segunda-feira, 17 de maio de 2021

Guiné 61/74 - P22209: In Memoriam (395): António Pinto Rebolo (1944-2021), ex-fur mil amanuense, CCS/BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69), advogado do Porto, meu vizinho e meu amigo (Virgílio Teixeira)


Guiné > Região de Cacheu > Susana > Maio de 1968 > Perdidos no rio... Algures numa aldeia felupe... Havia um indígena morto... Em cina viatura um dos meus furriéis amanuenses, o António Pinto Rebolo, falecido em 15 de maio de 2021... (O outro furriel mil amanuense do Conselho Administrativo da CCS/BCAÇ 1933,  era o Riquito.)

Foto (e legenda): © Virgílio Teixeira (2017). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do Virgílio Teixeira, com data de 16/05/2021, 18h05


Boa tarde Luís. Acabou por falecer o meu amigo, António Pinto Rebolo. ex-furriel mil de administração  militar. Foi amanuense no meu conselho administrativo, um amigo, antes, durante e depois de acabar a guerra. Foi advogado, estava reformado, e dependente de hemodiálise diariamente.

Morava bem perto da minha casa no Porto. Pode ver-se a notificação no Fórum dos Veteranos da Guerra do Ultramar.

A foto militar está em muitas das minhas fotos, especialmente quando fomos dados como desaparecidos, vindos de Susana (*). Ele reconhece se pelo seu elevado volume.

Se puderes colocar um poste agradecia. Era pessoa sempre presente nos nossos encontros anuais.

Bom amigo dos amigos. Paz à sua alma. Não posso dar mais informações, são as mesmas que as minhas

Estou no Porto e só amanhã consigo mais dados

O funeral deve ser [estou à espera de confirmação] no cemitério de Paranhos (**). Desculpa incomodar numa tarde de descanso em Candoz. 

Virgílio Teixeira,
ex-alf mil SAM, chefe do conselho administrativo, 
CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69); 
economista e gestor, reformado; 
natural do Porto,vive em Vila do Conde.

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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:


Guiné 61/74 - P22208: (D)o outro lado do combate (66): As sabotagens do PAIGC, em Bissau, no início de 1974 (Jorge Araújo)


Guiné > Bissau > Santa Luzia > QG / CTIG > Foto da Piscina da messe de Oficiais, com o ecrã de cinema ao fundo. Foi aí que aconteceu o episódio muito bem descrito no Blog pelo camarada Abílio Magro com o titulo – "Bomba" no Clube de Oficiais do CTIG”.

Foto (e legenda): © Carlos Filipe Gonçalves (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



O nosso coeditor Jorge [Alves] Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger, CART 3494
(Xime e Mansambo, 1972/1974), professor do ensino superior, ainda no ativo.


GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE

- AS SABOTAGENS DO PAIGC EM BISSAU NO INÍCIO DE 1974 -  

► ADENDA AO P22202 (15.05.21) (*)




1.   - INTRODUÇÃO


A elaboração da presente adenda ao poste P22202 (15.05.21) pretende ser um contributo para clarificar algumas das dúvidas que teimosamente persistem na historiografia dos "factos" ocorridos durante a "guerra" no CTIG. Estão neste caso os episódios relacionados com os "atentados" ou as "sabotagens" verificados (as) em 21 de Janeiro e em 22 de Fevereiro de 1974, em Bissau, e que "continuam a suscitar grande confusão", segundo a narrativa do camarada Abílio Magro, autor do poste sobredito.

Esta iniciativa é, também, a minha resposta ao "desafio" sugerido pelo camarada Valdemar Queiroz em comentário ao mesmo poste.

Com efeito, de acordo com a "curta" investigação efectuada ao espólio disponível na CasaComum, Fundação Mário Soares, em particular nos arquivos de Mário Pinto de Andrade, recuperámos ("do outro lado") informação relevante em dois comunicados elaborados pelos «Serviços de Informação e Propaganda do PAIGC», escritos na língua francesa, e que abaixo reproduzimos, acompanhados da respectiva tradução da nossa responsabilidade.



◙ O "CASO" OCORRIDO EM 21 DE JANEIRO DE 1974 (2.ª FEIRA)


A descrição deste episódio foi publicada em Comunicado do PAIGC, datado de 09 de Fevereiro de 1974, dezoito dias após a sua ocorrência, com a seguinte justificação:

"No coração da capital, os nossos militantes da cidade de Bissau assinalaram o primeiro aniversário do cobarde assassinato do camarada Amílcar Cabral [1924-1973], fundador, Secretário-Geral e activista n.º 1 do nosso Partido, por acções directas contra a presença de tropas de agressão portuguesas no nosso país.

Assim, no dia 21 de Janeiro [de 1974, 2.ª feira], pelas 20h45, junto ao Clube dos Sargentos do Exército colonialista, na rua Sá Carneiro [actual rua Eduardo Mondlane], dois autocarros Mercedes da Força Aérea Portuguesa foram totalmente destruídos pela explosão de engenhos colocados pelos militantes do nosso Partido. Na mesma noite, um carro da Polícia Política Portuguesa (PIDE/DGS) foi também destruído pela explosão de outro engenho, em frente à residência de um dos seus agentes, na avenida Gago Coutinho. Este carro tinha o número de matrícula - BI 7598 - e os dois autocarros os números AM-19-03 e AM-19-30."

  


Citação: (1974), "Communiqué (PAIGC)", Fundação Mário Soares / Arquivo Mário Pinto de Andrade,  Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_83995, com a devida vénia.


◙ O "CASO" OCORRIDO EM 22 DE FEVEREIRO DE 1974 (6.ª FEIRA)


A descrição deste episódio foi publicada em Comunicado do PAIGC, datado de 27 de Fevereiro de 1974, cinco dias após a sua ocorrência, com a seguinte justificação:

"Os militantes do nosso Partido, cumprindo estritamente a "palavra de ordem" da Direcção Superior do PAIGC de intensificar a nossa acção directa nos centros urbanos e em particular na cidade de Bissau, contra as tropas de agressão portuguesas, voltaram a atacar o inimigo com força:

No dia 22 de Fevereiro [de 1974, 6.ª feira], por volta das 19 horas, explosivos instalados pelos nossos combatentes explodiram dentro do edifício principal do Quartel-General da tropa de agressão portuguesa, em Bissau. As instalações e arquivos deste edifício, que albergava o Estado-Maior, o comando operacional e uma secção de justiça militar, sofreram enormes prejuízos.

As acções dos nossos combatentes nos centros urbanos são realizadas principalmente contra a infraestrutura militar do inimigo e contra os criminosos de guerra. Temos uma preocupação óbvia em salvar vidas humanas e direccionar sempre a nossa luta de libertação contra o principal inimigo: os colonialistas portugueses e as suas tropas de ocupação.

Esta acção de sabotagem contra o centro vital da agressão portuguesa na Guiné, a poucas centenas de metros do Palácio do Governador e Comandante-em-Chefe das forças colonialistas, aumenta a desmoralização que há muito se apodera dos soldados portugueses nas camadas dominantes do regime colonial na sua desastrosa aventura no nosso país."

 



Citação:
(1974), "Communiqué (PAIGC)", Fundação Mário Soares / Arquivo Mário Pinto de Andrade, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_83995, com a devida vénia.

 

● QUESTÃO DE PARTIDA:

   – CONFLITO DE DATAS APRESENTADAS PELO ABÍLIO MAGRO:


Citando Abílio Magro: (…) "O certo é que eu estava no cinema UDIB [no dia 22Fev74?] e o meu irmão Álvaro estava lá por perto, mas em 26/02/1974 já não estava na Guiné…" Então a data não pode ser outra – a de 22Fev74. Será assim?

► Fontes consultadas:

Ø (1) Instituição: Fundação Mário Soares. Pasta: 04315.002.026. Título: Communiqué (PAIGC). Assunto: Comunicado do PAIGC. Comemoração pelos militantes do PAIGC no coração de Bissau do 1.º Aniversário do assassinato de Amílcar Cabral, fundador, Secretário-Geral e militante n.º 1 do PAIGC, com acções directas contra a presença de tropas portuguesas, nomeadamente destruição de dois autocarros Mercedes da Força Aérea e um carro da Pide/DGS. Acções noutras zonas da Guiné. Data: Sábado, 9 de Fevereiro de 1974. Fundo: Arquivo Mário Pinto de Andrade. Tipo Documental:

Documentos.

Ø (2) Instituição: Fundação Mário Soares. Pasta: 04315.002.028. Título: Communiqué (PAIGC). Assunto: Comunicado do PAIGC. Palavra de Ordem da Direcção Superior do PAIGC de intensificação da acção directa nos centros urbanos, nomeadamente na cidade de Bissau, contra as tropas portuguesas de agressão, continua a ser posta em prática. Alvo: infraestruturas militares do inimigo e criminosos de guerra. Ataque, 22 FEV1974, ao quartel-general em Bissau. Data: Quarta, 27 de Fevereiro de 1974. Fundo: Arquivo Mário Pinto de Andrade. Tipo Documental: Documentos.

Com um forte abraço de amizade e votos de boa saúde.

Jorge Araújo.

16Mai2021
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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P22207: Notas de leitura (1357): "Impérios ao Sol, a luta pelo domínio de África”, por Lawrence James; Edições Saída de Emergência, 2018 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Julho de 2018:

Queridos amigos,
Uma condensação de valor apreciável sobre a constituição de impérios a partir do século XIX, as idiossincrasias, as motivações comerciais, o espírito missionário, os choques entre a França, a Grã-Bretanha e a Alemanha. Foi pena Lawrence James não ter estudado convenientemente o caso português, chega ao cúmulo, na hora da descolonização, de afirmar seraficamente que Portugal lutava em Angola e Moçambique e que o grande ideólogo da luta pela independência das colónias portuguesas era Agostinho Neto. Será lastimável se um especialista não lhe fizer chegar notícia do que significou a Guiné no fim do império.

Um abraço do
Mário


“Impérios ao Sol, A Luta pelo Domínio de África”, por Lawrence James (1)

Beja Santos

Vale a pena destacar os dois primeiros parágrafos do prefácio, para que o leitor saiba o que tem pela frente, trata-se de um autêntico e suculento prato de substância:
“Este livro expõe as transformações ocorridas em África ao longo dos séculos XIX e XX, uma época em que praticamente todo o continente passou a fazer parte dos impérios globais europeus. Trata-se de uma história sobre os conflitos de poder entre nações e entre governantes e governados. A mudança provocou conflitos, pois foi imposta a partir de cima por estrangeiros que a denominavam progresso e afiançavam que este seria uma fonte de proventos para eles e para os seus súbditos africanos. Alguns assentiram, cooperaram com os invasores e alcançaram a prosperidade, outros resistiram. As guerras de conquista e pacificação arrastaram-se por mais de um século, findando apenas com a subjugação da Abissínia pela Itália, em 1936. O conflito foi sempre um fenómeno endémico em África, mas os europeus entraram no continente levando consigo os avanços mais recentes da tecnologia militar. Na fase inicial da conquista, as metralhadoras representavam uma enorme vantagem para as suas forças e, durante as décadas de 1920 e 1930, espanhóis, franceses e italianos mobilizaram bombardeiros, carros de combate e gás mostarda contra marroquinos, líbios e abissínios.
O continente foi arrastado para as duas guerras mundiais que custaram à Alemanha, primeiro, e depois à Itália, as suas colónias. Mais de um milhão de africanos alistaram-se como voluntários ou foram recrutados para combater no Exército, muitos em longínquas frentes de combate. Durante a II Guerra Mundial, os soldados negros das colónias britânicas combateram as tropas japonesas na Birmânia, enquanto argelinos e marroquinos serviram ao lado das forças francesas contra os alemães, em Itália e na Europa Ocidental. Os veteranos regressaram a casa orgulhosos, perplexos e zangados. Fora-lhes dito que arriscavam a sua vida pela liberdade universal e em prol de um mundo melhor, mas a ordem imperial continuava enraizada em África”
.

“Impérios ao Sol, a luta pelo domínio de África”, por Lawrence James, Edições Saída de Emergência, 2018, põe em imenso ecrã as ambiguidades deste conceito de progresso e de missão civilizadora e de ocupação que se forjou a partir de 1830, aproximadamente; desvela uma luta sem quartel para tomar posse de domínios por todo o continente, entre 1882 e 1918, no Egito e no Sudão, na África Austral, no Congo, em combate religioso; assistimos à ascensão dos nacionalismos, a presença de contingentes africanos em duas guerras mundiais para medir as consequências do que se seguiu, aproveitando a boleia da Guerra Fria; e de 1945 a 1990 o continente africano foi mudando de look, todos os povos se encaminharam para a independência; e assim chegamos aos últimos dias da África branca.

Por volta de 1830, a presença europeia em África mudou de slogan, passou-se a falar sistematicamente de missão civilizadora, o que durante séculos colonizadores franceses, espanhóis, holandeses, portugueses e britânicos tinham praticado era tráfico de escravos, criação de entrepostos comerciais e uma certa presença missionária. Um novo modelo capitalista punha tudo em questão, logo em 1807 a Grã-Bretanha proibira o tráfico de escravos e o comércio negreiro declinou. Como o autor observa, a cruzada antiesclavagista empreendida pela Grã-Bretanha coincidiu com o apogeu da Revolução Industrial, entrara-se na euforia das manufaturas, era preciso fazer chegar aos consumidores africanos esses produtos manufaturados, e nada melhor do que falar em progresso, em ciência, em civilização, bons pretextos para viagens científicas e conhecer as riquezas de solo e subsolo, do vastíssimo continente. Novos e velhos impérios passaram a conflituar, não lhes faltava poder expansionista: a Grã-Bretanha queria proteger solidamente a Rota do Cabo, os russos lançavam-se num ambicioso programa expansionista, a França pós-napoleónica suspirava por pôr um pé no Norte de África, começou pela Argélia, o Império Otomano abrangia do Sudeste da Europa à Turquia, Médio Oriente e Norte de África, entrara em desagregação, o Egito, a Tunísia e a Argélia eram Estados praticamente independentes.
Mas estamos numa época em que os conhecimentos sobre a natureza das sociedades africanas situadas nas regiões para lá do Sara, da África Ocidental e da Colónia do Cabo eram pouco mais do que vagos.

As potências com apetites imperiais conheciam a violência endémica africana, o comércio negreiro praticado pelos árabes à cabeça e a própria cultura europeia tinha o que hoje se pode considerar ideias aberrantes sobre os africanos, como o próprio autor observa. Lineu, o naturalista, catalogou o negro como ignorante. O filósofo David Hume pensava que as faculdades intelectuais de um negro se assemelhavam às de um papagaio enquanto John Wesley via nas suas imperfeições a prova da capacidade do homem para a degeneração moral. Estavam espalhados os conceitos de inferioridade africana, muitos deles ligados ao tráfico negreiro: o negro seria devasso, cobarde, indolente, cruel, supersticioso, antropófago. Essas ideias passaram a ser contestadas desde o século XIX, quer pelo romantismo, quer pela religião evangélica. Os românticos defendiam com insistência que o negro tinha sentimentos como o resto da humanidade e os evangélicos acreditavam que a sua conversão ao Cristianismo completaria a sua felicidade.

O autor é detalhado sobre a problemática da escravatura e o tráfico de escravos, concluindo que “A guerra mais ou menos isolada travada pela Grã-Bretanha contra o comércio de escravos alcançou um enorme êxito. Entre 1810 e 1864, a Royal Navy libertou 150 mil escravos. Em 1864, o comércio atlântico encontrava-se em rápido declínio e as operações no Oceano Índico sofreram um duro golpe, embora não fatal. Restava o comércio no interior do continente africano, favorecido pela distância geográfica e pela solidariedade dos regimes locais”. Nesse mesmo século XIX, vão multiplicar-se as missões cristãs, acarretarão tensões de toda a ordem: cismas, caráter concorrencial entre igrejas cristãs, diabolização de comportamentos que deixavam os africanos em fúria, guerra à feitiçaria, embate entre os pregadores cristãos e os islâmicos, a chegada da medicina praticada pelos missionários pondo de parte as técnicas dos curandeiros. O quinino foi mais forte que o curandeirismo, as escolas foram ganhando simpatia, era o triunfo da missão civilizadora enquanto a França conquistava a Argélia, a Grã-Bretanha se apropriava da África do Sul, resolvendo a seu contento a questão bóer e consolidando a supremacia branca enquanto o continente africano era percorrido de lés a lés por exploradores de várias nacionalidades. Lawrence James dá-nos o perfil dos grandes exploradores e as suas idiossincrasias e o retrato de uma das figuras mais ignóbeis do colonialismo, Leopoldo II da Bélgica, exprime-se deste modo:
“O monarca Leopoldo dedicou a sua vida a fazer dinheiro nos territórios ultramarinos. Entreteve-se com alguns projetos nas Ilhas Orientais e na América do Sul, mas em meados da década de 1870 persuadiu-se de que conseguia fazer fortuna em África. Agiu com deslealdade e astúcia, apresentando-se inicialmente como filantropo e patrono da investigação científica. Sob esta máscara, e apoiando-se no seu estatuto régio para conseguir legitimidade, convocou uma conferência, em 1876, para discutir a descolonização da África Central. O resultado foi a criação da Association Internationale Africaine, uma organização de fachada, enganadoramente benévola, que depressa se transformou no Comité d’Études du Haut Congo, investida de uma missão humanitária igualmente falsa”.

Vamos agora entrar na segunda parte do trabalho, a partilha de África, nem tudo será cor-de-rosa.

(Continua)
Leopoldo II da Bélgica
Encontro de Stanley com Livingstone
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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE MAIO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22205: Notas de leitura (1356): Lembrando livros do Beja Santos sobre a Guiné (João Crisóstomo, ex-Alf Mil da CCAÇ 1439)

Guiné 61/74 - P22206: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte V: Egipto, Alexandria, 2011






Egito, Alexandria> 2011


Texto e fotos de António Graça de Abreu, enviados em 10/5/2021. Continuação da série "Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo" (*), da autoria de António Graca de Abreu [, ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: escritor e docente universitário, sinólogo (escialista em língua, literatura e história da China); natural do Porto, vive em Cascais; é autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); "globetrotter", viajante compulsivo com duas voltas em mundo, em cruzeiros, é membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem mais de 270 referências no blogue]


Alexandria, Egipto, 2011

Oh, Alexandria, velha cidade grega, velha cidade bizantina, onde estás? Onde estão os teus quatro mil banhos, os teus quatro mil circos, os teus quatro mil jardins? Onde estão os teus dez mil mercadores e os doze mil judeus que pagavam tributo ao santo califa Omar? Onde estão as tuas bibliotecas, e os teus palácios egípcios, e o jardim maravilhoso de Ceres?

Eça de Queirós, em A Relíquia


Em 2011, venho pelas águas brandas do Mediterrâneo, meio iluminado pela luz turva do
farol, maravilha do mundo, há quase dois milénios inexistente. Entro na cidade pelo lado do istmo no mar, pela sombra da fortaleza. 

A minha Cleópatra chinesa cobre-se com véus do islão para não ofender crenças locais. Meio inseguros, passeamos entre as gentes. Alexandre, o Grande, há vinte e três séculos inventor do burgo, permanece há muito, silencioso, no vazio. Júlio César, envelhecido numa nuvem, ressona. Abandonada a terra pelos filhos de Roma, chegou, século após século, em avalanches, o grito e o estar dos bons seguidores de Mafoma.

Hoje, sexta-feira, milhares de fiéis muçulmanos reverenciam Alá e Maomé nas mesquitas, ou lá fora, onde ajoelham em alfombras gastas, espalhadas no chão de Alexandria, por tudo quanto á espaço aparentemente feliz nas ruas da cidade.

Caminho. Subo pela grande biblioteca, engenho aprimorado dos homens São os escritos do perpassar de cinco mil anos. Sobraço um volume sobre a China e leio. Vou-me perdendo, ao acaso, no tempo do tempo que adormece. Lá fora, desvanecendo-se, a noite anoitece.

António Graça de Abreu

Texto recebido em 5 de maio de 2021
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Nota do editor:

domingo, 16 de maio de 2021

Guiné 61/74 - P22205: Notas de leitura (1356): Lembrando livros do Beja Santos sobre a Guiné (João Crisóstomo, ex-Alf Mil da CCAÇ 1439)


1. Mensagem do nosso camarada João Crisóstomo, ex-Alf Mil, CCAÇ 1439 (EnxaléPorto Gole e Missirá, 1965/67), com data de 4 de Maio de 2021:

Meus caros,
Era minha intenção enviar um simples E-mail apenas ao Beja Santos, mas achei que não seria descabido desenvolver o que queria dizer e enviá-lo também ao Luis Graca e ao “nosso” blogue.


O que segue não é novidade nenhuma para a maioria dos camaradas; mas pode servir a ajudar a refrescar memórias para uns e para aqueles que ingressaram as fileiras do nosso blogue nos últimos anos, para quem a Guiné diz alguma coisa, talvez possa servir como motivação para adquirirem este, e possivelmente outros livros do Beja Santos. E com isso usufruirem duma experiência a todos os títulos excepcional.

Falo do livro “Diário da Guiné”, trabalho do Beja Santos publicado em dois livros: "1968-1969 Na Terra dos Soncó”, que adquiri numa feira do livro em Lisboa em 2009 e "1969-1970 O Tigre Vadio” que o autor, que vim a conhecer no primeiro livro, fez o favor de me oferecer. A este trabalho seguiram-se outros, como "Mulher Grande", publicado em 2011 e "A Viagem do Tangomau" em 2012.

O primeiro, "1968-1969 Na Terra dos Soncó”, foi a minha porta de entrada para o blogue e com este muitas memórias e amizades que hoje enriquecem a minha vida. A leitura do primeiro foi uma enxurrada de emoções, pois que por muito tempo eu procurava encontrar algo que me falasse da Guiné. E nesse livro vim encontrar não só algo sobre a Guiné, mas precisamente sobre as gentes e os sítios que eu conhecia e de quem tinha muitas saudades; e ainda por cima escrito por alguém que esteve nos mesmos lugares e conhecia e tinha vivido com as mesmas pessoas que eu.

Depois desse primeiro livro veio o segundo "1969-1970 O Tigre Vadio”. Estava nessa altura bastante envolvido com outros assuntos e o tempo disponível não era muito; como não sou de leituras rápidas, limitei-me a ler por alto as partes que me pareceram mais pertinentes e pus o livro de lado para o reler com mais tempo quando ocasião se proporcionasse.
Razões de saúde, logo seguidas pela situação de meio encarceramento devido à pandemia, deram-me finalmente ocasião de pegar de novo nestes livros. Sinto-me na obrigação de pedir desculpas ao Beja Santos pelo atraso e dizer-lhe embora muito tarde da minha muita gratidão e admiração por este grande livro. Sobre a Guiné, não será uma enciclopédia, mas tem sabores a isso tal a diversidade e âmbito dos assuntos aí versados.

E é esta a razão que me levou a escrever para o blogue: sem ser preciso ler muitos livros sobre a Guiné, ao ler-se este "1969-1970 O Tigre Vadio”, além do prazer que uma boa leitura proporciona sempre, fica-se com uma idéia do que foi a Guiné de há muitos anos; a Guiné do tempo da colonização portuguesa e do tempo desde o começo da guerra de libertação até à sua independência.

Aparte o assunto Guiné, este livro é uma cornucópia em outros campos, nomeadamente literatura Portuguesa e universal, que a bagagem intelectual do Beja Santos neste campo parece inesgotável. Não acreditaria que tal fosse possível, mas rendi-me à evidencia ao ler os seus comentários sobre alguns, dos poucos livros que já tive ocasião de ler e que são mencionados neste seu livro.


Não fiquei surpreendido que o lançamento do livro, além duma dezena de posts no nosso blogue que valem a pena ser lidos (basta escrever "Beja Santos Tigre Vadio” como eu fiz), tenha sido abrilhantada pela presença de gente ilustre como foi o caso do general Lemos Pires que bem se exprimiu ao dizer que este trabalho do Beja Santos é “ a afirmação do autor como comandante e como homem” e de muitos outros, como o Luís Graça, comandante de todos nós, que poude deixar deixar de mencionar um dos fios mais encantadores da meada deste livro que foi o tempo de preparação para o casamento do Beja Santos, uma "verdadeira história de amor em tempo de guerra”.

O livro termina com uma carta de Ruy Cinatti, com quem Beja Santos se correspondia e tratava como um pai querido, que em duas linhas comenta a experiência do autor na Guiné e simultaneamente lhe dá as boas vindas:
 "Você veio diferente, veio liberto e melhor preparado para lutar na vida. Não se arrependa pelo amor que deu e recebeu. É bom tê-lo de volta. Não se esqueça do que viveu. Não se esqueça do que sofreu. Transforme tudo em dívida consigo".

Depois de ler este livro a segunda vez fiquei saber muito mais sobre a Guiné! E a admirar ainda mais o nosso Beja Santos. Bem haja!

João Crisóstomo, Nova Iorque
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Nota do editor

Último poste da série de 10 DE MAIO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22189: Notas de leitura (1355): "Vem Comigo à Guerra do Ultramar", por António Luís Monteiro da Graça (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22204: Blogpoesia (735): "Brunir o fato"; Abram as portas!..."; "Brincar à macaca" e "Dum momento para o outro", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. Publicação semanal de poesia da autoria do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, CachilCatió e Bissau, 1964/66):


Brunir o fato

Houve tempo que era imperdoável vestir o fato mal brunido.
A aparência era muito importante. Era um valor.
Depois, vieram as engomadeiras nos supermercados.
A gente levava o saco da roupa e ela fazia o resto.
Muito prático. Barato e poupava-se para viver.
Bons tempos. Quando a aparência era um valor.


Berlim, 10 de Maio de 2021
Jlmg


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Abram as portas!...

Com as portas fechadas,
Nada acontece que se veja cá fora.
É preciso dar o que sobra a quem precisa ou que pede.
Aferrolhar só para ter, é má atitude.
Diz muito mal de nós.
A soberba morre seca e abandonada no chao.
Não valeria a pena viver se todos fôssemos soberbos assim...


Berlim, 11 de Maio de 2021
14h59m
Jlmg


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Brincar à macaca

Tanto se brincava à macaca na escola!...
Uma fantasia.
A imaginação da pequenada fazia o resto.
Rapazes e raparigas. Não importava.
Não havia patelas. Só pedrinhas e cacos.
Uma subida em escalada.
A habilidade galardova os habilidosos.
Com jeito, pouco ou muito.
Se passavam os recreios na escola,
Enquanto o professor fuma va um cigarro
E a professora fazia crochet.
Tempos felizes...


Berlim, 13 de Maio de 2021
8h55m


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Dum momento para o outro

Dum momento para o outro, tudo pode ficar diferente.
Para melhor ou para pior.
A vida é transformação.
Mudam as formas e aparências.
Vem uma doença e enegrece a nossa vida.
Nessa altura damos valor aquilo que tínhamos à mão e não davamos valor.
Temos de nos contentarmos com o que temos.
O que vier de bom será benvindo.
O sabor da vida está no equilíbrio e na satisfação com o que dá e chega.
Quanto mais se tem mais se quer.
Daí a infelicidade constante...


Berlim, 14 de Maio de 2021
15h14m
Jlmg

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Nota do editor

Último poste da série de 9 DE MAIO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22184: Blogpoesia (734): "Trovada em Berlim"; Poema da tarde"; "Vale das lamentações" e "Abrir as portas", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

sábado, 15 de maio de 2021

Guiné 61/74 - P22203: Os nossos seres, saberes e lazeres (451): Lembranças para Gonçalo Ribeiro Telles (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Março de 2021:

Queridos amigos,
Sucede que aqui há uns tempos, ao selecionar imagens para ilustrar um episódio da Rua do Eclipse, encontrei uma fotografia de um dos colóquios em que participei ao lado de Gonçalo Ribeiro Telles, e dei comigo a pensar no agradável convívio que ele proporcionara a largas dezenas de participantes de uma tal quinzena cultural bancária, seguramente no início da década de 1990, tudo à volta da Rua das Portas de Santo Antão até ao Conde Redondo, enfim, as imediações da sede do Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas, foi um comentador brilhante, coube-lhe escolher os edifícios, fazer os comentários em torno do planeamento urbano, explicou-nos a importância daquele itinerário que possuía uma linearidade que escapava à generalidade dos peões - o caminho percorrido pelos saloios que vinham da Praça da Ribeira e que seguiam em direção às Portas de Benfica.
Para meu enlevo, cirandou-se dentro da Sociedade de Geografia de Lisboa, e agora, ao refazer o percurso de há trinta anos atrás não deixei de me alegrar por ver requalificações e intervenções que alteraram muito positivamente esta zona de Lisboa, que estava profundamente degradada. E, claro está, parei junto da porta do prédio onde Gonçalo Ribeiro Telles vivia na Rua de São José, e recordei com saudade o visionário e lutador por melhor ambiente que perdemos recentemente.

Um abraço do
Mário


Lembranças para Gonçalo Ribeiro Telles (1)

Mário Beja Santos

Conheci nos anos 1970 Gonçalo Ribeiro Telles quando para mim já era inevitável a estreita aliança entre os modos de consumo e ambientalmente sustentáveis, questão imperativa e indiscutível. Deu-me oportunidade de conversarmos a tal propósito, o rumo dos acontecimentos associativos levou-nos a conviver em conferências e debates, muito aprendi com ele, ensinou-me a olhar a organização de uma rua, os formatos de uma paisagem, o significado das hortas urbanas, o cruzamento das parcelas ou componentes que enformam o que designamos por qualidade de vida. E os anos passaram.

Aí por 1991 ou 1992, o presidente da Direção dos Bancários Sul e Ilhas, Barbosa de Oliveira, pediu-me para conversarmos. Fui à Rua de São José e aí o dirigente sindical convidou-me para coordenar uma quinzena cultural bancária, eu que escolhesse o mote e propusesse os eventos respetivos. Foi então que me surgiu a ideia de propor como tema inicial uma viagem à volta da sede do sindicato, e assomou-me a sugestão de perguntar ao Gonçalo Ribeiro Telles, que vivia nas redondezas da sede do sindicato, se aceitava ser guia e mestre de conferência de uma visita, sugeri que começássemos na Rua das Portas de Santo Antão e prolongássemos até à Rua de Santa Marta. Contrapropôs que se fizesse uma descrição da linearidade do percurso e a sua história e que se escolhessem edifícios de referência, uns com valor patrimonial arquitetónico de significado, outros associados à memória dos lugares.

Juntaram-se quase uma centena de participantes no passeio de rua e as apreciações finais correram na sede do sindicato. No final, para minha gratificação, ouvi desses mesmos participantes comentários elogiosos ao pioneiro da política ambiental em Portugal. Do resto da quinzena, onde participaram Jacinto Batista, jornalista emérito que coordenou uma visita-guiada ao mundo jornalístico e sindical no coração do Bairro Alto, sessões de cinema que contaram com o apoio do último cineclube de Lisboa, o ABC, e algo mais aqui não tem sentido relevar, homenageia-se o arquiteto paisagista e pioneiro do ambientalismo em Portugal, falecido em 2020, com 98 anos de idade. Começámos na Sociedade de Geografia, um pouco antes houve pormenores explicativos de um enfiamento de caminhos, explicação que nos deixou de boca aberta: quem comerciava na Praça da Figueira e arredores, gente saloia, seguia com as suas carroças pela Rua das Portas de Santo Antão, Rua de São José, Rua de Santa Marta, e ali no Conde Redondo fazia-se uma deriva para São Sebastião da Pedreira, e encaminhava-se para as Portas de Benfica, nós que atendêssemos que era quase tudo a direito. Quanto aos problemas ambientais, eles vinham de longe, foram-se montando, século após século, obstáculos para as linhas de água, e os resultados estavam à vista com as inundações. Feitos comentários à Casa do Alentejo e à Igreja de São Luís dos Franceses, houve paragem na Sociedade de Geografia, fundada em 1875, incorporada no edifício do Coliseu dos Recreios. Referiu a esplêndida arquitetura de ferro, com destaque para a Sala Portugal, não esqueceu a Sala dos Padrões e a Sala da Índia, e para minha satisfação subiu-se à biblioteca, espaço imprescindível para quem estuda História dos Descobrimentos e Expansão Portuguesa. É uma biblioteca riquíssima, foi integrando várias bibliotecas, espólios e fundos, possui um acervo riquíssimo de cartografia antiga e atual, provas fotográficas de indiscutível valor e fez-se um curto passeio pelo espólio do museu, muitos dos participantes andavam maravilhados.
Entrada para a Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa
Arquivo de cartas geográficas junto da Biblioteca
Sala da Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa
Retrato do Almirante Gago Coutinho na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa
Busto em mármore do Marquês Sá da Bandeira, foi ele quem decretou a abolição da escravatura, também à entrada da Biblioteca.

Subimos uma rampa junto ao coliseu para visualizar e admirar o Teatro Politeama, inaugurado em 6 de dezembro de 1913, estiveram no ato o presidente Arriaga e o primeiro-ministro Afonso Costa. Tem conhecido consideráveis modificações no seu interior, aqui atuaram na década de 1930 artistas musicais de renome quando a Sociedade de Concertos de Lisboa, fundada por Viana da Mota, aqui teve a sua sala de grandes récitas, o Teatro Nacional de São Carlos entrara em obras, não se encontrou sala com melhor acústica do que esta.

Velha fotografia do Ateneu Comercial de Lisboa
Ateneu Comercial nos bons tempos de atividade, hoje está em profunda decadência e vai ser hotel de luxo. Houve paragem e comentários em frente ao antigo Palácio dos Condes de Povolide, Gonçalo Ribeiro Telles referiu as consequências do terramoto que fizeram desabar o primeiro andar e daí a alteração de estilos entre o nível ao rés-do-chão e o andar superior. Naquele tempo da semana cultural bancária ainda existia a Cervejaria Solmar, espaço obrigatório para os amantes da marisqueira de bolsa abonada.

Prédios renovados na Rua de São José, quase em frente da Cooperativa Militar, no início da Rua de São José

O nosso guia falava de igrejas, de palácios, de configurações ajardinadas, não esqueceu mesmo fazer referências ao Elevador do Lavra, sugeriu que mais tarde organizássemos um outro passeio como a descida da Calçada de Santana, começando pelos Jardins do Torel e vizinhança, e passando a Rua do Telhal, deparou-se diante da Igreja de São José dos Carpinteiros, também sofreu com o terramoto esta igreja iniciada no século XVI, guarda o que resta do acervo da Casa dos 24, quando faleceu o arquiteto paisagista, foi aqui que a Câmara Municipal abriu em sua homenagem uma exposição referente à sua obra

Fachada da Igreja de São José dos Carpinteiros
Interior da Igreja de São José dos Carpinteiros
Um belo azulejo de uma loja que já teve outro passado.

Nova paragem, o nosso guia comenta a natureza destas travessas longilíneas, o seu casario de antanho, o tipo de comércio existente, naquele tempo predominavam lojas de antiguidades e de bricabraque, mas também comércio de comidas, e observou que tinha para ali referência a muitas tascas e tasquinhos, bem conhecidos pelos saloios que precisavam de amesendar, bebericar e até satisfazer necessidades, a viagem era longa até chegar aos seus destinos. Também aqui se faz um alto, a viagem prossegue para a semana, este itinerário histórico da Lisboa antiga tem muito mais para contar.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE MAIO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22182: Os nossos seres, saberes e lazeres (450): Quando vi nascer a Avenida de Roma (7) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22202: Casos: a verdade sobre ...(23): a data do atentado no Café Ronda, Bissau... Nem tudo o que parece, é... (Abílio Magro, ex-fur mil amanuense, CSJD/QG/CTIG, 1973/74)


Guiné > Bissau > Santa Luzia > QG / CTIG >"Cartão que nos foi distribuído para podermos circular no QG depois da bomba. Reparem nas datas de emissão e validade (parece que contavam comigo até ao fim da comissão)"..De facto,o cartão era válido de 27 de abril de 1974 a 27 de março de 1975... A bomba no QG/CTIG terá sido em 22 de fevereiro de 1974...

Foto (e legenda): © Abílio Magro (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Mensagem de ontem, enviada às 16h20 pelo Abílio Magro (ex-fur mil amanuense, CSJD/QG/CTIG, 1973/74) (*), que não era Alberto, mas Valente... Mesmo com o nome errado, entrava e saía todos os dias do QG/CTIG, em Santa Luzia, com o cartão acima reproduzido...

Caro Luís, tudo bem contigo? Espero que sim e que já tenhas tomado as 2 (vacinas).

Realmente esta confusão de datas (*) é mesmo muito estranha.(**)

Tentando criar alguma luz sobre o assunto, resolvi escrever um texto que envio em anexo e que poderá servir de alerta para a verdade documentada, embora eu saiba bem que é essa que conta "para o totobola", mas factos são factos.

Permite-me que te dê a sugestão de, através do blog, convocares todos os "homens grandes" que estavam naquela data no local do "crime" para usar da palavra sobre o assunto e, se eu estiver enganado, lá terei de me apresentar junto de ti descalço e com a corda ao pescoço.

Abraço, AM

2. Casos: a verdade sobre a data do atentado no Café Ronda, Bissau... Nem tudo o que parece, é... (Abílio Magro)

Notas sobre as Conclusões do Seminário “Guerra de África – Portugal Militar em África 1961- 1974 – Atividade Militar” realizado no IESM em 12 e 13 de Abril de 2012 Por Carlos de Matos Gomes e Aniceto Afonso

 http://www.cd25a.uc.pt/media/pdf/ConclusoesdocoloquioIESM.pdf --- x --- 1974

 (excerto) 

Janeiro, 21 - Primeira acção do PAIGC na cidade de Bissau, com lançamento de engenhos explosivos contra autocarros da Força Aérea, seguidos, uma semana depois, de dois outros engenhos do mesmo tipo num café da mesma cidade frequentado por militares portugueses 

Fevereiro, 26 - Atentado num café de Bissau. Este atentado seguiu-se a outros ataques a autocarros da Força Aérea. Duas granadas de mão defensivas com disparador de atraso explodiram no recinto do café Ronda, em Bissau, causando cinco feridos graves e 44 feridos ligeiros entre os militares e um morto e 13 feridos entre os civis.


A confusão continua: “uma semana depois” não nos leva a fevereiro, certo? E se foi em janeiro, ainda aceito com alguma relutância porque nessa altura o meu irmão Álvaro ainda por lá andava, mas continuo a pensar, como o Kalu (**), que foi por volta do mês de setembro e digo isto apenas pelo facto de nesse atentado ter sido gravemente ferido o Fur Mil Romão, chegado à Guiné um dia ou dois antes e que ia substituir na CSJD o meu camarada Costa que tenho ideia de ter acabado a sua comissão uns meses antes de janeiro de 1974. 

Mas, claro, com todas estas confusões, já começo a duvidar. O certo, certo é que eu estava no cinema UDIB (julgo que o rebentamento se deu pouco depois das 21h00) e o meu irmão Álvaro estava lá por perto, mas em 26/02/1974 já não estava na Guiné. 

Não deixa de ser estranho também que, tendo o atentado sido executado, segundo está escrito, por volta das 22h30, uma mensagem seja enviada no início da tarde do dia seguinte pelo Comando Chefe à Defesa Nacional já com referência a resultados de averiguações. 

Os historiadores, antigamente, socorriam-se das ‘verdades’ dos historiadores que os precederam e essa era a ‘verdade documentada’, estivesse correcta ou não. O historiador inglês Jack Lindley acrescentou à investigação, nos finais do século XX, o princípio da separação entre a ‘verdade documentada” e a ‘verdade aceitável’. E quando a ‘verdade’ documentada contém erros grosseiros, sou levado a aceitar a verdade sustentada na minha memória e na dos que por lá andavam na altura. 

Os erros grosseiros em documentos militares eram mais que muitos e nem sempre havia tempo ou pachorra para os ‘catar’ todos. A mim entregaram-me um cartão para acesso ao QG (depois da bomba) onde constava Abílio Alberto Lamares Magro quando o correcto é Abílio Valente Lamares Magro, mas como o nome do meu pai era Acácio Alberto Lamares Magro,  o erro deu-se compreensivelmente, mas eu nunca troquei o cartão porque o erro não me impedia de entrar no QG. 

Depois também temos os jornalistas e historiadores contemporâneos, alguns com uma falta de profissionalismo exasperante e, depois, há quem se sustente nas ‘bacoradas’ por estes proferidas/publicadas. 

Aqui há tempos, a propósito da morte do Marcelino da Mata, ouvi na TV o ‘historiador’ Fernando Rosas a desancar furiosamente naquele militar português apelidando-o de tudo e mais alguma coisa, chegando ao ponto de afirmar que o Marcelino foi o fundador dos Comandos africanos, e o maior responsável pela invasão da Guiné-Conacry. “Um país estrangeiro!” vociferava ele ... enfim. 

Esse ‘historiador’ também andou pela Guiné-Bissau aqui há uns anos a gravar uns episódios sobre a guerra e o PAIGC e, quando falou sobre a bomba no QG (Santa Luzia), estava em frente ao QG/ CCFAG (Amura),  apontando para este como tendo sido alvo daquela bomba. 

Como podemos dar crédito a tudo o que se escreve e diz nos órgãos de comunicação social?! Terá a data de 26/02/1974 sido erradamente colocada naquele documento oficial? Será que ninguém deu pelo erro e toca a aceitá-la como boa durante anos e talvez séculos? 

O facto de o meu irmão Álvaro ter assistido de perto a este acontecimento e de já não estar na Guiné em 26/02/1974, levam-me a estranhar estas divergências de datas e a entrar em conjecturas na tentativa de perceber o assunto. Conjecturando: será que o “evento” se deu a 21 de janeiro de 1974 e houve atraso/esquecimento em o comunicar à Defesa Nacional e houve que inventar uma data? 

Resta-me aceitar a “verdade” documentada (a oficial), mas … Pela verdade oficial eu tive duas irmãs gémeas (oficialmente e registado, nasceram no mesmo dia), mas pela verdade aceitável (a real) elas tinham dois anos de diferença. 

Siga para bingo! 

Abílio Magro
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 27 de fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11164: Um Amanuense em terras de Kako Baldé (Abílio Magro) (6): Regresso a Bissau

(**) Vd. poste de 10 de maio de  2021 > Guiné 61/74 - P22191: Casos: a verdade sobre ...(22): A deflagração de um engenho explosivo no Café Ronda, em Bissau, em 26 de fevereiro de 1974 (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo, São Vicente, Cabo Verde)

Guiné 61/74 - P22201: Parabéns a você (1963): António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo CAR da CART 3493/BART 3873 (Mansambo, Cobumba e Fá Mandinga, 1971/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 10 de Maio de 2021 > Guiné 61/74 - P22187: Parabéns a você (1962): Henrique Matos, ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52 (Enxalé, 1966/68)

Guiné 61/74 - P22201: Parabéns a você (1963): António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo CAR da CART 3493/BART 3873 (Mansambo, Cobumba e Fá Mandinga, 1971/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 10 DE MAIO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22187: Parabéns a você (1962): Henrique Matos, ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52 (Enxalé, 1966/68)

sexta-feira, 14 de maio de 2021

Guiné 61/74 - P22200: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (52): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Maio de 2021:

Queridos amigos,
Durante uns bons anos, correspondi-me com John Yong, sempre no período natalício, era aquele que seguramente nos unia, depois das atribulações que ele viveu em Roma. Foi rigoroso no cumprimento da sua promessa, mal chegou a Selangor enviou-me o que me devia, com mil agradecimentos. Visitei Roma mais algumas vezes, mas nada substitui o turbilhão emocional da primeira visita, a Pietà ainda não tinha sido escaqueirada por um louco, podia ser contemplada a curtíssima distância, é impressionante a anatomia de Cristo e o ângulo escolhido para sua mãe suportar o tronco, não conheço golpe de génio igual. Frente ao túmulo de São Pedro tive um acesso de choro, toda a tensão acumulada por aqueles meses de trabalho deu de si, e mais aliviado andei por ali às voltas até observar a grandiosidade do baldaquino de Bernini. À entrada dos Museus Vaticanos apareceu-me Yong, e começaram aquelas peripécias que aqui se contam. E tudo culmina com aquele acaso feliz, o encontro com Antonio Galli, que vai visitar Samba Silate, encontro mais inesperado não podia haver, durante anos procurei interpretar aquele sinal, sem sucesso. Foi a mais bela prenda de Natal de 1985, fora os beijos e abraços da família que não via há quase seis meses.

Um abraço do
Mário


Rua do Eclipse (52): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Ma très adorée Annette, infiniment adorée, procuro trabalhar dia e noite para que possamos ter uns bons dias juntos, de Bruxelas a Ypres, de Ypres a Pas de Calais e regresso à Rua do Eclipse. Não te deves escandalizar, mas haverá um desses seis ou sete dias que está reservado para reunião da Direção da minha associação, aguardamos entrevistas com funcionários da Comissão, são três: Ludwig Krämer, Jean-Marie Courtois e Jeremy Shean, tudo por causa dos projetos que com eles estamos a discutir, há que estabelecer rigorosamente os termos e propósitos da investigação, enquadram-se nos programas que esta Direção-Geral que tutela os consumidores pretende apoiar sobre o comércio justo, o consumo responsável e a responsabilidade social e ambiental. Será em função desta data que tu e eu estabeleceremos as viagens, pode dar-se o caso de termos de repartir a ida aos cemitérios de Ypres e aos de Pas de Calais.

Surpreende-me a tua capacidade de análise de todo este vasto dossiê que aceitaste a incumbência de organizar a minha comissão da Guiné. Procurei dar-te os esclarecimentos que me pediste, penso em próximo correio pormenorizar aquele rodopio de atividades que terá facilitado o quadro de depressão que tu questionas, como te enviei o diário das minhas atividades, deves ter reparado em nomadizações quase alucinantes, de manhã e à tarde, e poucas eram as noites em que não havia emboscadas (odiosas, a desobedecer a toda a lógica da segurança, andando à volta de uma pista de aviação com os holofotes apontados, teria sido um regalo de morticínio se os guerreiros do PAIGC soubessem daquela operação a todos os títulos imprudente…), as estadias noturnas nos Nhabijões, onde estava em curso um ordenamento, como é evidente nós não percebíamos patavina onde e como os ali residentes se encontravam com os guerrilheiros para troca de mercadorias e informações. E de repente tu introduzes um elemento novo, perguntas se depois da guerra, independentemente das estadias de 1990 e 1991, houve um ou mais momentos em que a Guiné entrou inopinadamente no teu estado de alma, e não pretendes ainda saber o relacionamento estabelecido ao longo dos anos com os feridos que ficaram a viver em Portugal ou que fugiram da Guiné e pediram nacionalidade portuguesa.

Dei voltas à cabeça e ocorreu-me contar-te um estranhíssimo episódio que vivi em Roma, nas vésperas do Natal de 1985. Fora contatado no verão desse ano pela Divisão de Alimentação da FAO, pretendiam que eu fosse numa missão para São Paulo, era um programa de Educação do Consumidor em meio extremamente pobre. Houvera anos antes, sobretudo na região de São Bernardo do Campo, motins e assaltos aos supermercados pela multidão esfaimada. O Brasil já não fazia parte do quadro da cooperação da FAO, esta estava virada para apoiar programas de países muito pobres, não havia razão de ser para cooperar com o Brasil. Mas atendendo ao apelo lancinante de ajuda, lançara-se um programa com peritos de várias áreas, escolhera-se um reputado professor chileno para coordenar a missão, Hugo Amigo, eu ficaria a trabalhar às suas ordens. Mesmo pensando nos filhos pequenos, era uma oportunidade de conhecer programas internacionais, vivia a contar tostões, pagavam 100 dólares por dias e mais 60 para ajudas de manutenção. Breve, trabalhei como um mouro, a organização dos contatos nas favelas teve bastante aspereza inicial, era olhado com desconfiança, colaboravam comigo várias técnicas da Coordenadoria do Abastecimento do Estado de São Paulo, formámos uma bela equipa, preparámos formadores locais, organizou-se um conjunto de encontros com os responsáveis das favelas, incluindo a realização de vários menus, e numa segunda fase fizemos reuniões com professores e alunos. Trabalhava de manhã à noite, dava-me descanso duas noites por semana em que calcorreava o Bixiga, o bairro italiano de São Paulo, visitava as livrarias abertas à noite ou procurava os concertos no Teatro Municipal, a Ópera estava fechada para obras. E os meses passaram, enviava obrigatoriamente telexes para responsável desta missão em Roma, François Sizaret, juntava todos os elementos da missão e com Hugo Amigo preparei na antevéspera de regressar um documento completo para a elaboração do meu relatório. E assim chego a Roma a 20 de dezembro ao nascer do dia, arrumo os meus trastes num albergue e parto para a sede da FAO, na Viale delle Terme di Caracalla, apresento-me a meio da manhã. O Sr. Sizaret ouve-me com atenção e pede-me para ter pronto o documento até 23 à tarde. Replico que venho literalmente esgotado, não vejo a família há seis meses, gostaria de ter um dia para visitar São Pedro e um pouco de Roma, peço-lhe a amabilidade de me deixar entregar-lhe o relatório em português até 22 à tarde, regresso a Portugal a 23 à noite, comprometo-me a enviar a tradução até 15 dias depois, proposta aceite. A única folga nesses dias era contemplar nas varandas do refeitório as vistas de Roma, as Termas de Caracalla num lado e o Circo Máximo em frente, espetáculo deslumbrante que jamais esqueci. Despeço-me do coordenador a 22 à noite, a 23 ao raiar da aurora avanço para São Pedro, era a primeira vez que ali entrava. E segui para os Museus Vaticanos, à porta um jovem de traços malaios, um tanto franzino, olhos como azeitonas, cabelo em asa de corvo, bigodinho recurvado sobre a comissura dos lábios, sorriso gentil, apresenta-se, chama-se John Yong, é engenheiro de mármores, veio de Pisa, segue amanhã para Singapura, e dali para a sua terra, Selangor, quando lhe digo que sou português, logo me fala em Malaca. Aceito acompanhá-lo, mas digo-lhe que o que me leva a este museu é sobretudo a Capela Sistina, alguns quadros de Rafael, há duas ou três salas que selecionara, tenho compras para fazer, ando a fazer ginástica com o tempo, ainda gostaria na manhã do dia seguinte de visitar o Fórum Itálico, ir a uma igreja conhecer a estátua de Moisés, escultura de Michelangelo. Pede para andar comigo, é a primeira vez que vem a Roma, naturalmente que desconfio de tanta solicitude, felizmente que trago um casaco com bolsos interiores com fechos de segurança, era o que mais me faltava agora ser empalmado por este jovem, sozinho ou com companhia atrás. Depois do esplendor da visita, proponho uma refeição rápida, apanhamos autocarro, saímos perto da Piazza Navona, ao saltar do autocarro o jovem dá um grito, tinham-lhe levado passaporte e bilhete de avião. Pede-se ajuda a um polícia para procurar numa cabine telefónica o número da Companhia Aérea de Singapura e também da Embaixada. Da companhia aérea afirmam preparar uma nova via para o bilhete, e da embaixada pedem para ir imediatamente buscar uma declaração. Nova viagem de autocarro para a morada indicada, novo insólito: John Yong parece blasfemar, mostra-me o interior da bolsa presa ao cinto completamente vazio, parece que desta vez lhe tinham limpo tudo. O jovem está completamente transtornado, procuro sossegá-lo, entramos na embaixada, meia hora depois dali saímos com uma declaração que permitirá que ele passe o Natal em Selangor. Agora há que remediar o quadro de miséria em que Yong se encontra, novo autocarro e pago-lhe no hotel as duas noites, anoiteceu, as lojas estão abertas até às sete da tarde e na Via del Corso tive sorte, foi farto o fornecimento de lembranças para o Natal de Lisboa. Adianto mais uns milhares de liras a Yong, não sei se tem pai e mãe, mulher e filhos, ele agradece e novamente enfatiza que me reembolsará até ao final do ano. Escolheu-se um local simpático para o jantar de despedida, pergunto de novo a Yong se o dinheiro lhe chega, ele confirma que sim, à cautela vou pô-lo no hotel, ele abraça-me comovido, e comovido eu estava, dia mais insólito não podia ter acontecido.

Repete-se a maratona turística na manhã de 24, olho constantemente para o relógio, há só aquele avião para Lisboa, vou buscar toda a minha bagagem e sigo para o Aeroporto Fiumicino. Entro no avião ajoujado de sacos natalícios, já houve responso no check-in, são malas a mais, lá mostrei os papéis de que vinha do Brasil, a menina fechou os olhos aos quilos a mais, e nem quis ver os sacos que me acompanharam ao avião.

E agora chega o momento em que procuro responder à tua questão, minha adorada Annette. Meto o que posso na bagageira, mas há imensa tralha aos meus pés, mal posso mexê-los. Vou junto à janela. É nisto que se senta ao meu lado um homem de estatura média, de idade incerta entre os 50 e 60 anos, de barba de missionário, senta-se discretamente e lá vamos a caminho de Lisboa. Puxo de uma revista, mas a fadiga é superior às minhas forças, fecho os olhos. Quando desperto, vejo o passageiro a meu lado, pasme-se, com o mapa da Guiné, mapa enorme, o dedo indicador da sua mão direita segue pelo rio Geba acima e parece afagar um ponto, ali se detém. A minha surpresa é total, não resisto em fazer conversa, digo-lhe que estive na Guiné-Bissau, peço-lhe licença também para pôr o meu dedo nos locais onde estive, observo que o meu companheiro parece sorrir, é um sorriso cúmplice, apresenta-se, diz que o seu nome é Antonio Galli, é missionário, diz mesmo a Ordem a que pertence que eu não consegui fixar, vai em romagem de saudade a um local onde deixou muitos amigos, Samba Silate. Atropelamo-nos na conversa, eu conheço Samba Silate, um imenso terreno fértil, talvez a bolanha mais fértil da Guiné, perto dos Nhabijões, e explico ao missionário que ia ali com alguma frequência à procura de indícios da presença de guerrilheiros, pelo menos duas vezes ali encontrei pirogas. O rosto dele está iluminado, toma-me como um confrade, como é que é possível este tipo de coincidência, os dois conhecemos Samba Silate, António Galli ali deixou cristãos, missionou entre Balantas, e num dado momento perguntou-me se naquele tempo de guerra não vira nada que lhe falasse da sua missão, fiz um esforço de memória, como se andasse, passo a passo, a caminhar por picadas entre os Nhabijões e Samba Silate e depois subindo por Amedalai, e subitamente surgiu-me uma cruz em cimento no meio do mato agreste, e perguntei a Antonio Galli se aquela cruz lhe dizia alguma coisa. Novo sorriso, era como se eu lhe estivesse a confirmar um sinal de Deus, ele que fora expulso pela polícia portuguesa, procurou explicar-me que estava entre dois fogos, era procurado pelos guerrilheiros, o seu apostolado impedia-o de tomar partido, alguns daqueles homens que tinham partido para a guerrilha eram cristianizados, assim ele acreditava, nunca fora maltratado, a polícia política considerava intolerável a manutenção de Antonio Galli em Samba Silate. E assim chegamos a Lisboa, ofereço-lhe hospedagem, agradece, tem irmãos religiosos à sua espera, percebi que ia para um convento ali para os lados de Carnide. E assim nos despedimos, para nós os dois, e graças a Samba Silate, o Deus Menino nascera umas horas antes. Espero que gostes desta história, agora vou dar voltas à memória quanto à vida tumultuosa que eu levava em Bambadinca e como deprimi, foi coisa de pouca monta, mas tive medo.

(continua)
Fotografia tirada no beliche de cima da nossa caserna conhecida por “a capela”. Uns preparavam-se para sair, alguém mostra a meia rota, eu e o Paulo estamos em farda de trabalho, havia que estudar as matérias da tática, que eu odiava, tanto como desmanchar e limpar a Mauser.
Balantas trabalhando na construção de um orique. Fotografia restaurada depois das destruições da guerra de 1998/1999, constava dos arquivos do Boletim Cultural da Guiné Portuguesa
Vista aérea do quartel de Bambadinca, fotografia do blogue
Interior da Capela de Bambadinca, fotografia do blogue
De Bambadinca até ao Xitole, pode muito bem ter acontecido eu ter andado por ali, fui várias vezes nestas colunas de caráter logístico com a CCAÇ 12, a paisagem tinha momentos de esplendor e quando regressávamos trazíamos laterite da cabeça aos pés
A cruz em Samba Silate, obra do tempo da missionação do padre António Galli, imagem do blogue
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Nota do editor

Último poste da série de 7 DE MAIO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22179: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (51): A funda que arremessa para o fundo da memória