sexta-feira, 12 de março de 2021

Guiné 61/74 - P21996: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte IV: O embarque, as 'hospedeiras'… e África Minha


Guiné > Região de Tombali > CCV 8351 (1972/74) > Zona deintervenção (, círuclo a azul) dos Tigeres de Cumbijã. Guileje e Gadamael são referidos apenas pelos efeitos colaterais.

Infografia: Joaquim Costa (2021)



Guiné > Região de Quínara > Buba > Chegaa em LDG... Foto do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné., com a devida vénia...


Guiné > Região de Quínara > Buba > O magnífico pôr de sol em Buba > Foto António Murta / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Com a devida vénia



Guiné > Região de Tombali > Aldeia Formosa (Quebo) >  A nossa primeira casa no teatro de operações. Foto do António Murta / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné., com a devida vénia..



Joaquim Costa, hoje e ontem. Natural de V. N. Famalicão,
vive em Fânzeres, Gondamar, perto da Tabanca dos Melros.
É engenheiro técnico reformado.



Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte IV (*)


O embarque, as 'hospedeiras'….e África Minha!

 
Por estranho que pareça tenho muita pouca memória do dia do embarque (como eu compreendo o Zeinal Baba !). 

Lembro-me de alguns familiares a despedirem-se dos filhos, maridos e namorados, todos chorosos e tristes, mas longe das cenas que conhecia pela televisão, do cais de Lisboa (Gare Marítima da Rocha Conde de Óbidos), com desmaios, gritos, muito “ranho” no nariz e muitos lenços acenar.

Nunca tinha andado de avião pelo que a expectativa era grande. Ouvia falar das hospedeiras... e do tratamento VIP que todos recebiam nas viagens de avião...

As hospedeiras eram... soldados!... E na aparelhagem sonora do avião eram difundidas as instruções de segurança, com uma linguagem ao nível da do amigo Gil em França e em Veneza (o vernáculo puro e duro do Norte). 

Junto de cada banco um panfleto com as mesmas instruções mais ou menos assim: quem fumar dentro do avião está F...; Não se esqueçam de apertar a M… dos cintos…; e por aí fora.

 Tratamento VIP! Era obviamente um avião dos TAM - Transportes Aéreos Militares...

Chegados a Bissau (depois de uma escala em Cabo Verde para reabastecer), retirado o cinto de segurança e abertas as portas, logo nos entra no avião...  a ÁFRICA TODA (!), com toda a sua força: o calor, a humidade, os cheiros os sons...

A viagem de Berliet até ao Cumeré, não obstante os receios e muita ansiedade, consolidou e confirmou toda a informação colhida através de filmes e revistas sobre África, mas agora (com todos os meus sentidos em alvoroço) com o calor, a humidade, os cheiros, os grupos de mulheres com os seus filhos às costas e seios desnudados na beira da estrada e os sons característicos de África (que nenhum filme ou revista nos proporciona), várias vezes me belisquei à espera de acordar. 

Em meia dúzia de horas, passamos do centro de Lisboa com 13 graus, para o interior da Guiné, na África profunda, com 40º.

A passagem pelo Cumeré onde fizemos a IAO (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional), local de adaptação (fundamentalmente aos mosquitos e à rede mosquiteira) e preparação para as tarefas que nos estavam reservadas no teatro de operações, decorreu de forma tranquila.

Contudo, sentia-me anestesiado, como que vivendo um sonho e que logo pela manhãzinha acordaria na minha cama, no verde Minho, como sempre ouvindo os cães, os galos e os pardais.

Não era propriamente um pesadelo, de onde queria muito sair, acordando. Por estranho que pareça tudo fazia para prolongar o sono, pois que me sentia inebriado pelo calor, que me agradava, pelos cheiros que inalava com sofreguidão, com os sons que me soavam a música melancólica e doce.

E que dizer das gentes? Diferentes, mas desconcertantes na sua calma, como suspensos na atmosfera sem gravidade e muito, muito gentis. Ainda hoje me vem à memória as crianças, que quase habitavam o quartel, rodeando-nos entusiasmadas com a chegada dos novos inquilinos.

Parecia a peça que faltava para o quadro ser perfeito, infelizmente logo contrariado pela sofreguidão com que comiam as bolachas que lhe davamos,  denunciando tudo o que não queríamos ver e confirmado pela fila que faziam, cada um com a sua lata na mão, à espera das sobras da cozinha...

Ainda hoje não encontro explicação para o facto de toda aquela miudagem, com 2 dias de Cumeré nos tratarem pelo nosso próprio nome!!!

Passados os 15 dias de adaptação e após o discurso de boas vindas de Spínola (menos dramático do que o do Sargento Redondeiro em Portalegre), lá chegou a hora da verdade com o embarque, numa LDG (Lancha de Desembarque Grande), rio acima (grande Fausto, uma obra prima este LP - Esta viagem está ao nível das muitas descritas por Fernão Mendes (M)Pinto na Peregrinação)...

E lá fomos até Buba, com a companhia de alguns elementos da população local que se faziam acompanhar com toda a “família”, nomeadamente: cabras, galinhas, porcos, etc.,

Em Buba (local deslumbrante. ideal para umas boas férias) lá subimos para as Bierliets que nos conduziram, em coluna, até ao nosso destino:  Aldeia Formosa (hoje Quebo). Esta coluna, que se realizava, creio que semanalmente, tinha como função principal o transito de militares e o abastecimento de todos os produtos, alimentícios, e outros, para toda a região de Aldeia Formosa.

Era uma picada difícil de vencer, em particular na época das chuvas, onde religiosamente avariava sempre uma ou duas viaturas, mas que nunca ficavam para trás (homens e máquinas o mesmo lema!), implicando uma viagem de um dia para vencer umas dezenas de quilómetros.

À frente da coluna seguia a “arrastadeira”, viatura carregada com sacos de areia, onde só lá ia o condutor, geralmente alguém já “cacimbado” que se oferecia para tão arriscada tarefa de limpar o caminho de minas para o resto da coluna. Situação que acontecia com alguma frequência.

Geralmente dois grupos de combate faziam a proteção da coluna e vários grupos eram colocados na mata, ao longo da picada, por forma a reduzir ao mínimo a possibilidade de contacto com o IN.

Não obstante todos estes cuidados era recorrente o rebentamento de minas ou contactos com o IN.

Com o desembarque em Buba deu para constatar que já estávamos na considerada zona vermelha (não confundir com red light district!). Eram evidentes os contrastes:

  • os nossos camaradas que nos recebiam com uma cara de felicidade por nos ver chegar e as nossas de susto e medo;
  • as suas fardas já sem cor de tantas lavagens e rotas, e as nossas ainda com cheiro a goma;
  • os seus corpos tisnados pelo sol e a nossa brancura de lençol a corar ao sol.

Com um sorriso na cara e nas almas iam-nos mimando com a canção mil vezes cantada na Guiné: "Piriquito vai no mato, Olélélé velhice vai no Bissau olélélélé!".... Sacanas!

Ao chegarmos a Aldeia Formosa por todo o lado se ouvia: "Piriquito vai no mato, olélélé velhice vai no Bissau olélélélé".

Fomos recebidos, calorosamente, com direito a banho e rancho melhorado. Depois do banho fomos conduzidos ao bar para limpar as goelas do pó da viagem.

Alguns colegas “velhinhos” pediam ao soldado que servia no bar cervejas para ele e para os novos companheiros: para ele o soldado servia uma cerveja fresca para o periquito uma quente. Reclamamos, ao que o soldado nos diz que fresca só para os “velhinhos”, com o encolher de ombros do dito “velho”.

Como estávamos intimidados e assustados com todo aquele ambiente,  ninguém mais reclamou.

Convidados para o jantar, aos “velhinhos” era servido, com deferência pelos soldados, uma sopa com aspeto agradável, aos periquitos era servida uma água turva, com grandes pedaços de capim e com gestos bruscos do soldado,  entornando a mesma nas nossas calças. 

Aqui a coisa “piou mais fino” e alguns de nós reagiram com alguma violência. Antes que a coisa descambasse, os soldados que serviam no bar,  identificaram-se como colegas furriéis, e que tal não passava de uma praxe habitual aplicada aos periquitos. 

Com tudo esclarecido ... a farra foi até às tantas com direito a cerveja fresca.

Dormimos como justos no chão em colchões insufláveis... ainda vazios…

 _________

Nota do editor:

(*) Postes anteriores  da série:


(...) Foi aqui que me tornei um exímio jogador de lerpa (jogo de cartas a dinheiro) graças aos mestres do ofício - os velhinhos sargentos do quartel. No dia em que fazia serviço aos telheiros (instalações fora do quartel onde dormiam os soldados da companhia) era sempre uma noite sem ir à cama já que o casino se montava no final do jantar e fechava as portas já com os soldados formados em parada para regressarem ao quartel para mais um dia de instrução. Sempre que fazia serviço aos telheiros no dia seguinte seguia carta para casa a pedir mais uma mesada adiantada…

Aqueles sargentos eram tramados. (...)

13 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21893: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-fur mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte II: A minha passagem pela maravilhosa cidade de Chaves depois do martírio de Tavira

(...) De manhã cedinho, depois de um bom pequeno almoço com pão sempre quentinho e muita manteiga a derreter-se no mesmo, formado o grupo, lá fomos nós, todos catitas, a marchar até ao forte de S. Francisco.

Chegados à porta de armas, um soldado aparece ao portão, com um leve sorriso nos olhos brilhantes, e, baixinho diz-me ao ouvido:

– O seu colega Ferreira pede para aguardar só uns segundos.

Achei estranho, geralmente nestes casos já todo e pessoal costumava estar à porta “mortinho” por se ir embora depois de 24 horas passadas naquele buraco. Aproximo-me mais um pouco do portão e vejo o Ferreira ainda a vestir as calças e uma loira a esgueirar-se, escondendo-se por trás dos soldados. Logo a seguir aparece o Ferreira, com um sorriso de felicidade, com um malmequer bravio, colhido no forte, colocado na orelha e a cantarolar a celebre canção, hino do movimento hippie e do amor livre: “Se vais a San Francisco, leva flores no teu cabelo…”(...) 

3 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21844: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-fur mil arm pes inf, CCAV 3851, 1972/74) - Parte I: Caldas da Rainha (A chegada às portas da tropa: um fardo pesado); Tavira (Amor, ódio e... trampa)

(...) Já na altura, a tropa estava muito à frente! – eram distribuídas as especialidades de uma forma cientificamente infalível, através de testes ditos psicotécnicos que na altura, creio eu, só o exército utilizava.

Era recorrente ouvirmos que escriturários iam para mecânicos, mecânicos para escriturários, enfermeiros para transmissões e técnicos de rádio para enfermeiros... Dado este rigor científico, tinha a expectativa, dada a frequência do 3.º ano em engenharia eletromecânica (Curso de Eletrotecnia e máquinas), que me sairia em sortes, no mínimo, a especialidade de transmissões!

Enfim: Armas Pesadas!... e "ala" para Tavira. (...)

Guiné 61/74 - P21995: Parabéns a você (1942): Sarg. Ajud. Ref da GNR Manuel Luís R. Sousa, ex-Soldado At Inf da 2.ª Comp/BCAÇ 4512/72 (Jumbembém, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 10 de Março se 2021 > Guiné 61/74 - P21988: Parabéns a você (1941): Joaquim Cruz, ex-Soldado CAR da CCS/BCAÇ 4512/72 e BENG 447 (Farim e Bissau, 1972/74)

quinta-feira, 11 de março de 2021

Guiné 61/74 - P21994: Manuscrito(s) (Luis Graça) (200): "A minha esperança mora / No vento e nas sereias / É o azul fantástico da aurora / E o lírio das areias" (Sophia)


Foto nº 1 > Lourinhã > Porto das Barcas > Tabanca do Atira-Te Ao Mar > 6 de março de 2021 > O lírio-das-areias

 
Foto nº 2 > Lourinhã > Porto das Barcas > Tabanca do Atira-Te Ao Mar >  6 de março de 2021 > 
 
Foto nº 3 > Lourinhã > Porto das Barcas > Tabanca do Atira-Te Ao Mar >  O lírio-das-areias em flor
 

Foto nº 4 > Lourinhã > Praia da Areia Branca  > Dunas >  11 de março de 2021 > 


 Foto nº 5 > Lourinhã > Praia da Areia Branca  > Dunas >  11 de março de 2021 >
 

Foto nº 6 > Lourinhã > Praia da Areia Branca  > Dunas >  11 de março de 2021 > O lírio-das-
areias cercado pelo chorão-das-praias (Carpobrotus edulis), 

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2021). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Que planta é esta, que cresce à beira-mar ?  Tem muitos nomes populares: lírio-das-areias, narciso-das-areias, lírio-das-praias, lírio-das-dunas, pancrácio marítimo... Nome científico Pancratium Maritimum...

É uma planta autóctone de Portugal continental ( , não existe por exemplo na Madeira), vive nas dunas e areais costeiros, geralmente na duna primária e nos vales entredunares, ao longo de toda a nossa costa, do Minho ao Algarve...

Cantada por poetas como Sophia de Mello Breyner Andresen: "A minha esperança mora / No vento e nas sereias / É o azul fantástico da aurora / E o lírio das areias." (in: Dia do Mar). 

2. Diz a Wikipedia

(i) Descrição:

(...) É uma espécie herbácea, as folhas erguidas sobressaem do solo formando um denso ramalhete; têm entre 5 e 20 mm de largura e são de cor verde azuladas. Têm um bolbo largo, esbranquiçado, com várias capas membranosas. A ingestão provoca uma grade toxicidade, visto conter heterósidos cardiotónicos. As raízes estão situadas a uma profundidade de até 0,8 m abaixo da superfície.

As flores são pediceladas, grandes, de cor branca, com semelhança aos narcisos, muito aromáticas e com um tamanho de até 15 cm de comprimento. A for apresenta 6 tépalas lanceaoladas abertas na periferia e com uma nervura esverdeada dorsal que nasce na base da umbela. A corola com forma de trompete, também branca, contém 12 dentes de forma triangular. Os 6 estames são de cor esbranquiçada, com anteras de cor amarela em forma de rim.

O ovário é trilocular e sobressai sobre o cálice. O fruto é uma cápsula grande e ovóide, em cujo interior se encontram as sementes, negras e de forma triangular, com picos. (...)

(ii) Etimologia:

Pancrácio provem do grego παν (pan, "tudo") e κρατυς (cratys, "potente") em alusão a supostas virtudes medicinais da planta. Maritimum vem do latim "mar", devido ao seu habitat costeiro.

3. Floração:

Já quanto à floração, há divergências nos registos: estas  imagens (Fotos nºs 1, 2 e 3) que fizemos, no Porto das Barcas, na "saída de emergência" da nossa "secreta" Tabanca do Atíra-Te ao Mar (, de que é régulo o nosso camarada Joaquim Pinto Carvalho),  têm a data de 6 de março de 2021... Estes lírios-das-areias aparecem no alto na arriba do Porto das Barcas e já estão a florir... 

Nas dunas da Praia da Areia Branca / Praia do Areal, costumamos vê-las florir mais tarde, a partir de fins de maio e princípios de junho... 

As dunas são ecossistemas muito sensíveis e correm o risco de desaparecer...  Infelizmente este passeio pedonal, ligando a foz do rio Grande à praia do Areal,  está muito degradado... É uma pena!... Mas quando for recuperado,  por favor, senhores autarcas, mandem arrancar os chorões que esmagam as nossas lindas plantas autóctones dunares!... Ofereço um dia ou meio-dia de trabalho voluntário, conforme o estado de saúde das minhas pernas,  para ajudar a arrancar os malditos chorões!

O chorão-das-praias é espécie invasora, proveniente da África do Sul, e como tal está listada no Decreto-Lei nº 92/2019, de 10 julho.(Assegura a execução, na ordem jurídica nacional, do Regulamento (UE) n.º 1143/2014, estabelecendo o regime jurídico aplicável ao controlo, à detenção, à introdução na natureza e ao repovoamento de espécies exóticas da flora e da fauna.)
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Nota do editor:

Último poste da série > 19 de fevereiro de  2021 > Guiné 61/74 - P21918: Manuscrito(s) (Luís Graça) (199): Elegia para Isabel Mateus (Soure, 1950 - Lourinhã, 2021)

Guiné 61/74 - P21993: A Operação Vaca, em 10 de março de 1965, em que forças da CCAÇ 675, com a ajuda da Marinha, "resgataram" 85 vacas "turras", no Oio, "ronco" que gerou depois um contencioso entre "infantes" e "marinheiros" (Belmiro Tavares, ex-alf mil, Binta, 1964/66)

Guiné  Região de Cacheu > Binta > CCAÇ 675 (1964/66) > c. 1965 >  A ganadaria da "companhia do quadrado"...

Guiné  > Região de Cacheu > Binta > CCAÇ 675 (1964/66) > C. 1965 > Secretaria da Companhia, que funcionava como sala de visitas: da esqerda para a direita, 1.º Ten Batista Lopes, cmdt da LFG Lira (que na época fiscalizava o rio Cacheu),  Ten Cor Fernando Cavaleiro, CMDT do BCav 490  (Farim, 1963/65), Cap Tomé Pinto, CMDT da CCAÇ 675, e Cap Cav Manuel Correia Arrabaça, CMDT da CCS / BCav 490

Fotos (e legendas): © Belmiro Tavares (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Capa do livro "A nossa luta: dois anos de muita luta: Guiné 1964/66, CCAÇ 675)", de Belimiro Tavares e José Eduardo Reis de Oliveira, edição de autor, il.. Lisboa, 2017, 606 pp. [Um exemplar autografado foi oferecido ao nosso editor. com a seguinte dedicatória; "Ao caro amigo Luís Graça, com enorme amizade e carinho. Lisboa, 1/2/2021, Belimiro Tavares".]




1. O Belmiro Tavares (ex-Alf Mil da CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), Prémio Governador da Guiné (1966), membro nº 390, da nossa Tabanca Grande, desde 1/11/2009,  empresário hoteleiro, é autor da série "Histórias e Memórias de Belmiro Tavares", de que se publicaram 47 postes ao longo de mais de 4 anos, entre novembro de 2009 e maio de 2014  (*). 

Grande parte dessas histórias e memórias foram recompiladas no livro cuja capa se reproduz acima. Com a devida vénia, vamos reproduzir a segunda parte do poste P9646 (**),  que corresonde no essencial, no livro supracitado, à narrativa "10 de março de 1965: um dia agitado: operação "Vaca" (pp. 255/257). É uma história bem humorada, e contada com talento.


Belmiro Tavares, alf mil, CCAÇ 675
(Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66)
Também a famosa "companhia do quadrado" tinha de lidar, como todas as outras, ao longo da guerra,   com o candente problema da "falta de carne", alegadamente pelos mesmos motivos: "os nativos não manifestavam vontade de vender os seus animais", devido à importância que o "gado vacum", em especial,  representava para as famílias e as comunidades... Esse problema tem sido aqui abordado, de um lado e do outro (***).


A operação Vaca

por Belmiro Tavares


Hoje, vou transmitir uma actuação muito esquisita, muito especial, diferente (digo eu) e também com surpresa total, à qual não atribuímos qualquer 
nome – nem houve tempo para tal!  

Posteriormente um oficial da Marinha, o comdt do navio Lira [, Lancha de Fiscalização Grande,]  que patrulhava o Cacheu naquela data, chamou-lhe “Operação Vaca”, nome que aceitámos... 
à posteriori.

Tratou-se duma operação... improvisada (ponham improviso nisso) mas muito lucrativa, materialmente. Não recordo a data; creio apenas que ocorreu em março de 1965 [, dia 10, p. 255 do supracitado livro].

Na madrugada daquele dia (e sem imaginar o que iria acontecer) o meu Grupo de Combate saiu para o mato; regressámos, missão cumprida, cerca das 3h00 da tarde; à entrada do quartel cruzei com os outros dois Gr Comb.: um seguiu para Farim e outro para Guidage.

 O cap Tomé Pinto aguardou que eu chegasse e, depois dum belo banho, almoçamos juntos. A meio do repasto, ouvimos alguém chamar insistentemente:

–  Sr. Capitão! Sr. Capitão!

Depreendemos que se tratava de pessoal da Marinha e fomos averiguar o que pretendiam.

– O nosso Comandante manda dizer que, na bolanha em frente, anda uma grande manada a pastar; se decidirem ir lá apanhá-la, nós temos ali uma LDM que facilita a travessia do rio.

A proposta partia do comdt Baptista Lopes, um grande amigo da CCaç 675. Entre “aquela Marinha” (pessoal do navio Lira) e a nossa unidade... tudo corria sobre esferas: eles faziam ali aguada [, abastecimento de água potável], por vezes almoçávamos juntos (no navio ou nas nossas pobres instalações), emprestavam-nos um motor para regar a nossa horta com água do poço e forneceram-nos corrente eléctrica para podermos ver dois filmes com a Madalena Iglésias e o António Calvário – vimos aqueles filmes todas as noites, mais de uma dezena de vezes!

Uma das nossas preocupações, no tocante à alimentação, era a falta de carne, porque os nativos não manifestavam vontade de vender os seus animais. Recebiam o “patacão”, é certo, mas perdiam evidentes sinais exteriores de abastança. Entre eles não era rico quem tinha dinheiro no canto do baú; a riqueza manifestava-se pela quantidade de vacas que cada um possuía. Sabia-se logo quem era rico... o resto é conversa. As vacas serviam até como “moeda de troca” na “aquisição” de noiva.

O cap Tomé Pinto, o nosso sábio timoneiro, sempre atento a tudo o que nos rodeava, perguntou se eu estava disposto... a ir ao Oio apanhar umas vacas... vivas ou mortas.

– Por vaca... eu vou até ao inferno!

Reuni logo os meus soldados e, acompanhados por militares e milícias nativos, utilizámos a LDM (Lancha de Desembarque Médio) para cruzar o rio... na ponta da unha.

Os indígenas tinham a missão de se aproximar e lidar com os quadrúpedes. Eu sabia que as vacas fugiam dos brancos como se de inimigos se tratasse... e não é que elas até tinham razão?!

Desembarcámos cautelosamente na margem esquerda do Cacheu e à distância, cercámos os ruminantes; era quase uma centena de lindas cabeças. Os nativos abeiraram-se delas e iniciaram a tarefa de as “empurrar”, cautelosamente, para junto do rio onde a LDM nos aguardava.

Pareceu-me estranho que tantas vacas pastassem tão perto de nós... sem vigilância de pessoal armado... nem parecia que estávamos no Oio! Não vimos viv’alma! Soubemos mais tarde que quatro guerrilheiros armados protegiam a manada. Quando se aperceberam que a tropa de Binta atravessara o rio e já montava o cerco ao gado... esconderam-se no tarrafe; houveram por bem que era preferível perder apenas os ruminantes... que deixar escapar também as próprias vidas.

Os nossos negros iam cumprindo a sua missão, conduzindo a manada para o local escolhido. A certa altura, porém, as vacas deixaram de caminhar; nem o diabo as fazia locomover-se: estavam atoladas em mais de meio metro de lama peganhosa.

Reconhecida a impossibilidade de obrigar o gado a aproximar-se da margem, ordenei aos marinheiros que nos trouxessem cordas do quartel. Utilizávamos estas cordas quando saíamos para o mato em noites de puro breu para que ninguém se descarrilasse – éramos os “voluntários” da corda!

Recebidas as cordas, logo quinze vacas foram atreladas à lancha que as rebocou para a outra margem. Houve azar! Esqueceram-se de levantar o “taipal” da barca e as desditosas vacas foram coagidas a atravessar o rio com as narinas debaixo de água; os quinze animais morreram por asfixia! Foi um ar (falta dele) que lhes deu! 

Com as restantes... tal não aconteceu e eram setenta belos animais. Acabou-se a falta de carne! A CCaç 675 passou a ter uma razoável e lustrosa ganadaria que causava inveja – salvo seja – ao chefe da tabanca de Binta, Malan Sanhá.

Foi então que um valente bezerro, o animal mais corpulento da manada, iludiu (ou forçou) a vigilância; subiu ao caminho que ali cruzava a bolanha para sul e só parou a uns bons 300 m. Apontei a G3 mas não disparei porque o animal iria morrer longe; perdíamos a bala e eles ficavam com a carne! Mas... eis que o animal (parado) voltou a cabeça, talvez para afugentar uma incómoda mosca; fiz pontaria e disparei; as pernas dobraram-se imediatamente e o animal caiu inanimado; àquela distância acertei-lhe mesmo no ouvido! Belo tiro! O touro foi logo ali sangrado, “desmontado” e trouxemo-lo “em peças”.

As vacas que morreram por asfixia foram amanhadas e distribuidas: pela CCaç 675, pelo pessoal da Marinha, pelos civis de Binta e pela CCav. 487 de Farim – foi um bodo aos pobres!

Como bons ganadeiros, logo no domingo seguinte, procedemos à ferra dos (já) nossos animais para prevenir confusões com os da vizinhança.

Um serralheiro improvisado elaborou uma letra “C” em ferro que, soldada na extremidade duma haste metálica, serviu lindamente para “marcar” o nosso gado. Convidámos o Comdt do BCav  490 [, ten cor Fernando Cavaleiro],  a equipa de futebol da CCav 487 e seus apoiantes bem como o pessoal do navio Lira que partrulhava o Cacheu.

A festança iniciou-se com um jogo de hábeis pontapés na bola entre as equipas da CCaç 675 e da CCav 487; os infantes triunfaram por concludentes 3 x  0 – sem margem para dúvidas! É certo (invento eu) que os de Farim foram pré-avisados que, se nós não ganhássemos eles perdiam o direito de almoçar à borla e poderiam até sofrer eventualmente, uma emboscada no regresso a Farim. Mas, claro, não foi por isso que vencemos; é brincadeira!

Seguiu-se a ferra, o ponto alto (e o mais hilariante) da festa! A rua 4 de Julho serviu de arena; entre dois grandes armazéns de zinco, encerrámos a rua com viaturas, formando o redondel... que era quadrangular. Um a um, os animais foram apanhados e conduzidos até junto da forja; com a tal letra “C” bem aquecida queimava-se o pelo (por vezes também a pele) de cada vaca ou similar. Alguns não gostavam e escoiceavam duramente tentando escapar, a qualquer preço,  e a cena repetiu-se sessenta e nove vezes!

Houve várias tentativas de toureiro mas só apareceram artistas inábeis e medrosos; houve também tentativas de pegar... desajeitadas... de quebrar o côco... Tínhamos na CCaç 675 um sobrinho do afamado pegador de touros, Salvação Barreto, o tal que “dobrou” o artista no extraordinário filme “Quo Vadis”; este sobrinho, porém, não queria entender-se com cornúptos ao vivo, para ele, vaca só no prato; mas “cantava” embora desafinado: “una lágrima entre os ojos”!

Para encerro da festa ficou uma perigosa vaca que marrava desalmadamente! Como diz o ditado: o rabo é pior de esfolar! Houve várias tentativas de lide mas a vaca era mais manhosa e enganosa que os turras (estes nunca nos obrigaram a fugir); alguns mais afoitos, mal a vaca investia, saltavam logo para a “trincheira” (para cima das viaturas).

Eis que surge na praça um soldado que, aparentemente, nada teria a ver com touradas. Era natural de Figueira de Castelo Rodrigo, de seu nome completo Silvestre Fernando Verges Flor; não sei o motivo por que o alcunharam de “Aguardente” (era percetível) !. 

Este jovem beirão tentou arremedar qualquer aprendiz de toureiro mas nada lhe saiu bem... nem mal. Distraiu-se a conversar com alguém que, de cima duma viatura, tentava, prudentemente, aconselhá-lo; pôs-se a jeito, involuntariamante, para levar uma valente marrada; gritaram-lhe; ele voltou-se e, não tendo já tempo para fugir, curvou-se “corajosamente” para a frente (para amortecer o impacto),  embarbelou-se com altivez e arrojo e dominou a besta astuciosa e má: uma valente e aparatosa pega... de emergência! 

O pior, porém, foi sair de entre os cornos aguçados da bicha... mas com algumas ajudas conseguiu libertar-se daquela melindrosa situação... sem qualquer mazela. Pediu-se, insistentemente, “bis”... mas ele não foi na conversa; desconfiou que a sorte podia não estar de novo do seu lado e comentou: “de repetição é o relógio da torre da igreja lá da santa terrinha”!

Ao fim de um mês a patrulhar o Cacheu, o comdt do NRP Lira rumou a Bissau não sem antes ter recebido mais duas vacas; além disso foi-lhe prometido que, regressando de novo àquelas águas, poderia contar com carne das vacas que havíamos surripiado aos turras assustados; afinal eles detetaram os animais e forneceram a (parte da) logística!

A caminho de Bissau, ao passar na povoação de Cacheu, na foz do rio com o mesmo nome, um oficial de Marinha, de alta patente, subiu ao navio para seguir viagem para a capital da província. Durante o percurso, o comdt do navio Lira informou garbosamente – em off - o seu superior hierárquico, pormenorizadamente, sobre a tal “Operação Vaca”.

Já em Bissau, os comandantes de todos os navios que haviam patrulhado outros rios reuniram, como habitualmente, com o comando naval para informar, de viva voz, tudo o que de importante havia ocorrido. O comdt B. Lopes não referiu a tal caçada de vacas mas o oficial que havia sido informado – em off – lembrou-lhe que devia referi-la e... assim teve de ser.

Uns dias mais tarde a CCaç 675 recebeu um ofício da Marinha a exigir metade das vacas capturadas. Não descontavam sequer as que haviam sido distribuidas a outras entidades,  exigiam apenas 42,5 vacas!

O cap Tomé Pinto não brincava em serviço; elaborou cálculos rigorosos tendo em devida conta os meios humanos envolvidos naquela tarefa (damos como certo que a carne de vaca não fazia parte da dieta alimentar da LDM); referiu ainda que a parte de leão (maior risco) tinha pertencido aos “infantes”. 

Feitas as contas e apresentadas com rigor e clareza, concluiu que a Marinha tinha direito a duas vacas e meia, e como haviam já recebido três, os marinheiros deveriam devolver-nos meia vaca. O cap Tomé Pinto rogou penhoradamente que essa meia vaca nos fosse enviada pelo primeiro navio que viesse patrulhar o rio Cacheu.

A Marinha não respondeu!... mas não desarmou!

O próximo comandante, R.V.V. e Sá Vaz, a patrulhar o Cacheu,  trazia a incumbência de reabrir as negociações. Parecia que ia travar-se uma batalha “fratricida” entre a Marinha e a Infantaria... mas teria lugar fora da água barrenta do rio cor de cinza.

O cap Tomé Pinto, um perseverante e zeloso defensor dos superiores interesses dos seus comandados, manteve intransigentemente a sua posição sumamente documentada e justificada: inadvertidamente, receberam meia vaca em excesso... devolvam-na!

Por fim o comdt Sá Vaz argumentou (em tom de evidente ameaça velada): 

–  A CCaç. 675 ficará mal vista perante a Marinha se não entregar parte das vacas (já não quantificava).

O cap Tomé Pinto, “homem d’antes quebrar que torcer”, não cedeu, garantindo a veraciadade dos números que havia transmitido.

Assim terminou uma das “batalhas” (aliás duas: a captura e divisão das vacas) mais divertidas e lucrativas que levámos a bom porto. Não nos faltou carne até ao fim da comissão... e ao pessoal do navio Lira – sempre que vieram patrulhar o Cacheu – também não.

A ganadaria da CCaç 675 era excelente e..., apesar de tudo, foi barata.

Fez-nos um jeitão do caraças!

Belmiro Tavares

[Com a devida vénia ao autor... Seleção, revisão e fixação de texto para efeitos de publicação neste blogue: LG]
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Notas do editor:

(*) Vd. primeiro (1) e último (47) poste:




quarta-feira, 10 de março de 2021

Guiné 61/74 - P21992: (Ex)citações (393): por que razão é que os fulas não gostavam de vender as suas vacas à tropa (Cherno Baldé, Bissau)


Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Setor  L1 (Bambadinca) > BART  2917 (1970/72) > CCAÇ 12 > Crianças de tabanca fula em autodefesa, no sul do Regulado de Badora, talvez Sansacuta.

Foto: © Arlindo T. Roda (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > Subsetor de Bambadinca > Detalhe > Tabancas fulas em autodefesa, Samba Juli, Sinchã Mamajã e Sansacuta, situadas entre os rio Querol e Timinco, a leste da estrada Bambadinca-Mansambo > Carta do Xime (1955) (Escala 1/50 mil)... Lugares que continuam no nosso imaginário...

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2012)


1. Comentário do Cherno Baldé [,
 o "Chico de Fajonquito", quadro superior na área da gestão de projectos, com formação em Kiev e Lisboa, colaborador permanente  na área da etnolinguística da Guiné-Bissau, com 225 referências no nosso blogue) (*)

Caro amigo António [Carvalho]:

É verdade que os camponeses fulas não gostavam de vender o seu gado e a razão é muito simples, era e continua a ser a única riqueza que têm e com a qual podem contar para se socorrer em casos de necessidade da família e da comunidade ou ainda em casos de calamidades naturais ligadas as suas actividades de sobrevivência. 

Só quem (sobre)vive da terra, da agricultura,  percebe as dificuldades e incertezas com que se deparam e num pais onde não existem nem subsídios, nem financiamentos ao agricultor.

Para nós, na tabanca, tirar uma galinha já representa um grande sacrifício. E de mais a mais, as manadas representam uma propriedade colectiva onde crianças, mulheres e homens adultos, cada um tem a sua vaquinha para seu sustento (ordenha do leite) e a sua poupança para o futuro a titulo individual e colectivo. 

Vocês, vivendo no meio dos guineenses, nunca estranharam o facto de nunca terem encontrado instituições de fomento e/ou de apoio aquelas famílias,  muitas vezes escorraçadas das suas terras e condicionadas pela situação da guerra onde eram mais vítimas do que propriamente actores ?

Para nós,  que estávamos habituados a escassez e a miséria do dia a sua, parecia-nos um exagero quanto as "queixinhas" dos metropolitanos sobre a comida. No caso concreto de Fajonquito, todas as semanas (segundas feiras?) abatia-se uma vaca que compravam (?) com a ajuda das autoridades locais,  quando não eram vacas trazidas do mato, e habitualmente, preparava-se um guisado de carne com batatas ou então com massas (esparguete) e ainda assim acontecia, esporadicamente, na aldeia o desaparecimento de cabritos e galinhas que iam parar no forno do padeiro.

Para a tropa a comida nunca estava boa, mas ainda assim nós os djubis do quartel debatiamos sempre com insuficiência de sobras, aliás não raras vezes as segundas feiras (dia do abate) eram o dia em que não queriam ninguém no quartel, corriam com todos, isto falando dos outros, porque os faxinas estes ficavam na caserna à espera que um dos amigos lembrasse de trazer um pouco da sua comida ou da segunda dose quando restava alguma coisa na mesa. 

O que me valia a mim era ter o amigo Teixeira (Cabo Mecânico), hoje um empresário de sucesso em Lisboa, que nunca se esquecia do seu amigo Chiquinho. Alguns eram bons comilões e por cima mandões, porque traziam a marmita vazia para eu lavar e guardar.

Continua que estamos a gostar, embora me pareça mais do género politicamente correcto, como se costuma dizer e um pouco à esquerda. Não sei se vais ter muitos leitores nos tempos que vivemos.

Um grande abraço,
Cherno Baldé
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 15 de fevereiro de  2021 > Guiné 61/74 - P21905: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (4): A vaca

Guiné 61/74 - P21991: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (22): minas, terríveis minas...


Guiné > Região de Quínara > São João > CCAÇ 423 (1963/65) > Os efeitos devastadores das primeiras minas e fornilhos A/C no CTIG, na estrada Nova Sintra-Fulacunda.


Foto (e legenda): © Gonçalo Inocentes (2020) Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mais uma pequena história do Carlos Barros:

(i) ex-fur mil, 2ª C/BART 6520/72 (Bolama, Bissau, Tite, Nova Sintra, Gampará, 1972/74), "Os Mais de Nova Sintra", os últimos a ocupar o aquartelamento de Nova Sintra antes da sua transferência para o PAIGC em 17/7/1974; 

(ii) membro da Tabanca Grande nº 815, tem cerca de 3 dezenas referênciasmo nosso blogue.


Minas, terríveis minas...


O soldado Sousa, da 2ª CART / Bart 6520, de Nova Sintra  –Ramiro de Silva Sousa, natural de Quiaios, Figueira da Foz
 – estava no destacamento à espera do correio que vinha numa avioneta, DO-27,  e, nesse dia, não tinha recebido correspondência, o que o entristeceu, um sentimento semelhante ao de todos nós, quando não recebíamos correio.

Estava junto à sua caserna e um seu amigo encontrava-se a ler um jornal da sua região onde noticiava que tinha havido um acidente na zona Quiaios, terra do Sousa,  e, por infelicidade, esse acidente foi grave e trágico...  Tratava-se de  familiares do soldado Sousa que, compreensivelmente,  ficou num estado psicológico desesperado.

Pela tardinha, furtivamente, o Sousa desertou do destacamento de Nova Sintra e foi ao aquartelamento de S. João, onde se encontrava o seu amigo Alferes Garcia, do qual esperava um apoio para a sua situação .

O Alferes Garcia (já falecido) era um grande amigo dos militares, homem simples, colaborador, alegre, simpático e com um elevado sentido de humor e quando se juntava ao alferes Figueira, e aos furriéis Elias e Mendonça, era um ambiente de alegria transbordante e grandes “palhaçadas” no bom sentido do termo.

O soldado Sousa seguiu pelo caminho ou trilho em direção a S. João e pisou uma mina anti-pessoal e deu-se a tragédia! Essa mina tinha sido colocada pelos sapadores de S. João, como “armadilha” de defesa do destacamento.

Um milícia, chamado Atilo, que andava à caça, ouviu essa explosão e aproximou-se do local onde tinha deflagrado a mina e encontrou o Sousa, o “Meio Quilo”, estendido no solo poeirento e com ferimentos extremamente graves.

O milícia Atilo foi, de imediato, avisar o alferes Garcia,  comandante do destacamento que mandou uma Berliet buscar o ferido, sendo, posteriormente, evacuado de helicóptero, pela tardinha, de S. João para o Hospital Militar de Bissau.

O Sousa recuperou, regressou à Metrópole, casou e constituiu família e foi a todos os Encontros – Convívios Anuais organizados pelos “Os Mais de Nova Sintra”. Como um dos organizadores, desses convívios, eu posso afirmar e justificar que o Sousa esteve presente com a sua esposa, pelo menos, nos últimos 41 anos consecutivos.

Infelizmente, há 4 anos faleceu, deixando-nos imensas saudades.

Fisicamente perdemos o Sousa mas, espiritualmente, está sempre presente entre nós.

Testemunho do ex-furriel Barros, 2ª Cart / BART 6520, sendo apoiado neste testemunho, pelo amigo Joaquim Manuel Rodrigues Cunha (que estava em São João).

Carlos Manuel de Lima Barros,

Guiné 61/74 - P21990: Historiografia da presença portuguesa em África (255): Libelo de António de Saldanha da Gama contra a abolição da escravatura em "Memória sobre as colónias de Portugal situadas na Costa Ocidental de África"; 1814 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Julho de 2020:

Queridos amigos,
 
Nunca ouvira falar em António de Saldanha da Gama e li num só ápice este documento que terá sido produzido à volta de 1814 e editado em Paris em 1839. Os documentos foram apresentados aos eleitores do Círculo Eleitoral de Viana do Minho pelo Ajudante de Ordens de Saldanha da Gama, o Visconde da Carreira. 

No seu discurso preliminar, o antigo Governador do Reino de Angola procura sacudir quem o leia, dizendo coisas como esta:
 
"Qual será o português que não se envergonha, que não sinta uma nobre indignação, à vista da nossa inferioridade, da nossa nulidade, dos impropérios ignominiosos, do desprezo desdenhoso com que somos tratados pelas nações da Europa! Cuidemos sem demora de nos reabilitar, de sair de tão abjeto estado e de recuperar no grémio das nações o posto e consideração que nos competem".

E lança-se exultante num exórdio à industrialização, à liberdade de comércio. Saldanha da Gama estaria em campanha eleitoral. É admissível que tenha dado à estampa a sua Memória sobre as colónias de Portugal, tenho extrema dificuldade em vê-lo, em reuniões e comícios, a fazer apologia do comércio negreiro.
 
Sobre essa surpresa, completamente inusitada, falaremos a seguir.

Um abraço do
Mário




Libelo de António de Saldanha da Gama contra a abolição da escravatura (1)

Mário Beja Santos

António Saldanha da Gama não era um qualquer um: Conde de Porto Santo, Par do Reino, Grã-Cruz de várias Ordens, Chefe da Esquadra da Armada Real, Ministro Plenipotenciário e Embaixador em diversas Cortes. Foi ainda Governador e Capitão-General do Reino de Angola. 

Em 1839, consolidada a monarquia constitucional, Saldanha da Gama publica textos seus datados de 1814, "Memória sobre as colónias de Portugal situadas na Costa Ocidental de África", precedida de um discurso preliminar. É um documento que provocará um estado de choque junto daqueles que andam nos últimos tempos a adoçar a natureza do esclavagismo à portuguesa. No seu discurso preliminar, esse Saldanha da Gama se anda a ocupar sobre a importância da industrialização, contudo abre com um discurso acabrunhante:

“As colónias que ainda restam a Portugal dos velhos continentes e mares de África e Ásia são monumentos da nossa antiga glória, portentos espantosos da gigantesca força, diligência e perseverança da antiga gente portuguesa, que acabrunham a nossa pequenez e insultam a atual indolência”.
 
Deplora algumas fundações que se estavam a fazer em Angola, alerta para a necessidade de ter um bom governo, governo estável e não em perpétuo tirocínio. Exalta civilizações do passado e alerta para um novo quadro de desenvolvimento:

“A experiência mostra que as nações que se limitam a poucas espécies de trabalho de produção, ainda quando são fornecidas pela fertilidade e riqueza do seu território, permanecem sempre pobres, estacionárias e privadas de grande número dos confortos da civilização moderna”.
 
Exemplifica com Inglaterra e a sua prosperidade, o seu comércio interno e externo e lembra que as indústrias tinham passado a ser a principal fonte das riquezas. Para haver indústrias são indispensáveis as vias de escoamento, rios, canais, estradas, comunicações céleres, e faz a apologia das instituições constitucionais, dá exemplo do que ele está a ver em França, mas o seu azimute parece ser sempre em Inglaterra. E deste discurso preliminar entramos propriamente no texto da memória sobre as colónias de Portugal.

Parecendo irremediavelmente perdido o tráfico negreiro, haverá que melhorar a vida das colónias portuguesas na África Ocidental, são elas: Cabo Verde, Bissau e Cacheu, S. Tomé e Príncipe e Angola e Benguela. É muito útil o que ele diz sobre Cabo Verde, importa não esquecer que a desafetação da Guiné será cerca de 60 anos depois. A colheita e a venda da urzela parecia ser a principal riqueza. 

“A Fazenda Real compra toda a urzela por um preço fixo, e desta compra são encarregados os capitães-mor dos distritos. Não é fácil descrever as vexações que estes exercem naquele ato, negando-se a paga em dinheiro e fazendo-a em géneros, em que os miseráveis cultivadores perdem às vezes 100%. Seria sumamente útil isentar a urzela do estanco Real, e permitir a sua livre venda, impondo-lhe um módico tributo de exportação”

Mas outros ramos viam animar a economia das ilhas, segundo Saldanha da Gama, enuncia o amendoim, o gergelim, a palmeira de dendém, exalta a importância de pescarias e salgas de pescado. Conclui esta apresentação referindo uma manufatura de tecidos grosseiros de algodão que é artigo de comércio para os presídios de Bissau e Cacheu, conviria aperfeiçoar tal manufatura.
 
Chegou agora o momento de falar de Bissau e Cacheu, cita-se integralmente o que escreve:

“Abundam nestas colónias artigos de grande importância, que poderiam fazer a riqueza delas, como são muitas gomas, resinas, marfim, madeiras, etc. A goma arábica se encontra nestes países, e bem conhecido é o seu préstimo e o seu valor. Das outras gomas e resinas seria necessário averiguar o préstimo e fazê-las depois conhecidas na Europa.

Há aqui muitas terras próprias para o cultivo de arroz, e os habitantes com gosto se dão a esse trabalho. Ora se a América do Norte pôde por muitos anos abastecer a Europa daquele artigo, se o Maranhão, a Baía, etc., ainda hoje o fornecem a Portugal, por que razão o não poderão fazer Bissau e Cacheu, que além de terem as mesmas proporções, estão mais perto de nós? As pescarias também aqui se poderiam promover, tanto para as salgas, como para a extracção do azeite de peixe.

Não falecem aqui os vegetais de que se podem extrair óleos, como o rícino, o amendoim e a palmeira dendém. As madeiras de África são entre nós pouco conhecidas, e a experiência me tem mostrado que se a natureza não dotou abundantemente esta parte do mundo de grandes florestas, concedeu em compensação às árvores pequenas desta terra muita solidez e um delicado colorido que as faz próprias para obras primorosas de marcenaria e de embutido. Deverão portanto examinar-se cuidadosamente as árvores que crescem nestas possessões, para além das suas madeiras se tirarem o conveniente proveito. Creio que não me iludo persuadindo-me que os aromas da Ásia prosperariam facilmente em Bissau e Cacheu, e que a pimenta, hoje cultivada na Baía com tanto proveito, poderia também aclimatar-se nestas terras”.


Discreteia depois sobre S. Tomé e Príncipe, tendo sido Governador no Reino de Angola vai dedicar o essencial da sua memória às riquezas da terra, não esquecendo o carvão de pedra e o marfim. Findo o documento, apensa várias notas, a última serve exatamente para expor o que ele pensa sobre o tráfico da escravatura. Prepare-se o leitor para uma defesa que hoje, pelo menos no campo formal, não tem seguidores, a despeito, como é público e notório, que ainda há escravatura no mundo, e pensa-se que se trata de negócio chorudo.

Ele começa por dizer o seguinte:
 
“Não cremos que haja pessoa alguma dotada da faculdade de discorrer que se persuada que o zelo e pertinácia da Inglaterra para abolir o tráfico da escravatura proviesse simplesmente do amor da humanidade, ou de uma filantropia pura e desinteressada. Entretanto é certo que não foi sem proveito que aquela potência invocou em apoio da sua política as simpatias das almas verdadeiramente virtuosas e sensíveis.

Deslumbrados pelas descrições patéticas e ardilosas dos horrores do tráfico, descrições pelo menos exageradas, e calculadas para encobrir o verdadeiro motivo delas, correram a alistar-se sob as bandeiras da filantropia inglesa grande número de pessoas de boa-fé, que cuidavam fazer grande serviço à humanidade combatendo a favor dos projetos interesseiros, mas arteiramente apregoados como puramente filantrópicos da Grã-Bretanha. Uma simples reflexão bastaria, contudo, para desabusar esta crédula e com passiva falange”
.

Daremos conta do que falta desta litania na próxima oportunidade, sem descurar o contraditório, muito de rigoroso e altamente documentado sobre o tráfico negreiro se tem publicado em muitas línguas, aqui se fará referência a trabalhos portugueses.

(continua)

Tráfico negreiro praticado pelos árabes
Tráfico negreiro no século XIX
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Nota do editor

Último poste da série de 3 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P21965: Historiografia da presença portuguesa em África (254): "Kaabunké, Espaço, território e poder na Guiné-Bissau, Gâmbia e Casamance pré-coloniais", por Carlos Lopes; Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999 (3) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21989: Fichas de unidade (17): CCAÇ 1550 / BCAÇ 1888 (Farim, Binta e Xime, 1966/68)


Guiné > Zona Leste > Setor L1 (Bambadinca) > Xime > António Fernando Marques e Arlindo Teixeira Roda, dois camaradas, furrieis, da 1ª geração da CCAÇ 12 (1969/71), junto ao monumento da CCAÇ 1550 (1966/68), unidade de quadrícula do Xime que antecedeu a CART 1746 (1968/69), a CART 2520 (1969/70), a CART 2715 (1970/71), a CART 3494 (1972/73) e a CCAÇ 12 (1973/74)... 

A CCAÇ 12 conheceu, bem e duramente, o subsetor do Xime, entre 1969 e 1974, primeiro como subunidade de intervenção ao setor L1 e depois, no final da guerra, como subunidade de quadrícula... 

A CCAÇ 1550, antes de passar a subunidade de quadrícula no Xime, esteve antes em Farim, era comandada pelo cap mil inf Agostinho Duarte Belo; no monumento estão inscritos os lugares (de diferentes setores) por onde passou: Binta, Guidage, Xime, Ponta do Inglês, Galomaro, Candamã, Taibatá, Farim, Dembataco, Samba Silate, Bissau... (*)

Foto: © Arlindo Roda (2010).  Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].

Ficha de unidade: CCAÇ 1550 / BCAÇ 1888 

A CCAÇ 1550, juntamente com a CCAÇ 1549 e 1 551, foi uma unidade de quadrícula do BCAÇ  1888. Esta unidade foi mobilizada pelo RI I,  Amadora, tendo  como Cmdt o ten cor  inf Adriano Carlos de Aguiar e 2.° Cmdt o maj inf Artur Miguel Agrely Rebelo . (Não se conhece o nome do major Inf Op/Adj).

Cmdts Companhias:  CCS: Cap SGE Manuel Pereira Pimenta de Castro |  CCaç 1549: Cap Mil lnf José Luís Adrião de Castro Brito | CCaç 1550: Cap Mil Inf Agostinho Duarte Belo | CCaç 1551: Cap Mil Inf Francisco Silva Pinto Pereira

Divisa: "Vendo, Tratando e Pelejando"

Partida: Embarque em 20Abr66; desembarque em 26Abr66 | Regresso: Embarque em 17Jan68


Síntese da Actividade Operacional do BCAÇ 1888

Em 26Abr66, rendendo o BCaç 697, assumiu a responsabilidade do Sector L I, com sede em Fá Mandinga e a partir de 14Nov66, em Bambadinca, e abrangendo os subsectores de Xitolc, Xime, Bambadinca e Enxalé, este até  1Jul67 e retirado ao sector por alteração dos limites.

Comandou e coordenou a actividade das forças que lhe foram atribuídas, orientando a sua acção sobre as linhas de infiltração do inimigo, em patrulhamento, reconhecimentos e emboscadas em ordem a obstar à sua instalação e movimentação na zona. Desenvolveu ainda uma intensa actividade psicossocial junto das populações, promovendo a sua autodefesa e reordenamento e garantindo a segurança dos itinerários e a recuperação das populações.

Dentre o armamento capturado mais significativo, salienta-se: 1 metralhadora pesada, 2 metralhadoras ligeiras, 70 espingardas, 1 lança-granadas foguete, 4 minas, 28 granadas de armas pesadas e 3000 munições de armas ligeiras.

Em 16Jan68, foi rendido no sector de Bambadinca pelo BArt 1904 e recolheu a Bissau, a fim de efectuar o embarque de regresso.


CCAÇ 1550 (Farim, Binta e Xime,  1966/68) (*)

A CCaç 1550 seguiu imediatamente para Farim, a fim de substituir a CCaç 675, como subunidade de intervenção e reserva do sector, ficando integrada no dispositivo e manobra do BArt 733 e depois do BCaç 1887, orientada para a realização de patrulhamentos, emboscadas e acções sobre os corredores de Sambuiá e Samine.

Em 28Dez66, foi rendida pela CCaç 1546 e,  após curta permanência em Bissau, seguiu em 3Jan67 para Xime, a fim de substituir a CCav 1482.

Em 11Jan67 , assumiu a responsabilidade do subsector de Xime, com efectivos destacados em Ponta do Inglês, Taibatá e Galomaro e depois ainda em Demba Taco, Samba Silate e Candamã, estes por períodos curtos e variáveis, ficando então integrada no dispositivo e manobra do seu batalhão.

Em 9Jan68, foi rendida no subsector de Xime pela CArt 1746 e recolheu seguidamente a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.

Fonte: Excertos de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da Actividade Operacional: Tomo II - Guiné - Livro I (1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2014), pp.85/86.
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Notas do editor:


(**) Vd. poste de 8 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P21983: Notas de leitura (1345): "Memorial, O livro dos 172 autores", da CCAÇ 1550 (Binta e Xime, 1966/68), DG Edições, 2018 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21988: Parabéns a você (1941): Joaquim Cruz, ex-Soldado CAR da CCS/BCAÇ 4512/72 e BENG 447 (Farim e Bissau, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 8 de Março de 2021 > Guiné 61/74 - P21981: Parabéns a você (1940): Cor Art Ref DFA António Marques Lopes, ex-Alf Mil Art da CART 1690/BART 1914 (Geba, Banjara e Cantacunda, 1967/69)

terça-feira, 9 de março de 2021

Guiné 63/74 – P21987: Estórias avulsas (103): Enfermeiro por uma noite (Joaquim Ascenção, ex-Fur Mil Armas Pesadas de Infantaria)

1. Mensagem do nosso camarada Joaquim Ascenção (ex-Fur Mil de Armas Pesadas de Infantaria da CCAÇ 3460/BCAÇ 3863, Cacheu, 1971/73), com data de 21 de Fevereiro de 2021:

Boa tarde camarada
Mais uma estória da minha vida.
Se achares que tenha interesse, podes publicar.
Se achares que algo deve ser corrigido, tens a liberdade para o fazer.

Um abraço
Joaquim Ascenção



Enfermeiro por uma noite

Decorria o fim de Dezembro de 1970.

No final do CSM um momento de grande ansiedade para todos era saber qual a especialidade.
Estávamos nós na semana de campo debaixo de chuva e um frio terrível a dormir em tendas miseráveis, cansados e mal alimentados quando toca a formar durante a noite para comunicar a especialidade que nos tinha sido atribuída, a mim calhou-me nada mais nada menos, enfermeiro, considerada uma boa especialidade.

Houve festa e tristezas porque os que sonhavam em escriturário iam para sapadores, tudo ao contrário do sonhado... pura psico.

A mim pareceu-me estranho, tendo o curso de Serralheiro Mecânico e a frequentar o 3.º ano do ISEP [, Instituto Superior de Engenharia do Porto,] quando fui chamado para a tropa, o lógico seria engenharia, artilharia, manutenção auto ou afins, procurei descansar e aguardar.

Na tropa normalmente a lógica não era seguida.

Ao toque de alvorada havia uns tristes, outros assim assim.

Segue-se o toque para o pequeno-almoço e nova formatura para comunicar as especialidades.
Foi-me atribuída Armas Pesadas de Infantaria, morteiros médios e grandes, canhões sem recuo 5,7; 7,5; 10,6 e metralhadoras pesadas, especialidade normalmente de retaguarda e apoio a grandes operações.

Uma especialidade de risco moderado, de grande rigor porque o tiro era regulado na base de um mapa em que o erro do azimute podia ser fatal. Mapa, bússola, transferidor de tiro em grados e tabelas de tiro eram as ferramentas principais, não havia GPS.
O CSR M40 10,6 cm colocado num Jipe. Buruntuma 1973

Foto: Com a devida vénia ao camarada Luís Dias - HISTÓRIAS DA GUINÉ 71-74 - A C.CAC 3491-DULOMBI


Assim passou a noite que não me via ser enfermeiro.

Cumprimentos
Joaquim Ascenção

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Nota do editor

Último poste da série de 23 de fevereiro de 2021 > Guiné 63/74 – P21938: Estórias avulsas (102): Um frango que voou depois de morto (Joaquim Ascenção, ex-Fur Mil Armas Pesadas de Infantaria)

Guiné 61/74 - P21986: Facebook...ando (62): Um dos que participou na Op Mar Verde foi o 2.º Srgt Fuzileiro Domingos Demba Djassi, a quem dei trabalho depois de desmobilizado, e que desapareceu em 21 de março de 1975 (Mário de Oliveira, BIssau e Alcaide, Fundão)

1. Do Mário [Serra] de Oliveira (ex-1.º Cabo Escriturário, Bissau, 1967/68)

[foto à esquerda: Mário Serra de Oliveira, ex-1.º cabo escriturário, BA 12, Bissalanca, 1967/68; é autor de "Palavras de um Defunto... Antes de o Ser" (Lisboa: Chiado Editora, 2012, 542 pp, preço de capa 16€, lirvo escrito sob o pseudónimo de Mário Tito; sob este perfil, também assina vários blogues]

(i) nasceu em 1945 em Alcaide, Fundão;

(ii) aos 14 anos, foi para Lisboa a trabalhar como “marçano” numa mercearia;

(iii) posteriormente, enveredou pela indústria hoteleira, trabalhando em Lisboa, Algarve e Viana do Castelo;

(iv) ingressou no exército e, após recruta, foi transferido para a Força Aérea (, como 1.º cabo escriturário, BA 12, Bissalanca, 1967/68);

(v) na prática, cumpriu a sua comissão em Bissau na Messe de Oficiais da FAP;

(vi) assistiu ao 25 de Abril, período de transição para a independência;

(vii) foi empresário hoteleiro em Bissau, antes de regressar definitivamente ao fim de 14 anos e meio, tendo trabalhado ainda  na Embaixada dos EUA em Bissau;

(viii) dali, embarcou num navio sismográfico, como cozinheiro chefe rumo a Inglaterra, Holanda, Escócia (Mar do Norte);

(ix) acabou de chegar aos Estados Unidos juntamente com sua esposa, ao serviço da embaixada de Portugal em Washington;

(x) mais tarde, trabalhou cerca de 20 anos na Embaixada da Alemanha, também em Washington;

(xi) reformado, voltou à sua terra natal;

(xii) tem página no Facebook > Mário de Oliveira;  tem mais de 35 referências no nosso blogue; entrou para a Tabanca Grande em


2. Comentário do Mário Serra de Oliveira a um poste da  página do Facebook da Tabanca Grande,  de ontem, e relacionado com o lançamento do livro "Ataque a Conacry: história de um golpe falhado", de José Matos e Mário Matos e Lemos (Lisboa, Fronteira do Caos, 2021, 170 pp.)

Entre eles [, os que participaram na Op Mar Verde], estava o 2.º Srgt Fuzileiro Domingos Demba Djassi... a quem dei trabalho depois de desmobilizado. (**)

A um ponto, e como eu tinha mais que um local, ele passou a ser o "meu braço direito" do restaurante "A Tabanca". Foi ali que, no dia 21 de Março de 1975, prenderam 3 ex-comandos africanos, sendo que, o 4.º estava de folga. 

É de notar que 21 de Março de 1975 foi uma 6.ª feira, dia de folga do Djassi, porque ele era muçulmano e, por isso estaria na Mesquita, junto ao bairro do Pilão. Quando prenderam os 3, também levavam outro que não tinha sido militar mas que tinha uma "barbicha" um pouco maior que a do Djassi. 

A ideia deles era que, o da barbicha fosse o Djassi. Eu fiquei à porta de mãos na cabeça, com 4 "kalas-ti-o-ti-fodes" apontadas por 4 paigecês  armados até aos dentes. Ali, eu, ao ver o da barbicha também debaixo de prisão... falei em crioulo para ele, "onde é ki bó na-bai? (como que perguntando "onde é que tu vais"!)... "R mim cá sibe" (eu não sei). respondeu ele. "Intão por ki bó no fala qui bó no foi tropa"? 

Porque eu sabia que ele não tinha sido tropa ao nosso lado. Foi a sorte dele, porque um paigecê pergunta-me onde esta o outro (, o Djassi). Não sei... porque ele está de folga. Bem, largaram o outro da barbicha, deram ordens para encerrar o estabelecimento e levaram os 3. 

Nunca mais os vi, nem ao Djassi. Mais tarde constou-se que foram 14.800 fuzilados ou mesmo enterrados ainda a mexer. Lá me safei, depois de me ameaçarem que me pusesse a pau, porque o nome constava na lista negra!!! Oh lari-lolela, tal e qual. 

Mais tarde encerrei tudo e procurei trabalho na Embaixada dos EUA já então em Bissau. A minha mulher foi para cozinheira do embaixador e eu para "encarregado do pessoal local".
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