quinta-feira, 29 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22414: Agenda cultural (777): "Os Roncos de Farim", um livro da autoria do nosso camarada Carlos Silva, a ser lançado brevemente


1. Mensagem do nosso camarada Carlos Silva (ex-Fur Mil Inf CCAÇ 2548/BCAÇ 2879, Jumbembem, 1969/71) com data de 27 de Julho de 2021:

Na sequência dos posts 12199 e 19731[*] sobre os "Roncos de Farim" publicados no Blogue, da publicação da minha Brochura sobre o grupo da qual circulam cópias por aí e pela publicação dum "capítulo" pelo nosso confrade e amigo Mário Beja Santos no seu livro "História(S) da Guiné Portuguesa" págs 216 a 219, bem como, Jorge Monteiro Alves, no seu livro "No mato ninguém morre em versão John Wayne - Guiné, O Vietname português", págs 57 a 65, pelo que, decidi publicar o livro sobre este não menos famoso grupo e que brevemente estará disponível.

Abraço
Carlos Silva

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Notas do editor:

[*] - Vd. postes de:
25 DE OUTUBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12199: Notas de leitura (528): "Os Roncos de Farim - 1966-1972", por Carlos Silva (Mário Beja Santos)
[...]
Carlos Silva colige o historial mês a mês, sucesso a sucesso, vão-se averbando os louvores, de oficial a soldados, Ribeiro e os seus homens aparecem associados a outras forças. Em Outubro de 1967, depois da operação “Caju”, em que participaram “Os Roncos”, escreveu-se: “Foram três dias e três noites consecutivas em que as tropas estiveram constantemente em ação, batendo uma extensa zona, com a chuva a cair ininterruptamente, cumpriu-se a missão, apesar do sacrifício ter sido enorme”. Cherno Sissé e Malã Indjai foram agraciados com a Cruz de Guerra de 4ª Classe. Os louvores não param. Em Outubro desse ano a CCAÇ 1585 foi transferida para Quinhamel, o alferes Ribeiro deixou “Os Roncos”, foi rendido pelo alferes Morais Sarmento da CART 1691, que passou a comandar o pelotão. Em Dezembro, irá ter lugar a batalha de Cumbamori, tratou-se da operação “Chibata”, havia notícias da presença de Luís Cabral nesta localidade e base inimiga. Deslocaram-se três destacamentos. Assaltou-se Cumbamori, Luís Cabral teve tempo de fugir, infligiram-se muitas baixas, fizeram-se 5 prisioneiros e capturou-se material, caíram no dever 4 soldados dos “Roncos” e houve 17 feridos. Sobre esses acontecimentos Luís Cabral irá escrever o que viveu em “Crónica da Libertação”, págs. 315 a 230, fora a primeira vez em que ele estava presente num encontro entre as forças do PAIGC e as tropas portuguesas.
[...]
e
30 DE ABRIL DE 2019 > Guiné 61/74 - P19731: 15 anos a blogar, desde 23/4/2004 (4): "Os Roncos de Farim: 1966-1972", uma nota de leitura da brochura compilada pelo Carlos Silva

Último poste da série de 21 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22391: Agenda cultural (776): RTP Play, "A Herança de Aristides", documentário francês de 52 mm, que passou na RTP1, em 19 de julho, no aniversário do nascimento do "Consul de Bordéus", Aristides de Sousa Mendes (1885 -1954) + exposição na Fortaleza de Peniche, a decorrer até ao fim de outubro: "Candelabro ASM. Aristides de Sousa Mendes: o exílio pela vida"

Guiné 61/74 - P22413: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XIII: O Dia Mais Negro: o segundo murro no estômago (Op Balanço Final)

 



Foto nº 1
  > Guiné > Região de Tombali > Cumbijã  > CCAV 8351 > O encontro, não muito amistoso, da cabra “Joana” que trouxemos de Nhacobá no dia da operação Balanco final,  com o “rei” do destacamento do Cumbijã - o cão rafeiro “Tigre” > Com o tempo lá foram partilhando o protagonismo. Foto: cortesia do Carlos Machado.

 


Foto nº 2 > Encontro anual dos Tigres do Cumbijã > À esquerda o nosso querido Furriel Enfermeiro, que no dia mais negro da companhia teve a coragem, o sangue frio e competência na estabilização do nosso camarada alferes com um ferimento muito grave na garganta. Neste dia negro para além do ferido muito grave sofremos o segundo morto em combate e vários feridos ligeiros.

Fotos (e legendas): © Joaquim Costa (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Joaquim Costa, ontem e hoje. Natural de V. N. Famalicão,
vive em Fânzeres, Gondomar, perto da Tabanca dos Melros. 
É engenheiro técnico reformado. Há dias, a 15 do corrente, 
 escreveu-nos o seguinte: 

(...) "Reconfortado pela café oferecido pelo régulo 
da Tabanca dos Melros, que rasgou os ares da Guiné no seu T6, o Gil Moutinho, 
com direito a visita guiada ao magnífico museu (que não paguei,
já que apresentei o meu cartão de antigo combatente) 
e pela agradável conversa com os catedráticos e velhinhos do blogue
o Carvalho de Mampatá e o Ferreira da Silva.
Uma tabanca a 10 minutos a pé da minha casa 
e que ainda não a tinha visitado enquanto tal. Sem desculpa!" (...)


Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) (*)


Parte XIII: O Dia Mais Negro: o segundo murro no estômago 
(Op Balanço Final)

 

Ao terceiro dia da Operação Balanço Final, dois grupos de combate da companhia saem de Cumbijã com destino a Nhacobá para render os outros dois grupos de combate que aí pernoitaram.

Percorridos uns quilómetros, numa zona de vegetação densa, somos emboscados por um grande grupo de guerrilheiros que nos surpreende com um forte poder de fogo de armas ligeiras, RPG e morteiro. Dada a surpresa e a configuração do terreno demoramos algum tempo a reagir.

Depois da surpresa lá conseguimos rechaçar o ataque, fazendo estragos ao IN, mas com consequências dramáticas para nós: um soldado morto, um Alferes ferido com muita gravidade e alguns feridos ligeiros. 

Depois de acionado o pedido de ajuda à aviação, bem como o pedido de um possível helicóptero para evacuação urgente do alferes gravemente ferido, era indescritível o sentimento em cada um de nós, obviamente de medo no primeiro momento, mas depois de raiva com a vontade de irmos atrás de quem provocou todo aquele horror, num sentimento primário de vingança (compreensível).

Depois de cumprida a evacuação dos nossos camaradas; pois que a preocupação maior era dar segurança ao extraordinário trabalho do furriel enfermeiro e à sua equipa nos primeiros socorros aos feridos bem como assegurar a operação de evacuação; caímos em nós e ninguém conteve compulsivamente as lágrimas.

O nosso camarada alferes, evacuado para o Hospital de Bissau, foi passado pouco tempo, dada a gravidade dos ferimentos, evacuado para Lisboa.

Depois da bem sucedida, complexa e arriscada operação de assalto a Nhacobá, esta emboscada foi um dos confrontos mais duros e de maior dramatismo para a companhia. O IN queria mostrar que a ocupação definitiva da sua antiga base não era assunto encerrado.

As flagelações constantes ao destacamento bem como os ataques ao arame eram momentos de grande aflição, mas o controlo da situação era quase absoluto já que nos viamos uns aos outros e nos sentimos todos juntos a enfrentar a situação. Num contacto no mato, só vemos o camarada que está à nossa frente e o que está atrás de nós. Disparamos por instinto, de onde ouvimos os disparos do IN, mas sem ter a certeza da configuração e disposição no terreno das nossas forças, correndo sérios riscos de fogo amigo. 

A mobilidade do grupo IN que conhece bem a zona e se pode movimentar e dispersar reagrupando-se facilmente num outro local, são fatores que os colocam em situação de grande desvantagem já que a nossa movimentação tem de ser sempre organizada e em grupo sem nunca perder de vista o camarada da frente e o de trás. Quem se perder dificilmente alcançará o destacamento.

Este foi, para mim, o momento mais difícil dos dois anos passados na Guiné. Pelas perdas que nos apertava o coração e nos enchia os olhos de lágrimas, mas também pelo que nos dava a conhecer do que seria o futuro próximo, instalados na antiga base do PAIGC, sem o mínimo de condições de segurança e habitabilidade.

Sentíamos que, o que nos era exigido, depois da ocupação do Cumbijã e o assalto a Nhacobá, para além de injusto (dado tudo o que já tínhamos sofrido), era algo de desumano.

Este foi também o momento de viragem, onde passamos, inexplicavelmente, a relativizar perdas, onde todos perdemos um pouco de nós (tal como éramos) e passamos a ser outros sem deixarmos de ser nós próprios. Confuso, mas foi assim mesmo…

Passamos a esquecer o dia de ontem rapidamente (em defesa da nossa saúde mental); a viver o presente intensamente (não deixando de viver a nossa juventude, mesmo naquelas condições, em convívio com um grupo de amigos que as contingências da guerra nos unia ao ponto de o sofrimento ou alegria de um ser o sofrimento e a alegria do grupo) e a não pensar muito com o amanhã (aprendemos com o tempo a não sofrer por antecipação). 

Lendo tudo o que outros disseram sobre nós (alguns excertos aqui publicados) é claramente percetível o que acabo de afirmar.

Dou comigo, hoje, passados todos estes anos, a ter dificuldade em reconstruir a fita do tempo. Questiono-me muitas vezes se tudo o que a minha memória guardou é verdade ou ficção. Se tudo o que a minha memória me diz é realidade ou sonho.

Não faz parte destas minhas memórias (nunca o faria) transformar os confrontos da CCav 8351 com os guerrilheiros do PAIGC como se de um jogo de futebol se tratasse,  contabilizando os mortos e feridos de um lado e do outro. Contudo, não deixa de ser perturbador o que está vertido em documentos oficiais do exército, bem como em relatos de outros camaradas, transcritos nestas memórias no capítulo: “O que outros disseram de nós”

Uma das imagens que várias vezes me ocorrem à memória, e me continuam a perturbar, é a visão de dois guerrilheiros mortos, já despojados dos seus haveres e “roncos” por milícias africanos, deixados na mata no primeiro dia da operação “Balanço Final”. 

Arrepia-me a indiferença como o fizemos e como permitimos a profanação dos seus cadáveres despojados até das suas fardas. Não concebo, nem aceito, este desprezo pela vida humana. Tinha uma réstia de esperança que tal não passava de um sonho, tudo era fruto da minha imaginação. Infelizmente tal não se confirmou. Fui confrontado com a realidade pura e dura ao ver, duas fotografias, tiradas por um colega de uma outra companhia que participou na operação, com a imagem dos dois guerrilheiros mortos no momento em que passavamos por eles já despojados, pelas nossas milícias, dos seus haveres e “roncos”. Por mais que tente contextualizar, esta imagem continua a ser muito dolorosa e perturbadora…

(Continua)
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Nota do editor:

(*) Últimos cinco postes anteriores da série;

8 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22350: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XII: A primeira noite em Nhacobá (Op Balanço Final)

23 de junho de 2021 > Guiné 61/74 - P22308: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XI: Op Balanço Final: Assalto a Nhacobá ou o dia mais longo

7 de junho de 2021 > Guiné 61/74 - P22261: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte X: a segunda "visita dos vizinhos" (com novo ataque ao arame)

26 de maio de 2021 > Guiné 61/74 - P22225: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte IX: O primeiro murro no estômago

1 de maio de 2021 > Guiné 61/74 - P22159: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte VIII: A primeira visita... dos "vizinhos", com ataque ao arame!

quarta-feira, 28 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22412: Historiografia da presença portuguesa em África (273): O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (10) (Mário Beja Santos)

Sociedade de Geografia de Lisboa > Sala Algarve


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Novembro de 2020:

Queridos amigos,
É bem curioso este período das últimas atas das sessões da Sociedade de Geografia. Por um lado prossegue a exaltação ao culto dos heróis, os do passado e os do presente, há sessões para Vasco da Gama, a Pedro Álvares Cabral, para Capelo e Ivens, para Mouzinho de Albuquerque e Paiva Couceiro; afloram os interesses económicos e financeiros das duas colónias mais prósperas, os temas de Portugal continental vão-se diluindo. Até ao momento ainda não encontrei nenhum dado que explique o fim destas atas, é incontestável que o seu motor assentava na pessoa de Luciano Cordeiro (1844-1900), é bem provável que ninguém se abalançou, depois da sua morte no final de 1900, ao trabalho desta escrita. Vale a pena ver agora a bibliografia que permite outros olhares sobre o pensamento destes homens ao longo do quarto de século em que se afirmou o III Império Português, que tanto ficou a dever ao entusiasmo que reinava na vida da Sociedade de Geografia de Lisboa.

Um abraço do
Mário


O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (10)

Mário Beja Santos

A sessão solene de 5 de maio de 1900, comemorativa do Centenário do Brasil, na presença do monarca, vai revelar-nos autores empolgados, rendidos ao romantismo e ao naturalismo, veja-se o tom declamatório do Visconde de Almeida d’Eça:
“Portugal, terra de pequeno âmbito mas de natureza variadíssima nos aspetos, desde os píncaros alcantilados do marão e da estrela até às planícies de leves ondulações do Alentejo, desde a selvática torrente do precipite Douro até à mansidão do Lima, à poesia do Mondego, e à importância do Tejo majestoso, desde as costas de penedia negra da Roca e de Sagres, até aos brancos areais do Cabo de Santa Maria; terra de risonha vegetação, onde a giesta e a esteva vicejam nas alturas, o tomilho e a manjerona florescem nas encostas, rosas e madressilvas se enredouçam nos balseiros, papoilas e lírios atapetam os vales; onde nas asas da brisa primaveril das montanhas vai ao mar se arrastam eflúvios acres de pinheiros, aroma penetrante da flor dos carvalhos, perfume delicado das amendoeiras; onde ao murmúrio cristalino das fontes e ribeiros se misturam, suave harmonia, em manhãs de maio trilos namorados de toutinegras, em noites de luar de agosto endeixas magoadas de rouxinóis; terra cujos filhos são os sóbrios minhotos e transmontanos, tão industriosos e ativos, ou destemidos beirões que resistiram a Roma e expulsaram as águias de Napoleão, os afanosos alentejanos que da Lezíria e da Charneca tiram produtiva messe, os aventureiros estremenhos e algarvios que foram a Ceuta e foram a Malaca, terra que produziu Luís de Camões, o Épico, e Nuno Álvares Pereira, o guerreiro santo; terra que gerou o Infante Navegador, Bartolomeu Dias, Vasco da Gama, Afonso de Albuquerque; terra que deu o ser a Pedro Álvares Cabral; bendita sejas tu, minha santa Pátria, bendita sejas tu, terra de Portugal”.
E, mais adiante, sem nenhuma perda de tirada apoteótica, aristocrata fala-nos do Brasil e tece considerações sobre colonização, convém ouvi-lo:
“Colonizar não é invadir regiões já habitadas e civilizadas para lhes tomar conta das fontes de receita, para lhes aurir o produto dos esforços do trabalho já orientado; não é entrar à viva força num país, exterminar-lhe os habitantes e substituir-se por completo ao primitivo dono; não é junto dos governantes assentar conselheiros astutos que fazem derivar em prol de quem lá os manda todo o caudal da riqueza indígena. Isso é conquistar, isso é administrar, isso pode ser glorioso, isso tem a sua explicação natural nas leis da História; mas isso não é colonizar.

Colonizar é receber das mãos do criador uma região nova, onde a natureza é tudo e a civilização nada, onde as florestas são virgens de machado, e as campinas nunca sentiram a charrua, onde as feras dominam triunfantes e os animais domésticos nem se conhecem, onde os habitantes são singelos, mas são ignorantes e são cruéis; e depois, com o esforço próprio, com a tenacidade no trabalho, com muita fazenda gasta de princípio, e com muita vida perdida na luta, desbravar a floresta, cultivar a campina, guiar as águas da torrente, exterminar as feras, fundas povoados, amansar o indígena bravio, ligar-se com ele, dar origem a novas raças que das raças cruzadas conservem qualidades, fazer uma nação nova onde a antiga se continue.

Foi assim que Portugal colonizou o Brasil, e fê-lo, não o esqueçamos, dispondo de tão poucos homens e tendo, durante mais de um século, de sustentar lutas sangrentas para expulsar estranhos cobiçosos. Pois bem, com tais contratempos e em período que para a grandeza da obra se pode dizer pequeno, em menos de 250 anos, Portugal tinha feito do Brasil e com o Brasil uma colónia modelo, tão rica, tão fluorescente e tão cheia de vida própria, que ao cabo daquele tempo, quando a Corte e o Governo se transladaram de Lisboa ao Rio de Janeiro, o fruto estava sazonado e a independência de facto começou então".


Como caminhamos para o termo destas reflexões, naturalmente inconclusivas, há um aspeto que importa esclarecer. Se ao princípio tudo parecia correr na maior das harmonias, era pequeno e relativamente coeso o grupo fundador, o crescimento de sócios e a expansão de interesses trouxe desavenças e questiúnculas, e a partir de certa altura elas são mesmo referidas nestas atas de sessões. A título de exemplo, veja-se que em 7 de fevereiro de 1898 regista-se qualquer coisa como um conflito paroquial, atenda-se ao registado na ata:
“O Sr. Palermo de Faria expõe que o discurso do Sr. Moreira de Almeida só lhe dera a impressão de que sua excelência o que quer é que outros trabalhem para ele ter o gosto de criticar sem trabalhar. Que estava já, e a Sociedade, muito edificado e de há muito acerca deste cómodo papel representado pelo Sr. Moreira de Almeida e pelos seus amigos, que sempre estão prontos realmente mas é para criticar e contrariar as direções e os que têm levantado a Sociedade à altura em que ela se acha. Agora não quer também sua excelência que os sócios tenham os passatempos que lhes proporciona a maior largueza da casa e por isso o aluguer do primeiro pavimento, que foi uma das mais difíceis conquistas da Comissão do Centenário para a conveniente instalação da Sociedade e do Museu”.

A expansão e consolidação da presença portuguesa em África faz crescer o interesse pelos negócios, e por isso se discutem as indústrias coloniais, se deviam ser protegidas, qual a liberdade dos industriais para construir grandes empresas de caráter monopolista, quais os benefícios pautais na importação dos géneros coloniais. Alfredo da Silva, já um conceituado industrial, intervém nestas sessões. Os debates são calorosos, até porque há uma corrente que se reconhece dentro da Sociedade para que ela atue como entidade científica, não deve entrar em discussões como qualquer associação de classe. Já tinha aparecido e fora aprovada uma moção em que se pede à Direção que se mantenha absolutamente estranha a qualquer resposta que ultrapasse a sua missão. Já vimos antes que um outro grupo pretendia discutir os assuntos económicos. Enquanto isto se passa, e com a maior das naturalidades, um sócio bastante ativo, figura intelectual proeminente, Zófimo Consiglieri Pedroso, muda a agulha da discussão e fala numa capela colateral da parte da Igreja do Convento da Graça, em Santarém, é ali que se acha sepultado em campa rasa, e como ele diz ao desamparo os restos mortais de Pedro Álvares Cabral, ele põe na mesa a seguinte proposta:
“Proponho que a Sociedade de Geografia de Lisboa envide todos os seus esforços junto dos poderes constituídos para que os restos mortais de Pedro Álvares Cabral sejam transladados da capela de S. João Baptista da Igreja do Convento da Graça de Santarém, para a Basílica de Santa Maria de Belém, onde jazem já os do descobridor do caminho marítimo para a Índia e do inimitável cantor das suas glórias”.

Registe-se ainda que há um extremo cuidado em todas as sessões em referir passamentos, alguém se encarrega de um elogio, quase sempre muito tocante, ou então há votos de pesar, registo aqui em dezembro de 1899 aquele que se refere ao falecimento de Câmara Pestana.

A ocupação de Angola e Moçambique leva à nova existência para tomadas de posição sobre companhias majestáticas, benefícios na implantação de novos empreendimentos, vimos como Luciano Cordeiro era porta-voz da contestação das empresas majestáticas. Mas no virar do século a economia e as finanças voltam a ocupar o centro da atenção dos debates e a produção de documentos. Anoto uma comunicação em que o seu autor diz:
“Entende esta sociedade que não deve haver regime proibitivo para as indústrias no Ultramar, mas sim de proteção para agricultura colonial, para as indústrias extrativas e para aquelas que, sendo de natureza privativa das colónias, não sejam similares das existentes na metrópole (…) Na tributação a decretar para as indústrias que pretendam estabelecer-se com perigo para as indústrias similares no continente está o natural regulador que deve adotar-se, pois nem se ataca na sua base o princípio de liberdade de indústria, nem se deixam a descoberto as indústrias da metrópole”. E discreteia sobre a proteção a dispensar às indústrias, o diferencial pautal, misturando sugestões sobre as missões religiosas que devem constituir elementos de estações civilizadoras, e propondo ainda reformas no sistema da administração colonial.

Chegámos ao termo das atas, a última data de 14 de maio de 1900, já se fala na realização do Congresso Colonial e o padre Inverno, missionário na província de Angola profere uma comunicação intitulada “Missão no Sul de Angola”. Continua-se a insistir que é necessário formar os quadros administrativos, recorde-se que já em 1878 a Sociedade de Geografia pedira a criação da Escola Colonial, virá a ser criada em 1906, funcionará nas instalações da Sociedade de Geografia, será mais tarde transformada na Escola Superior Colonial, designação que conhecerá mudanças, Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, mais tarde Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina e depois do 25 de Abril, com âmbito muito diferente, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas.

Iremos concluir com alguns comentários à bibliografia que permita aos interessados dar um outro desenvolvimento ao estudo deste período e ao pensamento imperial que na Sociedade de Geografia deu engrenagem, em múltiplos domínios, ao III Império Português.

(continua)

Pedro Álvares Cabral e o descobrimento do Brasil, quadro de Francisco Aurélio de Figueiredo e Melo
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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22392: Historiografia da presença portuguesa em África (272): O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (9) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22411: Tabanca da Diáspora Lusófona (16): Entrevista, à agência Lusa, do João Crisóstomo que iniciou a sua luta por causas sociais na casa da 5ª Avenida, em Nova Iorque, de Jacqueline Kennedy Onassis, de quem foi mordomo. (A antiga primeira-dama dos EUA detestava rosas vermelhas e faria hoje 92 anos, se fosse viva.)


Nova Iorque > V Avenida > Edifício 1040 > Foi aqui, num apartamento deste edifício, um T-14,   que viveu e morreu Jacqueline Kennedy Onassis (1929-1994), de quem o nosso camarada João Crisóstomo foi mordomo interno, de 1975 a 1979. 

Créditos fotográficos: Henrique Mano (2020) (reproduzidos aqui com a devida vénia...)


1. Mensagem do nosso camarada da diáspora, João Crisóstomo (Nova Iorque), ex-alf mil, CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67):
 
Date: sábado, 24/07/2021 à(s) 22:50
Subject: entrevista à Lusa

 
Meus caros Luís Graca e  Rui Chamusco:

Como a data de nascimento da  antiga primeira  dama   Jacqueline Kennedy Onassis  se aproxima (nasceu a 28 de julho 1929,  em Southampton,  uma pequena cidade bem perto de onde moro), os "media" não deixam de a lembrar.  

E o facto de eu ter trabalhado para ela é motivo para me  procurarem.  Não tenho qualquer mérito por isso, sucedeu-me a mim,. podia ter sucedido a qualquer outro.

O que segue é assunto mais que batido, mas … que hei-de fazer, a culpa também não é minha.  Como vocês são os meus "manos"  em  todas as ocasiões, aqui está o que saiu hoje  na Lusa. (*)

Um abraço
João

2. Peça da agência imformativa LUSA:


LUSA > 24/07/2021 08:26 > Entrevista: João Crisóstomo iniciou ativismo em casa da família Kennedy em Nova Iorque (C/ áudio e vídeo)
 
Serviços áudio e vídeo disponíveis em www.lusa.pt *** (O conteúdo completo só está só disponível  para subscritores)


Elena Lentza, da agência Lusa 
 
Nova Iorque, 24 jul 2021 (Lusa) – O trabalho em casa da antiga primeira-dama norte-americana e filhos de John Kennedy, Presidente dos Estados Unidos entre 1961 e 1963, ajudou o antigo mordomo português João Crisóstomo a juntar atenção internacional para várias causas.

A preservação das gravuras rupestres de Foz Côa, salvas de uma barragem em projeto de construção, o reconhecimento dos feitos do diplomata português Aristides de Sousa Mendes e a autodeterminação de Timor-Leste foram das causas mais defendidas por João Crisóstomo, que fez sempre todos os esforços que podia a partir de Nova Iorque, começando pelo escritório do filho do antigo Presidente norte-americano.

"Eu digo que John [Kennedy júnior] foi o meu primeiro 'sponsor', o meu primeiro ajudante", disse, com um sorriso, João Crisóstomo, em entrevista à agência Lusa, em Nova Iorque.

A mãe de John Kennedy Jr. e ex-primeira-dama dos Estados Unidos, Jacqueline Kennedy Onassis, contratou João Crisóstomo em 1975 para 'tratar' da casa na 5.ª Avenida de Nova Iorque, quando o português "nem sequer sabia o que era um mordomo e não tinha experiência nenhuma" e estava nos Estados Unidos há apenas três meses.

Foi por recomendação de um amigo comum, que Jackie, como era conhecida, teve confiança: "Eu conheço o João e pela experiência que ele tem de hotelaria, ele vai ser o melhor mordomo que a senhora pode ter", disse o amigo que trouxe a sugestão, segundo contou João Crisóstomo à Lusa.

João Crisóstomo naturalizou-se norte-americano com ajuda de Jacqueline Kennedy e como despenseiro ou "encarregado da casa" durante três anos, teve duas colegas, sendo todos tratados "com carinho" enquanto serviam a família, num apartamento de 15 quartos.

Numa característica que sempre partilhou com a antiga primeira família norte-americana, também o português gosta de organizar encontros ou eventos. Para além das causas a que se dedica feramente, Crisóstomo gosta de conservar as amizades que, reclama: "são o melhor que a vida nos pode dar".

Mantendo sempre a "distância" devida, como "servente apenas", nos anos em que foi mordomo da família e nas ocasiões posteriores em que nunca recusou dar apoio a Jacqueline Onassis para a organização de encontros para a alta sociedade ou jantares, João Crisóstomo fez muitos contactos com pessoas influentes e conheceu pessoas que o poderiam ajudar nas causas de ativismo a que posteriormente se dedicou.

A paragem da construção da barragem em Foz Côa, para proteção das gravuras rupestres foi um dos exemplos e a primeira grande causa a que João Crisóstomo se dedicou, em 1995, depois de ler um artigo no The New York Times, que também foi lido por John Kennedy Junior, o filho da antiga fotógrafa e editora.

Quando o português se decidiu a fazer alguma coisa para a preservação do sítio arqueológico, John Kennedy Jr. ofereceu o seu escritório para que Crisóstomo pudesse telefonar, mandar fax e de uma maneira geral manter os contactos que entendesse necessários.

"Eu ia para lá de noite, para o escritório do John, na casa da Jacqueline, e era de lá que eu contactava, mandava 'faxes' para toda parte do mundo", explicou o antigo gerente de um hotel em Rio de Janeiro.

"A primeira pessoa que me ajudou [no ativismo] foi ele, porque me facilitou a contactar. Daí eu mandava cartas para toda a parte do mundo, jornais no Canadá, nos Estados Unidos e tudo mais" e daí se gerou a pressão internacional sobre Portugal para que se parasse a construção da barragem.

"Entre os muitos que eu contactei, foram as pessoas que eu conhecia e que tinham sido hóspedes da 'missus' Kennedy Onassis (…) Todos eles me diziam que sim", descreveu João Crisóstomo.

Uma "excelente senhora", "diplomata fantástica" e "muito inteligente", que o recebeu com um "sorriso" e o deixou ficar "à vontade", foi assim que João Crisóstomo recordou uma "primeira-dama extraordinária".

Mulher do Presidente dos EUA, John F. Kennedy, que lhe morreu no colo, assassinado quando faziam campanha para um segundo mandato e, mais tarde, casado com o magnata milionário grego Aristotle Onassis, Jacqueline Kennedy Onassis "era realmente a primeira-dama não dos Estados Unidos, [mas] a primeira-dama mundial, sem dúvida nenhuma", considerou o antigo mordomo à agência Lusa.

A família Kennedy Onassis eram das únicas pessoas que sabiam o segundo nome de João Crisóstomo e o chamavam de Francisco, para que não houvesse confusão do "John" que era chamado lá em casa – se era o filho de Jacqueline e do Presidente ou se era o português.

Elogiando a força e o "bom coração" da antiga patroa, João Crisóstomo lembra-se de um recado especial de Jackie: "Francisco, se alguma vez alguém enviar rosas vermelhas para mim, não mas dês, não quero vê-las. Rosas vermelhas lembram-me da morte do Presidente Kennedy". Eram as mesmas flores que levava no dia trágico de 22 de novembro de 1963, quando o marido foi assassinado.

Depois de três anos, o mordomo e a antiga primeira-dama nunca tinham perdido o contacto e qualquer "raminho de flores" que João Crisóstomo enviava nos aniversários era sempre agradecido com cartas e postais escritos à mão por Jacqueline Kennedy Onassis, que, para o antigo mordomo, mostravam "uma sensibilidade tremenda".

EYL // ELLusa

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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P22410: Tabanca do Atira-te Ao Mar (8): "Círio" à Senhora dos Remédios, Cabo Carvoeiro, Peniche, 13/7/2021 - Parte III: Quando o Menino Jesus, ao oitavo dia, foi levado ao templo para a festa da Circuncisão (ou "fanado", como se dizia em crioulo, no nosso tempo, no CTIG)


 

Peniche >Largo dos Remédios > Capela de Senhora dos Remédios > Painel de azulejos no lado do Evangelho > Pormenor: "Circuncisão do Menino Jesus"... Na cartela pode ler-se: "Vocatum est nomem eius Iesus" ("Então era esse o nome de Jesus").

Fotos (e legenda): © Luís Graça (2021). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Mensagem, com data de 18 do corrente, enviada pelo régulo da Tabanca do Atira-te ao Mar, Joaquim Pinto Carvalho, a quem pedimos ajuda para identificar uma cena da vida da Virgem Maria, retratada nos painéis de azulejos da capela da Senhora dos Remédios, em Peniche (*)
 
 
Obrigado pela partilha!

Já regressámos do calor alentejano sem ver bácoro (exilaram para terras mais frescas, mas prometeram voltar!).

Agora na Artvilla [, no Cadaval,] já te posso responder e aproveito para dar uma dica sobre o retábulo de azulejo duvidoso.

Quer pela composição da cena quer pelo texto da legenda, tudo indica que se trate da "circuncisão" (também designada por festividade do "santo nome de Jesus" – sempre fica mais sagrado do que falar dessas coisas de pilinha!).

A frase é retirada do Evangelho de Lucas, 2:21 que assim reza, em tradução livre:

"E, cumpridos os oito dias para circuncidar o menino, foi-lhe dado o nome de Jesus, que pelo anjo lhe fora posto antes de ser concebido."

Pronto, já fiz a minha "oração" dominical!

Hoje vamos dormir ao mar 
[, Porto das Barcas, Lourinhã, sede da Tabanca do Atira-te ao Mar]. Se der para um pôr do sol no "Atira-te…", logo nos comunicaremos!

Até breve
Pinto Carvalho



Baião > Ancede > Mosteiro de Santo André de Ancede > Mosteiro, masculino, cuja origem remonta aos primórdios da nacionalidade,,, Vale a pena uma visita,,, Está em restauro, com projeto de Siza Vieira... São quase mil anos de história que nos contemplam e nos confrontam ...  Tem também uma capela, octognal, do séc. XVIII, chamada do "bom despacho" que merece uma visita especialmemte guiada...  Foi lá encontrámos outras  peças da arte barroca popular, sob a forma de cenas de teatro, relativas aos mistériso da vida de Cristo, esta delícia: a cena da circuncisão do menino Jesus...  Repare-se na figura do "cirurgião" (, em hebraico, o "mohel"), de "bisturi" na mão, e óculos (!).

Foto (e legenda): © Luís Graça (2017). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

2. Comentário do editor LG:

Obrigado, Joaquim, é mais que óbvio, mas de início não me ocorreu, não me dei o trabalho sequer de ampliar a imagem, como costumo fazer. Há muito que não leio o Evangelho, e muito menos o de Lucas que, curiosamente, era um "asclepíades", médico grego, que será depois companheiro de Paulo, ou seja, um dos primeiros discípulos dos Apóstolos de Jesus Cristo..

Como bom judeu, ou filho de Judeus, também Jesus, sendo do género masculino,  foi submetido, oito dias depois de nascer,  ao "Brit milah", o ritual judaico que quer dizer, em hebraico, a  "aliança da circuncisão" (, inposta por Deus aos filhos de Abraão...).  E foi nesse dia que lhe foi dado o nome de Jesus. 

A "circuncisão" (do latim circumcisio, -onis, do verbo circumcidere), uma micro-operação cirúrgica que consiste na excisão do prepúcio)... 

A "circuncisão de  Jesus" começou a ser mais representada na arte cristã a partir do séc. XV, se bem que  o tema, logo nos primórdios do cristianismo, se tenha tornado polémico.  Os seguidores de Cristo abandonaram a prática do "Brit milah" judeu...

A circuncisão masculina, tanto entre muçulmanos como animistas, era prática corrente no nosso tempo, na Guiné.  Era a festa do "fanado". Temos vinte e tal referências a este descritor. E mais de trinta à "Mutilação Genital Feminina", prática hoje criminalizada pelo Direito Penal da Guiné-Bissau...

Calcula-se que um em cada três homens em todo o mundo é  "fanado", por razões religiosas, culturais ou profiláticas:  em Israel, na diáspora judia, na maior parte dos países muçulmanos, mas também nos Estados Unidos, etc. 

Os soldados da tua CCAÇ 6 (Bedanda) e os meus da CCAÇ 12 (Bambadinca)  eram "fanados". 

terça-feira, 27 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22409: In Memoriam (401): Otelo Nuno Romão Saraiva de Carvalho (1936-2021), com quem trabalhei lado a jado e fiz amizade, em 1971, na Rep ACAP, no QG/CCFAG, na Fortaleza da Amura (Ernestino Caniço, ex-Alf Mil Cav, e hoje médico)



Guiné-Bissau - Fortaleza da Amura > QG/CCFAG > Rep ACAP > Repartição de Assuntos Civis e Ação Psicológica > Departamento de Fotocine > Ao centro, o Cap Art Otelo Saraiva de Carvalho e à sua esquerda o Alf Mil Cav Ernestino Caniço, seu colarador.

Foto (e legenda): © Ernestino Caniço (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de ontem, 26 de Julho de 2021, do nosso camarada Ernestino Caniço, ex-Alf Mil Cav, Comandante do Pel Rec Daimler 2208, Mansabá e Mansoa; Rep ACAP - Repartição de Assuntos Civis e Ação Psicológica, Bissau, Fev 1970/DEZ 1971, hoje médico, que teima em continuar ao serviço dos outros de acordo com o seu juramento hipocrático):

Caros amigos:

Como sabeis, faleceu Otelo Nuno Romão Saraiva de Carvalho, o principal pilar do 25 de Abril de 1974. (*)

Durante o ano de 1971 fomos camaradas, em funções na ACAP (Repartição de Assuntos Civis e Ação Psicológica), no quartel da Amura, na Guiné Bissau.
Partilhámos a mesma sala com as secretárias lado a lado. Como é natural dialogámos muito.

Face à sua morte, não posso deixar de manifestar o apreço e a amizade que nos uniu, pelo que lamento a sua perda. Foi fácil. A sua empatia, generosidade e humanismo assim o permitiram. O diálogo fluía naturalmente, não descortinando qualquer atitude lapuz.

Que descanse em paz.

Ernestino Caniço
Médico – Chefe Serviço MGF
Gestor Serviços Saúde – Ordem Médicos
Pós Graduação em Direito da Medicina – Faculdade Direito Universidade de Coimbra

PS - Gostava de o ver aqui sentado, à sombra do poilão da Tabanca Grande, embora infelizmente a título póstumo.

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Nota do editor CV:

Último poste da série de 25 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22404: In Memoriam (400): O Otelo Saraiva de Carvalho (1936-2021) que eu conheci... Ou "As armas e as mãos - Carta ao Otelo amigo" (José Belo, cap inf ref, Lapónia, Suécia)

Guiné 61/74 - P22408: Estórias do Zé Teixeira (49): Um dia de festa em tempo de guerra (José Teixeira, ex-1.º Cabo Auxiliar Enfermeiro da CCAÇ 2381)

Em mensagem do dia 23 de Julho de 2021, o nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), enviou-nos mais um dos seus contos, para a sua série "Estórias do Zé Teixeira":

Caros camaradas Luís e Carlos.
Está a chegar o tempo de férias, nada como um alegre conto para desanuviar.

Com votos de muita saúde, abraça-vos o
Zé Teixeira


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UM DIA DE FESTA EM TEMPO DE GUERRA

Naquele princípio de noite de quinta-feira, o alferes notou que algo de anormal estava acontecendo na tabanca. Do Iero, apenas recebera um alegre sorriso, quando o interpelou sobre o que estava acontecendo com a população. As mulheres andavam num algaraviado rodopio, as bajudas passaram a tarde no “cabeleireiro”, apresentando-se com belos e inabituais penteados, os homens, como de costume, tagarelavam animadamente debaixo ao majestático poilão, que o alferes já fora tentado a abater, pois considerava que era um excelente ponto de mira para o inimigo e se ainda não o destruíra foi pelo respeito que lhe merecia aquela simpática gente. A sua frondosa sombra era a sala de honra onde os homens grandes se reuniam e tomavam as decisões importantes para a vida comunitária local, o salão de festas comunitário, a escolinha onde as crianças, sentadas no chão, ouviam o mestre, na sua aprendizagem corânica.

Ao apreciar esta azáfama deixou-se invadir por um sentimento de felicidade. A sua tabanca estava viva e ativa. Adorava aquela gente, o seu calor humano, os sorrisos que recebia e lhe preenchiam a alma. Havia um inimigo por perto que a todo o momento podia surgir e quebrar aquela harmonia, pelo que se decidiu a visitar, ao cair do sol, todos os abrigos e postos de sentinela e recomendar aos seus homens uma especial atenção para a noite que se aproximava.  

Como era seu hábito ficava uns minutos largos numa silenciosa cavaqueira com cada militar em serviço de vigia e proteção, pelo que recolheu ao seu leito, um pouca tardiamente, depois de se refrescar à moda fula, com umas latadas de água colhida no bidon que tinha à porta da casa.

Sexta-feira, manhã cedo, foi acordado por uma voz feminina que o chamava docemente. "Aferes! Alferes, vem, quero falar contigo!"

Não reconheceu a voz de quem o estava a chamar. Olhou para o relógio, eram sete horas. Voltou-se para o outro lado e deixou-se ficar decumbente a saborear a manhã que se avizinhava bem cálida. Mas a voz insistiu; "Alferes! alferes vem falar comigo! Sou a Djubae, a mãe do Adulai, o teu menino."

Levantou-se célere, enfaixou-se na toalha de banho e abriu a porta. Habitava uma casa típica local que lhe fora cedida pelo Iero. As paredes em cana entrançada recobertas de barro vermelho, encaixavam-se num chão térreo cobertas de palha de capim, que ladeava a casa até a um metro do chão providenciando ao espaço interior uma agradável frescura. Inclinou-se para passar a umbreira da porta e deparou com a Djubae toda aperaltada, com bonito vestido que lhe realçava a juventude e a beleza, com um lenço de seda pura na cabeça.

 Impulsivamente deixou-se espreguiçar enquanto o pensamento lhe devolvia o que tinha apreciado na tarde anterior e pensou: "A festa vai continuar… que se passará com esta gente, meu Deus!?"

- Alferes, o Adulai vem convidar-te para a sua festa!
- Que festa?  - questionou, esfregando os olhos ensonados a precisar de uma chapada de água fresca para acordar.
- Hoje, a tabanca tem festa grande. Allah, louvada seja Ele, deu o dom da vida ao meu menino. Vem visitar-nos o grande Cherno Rachid para fazer oração a Allah o misericordioso, louvado seja Ele.  
Queremos que venhas à festa do Adulai -  disse, num ato repentino como que a despejar um recado que lhe avassalava o coração e se atrofiava na garganta.
- Hum! mas… O Cherno Rachid vem cá e vocês não me informaram para eu criar condições de segurança. Vou ter uma conversinha com o Iero!
- Tem calma, alferes, o Aldje Cherno Rachid pode viajar por toda a Guiné sem risco de vida. É muito respeitado, até pelos bandidos que estão no mato. É um escolhido de Allah e só Allah é Deus protetor e misericordioso - disse calmamente, enquanto pegava na mão do alferes e a encostava ao seu coração.
- Djubae! Djubae! Faltavas tu para prenderes ainda mais o meu coração a esta terra maravilhosa, a esta gente de coração puro, que não merece a pouca sorte a que está votada. Maldita seja a puta da guerra! - vociferou aturdido pelo mavioso convite que acabara de receber. 

Uma lágrima libertou-se do seu coração e escorregou-lhe pela face duramente queimada pelo agreste sol africano. Lágrima que a Djubae recolheu religiosamente na manga do seu vestido domingueiro.
- Vai, disse meigamente o alferes, beijando ternamente a mão da Djubae. Eu não demoro. Quero alimentar-me do vosso júbilo, da vossa enorme vontade de viver. Vai, minha querida!

…E chegou a hora da festa, chamemos-lhe de batizado, para melhor compreendermos o grande significado que tem, para este povo, a entrada na comunidade de uma nova vida.

Em tempo de guerra, não é aconselhável usar o “bombolom” ou os “tam tam” para fazer o aviso e lançar o convite para a festa. Todavia, a tabanca enchera-se de caras que o alferes Barbosa não se lembrava de ter visto por ali. Os homens da terra e das tabancas vizinhas, vestidos de longa batina branca, com a cabeça coberta, solenemente sentados à sombra do poilão aguardavam a chegada do idolatrado Cherno Rachid, emblemático líder religioso a quem toda a Guiné muçulmana independentemente da opção político-militar, se curvava em respeito pelos seus profundos conhecimentos corânicos e pela sua forma de ser e estar no quotidiano da vida. Esta forma de viver tornara-o no homem de Deus mais respeitado em toda a Guiné e até países limítrofes, a quem o Governador da Província se inclinava com respeito e ousava consultar sobre os grandes problemas. Pelas mesmas razões era respeitado pelo bureau político da PAIGC e considerado intocável, pelo que se movia em paz pelas meandrosas picadas da Guiné, sem correr riscos de vida.

As mulheres grandes, aformoseadas nos seus trajes típicos, linguarejavam ruidosamente, sempre com o olho fixo na picada de onde surgiria o homem de Deus, enquanto a juventude se divertia a seu modo aguardando o momento mais solene.

O alferes José Barbosa sentado em lugar de honra no meio dos homens, ao lado do felizardo pai do Adulai, ouvia as conversas em linguagem crioula sobre o passado, o presente e o futuro da Guiné, tentando, nos seus parcos conhecimentos linguísticos locais, compreender de que falavam. O sentimento que tivera de se sentir a mais naquele meio desvanecera-se rapidamente. Sentia-se envolvido por um ambiente de bem-estar. Era como se fosse um filho da terra. Um estranho filho da terra.

Ao verem ao longe, no carreiro, a onda branca com o séquito do clérigo, gerou-se um alvoroço espontâneo. 

Dois jovens, engalanados com os mais belos trajes e pinturas guerreiras pelo corpo, munidos de estridentes assobios e braceletes musicais, agarraram os seus tambores, o djembé e o bougarabou, e prepararam-se para iniciar a festa.

Quatro bajudas entre elas a Binta, aproximaram-se dos pilões e tomaram nos macetes, colocando-se em posição de começar a ação de pilar do arroz.
 
O artista convidado afinava o Kora, um instrumento musical feito de madeira ou bambu com ranhuras transversais e uma caixa de ressonância obtida de uma cabaça partida ao meio. Instrumento de origem mandinga que gera uma musicalidade divinal, o que vai dar mais vida à festa do Adulai.
 
O recém-nascido vestido apenas com o fato que a natureza divina lhe dera, é colocado no colo do avô, que tira do bolso uma farpa acastanhada de vidro, arrancada, talvez, de uma inútil garrafa de cerveja. 

-O açougueiro segura,pelo pescoço, o carneiro que vai ser sacrificado em honra do glorioso, o senhor supremo do Universo, louvado seja Ele. Uma naifa afiada na mão espera pacientemente.
 
A mulherada faz então uma longa roda que envolve todo este ambiente, fechado num silêncio espontâneo e expectante. Convidativo à meditação sobre o valor de uma vida. Uma vida humana que nasceu para ser feliz. Merece ser feliz.

O Califa, depois de ser cumprimentado religiosamente pelos presentes, entra no recinto, abre os braços aos céus e começa a orar.

Momento mágico para os olhos e coração do alferes que vê soltarem-se as mãos das bajudas, dos tocadores de batuque, das mulheres, de toda a gente, até do velho avô que começa a rapar com o vidro da gasta garrafa de cerveja, o cabelo negro do bebé Adulai, enquanto o carneiro dá o seu ultimo mééé´!.

O início da festa que irrompe ritmadamente ao som do bater do pilão, dos toques e assobios dos tamborileiros, acompanhados por dezenas de mãos a baterem palmas, com os corpos a gingarem num frenesim e as vozes num harmonioso coro de louvor a Allah, o Criador. Não faltou o acender da fogueira com a panela devidamente colocada pelas ágeis mãos das cozinheiras de serviço. Tudo, num simultâneo festejar da vida do Adulai.

A sonoridade do macete a bater no pilão, alimentado pela cantilena mais linda, que o alferes jamais ouvira, ritmada pelo bater de palmas das suas jovens manobradoras numa cadência alucinante, com os seios, o mais belo símbolo da sua feminilidade, a acompanharem o bailado, revolvendo-se majestaticamente nos seus bronzeados corpos a pingar longas gotas de suor. Um espetáculo divinal, a que aqueles sons arrancados vigorosamente do fundo dos tambores, alimentados pela musicalidade do korá, com o seu toque especial, davam vida e cuja mensagem não conseguia interpretar. 

Tudo isto transporta o alferes Barbosa ao seu Portugal, à sua terra, o Minho das desfolhadas, dos bailaricos animados pela viola e pela concertina, das cantigas ao desafio, deixando-o por momentos perdido na saudade que o devorava.

Procurou o olhar da Binta, mas não o encontrou. Queria suavizar a dor que lhe ia na alma, lado a lado com a alegria de estar ali, a viver com o seu povo (assim o considerava) uma festa tão linda. Precisava de esquecer, nem que fosse por momentos, a sua aldeia natal, nos braços da mulher africana que lhe prendera o coração.

A Binta sentia-se aturdida. Faltava-lhe o seu Braima, que tantas vezes animara festas como esta. Agredia o pilão com raiva desmedida, enfiada dentro dela, cantando sem nexo. O seu coração bailava longe dali. Como ela adorava tê-lo por perto, para lhe transmitir num olhar sereno todo o afeto que lhe enchia a alma. Talvez não estivesse distante assim, pensou, tentando consolar-se. As boas notícias voam rapidamente… perdeu-se no ritmo da festa e continuou a cantarolar, olhando de través para o alferes de quem gostava, mas não se prendia de amores. A vida continuava, mesmo com seu o Braima escondido na mata, não a podia perder.

E assim se passou a manhã, enquanto as mulheres e bajudas davam o seu passo de dança típica e se libertavam dos maus irãs, os homens alinhavam em conversas soltas, até que chegou a hora do almoço. Homens a um lado, mulheres a outro, algumas com as suas crianças. Grandes bacias cheias de arroz e pedaços de cabrito envolvidos em saboroso molho de chavéu, são espalhadas no recinto.

 Aninhados no chão, depois de lavarem as mãos, os convidados banqueteiam-se calmamente conversando de tudo e nada, porque o importante é viver o momento.

Para o alferes reservaram uma pequena bacia de arroz, com a melhor tranche de cabrito e uma colher, que o Barbosa recusou preferindo aninhar-se junto do Iero e partilhar do almoço comum, para alegria dos presentes que o acolheram com um rasgado sorriso de contentamento.

A tarde foi serena. Alguma música e muita conversa. Os visitantes aproveitaram para, em convívio, trocarem ideias, recordarem velhos tempos, projetarem o futuro.

E foram partindo discretamente antes que o sol se escondesse para além da mata

A chegou a noite. Voltou o silêncio. Voltaram os medos.

O Alferes foi ter com os seus homens. Em cada posto de sentinela uns olhos vigilantes espreitavam o futuro.

Sábado seria um novo dia.

Zé Teixeira

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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE DEZEMBRO DE 2018 > Guiné 61/74 - P19325: Estórias do Zé Teixeira (48): "Um Novo Natal" (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

segunda-feira, 26 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22407: CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67): A “história” como eu a lembro e vivi (João Crisóstomo, ex-alf mil, Nova Iorque) - Parte XI: A partir de junho de 1966, e até 20 de agosto, primeiro ataque a Porto Gole, com metralhadora pesada 12.7


Mini-guião da CCAÇ 1439. Colecção particular: Cortesia de
© Carlos Coutinho (2011). Todos os direitos reservados.





João Crisóstomo (a viver em Nova Iorque desde 1977)


1. Continuação da publicação da publicação das memórias do João Crisóstomo, ex-alf mil, CCAÇ 1439 (1965/67)


CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé,
Porto Gole e Missirá, 1965/67) : a “história”
como eu a lembro e vivi
(João Crisóstomo, luso-americano,
ex-alf mil, Nova Iorque) (*)


Parte XI: A PARTIR DE UM  DE JUNHO  de 1966 ATÉ 20 DE AGOSTO, ATAQUE A PORTO GOLE


Para que fique registado vou mencionar todos os dias e operações que constam deste relatório. Verifico que algumas (que lembro bem mas sem poder dar detalhes acurados),  pela sua importância, mereciam e deviam ter sido objecto de maior atenção e mais pormenorizado relato. Outras nem deles me lembro, talvez por estar na altura destacado em Missirá ou em Porto Gole. Mas para os fins que hipoteticamente possam servir, aqui ficam mencionados alguns desses dias de Junho a Agosto de 1966.


Dia 2 de junho de 1966/64 — Mina A/C

As NT acionaram uma mina anticarro tendo ficado destruída uma viatura GMC. O engenho explosivo rebentado estava colocado em terreno duro por baixo de uma raíz, absolutamente camuflado sem vestígios de terra mexida.

Do rebentamento resultaram os seguintes feridos:

1º cabo 166/65 Carlos Tibúrcio Nunes

Polícia  Administrativo 173/64 Laio Embaló

Polícia Administrativo 243/64


Dia 10 de junho de 1966— Op Golo1

A CCaç 1439 realizou a Op Golo1, a qual consitiu em montar emboscadas a Norte do Chão Balanta, vizinhança da estrada Porto Gole - Mansoa, armadilhamento da picada norte da mesma e batida às tabancas do Chão Balanta, Bissá, Funcor, Sée, Nafo e Chubi.

Segue-se um lacónico relato sem detalhes importantes nem mais alguma informação relevante, salvo que “houve um morto confirmado” (. E o mesmo se pode dizer do “elogio" do Agrupamento nº 24.)


Dia 5 de julho de 1966 
 Op Golo2

Batida a N de Cherel. Devido ao "volume de água" e falta de um bom guia não se chegou ao objectivo nem houve qualquer contacto com o IN.

Dia 9 de agosto de 1966 
— Op Girafa 

Consistiu numa batida a Colicunda, Chubi e Sée. Nada de importante; que foram feitos vários prisioneiros , entre estes uma mulher de nome Mariana da Silva e depois entre os detalhes menciona o facto de ter sido feito um prisioneiro, “tendo-se verificado que estava devidamente documentado”…

Dia 17 de agosto de 1966 
Op Golo3

A CCaç 1439 efectuou a Op Golo  3 que consistiu num cerco e limpeza na tabanca de Bissá.

O facto de, em resultado desta operação terem sido louvados e condecorados com cruzes de guerra quatro elementos das NT, sugere que a operação foi muito mais importante do que está descrito neste relatório. Sem grandes pormenores, descreve que a chegada das NT foi detectada, o IN esquivou-se ao combate e menciona ter sido capturado material diverso de enfermagem, cartas e algum material bélico como cartucheiras, cartuchos, uma carabina semi-automática.

A memória não me ajuda, mas, sem desprimor para os outros, apraz-me ver entre os nomes dos distinguido o de Agostinho Trindade Baptista que eu lembro ser um soldado valente e destemido, cuja coragem eu desde o início testemunhei,  nomeadamente durante a Operação Avante, de 29 e 30 de Agosto de 1965, quando ainda estávamos no Xime. Nessa ocasião sugeri que ele fosse distinguido, mas isso não sucedeu.

Os distinguidos com louvores e condecorações foram os seguintes:

Soldado 118/65 Fernando Macedo Rodrigues

1º cabo 184/65, João Fernandes Barradas

Soldado 230/65 Agostinho Trindade Baptista e

Soldado cozinheiro n 37155/65, Manuel Eusébio Nascimento Fernandes.


Dia 20 de agosto de 1966 - Ataque a Porto Gole com Met Pes 12.7

"O IN atacou violentamente o Destacamento de Porto Gole,  empregando pela primeira vez Met Pes 12,7."

Copio textualmente o descrito neste relatório:

"(O IN) fez fogo com várias armas automáticas bazuca e morteiro. Todo o pessoal reagiu convenientemente e com valentia."

Infelizmente é só o que consta, sem mais pormenores.

Continuo o relatório:

"Resultados obtidos - O IN abandonou um morto nas posições atacantes. Há várias baixas confirmadas de testemunhas por pessoal das tamancas onde o IN se retirou.

Das NT foi atingido com estilhaços de bazuca o 1o cabo 184/65, Barradas e com tiros os soldados da Pol Adm nºs 218 e 146, respectivamente Adjanca Baldé e Juntam Sanhá.

Foi capturado o seguinte material:

3 carregadores de Met Lig  m/52

1 carregador c/munições de PM PPSH

1 pedaço de fita da Met Pes 12,7

Milhares de invólucros de Met Lig

Centenas de invólucros de Met Pes

Uma granada de bazuca não rebentada.

Durante a defesa do quartel foi distinguido o Alferes Mil António Dias de Carvalho, da 1ª CCaç.

Fica para a próxima a Op Gorro, em 21, 22 e 23 de agosto de 1966.

(Continua)
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Nota do editor:

28 de junho de 2021 > Guiné 61/74 - P22322: CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67): A “história” como eu a lembro e vivi (João Crisóstomo, ex-alf mil, Nova Iorque) - Parte X: Op Garrote, 23 de maio de 1966, golpe de mão na região de Madina / Belel

Guiné 61/74 - P22406: Notas de leitura (1367): “Repórter de Guerra”, por Luís Castro; Oficina do Livro, 2007 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Setembro de 2018:

Queridos amigos,
Este jornalista da RTP tem um nome altamente credenciado, na contracapa do seu livro recebe elogios de José Alberto Carvalho, Paulo Camacho, Fátima Campos Ferreira, Adelino Gomes, Judite de Sousa e Joaquim Furtado. Quem aprecia reportagens em áreas de conflito tem aqui um rico manancial, andará por Angola, Cabinda, Guiné-Bissau, Afeganistão e Iraque.
Luís Castro sente-se compensado: "Tive dois acidentes graves, problemas de saúde, estive preso por quatro vezes, expulsaram-me outras tantas, fugi com uma sentença de morte sob os ombros, proibiram-me a entrada em vários países, fui humilhado e agredido por quem menos esperava. Não me deram fortuna, apenas a possibilidade de estar onde aconteceu História."

Um abraço do
Mário


Repórter de guerra: Luís Castro três vezes nas convulsões da Guiné (1)

Beja Santos

Luís Castro explica muito bem a essência do livro “Repórter de Guerra”, Oficina do Livro, 2007, na nota introdutória: “Mandaram-me para um conflito esquecido no imenso Zaire; perdi-me na linha da frente em Angola; aprendi a linguagem do mato e descobri reféns em Cabinda; fugi das cidades em chamas e vasculheim montanhas em Timor; estive dentro da guerra e das traições na Guiné; fui à capital dos talibãs para sentir o cano de uma Kalashnikov; disfarcie-me nas tempestades do deserto iraquiao para compreender o povo do exército mais fraco (…) Enviei para Portugal mais de seiscentas reportagens e sempre com imagens dos nossos cameramen, exceto em duas ocasiões muito especiais. Mesmo que não fossem tão fortes, sempre eram as nossas imagens e a nossa reportagem. Fugi dos diretos nos telhados e fui ao encontro dos acontecimentos nas ruas e no mato. Passei os últimos cinco anos a rever os meus blocos de apontamentos, a ver e a catalogar todas as reportagens e diretos que fiz. Visionei mais de mil horas de imagens em bruto, transcrevi diálogos e consultas a memórias dos repórteres de imagem que me acompanharam em cada situação. O que irá ler é a verdade e tão-só. Pediram-me que enriquecesse a prosa. Recusei. Não escolhi palavras bonitas para embelezar o texto. O que aqui está aconteceu”.
Foto: Luís Castro, com a devida vénia

E na Guiné aconteceu três vezes. Estamos em junho de 1998, o repórter está no seu remanso e houve falar numa tentativa de golpe de Estado na Guiné-Bissau, não sabe quem é Ansumane Mané. Na RTP, recebe instruções, vai por Dacar, aqui chegado segue para Cabo Verde, a fragata Vasco da Gama está a caminho de Bissau e fará escala na cidade da Praia, vai acompanhado de Hélder Oliveira, considerado um dos melhores repórteres de imagem da RTP. A fragata Vasco da Gama avança para Bissau, depois de peripécias, recolhem refugiados. Entrar em Bissau é indesejável, estão lá a ocorrer bombardeamentos e tiroteio. Luís Castro desce até ao país, vem trabalhar. Passaram por algumas barreiras militares, encaminham-se para um braço de mar, vão à procura dos rebeldes. Dá-se o encontro com o major Manuel Melcíades, conversam, é a primeira entrevista dos revoltosos:
“ - Quais são as áreas que controlam?
- Todo o país. O Governo não tem tropa. Só soldados do Senegal, de Conacri e alguns franceses. Os nossos estão todos deste lado. Agora lutamos contra franceses, senegaleses e conacris.
- Vão avançar sobre Bissau?
- Não é difícil entrar em Bissau! Temos dez tanques blindados, daqueles com lagartas e canhão. Podemos entrar a qualquer hora. O problema é a população.
- Aceitam negociações?
- As negociações dependem deles!”


A reportagem sai em Portugal. Nino Vieira não gostou. Ficam acantonados em Quinhamel, na península de Bissau. Luís Castro quer chegar à fala com o Comando Supremo da Junta Militar. Melcíades não permite, mas mostra o passaporte de Ansumane Mané. A imagem será transmitida para todo o mundo através da Eurovisão. As conversas com os guerrilheiros são eloquentes. Diz um:
“- Sabes, fui guerrilheiro. Lutei e matei muitos portugueses, nem eu sei quantos. Agora sou velho e tenho a certeza que tu e eu somos irmãos. Acredita, queremos que vocês voltem rapidamente para a Guiné.
- É impossível!
A minha resposta saíra com um sorriso à mistura.
- Estás a rir da nossa miséria?
- Não, claro que não! Só te estou a dizer que o país é vosso.
- É! Pois é! Só que não o sabemos governar!”


O repórter não pára, volta ao lado dos rebeldes, Melcíades mostra-lhes soldados senegaleses mortos na linha da frente, um oficial superior fora abatido a tiro durante uma tentativa para furar um dos flancos da Junta Militar. Por vezes, são intercetados por senegaleses, escapam por um triz. Até que finalmente chegam a Ansumane Mané, será filmado o encontro de Ansumane Mané com Jaime Gama e Venâncio de Moura, da CPLP. Nino Vieira continua a não gostar do trabalho do repórter português. O embaixador português pede ao repórter para não vir até Bissau, correm todos os riscos. Luís Castro volta a filmar Ansumane Mané acompanhado, entre outros, de Veríssimo Seabra e Emílio Costa. Ansumane está indignado:
“Estive 37 anos ao lado de Nino Vieira. Conheço-o bem e sei do que ele é capaz. O Presidente não pode tratar o país como se fosse uma propriedade privada. Não tem consideração por ninguém.”

A equipa volta ao Vasco da Gama, onde ficam a saber que fora captada uma comunicação feita entre os senegaleses em que era dada ordem para “abater a equipa da RTP logo que fosse encontrada”. As reportagens de Luís de Castro enfureceram a concorrência. Emídio Rangel disse inverdades, o pedido de desculpas acabou por ser publicado cinco anos depois, a 10 de setembro de 2003 e no mesmo dia em que Luís de Castro voltava à Guiné para cobrir o fim da era de Nino.

A reportagem da Guiné-Bissau é acompanhada de imagens captadas por Hélder Oliveira mostrando a guerra, os encontros com Ansumane Mané, as tais imagens que correram o mundo e enervaram a concorrência.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22388: Notas de leitura (1366): “História da Unidade - Batalhão de Caçadores 2845", em verso, por Albino Silva (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22405: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte IV: Lendas mancanhas


Lendas mancanhas - ilustrações do pintor e escultor português José Hilário da Silva Portela (pág, 23)






1. Transcrição das págs. 23 a 27 do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau", com a devida autorização do autor (*)


J. Carlos M. Fortunato > Lendas e contos 
da Guiné-Bissau

[Foto acima: o autor, Carlos Fortunato, foi fur mil arm pes inf, MA, CCAÇ 13, Bissorã, 1969/71, é o presidente da direcção da ONGD Ajuda Amiga]


Lendas mancanhas (pp. 23-27)


Apesar de correntemente ser utilizada a designação mancanha para esta etnia, considera-se que o termo adequado é a designação brame.

Crê-se que pertencem ao mesmo ramo étnico o brame, o manjaco e o papel, face aos seus costumes e características linguísticas (14).

Uma das lendas sobre a sua origem, conta que quando os portugueses chegaram aquelas paragens e querendo saber o nome da etnia que ali vivia, fizeram essa pergunta a um dos habitantes.

- Mancanha - respondeu ele, pensando que lhe estavam a perguntar o nome.

E foi assim que nasceu a etnia mancanha.

Na verdade, naquela zona existem muitas pessoas com esse nome, pois é usado quer como nome próprio, quer como apelido.

***

Outra lenda conta que, numa das guerras entre os portugueses e os manjacos, havia um homem de nome “Mancanha” que era amigo dos portugueses e que estes muito estimavam.

Quando os portugueses chegaram a uma tabanca (aldeia), os habitantes da mesma disseram que eram da família dos “Mancanha”, e por isso foram muito bem tratados. Ao saberem disto as outras tabancas
passaram todas a dizer o mesmo.

- Eu sou da família mancanha - diziam eles e bastava ouvir-se a palavra mancanha, para logo serem deixados em paz.

Assim começaram a “nascer” tabancas mancanhas, e foi assim que nasceu a etnia mancanha, segundo esta lenda.



Lendas mancanhas - ilustrações do pintor e escultor português José Hilário da Silva Portela (pág. 24)

***

A lenda mais bonita sobre a origem desta etnia, é uma história de amor.

Segundo esta lenda, ela teve origem num escravo mandinga de nome Braima, e numa jovem de nome Bula, a qual era filha de um poderoso senhor de guerra de etnia fula.

Braima e Bula sabiam que o seu amor era impossível, e por isso fugir era a única solução, para conseguirem ficar juntos.

Os jovens sabiam que os riscos de uma fuga eram muitos e que na terra dos seus antepassados, não havia um lugar onde se pudessem esconder, pois o pai de Bula não iria perdoar aquela afronta, e enviaria os seus guerreiros em sua perseguição.


Lendas mancanhas - ilustrações do pintor e escultor português José Hilário da Silva Portela (pág. 25)


O Império mandinga de Cabú tinha sido destruído pelos fulas, e o seu poder chegava quase a todo o lado, mas não chegava às terras dos manjacos.

Os reinos manjacos eram orgulhosos da sua independência, e nã aceitariam qualquer exigência exterior, além disso estavam longe e fora do alcance dos reinos fulas. Os manjacos não estavam em guerra nem
com fulas, nem com mandingas, e Braima e Bula esperavam ali serem  bem recebidos.

O caminho de fuga implicava contudo, atravessarem as terras dos aguerridos balantas, onde corriam o risco de serem mortos, mas eles sabiam, que isso também iria fazer parar os guerreiros, que o pai de
Bula enviaria na sua perseguição.

Contra tudo e contra todos, Braima e Bula fugiram, sendo imediata mente perseguidos pelos guerreiros do pai de Bula, mas conseguirachegar às terras dos balantas, e tal como tinham previsto os  perseguidores pararam e abandonaram a perseguição.

Braima e Bula continuaram a sua fuga, abrindo caminho através dezonas de mato denso, para não serem  istos, e assim depois de muitas privações, conseguiram finalmente chegar à terra dos manjacos.
O casal iniciou a construção da sua tabanca, em terras abandonadas, perto ao rio Mansoa, mas que ficavam a pouca distância das terras dos alantas, o que os obrigou a estarem sempre alerta.


Lendas mancanhas - ilustrações do pintor e escultor português José Hilário da Silva Portela (pág. 26)


Os filhos que nasceram, e as boas relações com os manjacos, permitiram-lhes fazer crescer a sua povoação, pois a eles se juntaram homens e mulheres manjacas.

À pequena aldeia, Braima deu o nome de Bula, como demonstração do grande amor que sentia pela sua mulher, Bula. A aldeia tornou-se um Reino, e o filho mais velho de Braima fundou depois a povoação de , a qual passa a ser também um Reino, mas vassalo de Bula.

Bula cresceu imenso, sendo hoje uma localidade importante. Segundo esta lenda, a designação de brame para esta etnia, tem origem no nome de Braima.


Lendas mancanhas - ilustrações do pintor e escultor português José Hilário da Silva Portela (pág, 27)


[Adaptação, revisão/fixação de texto e inserção de fotos e links para efeitos de edição deste poste no blogue: LG]
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Nota do autor:

(14) Mancanhas - pag. 54 de “A Babel Negra”, refere-se que “... é de crer que, produtos dum mesmo ramo étnico, tenha surgido o brâme, o manjaco e o papel.”, na pag. 34 da “História da Guine I”, René Pélissier refere-se que “Quanto aos Manjacos, 71.000 em 1950, levantam um problema de identificação porque, até aos anos 1910, senão mais tardiamente ainda, os Portugueses designam na maior parte (os que vivem no interior das terras, entre o rio Cacheu e o rio Mansoa) pelo nome de PAPÉIS, reservando o nome MANJACO às zonas costeiras
desta mesma região.”


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