1967, destaque para a Op Ypanema, em Rua, região do Oio



Foto nº 1 >  Guiné > Região do Oio > Mansoa > 1974 > Guerrilheiros do PAIGC...


Foto nº 2 >  Guiné > Região do Oio > Mansoa > 1974 > O  "ninho", espaldão do obus 14

Guiné > Região do Oio > Mansoa > 1974 > BCAÇ 4612 (1972/74) > 1974 >  Fotos do álbum do nosso camarada Jorge Canhão  (ex-fur mil at inf , 3ª CCAÇ/BCAÇ 4612/72, Mansoa e Gadamael, 1972/74)

Fotos (e legendas): © Jorge Canhão (2011). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Brasão da 3ª CCmds (1966/68)




1. Começámos a publicar, em 17/11/2020, uma versão da História da 3ª Companhia de Comandos (Lamego e Guiné, 1966/68), a primeira, de origem metropolitana, a operar no CTIG. (Hão de seguir-se lhe, até 1974, mais as seguintes: 5ª, 16ª, 26ª, 27ª, 35ª, 38ª e 4041ª CCmds.)

O documento mimeografado, de 42 pp., que nos chegou às mãos, é da autoria de João Borges, ex-fur mil comando, já falecido (em 2005). Trata-se de um exemplar oferecido ao seu amigo José Lino Oliveira, com a seguinte dedicatória:

"Quanto mais falamos na guerra, mais desejamos a paz. Do amigo João Borges".

Uma cópia foi entregue ao nosso blogue para publicação. (*)



História da 3ª Companhia de Comandos 
(1966/68) (*)


3ª CCmds
(Guiné, 1966/68) / João Borges
Parte X (pp. 24-26)





 


PS - Não não conseguimos localizar a posição relativa do acampamento do PAIGC, sito em Rua, região do Oio. Não sabemos se o topónimo existia ou existe. Pode ser um erro de dactilografia.
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Nota do editor:

(*) O José Lino [Padrão de] Oliveira foi fur mil amanuense, CCS/BCAÇ 4612/74, MansoaCumeré e Brá, 12-7-1974 / 15-10-1974, a mesma unidade a que pertenceu o nosso coeditor Eduardo Magalhães Ribeiro; é membro da nossa Tabanca Grande desde 31/12/2012; tem dezena e meia de referências no nosso blogue; vive em Paramos, Espinho.

Guiné 61/74 - P21786: Historiografia da presença portuguesa em África (248): "Senegâmbia Portuguesa ou Notas Descritivas das Diferentes Tribos que Habitam a Senegâmbia Meridional", por Luís Frederico de Barros; Tipografia Editora de Matos Moreira & C.ª, 1878 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Fevereiro de 2020:

Queridos amigos, 

Na esteira dos principais documentos lavrados sobre a Guiné depois de Lopes de Lima, Travassos Valdez, Honório Pereira Barreto, José Conrado Carlos de Chelmich, Luís Frederico de Barros, também cabo-verdiano, viaja pela Guiné e procede a um inventário. Começa por confirmar que a dita Senegâmbia Meridional é onde chega a presença portuguesa, praticamente circunscrita à faixa litoral; é muito cuidadoso a estudar as etnias e dá-nos um relato meticuloso da história de Bissau, torna compreensível aquilo que nós estudamos entre a permanente hostilidade e a praça, ao longo de todo o século XIX, a pacificação veio com a campanha de Teixeira Pinto em 1915, seguiu-se a acalmia. 

Continua a ser incompreensível como é que estes relatos de viagem, de importância capital para o entendimento da presença portuguesa, não mereceram ao menos uma investigação universitária que dê aso a poder-se equacionar o que era essa presença portuguesa antes da primitiva configuração do território graças às compras de Honório Pereira Barreto até à I República. 

É um período histórico de incontestável importância tanto para o estudo do Império Português como para o bilhete de identidade da Guiné-Bissau.

Um abraço do
Mário



Viagem até à Senegâmbia Meridional, livro de 1878

Mário Beja Santos

Senegâmbia Portuguesa ou Notas Descritivas das Diferentes Tribos que Habitam a Senegâmbia Meridional, tem por autor Luís Frederico de Barros, natural de Santiago de Cabo Verde, a edição é de Lisboa, Tipografia Editora de Matos Moreira & C.ª, 1878. Já aqui se tem falado de relatos singularíssimos, este é mais um, com a particularidade de nos trazer alguns elementos que se podem reputar por novos ou terem o poder de confirmar outros relatos. Em dado passo, o autor revela o que era na época a Guiné:

“Dá-se geralmente o novo de Guiné Portuguesa ou Senegâmbia Meridional à extensão de terreno compreendido desde o Cabo de Santa Maria até ao Cabo Verga; mas limitando-se à extensão do território que ocupamos atualmente naquela parte ocidental da costa de África com os nossos estabelecimentos agrícolas e comerciais, não passa de Casamansa, ao Norte, e do rio Geba, ao Sul”.

Confirma-se que a nossa presença do Corubal até ao Cacine era mais do que modestíssima.

A sua descrição de Bissau e das suas gentes ajuda-nos a compreender a multiplicidade de problemas havidos entre os autóctones, as autoridades portuguesas e os mercadores posicionados dentro dos muros de Bissau. Ele escreve sobre a natureza do poder dos nativos em Bissau:

“O governo é absoluto. O símbolo da realeza é um barrete encarnado e uma vassoura. A religião dos gentios Papéis é o feiticismo. O seu Deus é o Irã, e acreditam na imortalidade da alma, se bem que alguns crêem na metempsicose ou transmigração da alma para outro corpo”

E fala assim da fortaleza de S. José de Bissau:
 
“Compõem-se de um reduto quadrado, feito de cantaria e flanqueado por quatro baluartes, tendo cada um um poilão, árvore gigantesca. É em partes rodeado por uma pequena cava, a que se dá o nome de fosso, onde as ervas crescem com louçania. Os indígenas fazem ali o despejo de matérias fecais e um número infinito de répteis venenosos neles vive beatificamente. Represam neste lugar as águas pluviais e ao tempo da dessecação destes pântanos morrem alguns destes répteis; isto junto à maceração dos vegetais contribui poderosamente para a insalubridade do clima. A alvenaria do forte está totalmente desprezada e invadida por altas ervas que ali crescem. 

Era antigamente Bissau governada por um só rei, que exercia também uma espécie de sumo sacerdócio, com a denominação de Balobeiro Grande. Com este rei e seus descendentes, praticaram muito os portugueses e com o engodo do negócio alcançaram dele que levantasse uma feitoria defendida em que se acolhessem e guardassem suas mercancias; a esta feitoria foram alguns missionários capuchos da província da Soledade, que catequizaram e converteram à nossa Santa Fé muitos pretos, que vieram reunir-se aos portugueses mercadores e religiosos, e em breve se tornou povoação o que apenas tinha sido, em seu começo, feitoria; esta povoação já existia no ano de 1604”.

Mais adiante, dá-nos conta do clima e o quadro das doenças que ele pôde observar: 

“Raros são os europeus que resistem à influência deste clima deletério. Recebem frequentes visitas de febres biliosas, hematúricas, paludosas e outras de carácter pernicioso, de sorte que se vê ali chegar um homem dotado de robustez e de porte garboso, e dias depois estar macilento e cadavérico. Caso diverso sucede com os que estão no Rio Grande de S. Domingos (Cacheu), Bolama e ilhas do arquipélago de Bijagós porque gozam das imunidades de um clima salubre. As doenças predominantes são: alcoolismo crónico, amolecimento cerebral, febres intermitentes quotidianas, terçãs, biliosas, hematúrias, paludosos, elefantíase, hepatite, hemorragias, apoplexias, sonolência ou doença do sono, úlceras, etc., etc.”

Passa em revista alguns dados históricos e mesmo tece largas referências ao esforço da missionação. Segundo ele, a povoação de Bissau muito cedo passou a ser cobiçada por nações estrangeiras, principalmente holandeses e ingleses, vexando tanto os naturais como os portugueses. Foi vexando tanto que o rei de Bissau se dirigiu ao rei de Portugal para que construísse uma fortaleza, a que o rei D. Pedro II anuiu em 1692. Nada ou muito pouco correu bem no relacionamento entre autoridades, missionários e povoações autóctones, houve imensas desavenças, concluir a fortaleza foi o cabo dos trabalhos. Luís Frederico de Barros fala-nos também da iniciativa do bispo D. Frei Vitorino Portuense que quis reedificar um hospício em Bissau, mas também foi sol de pouca dura.

Como é próprio de todas estas memórias, o autor assinala a geografia, fala das etnias, apresenta os edifícios públicos e os dados económicos. Vê-se que estudou, leu alguns dos principais documentos que antecederam a sua visita como as obras de Travassos Valdez, Chelmich e Lopes de Lima. 

O que apetece enfatizar é o escrúpulo que usou na sua preparação, confessando a torto e a direito que não é um homem letrado, esperando que estas notas descritivas alentem as autoridades para um aproveitamento das potencialidades agrícolas da região, tão estranhamente ignoradas, isto numa época em que os estrangeiros tudo fazem para arredar a presença portuguesa da Guiné.


Estas quatro imagens foram retiradas do livro La Guinée Portugaise, o seu autor é Carlos Pereira, antigo governador da Guiné, o documento foi apresentado no III Congresso Internacional da Agricultura Tropical, em Londres, 1914, o livro saiu da tipografia “A Editora Limitada”, também nesse ano. 

Considero imagens muito impressivas e úteis, aliás o livro está profusamente ilustrado, tanto o antigo governador revela que tinha uma boa máquina como mostra que viajou até pelo Interior. Na primeira imagem ficamos com uma elucidativa atmosfera do que era o porto do Pidjiquiti, embora seja difícil de conjeturar a dimensão do dito tornado; a segunda imagem é para mim uma verdadeira novidade, há muitos relatos sobre a possibilidade de haver plantações de café na Guiné, pois aqui temos um exemplar de café Arábica; também nunca tinha visto a feitoria de Bambaiã, na região de Buba; finalmente, fico a saber que o Xitole tinha um pequeno porto, viajei de Bambadinca para lá várias vezes, sempre por estrada, mais uma surpresa, esta infraestrutura portuária.
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21765: Historiografia da presença portuguesa em África (247): Guiné, o seu primeiro grande relato no século XIX: O Capitão-de-Fragata da Real Armada, José Joaquim Lopes de Lima (3) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21785: Usados & Achados: pensamentos para aumentar a nossa resiliência em mais um "annus horribilis": (3) O luso-lapão




Suécia, Lapónia / Sápmi

Fotos do álbum do José Belo (2021)


Usados & Achados > As renas, o meio envolvente e o único luso-lapão que vive por estas bandas" > Enviado em 13/1/2021 pelo José Belo. (*)


1. Mais um "usado & achado" para nos animar neste "inverno / inferno" da pandemia de Covid-19 (**)... 


Já que não podemos agora viajar, muito menos até à Tabanca da Lapónia, o único luso-lapão que lá vive,  manda-nos estes  três "postais" da terra onde vive... 

É também criador de renas, e gosta de lembrar, aos nossos tabanqueiros, puxando pela sua veia poética,  que "ao luar, entre nevões,/ até as renas parecem pavões"  .

Outra frase, do régulo da Tabanca da Lapónia,  que paga direitos de autor,  é: "É certo que a venda de álcool é monopólio do Estado mas o bonito alambique de cobre é...meu!".

Guiné 61/74 - P21784: Álbum fotográfico de António Marreiros, ex-alf mil, CCaç 3544, "Os Roncos", Buruntuma, 1972, e CCaç 3, Bigene e Guidage, 1973/74 - Parte III: População de Buruntuma, 1972


Foto nº 1


Foto nº 2



Foto nº 3


Foto nº 4


Foto nº 5

Guiné > Região de Gabu > Buruntuma  >    CCAÇ 3544, "Os Roncos de Buruntuma" > 1972 > População local.

Fotos (e legenda): © António Marreiros (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de camarada António Marreiros [ a viver há quase meio século no Canadá (Victoria, BC,  British Columbia), ex- alferes miliciano em rendição individual na Companhia CCaç 3544, "Os Roncos", Buruntuma, 1972, e, meses depois, transferido para Bigene, CCaç 3, até Agosto 1974]:
 
Date: segunda, 18/01/2021 à(s) 19:41
Subject: Álbum de fotografias
 

Olá a todos,

Festejei ontem is 70 anos e hoje envio mais um grupo de fotos de Buruntuma em 1972.

Desta vez são imagens da população que,  por vezes, gostava de ser fotografada. 

Dependia do momento, etenia, idade ou da religião. Para alguns a máquina fotográfica era tabu que os amedrontava. Fui aprendendo a respeitar os seus desejos e só capturar momentos quando me permitiam.

Um abraço,

Antonio Marreiros
(Canada)
Sent from my iPhone
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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P21783: Usados & Achados: pensamentos para aumentar a nossa resiliência em mais um "annus horribilis": (1) O leite; (2) A cura


 Capa de livro de 1741

(Usado & Achado >  "O Leite" > Recolhido em 19/1/2021 por Luís Graça)

Tratado II - Arte de Enfermeiros (...) Cap. LV. Leite aos éticos, tísicos e empiemáticos, como se lhes há-de dar e em que tempo (...) 

302.  O melhor leite, e o mais proveitoso, he o de mulher; e se for preta, melhor: logo o de burras, depois deste o de cabras negras, ou ruivas, logo o de vacas, e o de ovelhas não havendo outro" (pág. 156) (*) 



(Usado & Achado > "A Cura" > Enviado em 9/1/2021 pelo Mário Beja Santos) (**)


1. Estamos a escassos 3 meses de completar 17 (dezassete!) anos de existência, em 23/4/2021... 

Eventuais motivos de celebração da efeméride  (o 17º  aniversário do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)  são ensombrados por : (i) a  pandemia de Covid-19, que está a ter trágicas consequências na nossa terra e no resto do nosso planeta;  e (ii) a perspetiva de termos, em 2021, mais um "annus horribilis", como o de 2020.

Estamos em confinamento geral, pela segunda vez, desde março de 2020. E infelizmente estamos a bater uma série de dramáticos recordes. Precisamos de carregar as baterias da resiliência e da esperança para podermos resistir e sobreviver, com inteligência, arte e engenho. 

É uma fase da nossas vidas e da nossa história comum que está a ser muito dura. E não sabemos como tudo isto vai acabar, bem como as suas consequências epidemiológicas, clínicas, psicológicas,  demográficas, económicas, sociais, políticas, culturais...

Este ano, 2021, evoca-se também, em 15 de março,  os 60 anos do início da guerra colonial, ou guerra do ultramar, ou guerra de África (como cada um quiser chamar-lhe).

Os nossos camaradas mais velhos, que foram para Angola, logo em abril de 1961, "rapidamente e em força", estão agora já na casa dos 80...E os "periquitos", os "checas", os "maçaricos", os que fecharam as portas do império, em 1974 e 1975, também já não são "Sexas", estão todos a entrar nos Setentas,. são Septuas...

Com o peso de tantos anos (e das "medalhas da vida") e com as apreensões que nos batem à porta (a começar pelas mazelas do corpo e da alma...), temos que saber aprender a "sorrir com meia cara", já que a parte inferior anda tapada, há muito, com a máscara sanitária...


2. Algum "humor de caserna", com alguma brejeirice e saudável malícia, será bem vindo, de tempos a tempos, para amenizar a leitura diária do Blogue, e reforçar a nossa resiliência, desde que não infrinja as nossas regras de bom senso e bom gosto, base da nossa política editorial... 

Lembrámo-nos por isso de dar início a uma série a que chamamos "Usados & Achados": pequenos textos, pensamentos do dia ou da noite, ideias ou frases, de preferência ilustrados, que nos façam sorrir, rir, sentir, emocionar, e até chorar e gritar, mas também pensar, reflectir, imaginar,   sonhar, meditar, etc. 

Não têm, necessariamente, a ver com a tropa, a guerra, a Guiné (que o "core business", o foco principal, do nosso blogue), mas tambémpode ter, direta ou indiretamente... 

O leque de temas é vasto, podendo ir da saúde ao amor, do trabalho ao lazer, da vida à morte, da paz à guerra, incluindo os comes & bebes, os prazeres da mesa, a história, a geografia, a etnografia, a fotografia, as viagens, etc. Ou seja, tudo o que pode ter haver com "os nossos seres, saberes e lazeres" (nome de outra série, já consolidada).

Podem ser também anedotas "inteligentes", pequenas séries de provérbios sobre uma tema, pequenos poemas ou curtas histórias, de dois ou três parágrafos, originais ou não, com alguma "verve", "irreverência", e também "raridade" e "novidade"... 

Ou seja, não vale a pena mandar coisas que, embora "muito giras", já  circulam pelas redes sociais e são conhecidas de todo o mundo...

Podem ser, por exemplo, uma sugestão de leitura (de um livro que andam a ler), ou até pequenos excertos de livros  ou autores, atuais ou  antigos, como os dois que hoje publicamos, um sobre a "cura" e outro sobre as qualidades (terapêuticas) do "leite"...

Em contrapartida, devemos evitar o terreno minado a que chamamos RPF (Religião, Política & Futebol)..

Enfim, deve ser algo que se leia mum minuto e que desperte também a curiosidade do leitor e o leve a procurar saber mais, na Internet... (A indicação de um "link" é sempre aconselhável).

Aguardamos a colaboração dos nossos leitores, "confinados" ou não, incluindo os da "diáspora lusófona"...

PS - Não sendo os textos originais, convirá sempre citar a fonte e acautelar eventuais direitos de autor e/ou créditos fotográficos. 

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Notas do editor:

(*) SANTIAGO, Padre Fr. Diogo de (1741) - Postilla Religiosa, e Arte dos Enfermeiros, Guarnecida com eruditos conceitos de diversos Autores, facundos, Moraes, e Escriturários Pelo Padre Fr. Diogo de Santiago, religioso de S. João de Deos, Com que educou, e praticou aos seus Noviços, sendo Mestre delles no Convento de Elvas, para perfeição da vida Religiosa, e voto da Hospitalidade (...). Lisboa: Oficina de Miguel Manescal da Costa, impressor do Santo Ofício (Edição em fac-símile, em parceria com A Ordem Hospitaleira de São João de Deus. Original cedido pela Biblioteca da Academia das Ciências Médicas. Apresentação de Luís Graça, introdução de Aires Gameiro: Lisboa: Alcalá, 2005.

Para saber mais:  Graça, L. (2005) - A arte da enfermagem no Séc. XVIII, disponível aqui.

(**) Para saber mais: Wikipedia > Avicena (c. 980-1037)

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21782: Notas de leitura (1336): Os serviços de saúde militar e a guerra colonial - II (e última) Parte (Luís Graça)


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > CCS/ BCAÇ 2852 (1968/70) > 1970 > Destacamento de Nhabijões > Assistência médica à população do reordenamento de Nhabijões, maioritariamente de etnia balanta (e com "parentes no mato", tanto a norte do Cuor como ao longo da margem direita do Rio Corubal, nos subsetores do Xime e do Xitole). Como se vê, a consulta médica era muito pouco privada... Além disso, o médico (neste caso, o alf mil médico Vidal Saraiva (*), cirurgião, tinha que utilizar os serviços de um intérprete (, que está de pé, ao lado do paciente, que veio diretamente do trabalho, na bolanha). Ao canto superior esquerdo, há um tabuleta em madeira onde se lê: "Por favor não deitar lixo para o chão".

Foto: © Arlindo T. Roda (2010). Todos os direitos reservados . [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís GRaça & Camaradas da Guiné]



Nota de leitura - II (e última) Parte
por Luís Graça



Reis, Carlos Vieira – A Guerra Colonial. In: Veloso A. J., Mora, L. D., Leitão, H., (Eds.) (2017). Médicos e sociedade: para uma história da medicina em Portugal no século XX. Lisboa: By The Book, pp. 492-505

Carlos Vieira Reis é coronel médico e escritor, ex-diretor de serviço de Cirurgia, ex-director clínico do Hospital Militar Principal, ex-presidente da União Mundial dos Escritores Médicos.

Resumo:

A organização e o funcionamento dos serviços de saúde militar, durante a guerra colonial / guerra do ultramar, é um dos cinquenta capítulos da obra verdadeiramente enciclopédica, de que o meu ilustre amigo A. J. Barros Veloso (médico, músico de jazz e historiador, especialista de medicina interna, ex-diretor de serviço do Hospital dos Capuchos, Hospitais Civis de Lisboa) foi o principal editor literário, para não dizer mesmo a verdadeira “alma mater”: “Médicos e sociedade: para uma história da medicina em Portugal no século XX”.

Barros Veloso é, de resto, o autor de 15 capítulos. A obra, com um total 863 páginas, reúne a colaboração de cerca de quatro dezenas de especialistas da história da medicina portuguesa no séc. XX (, incluindo, modéstia à parte, o meu nome, no que diz respeito à génese e desenvolvimento da saúde pública).

Na II parte desta nota de leitura, aborda-se o apoio sanitário que tivemos durante a guerra colonial,com destaque com a experiência do autor como diretor do hospital militar de evacuação, no Luso, Leste de Angola. (**)





Infografia: Luís Graça (2020)


(Continuação) (**)

Os primeiros médicos a serem mobilizados para Angola, na sequência dos trágicos acontecimentos de 15 de março de 1961, foram justamente os que tinham acabado de cumprir o serviço militar obrigatório. Ainda não havia carreiras médicas nem internatos de especialidade e o número total de médicos em Portugal em 1960 não ultrapassava os 7, 1 mil (Gráfico nº 1)… E na década seguinte só se formaram mais 1100…

Se compararmos com a situação atual (2017), desde 1960 o número de médicos aumentou mais de 7,3 vezes. O mesmo se passou com os enfermeiros, que evoluíram de uns escassos 9,5 mil, em 1960, para 71,6 mil (em 2017) (7,5 vezes mais).

Com a abertura de mais duas frentes (Guiné, em 23 de janeiro de 1963, e Moçambique em 25 de setembro de 1964), as necessidades em pessoal médico militar dispararam, obrigando o exército a recrutar médicos menos jovens. Nas especialidades com menos quadros, chegaram-se a mobilizar médicos com “mais de 45 anos”. E até chefes de serviço hospitalares foram chamados (p. 495).

No caso da enfermagem, a estratégia dos serviços de saúde militar foi outra. Em 1965, foi criado o Regimento de Saúde, em Coimbra, para satisfazer as necessidades crescentes de pessoal sanitário para os vários teatros de operações, e em particular de enfermeiros e maqueiros, recrutados entre o pessoal do contingente geral. 



Imagem do sítio oficial da ESSM -Escola de Serviço de Saúde Militar (, reproduzida com a devida vénia...). Trata-se de "um estabelecimento de ensino superior, integrado na rede do ensino superior politécnico", criado em 2 de Agosto de 1979 pelo decreto-lei nº 266/79. A ESSM está colocada na dependência directa do Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas (CEMGFA). É herdeira da Escola de Enfermagem da Armada e da Escola do Serviço de Saúde do Exército, entretanto extintas. "O ensino nesta escola abrange essencialmente três áreas distintas, dependentes de uma direcção de ensino: a enfermagem, os cursos de tecnologias de saúde e os cursos de saúde militar (...) Os cursos de saúde militar não são conferentes de grau académico e envolvem diversas áreas de formação, nomeadamente socorrismo, emergência médica e patologia de adição (alcoolismo e toxicodependência)."

Também por aqui passou, na segunda metade da década de 1960, o nosso camarada Adriano Moreira
 ("nickname", Admor), ex-fur mil enf, CART 2412, Bigene, Binta, Guidaje e Barro, 1968/70 (***)



As NEP mandavam haver um médico por companhia…

De qualquer modo, os quadros de saúde, e nomeadamente os médicos milicianos, vão ser usados até à exaustão. O rácio 1 médico por companhia (160 homens), inicialmente previsto nas NEP, deixou de ser praticável, facto que parece ter escapado ao autor, Carlos Vieira Reis:

“O papel desempenhado pelos médicos no mato teve a maior importância na Guerra Colonial. Cada batalhão era constituído por quatro companhias, cada uma como seu médico, ao qual eram adstritos, um sargento-enfermeiro, e dois ou três maqueiros, apoiados por uma ambulância com material cirúrgico elementar” (p. 496).

Pessoalmente, na Guiné, no meu tempo (1969/71), não conheci nenhum batalhão com 4 médicos, um por companhia. Na melhor das hipóteses havia um médico por batalhão (**)… E também não me recordo de ver ambulâncias no mato...

Por outro lado, o autor, coronel médico Carlos Vieira Reis, antigo o diretor do Hospital Militar Principal (HMP), reconhece que os médicos milicianos, recém-licenciados, depois da frequência, com aproveitamento, do COM – Curso de Oficiais Milicianos, em Mafra, transitavam para a Escola de Serviços de Saúde Militar, na Estrela, junto ao HMP, ali “adquirindo noções muito superficiais de patologia tropical” (sic) (p. 496)... Mas foram justamente estes bravos,  médicos, enfermeiros e outros,  que “fizeram a cobertura sanitária nos teatros de guerra”.

Para o médico no mato, para além das situações de rotina (vigilância da saúde do pessoal de uma companhia ou batalhão, consultas médicas e de enfermagem, etc.), o que era preocupante eram as “situações de emergência”, tais como “as crises graves de paludismo com febre alta, calafrios e convulsões” ou então “as úlceras duodenais agudas com hematémeses e melenas”, requerendo o transporte aéreo do doente para o “centro cirúrgico mais próximo” (que no caso da Guiné só podia ser o HM 241, em Bissau)…


Equipa de saúde: Quem é que saía para o mato ? 

Nas saídas para o mato, a nível de pelotão, “o apoio sanitário era prestado por enfermeiros ou maqueiros com conhecimentos de primeiros socorros e de reanimação”. Tratando-se de operações a nível de companhia, estava prevista a presença de um médico… Mas isso era o que diziam as NEP, meu caro Carlos Vieira Alves…

Em Bambadinca, no setor L1, nem o médico nem o furriel enfermeiro acompanham os operacionais no mato, fosse um ou mais grupos de combate. Em 1969/71, na Guiné, o pessoal de saúde estava mobilizado, no essencial, para prestar cuidados médicos e de enfermagem à população civil, de acordo com as orientações do Com-Chefe e Governador Geral, o gen Spínola. Boa parte dos recursos da saúde militar foi canalizada para o embrionário serviço regional de saúde da Guiné...

O que se terá passado ao longo dos longos anos da guerra ? As chefias militares sabem que os médicos são escassos e, por isso, um recurso raro e precioso. Viajam de heli ou DO 27, evitando as colunas auto, o risco de minas e armadilhas e de emboscadas. Ficam “acantonados” no aquartelamento, chefiando o “posto médico” da companhia ou batalhão, e são cada vez mais assoberbados pelas tarefas decorrentes da “acção psico-social” (que, diga-se de passagem,  está longe de ser uma invenção portuguesa, tendo sido inspirada nas guerras da Argélia e do Vietname, tal com as “aldeias estratégicas” ou “reordenamentos”).

Em Angola, nas zonas “mais calmas”, o serviço de saúde desempenhou “um papel crucial”: “uma pequena equipa constituída pelo médico, o enfermeiro, um maqueiro e o condutor deslocava-se, em dias certos, às várias sanzalas, onde era aguardada por uma multidão”…

Na Guiné, e pela minha experiência, a situação era inversa: em geral, eram as populações que se deslocavam ao “posto médico militar”, em Bambadinca, sede de batalhão e posto administrativo. Mas, com o reordenamento de Nhabijões, ao tempo do BART 2917, o médico também ia, periodicamente, ao destacamento, que ficava a escassos quilómetros da sede do batalhão, mas onde eu e outros voaríamos, num GMC, sob o efeito de uma potente mina A/C já próximo do final da comissão.


Director do hospital militar de evacuação no Luso, 
Região Militar do Leste, Angola 


Na segunda parte do artigo,  ou melhor, do capítulo do livros (pp.499-503), o autor recorre à sua experiência de diretor do serviço de cirurgia no hospital do Luso, um típico “hospital de evacuação”, no Leste de Angola, por volta de 1970/71.

O Carlos Vieira Reis começa nos confrontar com o contraste entre a “parte militar” e a “parte civil”: de um lado, a chamada Enfermaria de Sector, um pré-fabricado em forma de L, de um só piso, desconfortável, disfuncional, e do outro um magnífico edifício, construído de raiz, onde estava instalado o Hospital Regional do Luso. “O choque, quando se olhava para as duas construções, era de extrema violência e incompreensão” (p. 499).

Não se entendia como, sendo militares, a maior parte dos doentes existentes, se ofereciam “tão miseráveis condições de acolhimento”… E porque não se tinham concentrado todas as actividades num só edifício ? E porquê chamar “enfermaria de sector” e não hospital, como o Hospital Militar de Luanda ?…

Todos os dias o cirurgião recebia vários doentes, trazidos de avião ou de heli, com diversas patologias de guerra, em geral resultantes de minas A/C e A/P. Sobre as minas A/P, diz: (…) "Tinham um efeito terrível. (…) Quando [as vítimas] chegavam às mãos do cirurgião, a maioria das vezes era impossível salvar o membro: ao hospital já chegava um amputado e à pátria regressaria um deficiente” (p. 500).

Também os prisioneiros feridos eram ali tratados, sem distinção, nem discriminação, sendo “a única prioridade no tratamento (…) a gravidade dos ferimentos”… Mas, no final, o cirurgião sabia que estes seus doentes, os do IN, seguiam depois para “interrogatório policial” (PIDE/DGS) (p. 500).

De igual modo, os médicos militares também tratavam a população civil, de origem europeia. Mas aqui o autor faz um retrato pouco simpático do colono branco:

“Nunca até tinham tido tão boa assistência. Como reagia ? Com uma mentalidade estreita, focalizada na defesa dum trabalho mal remunerado e no culto do dinheiro; estavam interessados na defesa de Angola e na aniquilação dos terroristas, os ‘turras’, desde que fossem outros a fazê-lo. Que uma geração de jovens viesse sacrificar-se, era uma obrigação da nação onde tinham nascido. Limitavam-se a enriquecer à custa dos negócios e do dinheiro dos soldados” (pp. 500/501).

Não é um retrato edulcorado o do leste de Angola que o autor conheceu como médico militar, e que aqui nos deixa, em tom caricatural: 

(…) “Vivia-se numa sociedade de improviso em que os militares eram os que menos improvisavam. As cidades tinham juízes que eram nomeados sem habilitações, presidentes da câmara que nem para escriturários serviam, professores de liceu que nunca tinham acabado o curso liceal” (p. 501).


1700 doentes operados em 14 meses (1970/71) 


A actividade médica centrava-se sobretudo na cirurgia. A tal “Enfermaria de Sector”, nestes anos de 1970/71, recebia “75% de todos os feridos e baixas da Região Militar de Angola” (pág. 502). 

E, no entanto, tinha um quadro orgânico subdimensionado, com os seus médicos a serem também responsáveis pelos doentes do hospital civil, ao mesmo que as chefias na Região Militar Leste faziam orelhas moucas aos insistentes pedidos de envio de especialistas e “sobretudo de instrumentos cirúrgicos capazes e de ventiladores” (p. 502).

E, falando de quadro orgânico, queria dizer-se… 4 médicos, 1 sargento enfermeiro, 1 cabo auxiliar de enfermeiro e 2 maqueiros!...

Só havia um anestesista e ao ajudante de cirurgião, que se estava a especializar, eram entregues os “casos menos graves”.

Mas, se a penúria de material era grande, dispunha-se do recurso mais precioso nas organizações de saúde e nas demais organizações: o pessoal. O autor tece rasgados elogios à competência e empenhamento dos seus colegas e colaboradores, sempre disponíveis e sem exigências quando tocava a reunir… Vale a pena citar este longo parágrafo,para se perceber as duras condições em que se trabalhava nestes hospitais militares:

“Quando os feridos não chegavam isoladamente, mas em pequenos ou grandes grupos, por vezes mais de duas dezenas de uma só vez, a colaboração de todos os médicos era indispensável quando o cirurgião estava entregue a um dos trabalhos mais dolorosos e desagradáveis da sua especialidade: a triagem por urgência.

“O apoio consistia na estabilização de todos os doentes, desde o combate ao ‘shock’ e à infecção ao suporte endovenoso, às medidas de urgência e à imobilização provisória ou definitiva de fracturas. Mesmo aqueles que se poderiam esquivar a estas tarefas, se entregavam a elas com devoção total.” (p. 502).

Falando em números… Num período de 14 meses (nos anos 70/71), no Luso foram operados 1700 doentes, entre civis e militares, correspondentes a um número necessariamente superior de intervenções, devido, no caso das vítimas de actos de guerra, à presença de “patologias múltiplas: vários tiros ou estihaços, amputações traumáticas, perdas musculares graves, fracturas, queimaduras, além das famosas balas sem orifício de saída,com os trajectos mais aberrantes” (p. 503).

Em resumo, a guerra colonial foi uma experiência marcante para todos os que a fizeram, uns no “front office”, enquanto combatentes, outros no “back office”, como os médicos, os enfermeiros e outros. E isto, indepentemente do teatro de operações que nos coube em sorte. (Para não ferir suscetibilidades, no mato, todos éramos combatentes, tendo pelo menos um farda camuflada e uma G3 distribuída!...

Gostaria,todavia, que se falasse aqui mais das particularidades da saúde e dos serviços de saúde da Guiné, incluindo o papel (excecional) que no CTIG desempenharam os nossos 1ºs cabos e soldados auxiliares de enfermeiro, muitas vezes injustamente arrumados na categoria de “maqueiros”: salvaram muitas vidas nossas no mato, na ausência de médico e de enfermeiro, e enquanto o "anjo do céu" não chegava...

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Notas do editor:



(***)  Vd. poste de 24 de julho de  2013 > Guiné 63/74 - P11866: Os nossos enfermeiros (9): No caso dos furriéis enfermeiros iam para a Escola do Serviço de Saúde Militar, em Campo de Ourique, tirar o seu curso de enfermagem do qual faziam parte as seguintes disciplinas: Primeiros Socorros, Enfermagem, Profilaxia Tropical, Higiene, Guerra Química e Táctica Sanitária (Adriano Moreira, ex-fur mil enf , CART 2412, Bigene, Binta, Guidaje e Barro, 1968/70)