Guiné > Região de Quínara > Buba > O magnífico pôr de sol em Buba > Foto António Murta / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Com a devida vénia
Guiné > Região de Tombali > Aldeia Formosa (Quebo) > A nossa primeira casa no teatro de operações. Foto do António Murta / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné., com a devida vénia..
Por estranho que pareça tenho muita pouca memória do dia do embarque (como eu compreendo o Zeinal Baba !).
Nunca tinha andado de avião pelo que a expectativa era grande. Ouvia falar das hospedeiras... e do tratamento VIP que todos recebiam nas viagens de avião...
As hospedeiras eram... soldados!... E na aparelhagem sonora do avião eram difundidas as instruções de segurança, com uma linguagem ao nível da do amigo Gil em França e em Veneza (o vernáculo puro e duro do Norte).
Chegados a Bissau (depois de uma escala em Cabo Verde para reabastecer), retirado o cinto de segurança e abertas as portas, logo nos entra no avião... a ÁFRICA TODA (!), com toda a sua força: o calor, a humidade, os cheiros os sons...
A viagem de Berliet até ao Cumeré, não obstante os receios e muita ansiedade, consolidou e confirmou toda a informação colhida através de filmes e revistas sobre África, mas agora (com todos os meus sentidos em alvoroço) com o calor, a humidade, os cheiros, os grupos de mulheres com os seus filhos às costas e seios desnudados na beira da estrada e os sons característicos de África (que nenhum filme ou revista nos proporciona), várias vezes me belisquei à espera de acordar.
A passagem pelo Cumeré onde fizemos a IAO (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional), local de adaptação (fundamentalmente aos mosquitos e à rede mosquiteira) e preparação para as tarefas que nos estavam reservadas no teatro de operações, decorreu de forma tranquila.
Contudo, sentia-me anestesiado, como que vivendo um sonho e que logo pela manhãzinha acordaria na minha cama, no verde Minho, como sempre ouvindo os cães, os galos e os pardais.
Não era propriamente um pesadelo, de onde queria muito sair, acordando. Por estranho que pareça tudo fazia para prolongar o sono, pois que me sentia inebriado pelo calor, que me agradava, pelos cheiros que inalava com sofreguidão, com os sons que me soavam a música melancólica e doce.
E que dizer das gentes? Diferentes, mas desconcertantes na sua calma, como suspensos na atmosfera sem gravidade e muito, muito gentis. Ainda hoje me vem à memória as crianças, que quase habitavam o quartel, rodeando-nos entusiasmadas com a chegada dos novos inquilinos.
Parecia a peça que faltava para o quadro ser perfeito, infelizmente logo contrariado pela sofreguidão com que comiam as bolachas que lhe davamos, denunciando tudo o que não queríamos ver e confirmado pela fila que faziam, cada um com a sua lata na mão, à espera das sobras da cozinha...
Ainda hoje não encontro explicação para o facto de toda aquela miudagem, com 2 dias de Cumeré nos tratarem pelo nosso próprio nome!!!
Passados os 15 dias de adaptação e após o discurso de boas vindas de Spínola (menos dramático do que o do Sargento Redondeiro em Portalegre), lá chegou a hora da verdade com o embarque, numa LDG (Lancha de Desembarque Grande), rio acima (grande Fausto, uma obra prima este LP - Esta viagem está ao nível das muitas descritas por Fernão Mendes (M)Pinto na Peregrinação)...
Em Buba (local deslumbrante. ideal para umas boas férias) lá subimos para as Bierliets que nos conduziram, em coluna, até ao nosso destino: Aldeia Formosa (hoje Quebo). Esta coluna, que se realizava, creio que semanalmente, tinha como função principal o transito de militares e o abastecimento de todos os produtos, alimentícios, e outros, para toda a região de Aldeia Formosa.
Era uma picada difícil de vencer, em particular na época das chuvas, onde religiosamente avariava sempre uma ou duas viaturas, mas que nunca ficavam para trás (homens e máquinas o mesmo lema!), implicando uma viagem de um dia para vencer umas dezenas de quilómetros.
À frente da coluna seguia a “arrastadeira”, viatura carregada com sacos de areia, onde só lá ia o condutor, geralmente alguém já “cacimbado” que se oferecia para tão arriscada tarefa de limpar o caminho de minas para o resto da coluna. Situação que acontecia com alguma frequência.
Geralmente dois grupos de combate faziam a proteção da coluna e vários grupos eram colocados na mata, ao longo da picada, por forma a reduzir ao mínimo a possibilidade de contacto com o IN.
Não obstante todos estes cuidados era recorrente o rebentamento de minas ou contactos com o IN.
Com o desembarque em Buba deu para constatar que já estávamos na considerada zona vermelha (não confundir com red light district!). Eram evidentes os contrastes:
- os nossos camaradas que nos recebiam com uma cara de felicidade por nos ver chegar e as nossas de susto e medo;
- as suas fardas já sem cor de tantas lavagens e rotas, e as nossas ainda com cheiro a goma;
- os seus corpos tisnados pelo sol e a nossa brancura de lençol a corar ao sol.
Com um sorriso na cara e nas almas iam-nos mimando com a canção mil vezes cantada na Guiné: "Piriquito vai no mato, Olélélé velhice vai no Bissau olélélélé!".... Sacanas!
Ao chegarmos a Aldeia Formosa por todo o lado se ouvia: "Piriquito vai no mato, olélélé velhice vai no Bissau olélélélé".
Fomos recebidos, calorosamente, com direito a banho e rancho melhorado. Depois do banho fomos conduzidos ao bar para limpar as goelas do pó da viagem.
Alguns colegas “velhinhos” pediam ao soldado que servia no bar cervejas para ele e para os novos companheiros: para ele o soldado servia uma cerveja fresca para o periquito uma quente. Reclamamos, ao que o soldado nos diz que fresca só para os “velhinhos”, com o encolher de ombros do dito “velho”.
Como estávamos intimidados e assustados com todo aquele ambiente, ninguém mais reclamou.
Convidados para o jantar, aos “velhinhos” era servido, com deferência pelos soldados, uma sopa com aspeto agradável, aos periquitos era servida uma água turva, com grandes pedaços de capim e com gestos bruscos do soldado, entornando a mesma nas nossas calças.
Dormimos como justos no chão em colchões insufláveis... ainda vazios…
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(*) Postes anteriores da série:
Aqueles sargentos eram tramados. (...)
Chegados à porta de armas, um soldado aparece ao portão, com um leve sorriso nos olhos brilhantes, e, baixinho diz-me ao ouvido:
– O seu colega Ferreira pede para aguardar só uns segundos.
Achei estranho, geralmente nestes casos já todo e pessoal costumava estar à porta “mortinho” por se ir embora depois de 24 horas passadas naquele buraco. Aproximo-me mais um pouco do portão e vejo o Ferreira ainda a vestir as calças e uma loira a esgueirar-se, escondendo-se por trás dos soldados. Logo a seguir aparece o Ferreira, com um sorriso de felicidade, com um malmequer bravio, colhido no forte, colocado na orelha e a cantarolar a celebre canção, hino do movimento hippie e do amor livre: “Se vais a San Francisco, leva flores no teu cabelo…”(...)
Era recorrente ouvirmos que escriturários iam para mecânicos, mecânicos para escriturários, enfermeiros para transmissões e técnicos de rádio para enfermeiros... Dado este rigor científico, tinha a expectativa, dada a frequência do 3.º ano em engenharia eletromecânica (Curso de Eletrotecnia e máquinas), que me sairia em sortes, no mínimo, a especialidade de transmissões!
Enfim: Armas Pesadas!... e "ala" para Tavira. (...)