quinta-feira, 2 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22504: Pequeno dicionário da Tabanca Grande (13): "Máfrica" (termo irónico, para não dizer sarcástico, para designar a EPI, sita em Mafra), grafado por Vasco Pires e por Rui Alexandrino Ferreira


Mafra > Escola Prática de Infantaria (EPI) > 1964 > Curso de Sargentos Milicianos (CSM) > "Mafra, 26 de Janeiro de 1964 > O 1.º pelotão, da 1.ª Companhia, ao 2.º dia de tropa"... Pormenor: todos equipados de Mauser... Foto do álbum do nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67).

Foto (e legenda): © Veríssimo Ferreira (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. "Máfrica" é um vocábulo da nossa gíria castrense e consta do Pequeno Dicionário da Tabanca Grande, tendo sido "grafado" pelo nosso saudoso Vasco Pires (Vilarinho do Bairro, Anadia, 15/6/1948 - Porto Seguro, Baía, 31/10/2016) (foi alf mil art, cmdt do 23º Pel Art, Gadamael, 1970/72; entrou para a Tabanca Grande em 27/9/2012; tem cerca de 7 dezenas de referências no nosso blogue).

Alguns excertos do seus postes com o descritor "Máfrica:

&&&

 (...) Eu venho lá da Bairrada pofunda, que na década de 50 era mais conhecida como terra da batata, ao invés de terra do vinho, o vinho ainda se vendia a granel.

(...) A minha infância e adolescência foi passada em escolas da região, seguida de uma passagem de cinco anos pela efervescente cena coimbrã da segunda metade da década de 60.

Em 69, saí desse "borbulhar" de novas ideias e atitudes, para a disciplina EPI na "Máfrica" de tantos de nós. Logo começou a minha boa sorte, de ter camaradas, subordinados e superiores que me ajudaram nesta caminhada de três anos pelos quartéis de Portugal e África. (...) (*)

&&&

(...) Mas éramos todos muito inocentes, aí com facilidade o sistema nos enquadrava com um Tenente e dois Cabos Milicianos e às vezes, poucas, um Sargento.

Poucos dias depois receosos de perder o fim de semana, íamos-nos tornando instrumentos de um sistema que durante tantos anos (63 a 74), enquadrou uma geração de pouca sorte.

O processo começava aí: "Máfrica", Vendas Novas, Tavira, Caldas da Rainha... E lá íamos nós, mais ou menos convencidos e eficientes agentes, enquadrar outros mais, pelos quartéis de Portugal e de África. Mafra e Tavira, eram o início de um processo de inserção no sistema de muitos milhares, que a propaganda chegou a fazer pensar, que estavam "dilatando a Fé e o Império". (...) (**)

&&&

(...) De qualquer, a grande escola de cadetes e fábrica de oficiais que depois seguiam para os teatros de operações do ultramar, a grande 'Máfrica' (, a expressão é do nosso grã-tabanqueiro Vasco Pires), que terá formado dezenas e dezenas de milhares de oficiais subalternos e comandantes operacionais, era, como em qualquer parte do mundo, uma verdadeira "instituição totalitária" ("total institution") no sentido forte, sociológico, do termo.

Se não, vejamos alguns traços comuns às instituições e organizações a que poderíamos aplicar a tipologia desenvolvida, e,m 1961, pelo sociólogo americano Erving Goffman (Asyluns: essays on the social situation of mental patients and otther inmates. New York: Anchor, 1961).(...) (***) 

&&&

(...) Então, "Máfrica" exprimia a reação,  de jovens inocentes e provincianos que se julgavam na vanguarda da modernidade e pensavam que iam mudar o mundo, à disciplina militar, reforçada, por ser num curso acelerado [, o COM].

No meu caso, o impacto foi "amortecido", pois dormia e comia fora do quartel [, EPI]. (...) (****)

&&&

(...) Tempos atrás, lendo uma matéria, lembrei de cartaz que vi em um dos quartéis por onde passei, talvez "Máfrica" [, EPI, Mafra]. Dizia: "O boato fere como uma lâmina " (se não falha a memória).

Quantos boatos não passaram na nossa vida militar? Muitos fabricados pela contra-informacão, outros gerados pelos nossos medos. Logo propagados nos "jornais da caserna". (*****)

2. Comentário de Fernando Ribeiro ao poste P22489 (******):


(...) "Máfrica" - Estive cerca de seis meses a frequentar o COM em Mafra e tenho que puxar muito pela memória para me lembrar de ouvir alguém chamar "Máfrica" a Mafra. De que eu tenha a certeza, só ouvi uma vez, mas admito que tenha ouvido mais uma vez, no máximo duas. Fora isso, sempre ouvi chamar Mafra a Mafra. Confesso que acho estranha esta insistência na palavra "Máfrica", mas se calhar a minha memória é que já não é o que era. (...)

3. Comentário do editor LG:

Em relação a Mafra, as "memórias" são das personagens do conto, não do autor, o contista (******).  Quarenta anos depois é natural que haja contaminação entre "ditos" e "feitos" de diferentes épocas. 

Relativamente ao termo "Máfrica" temos, no nosso blogue, 14 referências   (*******)... E Mafra tem sessenta. A EPI cerca de metade.

Máfrica deve ser termo da gíria coimbrã, era uma forma irónica (, para não dizer sarcástica, ) de identificar a EPI, situada em Mafra... O nosso saudoso Vasco Pires, que morreu no Brasil, usava-o muito... Mas também o angolano, nascido em Sá da Bandeira (hoje, Lubango),  Rui Alexandrino Ferreira, no seu livro "Rumo a Fulacunda" (2.ª edição, 2003, Palimage Editores, Colecção Imagens de Hoje, 415 pp.). Veja-se este excerto:

(,,,) Para lá [,EPI, Mafra,] me vi empurrado, pois naquela altura, corria o ano de 1964, não havia Curso de Oficiais a não ser no continente. Infantaria só mesmo lá-. E como o rapaz Rui nem tinha padrinhos, nem certamemte servia para outra coisa... e sobretudo porque as necessidades eram "carne para canhão", ou seja, combatentes, nem vale a pena acrescentar mais nada...

"Muita chuva, muito vento, muita e...um convento". Eram com estes sábios, esclarecidos e esclarecedores termos que pela voz do povo se definia aquele "paraíso"- E como a voz do povo  mais não é do que a voz de Deus, já para não referir  quaisquer outras vozes - é claro - que afirmava, que "pior que África só mesmo Máfrica", correspondia em absoluto com a realidade no que dizia respeito  à chuva, ao vento e ao convento. Esqueceram-se de acrescentar o frio e a"merda que restava só podia ser mesmo a tropa".

Tropa que apesar de tão mal tratada, fazia com que a vila perdesse a  monotomia e espantassse a modorra de cada vez que se apresentava para a recruta mais uma fornada de "jeijão verde" (alcunha com que os locais brindavam os milicianos em geral, quer se tratassem de soldados-cadetes do Curso de Oficiais, ou de soldados-instruendos do Curso de Sargentos. Por grosso e atacado eram agrupados ao molho  e todos equiparados ao mesmo vegetal)" (pág. 49).

O Vasco Pires, emigrado no Brasil desde 1972, e que só descobriu o nosso blogue em 2012, não leu por certo o livro do Rui Alexandrino Ferreira. (*******)
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(******) Vd. poste de 27 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22489: A galeria dos meus heróis (41): De companheiros de infortúnio a amigos para a vida - Parte I (Luís Graça)

quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22503: Historiografia da presença portuguesa em África (278): O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (15) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos,
Estou em crer que este importante trabalho de Maria Emília Madeira Santos melhor ilumina a cena do período fundador da Sociedade de Geografia de Lisboa, faz avultar as grandes linhas táticas da importância das travessias a que outros contrapunham a pertinência de estudos regionais, lá se conseguiu a coabitação das duas teses. A autora chama a atenção para um engenheiro militar, a que eu fiz referência na recensão das atas das sessões, Joaquim José Machado, ninguém melhor do que ele alertou a tempo para a intrusão britânica entre Angola e Moçambique, iniciara-se a fricção que desembocou no Ultimatum. Igualmente a autora expende pertinentes considerações sobre as atividades da Comissão Africana. E quando se chega ao Ultimatum a resposta mais adequada que a Sociedade de Geografia encontrou foi a realização da importantíssima exposição cartográfica - era a resposta científica a um problema político cujo tratamento direto estava fora do seu âmbito.

Um abraço do
Mário



O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (15)

Mário Beja Santos

Seria imperdoável não adicionar à bibliografia complementar alusiva ao acervo que aqui se apresentou sobre as atas das sessões do período inicial da Sociedade de Geografia de Lisboa o texto incluído no livro "Nos Caminhos de África", da autoria de Maria Emília Madeira Santos, publicação do Instituto de Investigação Científica e Tropical, 1998, intitulado "Das Travessias Científicas à Exploração Regional em África: Uma Opção da Sociedade de Geografia de Lisboa". É um texto por demais esclarecedor da filosofia imperial do grupo fundador, a autora, uma categorizada investigadora, estende as suas considerações ao período posterior ao que aqui se analisou (ou seja, até ao falecimento de Luciano Cordeiro, o dínamo da Sociedade, em 1900), veja-se a riqueza e a pertinência das suas observações.

Começa por dizer que não há margem para dúvidas sobre o desempenho da Sociedade no impulso das grandes travessias de África, ocorridas nos anos de 1876 e 1885. Estes fundadores da Sociedade aperceberam-se da oportunidade de urgência em apresentar à Europa científica e política explorações sensacionais, que caíssem no goto da cena internacional. Mas foram igualmente estes fundadores que decidiram, quando chegou o tempo de mudar de tática, pôr termo às grandes explorações geográficas em extensão e ocupar-se da exploração regional e do estudo aprofundado e científico das áreas da “África Portuguesa”, também com o fito de lhe dar um conhecimento a nível europeu. Para a autora, o debate que teve lugar durante a preparação da “Expedição Científica Portuguesa à África Austral”, em 1876, terá sido o primeiro sinal de duas orientações perante a exploração terrestre em África, que podem detetar-se no último quartel do século XIX, devido ao impulso primeiro da Conferência de Bruxelas e aceleradas posteriormente pela Conferência de Berlim.

Os membros da então “Comissão Permanente de Geografia” dividiam-se em duas teses, uma era encabeçada por Luciano Cordeiro, dava como essencial a travessia, a outra representada por João Júlio Rodrigues, punha ênfase na exploração dos territórios considerados sobre soberania portuguesa. Recorde-se que na exposição que a Sociedade enviou ao rei D. Luís, em junho de 1876, aludia-se à “conveniência científica, económica e política de se empreender uma expedição portuguesa através do sertão africano, de costa a costa”. Pinheiro Chagas enviou a África várias expedições destinadas a definir os limites de algo que era um desejo, “o domínio português em África”. Fora a Sociedade que alertara em 1881 para a urgência de definir fronteiras de um domínio que se apresentava como extensíssimo, mas em relação ao qual se alegavam fundamentalmente “direitos históricos”. A Sociedade recebeu como heróis Capelo e Ivens, e pretendeu que essa imagem chegasse ao todo nacional. A sessão solene no Teatro Real de São Carlos, a 1 de outubro de 1885, teve o fausto dos grandes acontecimentos e iria constituir o fecho das grandes travessias da África Austral, com repercussão internacional.

Entretanto a Sociedade criara um grupo técnico-científico de gabarito, a “Comissão Africana”, em 1878, competia-lhe examinar com detalhe os assuntos referentes a África, avançou com propostas do reconhecimento geográfico e do levantamento das cartas de Angola e Moçambique, de explorações no terreno sobre o ponto de vista geológico e mineralógico. Mas o âmbito de reflexões era extenso, ia desde o levantamento hidrográfico das costas e portos, passava pelo problema da balizagem e faróis, explorações botânicas, e muito mais. No acervo respeitante às atas das sessões, estou em crer que ficou bem claro o papel desta comissão africana.

A conceção política colonial conheceu uma inflexão incontornável na Conferência de Berlim, era a ocupação efetiva que contava, e os trabalhos da Sociedade revelam que se despertava para a nova realidade, são amplas as referências aos engenheiros dos caminhos-de-ferro e das expedições de obras públicas, a partir de 1877 chegam os seus relatórios técnicos. E daí a recomendação da Sociedade “em mandar explorar por pessoas competentes as colónias, estudando-as e descrevendo-as sob o ponto de vista da sua geografia, linguística, etnografia, climatologia, demografia e patologia”. Foi mesmo previsto um prémio para a melhor memória em trabalho original que se escrevesse a respeito de geografia e colonização das terras de África trópico-equatorial.

Também vimos a importância da colaboração de Joaquim José Machado, engenheiro militar, que cursara a Escola Politécnica e a Escola do Exército, regressara de Moçambique, é o principal alertador do que se vai passar com a intrusão britânica, não deixando, no entanto, de alertar que se devia cuidar das vias de comunicação, tão negligenciadas. As intervenções do Engenheiro Machado foram publicadas em separata, mas os decisores ter-lhe-ão dado pouca ou nenhuma importância. Fizeram-se estudos sobre os caminhos-de-ferro de Lourenço Marques e Ambaca, como igualmente sobre as estações civilizadoras, que não eram mais que polos de concentração abrangendo comerciantes, missionários, técnicos ligados aos empreendimentos. Em 1882, o diretor de obras públicas do caminho-de-ferro de Ambaca apela para uma viragem estratégica da Sociedade, não basta teoria, é necessário apostar nas questões práticas, algo devia mudar no funcionamento da Comissão Africana. Esta também passa a ser confrontada com as explorações de grande reconhecimento e as de âmbito meramente regional. Os projetos de travessia sucederam-se, em março de 1887 surge o projeto de Caldas Xavier, a Comissão Africana tinha dúvidas, como expendeu: “Será agora o momento histórico apropriado, para tentar novas travessias ou será, pelo contrário, mais azada a ocasião para partir dos traços gerais para os dados particulares e de pronto imediatamente utilizáveis?”. Acontece que Inglaterra ia gradualmente desfazendo o sonho de uma África portuguesa em continuidade do Atlântico até ao Índico. Começaram as exigências de saídas para o mar através do Zambeze e Lourenço Marques. Procura-se a resposta mais adequada através de expedições de obras públicas, verdadeiras brigadas de reconhecimento geográfico. Um conjunto de exploradores trabalhava contra o tempo, procurando acompanhar a corrida a África em zonas claramente disputadas. Joaquim José Machado regressa de Moçambique em 1889 e apela a medidas enérgicas, uma delas à definição das fronteiras de Moçambique. A reação inglesa foi brutal, rasgou ao meio o Mapa Cor-de-Rosa e procurou empurrar para o litoral os limites do domínio português. A criação da British South Africa Company concretizava todas as previsões apresentadas pela Sociedade ao Governo. Havia que reconhecer que ao avançar para territórios considerados sob a soberania de Portugal durante três séculos a companhia inglesa pouco encontraria que evidenciasse a nossa ocupação e ação civilizadora permanente. E seguiu-se o Ultimatum. Recorde-se a atmosfera de pesar que foi a sessão de 20 de janeiro de 1890, onde se discutiu o Ultimatum. E sugeriu-se uma exposição das cartas geográficas relativas aos descobrimentos e explorações, acompanhada da respetiva bibliografia. Desejava-se que a exposição abrisse ainda naquele mesmo ano no mês de junho e se limitasse a África. Viria a ser inaugurada em dezembro de 1903, com uma riqueza cartográfica que ia desde o Brasil ao Japão e desde Cabo-Verde a Timor. Luciano Cordeiro, como se disse atrás, falecera em 1900, é Ernesto de Vasconcelos quem está ao leme da Sociedade, foi ele o grande obreiro da exposição realizada. E a autora termina o seu trabalho dizendo que a Exposição Cartográfica de 1903-1904 foi a opção adequada de uma sociedade científica na procura de uma resposta de nível cultural a um problema político, cujo tratamento direto estava fora do seu âmbito.

Como se vê, um interessantíssimo documento, para finalizar voltamos de novo a Maria Emília Madeira Santos e à sua obra "Viagens de Exploração Terrestre dos Portugueses em África", editada pela Junta de Investigações Científicas do Ultramar/Centro de Estudos de Cartografia Antiga, 1970.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE AGOSTO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22483: Historiografia da presença portuguesa em África (277): O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (14) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22502: Memória dos lugares (425): Mafra, EPI, março de 1967: desfilando com o meu pelotão, o 1.º, da 1.ª Companhia de Instrução do COM, após o juramento de bandeira (Eduardo Moutinho Santos, advogado, Porto)

 

Mafra > EPI > Março de 1967 > Fotografia do meu pelotão (1.º Pelotão da 1.ª Companhia de Instrução) do COM de janeiro de 1967, desfilando de regresso à parada da EPI, depois do juramento de bandeira.   Nesta foto,  do meu  "álbum de guerra", estou em 3.º lugar na 1.ª fila. O sargento, que empunha uma FBP,  não conta.

A foto foi tirada por um familiar de um camarada soldado-cadete. A foto é de março de 1967. Ainda fiquei mais cerca de 3 meses em Mafra para a especialidade de atirador de infantaria... A foto não pode, pois,  ser do pelotão do Paulo Raposo, ele foi incorporado na 2.ª leva (Abril) de 1967 de futuros alferes...

Foto (e legenda): © Eduardo Moutinho Santos (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. M
ensagem de Eduardo Moutinho Santos, ex-Alf Mil da CCAÇ 2366 (Jolmete e Quinhámel) e ex-Cap Mil Grad, CMDT da CCAÇ 2381 (Buba, Quebo, Mampatá e Empada), advogado com escritório no Porto, e régulo da Tabanca de Matosinhos; tem mais de 2 dezenas de referências no nosso, entrou formalmente para a Tabanca Grande em 22/10/2012 (*):


Data - terça, 31/08/2021, 12:53

Assunto - A galeria dos meus heróis (42): De companheiros de infortúnio a amigos para a vida

Olá, Luís Graça. Bom dia.

Esperando que estejas a gozar merecidas férias, e que a tua recuperação esteja a correr bem à sombra do Poilão de Candoz, queria, antes de mais, deixar-te um abraço de parabéns pelo enternecedor conto "A galeria dos meus heróis". De companheiros de infortúnio a amigos para a vida"  (**) que, após uma leitura atenta, quase me pareceu autobiográfico (de mim) em parte!!!

Fiz um comentário à fotografia de um pelotão de soldados-cadetes desfilando em Mafra, após o juramento de bandeira, de regresso à parada da EPI, foto que apareceu num dos "artigos " que o Paulo Raposo, nos longínquos anos de 2008, inseriu no Blogue de que eu, então, ainda desconhecia a existência. Não pode ser o pelotão do Paulo Raposo, ele foi incorporado na 2.ª leva (Abril) de 1967 de futuros alferes...

Aproveito para te enviar a mesma foto que tenho no meu "álbum de guerra", onde estou em 3.º lugar na 1.ª fila. O sargento não conta.

Abraço
Eduardo Moutinho
Advogado, Porto



Guiné > Região de Cacheu > Jolmete > CCAÇ 2366 / BCAÇ 2845 (1968/70) > No "baú dos despejos" encontrei esta declaração que terei assinado para vir de férias, e que me terá sido devolvida porque não fui "d'assalto" até Paris... Fazia parte das regras militares assinar este tipo de declaração.

Foto (e legenda): © Eduardo Moutinho Santos (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


2. Comentário de L.G.

Eduardo, fico sensibilizado pelo teu comentário. E lisonjeado, também. Tiveste a coragem de ler o conto (**), que é demasiado extenso para o blogue. A ideia era retratar uma época e uma terra de província. Este Portugal dos anos 40/50/60/70 já não existe, para os nossos filhos e netos, felizmente, é passado, ou melhor nunca existiu. Mas nós atravessámos essas décadas... E não foram pera doce. (***)

Obrigado por me teres autorizado a publicar a tua mensagem como poste, com o teu nome, incluindo a foto do teu pelotão, no COM, Mafra, jan-março de 1967. Já agora, vê se lembras de alguma vez, no teu tempo (1.º semestre de 1967) teres ouvido o termo "Máfrica" para designar, pejorativamente, a EPI.

Entretanto, e como já to disse, por email, ainda não estou em Candoz. Até sexta feira tenho fisioterapia, aqui na Lourinhã. Vou lá estar uma semana, e dia 11 de setembro, sábado, comprometi-me com o António Carvalho a ir, com todo o gosto (, e apesar das minhas limitações de mobilidade) à Tabanca dos Melros, fazer a apresentação do seu livro. Se lá puderes ir, teremos a oportundiade de falarmos um pouco mais e darmo-nos aquele abraço.
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Notas do editor:


(*) Vd. poste de 22 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10556: Tabanca Grande (366): Eduardo Moutinho Santos, ex-Alf Mil da CCAÇ 2366 e ex-Cap Mil Grad, CMDT da CCAÇ 2381 - "Os Maiorais" (Guiné, 1968/70)

(**) Vd. postes de:

Guiné 61/74 - P22501: Parabéns a você (1986): Manuel Joaquim, ex-Fur Mil AP Inf da CCAÇ 1419/BCAÇ 1857 (Bissorã e Mansabá, 1965/67)

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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE AGOSTO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22480: Parabéns a você (1985): António Fernando Marques, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1968/70)

terça-feira, 31 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22500: In Memoriam (406): Alcobaça homenageia personalidades alcobacenses entre as quais José Eduardo Oliveira (JERO) que este ano nos deixou, vítima do COVID-19 (Joaquim Mexia Alves / Blogue da Tabanca do Centro)

Alcobaça > Setembro de 2011 > O jornalista, escritor e nosso camarada e amigo JERO (acrónimo de José Eduardo Reis de Oliveira), autor de "Alçobaça é Comigo", o seu terceiro livro.

Foto e legenda: © JERO (2011). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)



Com a devida vénia ao nosso camarigo Joaquim Mexia Alves, transcrevemos o poste 1308, de sua autoria, publicado no Blogue da Tabanca do Centro, que dá notícia da homenagem prestada pelo Jornal Alcoa a diversas personalidades alcobacenses, entre as quais José Eduardo Oliveira, o nosso JERO, camarada e amigo que tantas saudades deixou a quem o conheceu.[*]

Mais do que a notícia propriamente dita, queremos destacar o texto que o Joaquim dedica ao JERO, na verdade uma personalidade ímpar, que assinamos por baixo com a sua permissão.

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HOMENAGEM AO JOSÉ EDUARDO REIS OLIVEIRA (JERO)

Estive hoje em Alcobaça participando na Missa e na homenagem que o jornal “O Alcoa” quis prestar a diversas pessoas que se destacaram nas suas vidas durante o ano de 2020, (segundo foi dito), entre elas o meu querido amigo José Eduardo Reis Oliveira.

E escrevo, segundo foi dito durante o ano de 2020, porque o José Eduardo, (para muitos o Jero), penso que se destacou toda a sua vida pelo que sei dele, embora só o tenha conhecido nestes últimos pouco mais de 10 anos, mas que sendo poucos nas nossas vidas de mais de 70, foram os suficientes para fazer nascer e crescer uma amizade forte, inabalável, sincera, confidente cheia de uma profunda admiração e respeito um pelo outro.

Quando eu era novo, se alguém dissesse de alguém - esse é um “homem bom” - tudo estava dito sobre essa pessoa, porque esse “bom” incluía um sem número de virtudes e qualidades que distinguiam essa pessoa das demais.

O José Eduardo era/é um “Homem Bom”!

O José Eduardo podia ter sido advogado ou juiz, médico ou enfermeiro, (que foi na vida militar), professor ou aprendiz, varredor da rua ou professor catedrático, ou tantas e quaisquer outras profissões, que nunca deixaria de ser um “Homem Bom”.

Apaixonado pela “sua” Alcobaça, a sua terra, (fazem falta hoje pessoas apaixonadas pelas suas terras para as servir sem delas se servirem, como o José Eduardo), um contador de histórias, um investigador da simplicidade do verdadeiro do dia a dia, um escritor de escrita “limpa”, um amigo como aqueles que o são, um ombro para quem dele precisasse, um sorriso para os tristes e desolados, um orgulhoso português sem outras peias, um confidente e um humilde “pedidor” de conselhos, um pai de família, um avô de netos, um homem de excepção.

Passear com ele em Alcobaça, era descobrir a terra e as suas gentes, do mais importante ao mais simples, era nunca acabar de cumprimentos, de sorrisos, de abraços.

Em qualquer canto de Alcobaça, com ele como guia, se faziam as coisas melhores do mundo, desde a pastelaria ao vinho e licor, se encontrava a memória e se viviam as histórias, se tornavam vivas as esquinas das ruas e as casas por onde passávamos.

Estar com o José Eduardo era estar com a história sempre presente de Alcobaça, era um reviver da Guiné por onde passámos os dois, mas sem medos, nem recriminações, era um constante perguntar e um permanente responder.

O José Eduardo era/é uma dádiva de Deus à sua família, a Alcobaça, aos seus amigos.

Exagero?

Eu sinceramente acho que não!

Será a amizade que lhe tinha/tenho que me faz escrever assim?

Não, acho que não, porque sinto em mim que o que escrevo é verdade, e não apenas um panegírico de um qualquer louvor, que até ofenderia a sua memória.

É, para mim, um imenso orgulho ter sido e continuar a ser um dos seus bons amigos, ter aprendido com ele um pouco mais da virtude da paciência e da humildade e ter desbravado caminhos de Deus, nas perguntas e respostas que ambos suscitávamos quando vivíamos a fé no dia a dia.

Estive hoje em Alcobaça, a convite da Helena do José Eduardo, (resisto a chamar-lhe viúva), com os seus filhos e netos e senti-me verdadeiramente com o José Eduardo, naqueles que o viveram e vivem bem mais do que eu.

E, para mim, foi uma honra inigualável este convite que fica marcado no meu coração com o selo perene da verdadeira amizade.

E tu, José Eduardo, lá no “assento etéreo” a que subiste, (como dizia o poeta), olha pelos teus, olha pelos amigos, olha pela tua terra e vive a felicidade eterna que tão bem mereceste, nos abraços, beijos e sorrisos que foste distribuindo ao longo da tua vida.

Até já, José Eduardo!

Marinha Grande, 20 de Agosto de 2021
Joaquim Mexia Alves

Na segunda foto aparecem a Eduarda, filha do José Eduardo, e os seus filhos Pedro e Mariana, que receberam a homenagem em nome da família.

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Nota do editor

[*] - Vd. poste de 27 DE JANEIRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P21814: In Memoriam (386): José Eduardo Reis Oliveira (JERO) (1940 - 2021), ex-Fur Mil Enf da CCAÇ 675 (Binta, 1964/65), escritor, jornalista, bloguista, grande camarada e amigo do peito (Joaquim Mexia Alves / Luís Graça)

Último poste da série de 26 DE AGOSTO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22485: In Memoriam (405): António Manuel Lapa Carinhas (c. 1947 - 2021), Alf Mil do Batalhão de Intendência. Passou por Bambadinca e Farim, entre 1969 e 1971 (Eduardo Estrela / Carlos Silva)

Guiné 61/74 - P22499: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XV: Férias em julho/agosto de 1973... e o teste da cerveja


Foto nº 1 > Guiné > Meados de 1973 > Não é uma  Dornier, uma DO –27.  mas um Cessna CR-GBE... Foi numa aeronave destas que o Joaquim Costa deixou Aldeia Formosa, "com a adrenalina (boa) nos limites a caminho de férias"...  
Mas esta foto não é dele, nem dos seus companheiros de viagem que alugaram uma avioneta civil para chegar a Bissau a tempo de apanharem o avião da TAP e poderem gozar a tão merecida de licença de férias na Metrópole. 

Esta foto é do  Luís Nascimento, aqui  o mais alto, o segundo a contar da esquerda, membro da nossa Tabanca, ex-1º cabo cripto, CCAÇ 2533 (Canjambari, 1969/71).A avioneta era TAGP - Transportes Aéreos da Guiné Portuguesa (voos internos), mas cada um dos 3 viajantes transportam já um saco de viajem de mão, oferta da TAP. No núcleo museológico da Tabanca dos Melros, pode ver-se um exemplar deste saco, oferta do nosso camarada Carlos Silva.

Foto (e legenda) : © Luís Nascimento (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > c. 1972/4 > Imagem do Cessna, vermelho, pilotado pelo Comandante Pombo, dos Transportes Aéreos Civis da Guiné (TAGP) em que o nosso camarada Álvaro Basto fez várias viagens entre o Xitole e Bissau, nos anos da sua comissão (1972/74). Se calhar foi na mesma aeronave ecom o mesmo mítico piloto, que o Joaquim Costa viajou até Bissau para apanhar o avião da TAP.

Foto (e legenda): © Álvaro Basto (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]





Joaquim Costa, ontem e hoje. Natural de V. N. Famalicão,
vive em Fânzeres, Gondomar, perto da Tabanca dos Melros.
É engenheiro técnico reformado.


Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) (*)

Parte XV - Férias... e o teste da cerveja


Passado pouco tempo depois de todos estes acontecimentos extraordinários (a entrada em Nhacobá, a morte de um soldado e o ferimento grave de um camarada alferes, queda de Guileje, etc, …) chegou a minha vez de gozar as tão esperadas férias.

No dia anterior à partida para Bissau, com a ansiedade nos limites, procuro a minha “mala de cartão”, que trouxe de casa, para analisar o estado da minha roupa de civil. Ao retirá-la debaixo da cama de ferro, fico na mão apenas com a pega. Reparo que a mala praticamente desapareceu, assim como a roupa e outros haveres. Estava tudo podre da humidade. Dado o pouco tempo que estaria em Bissau já tinha assumido que teria de viajar com a roupa militar. Felizmente houve tempo e lá consegui comprar umas calças e uma camisa.

A pressa de partir era muita, pelo que não dava para esperar pela coluna Aldeia Formosa - Buba, e o avião da TAP tinha dia e hora marcada, pelo que, com colegas de outras companhias, “fizemos uma perninha” e alugamos uma avioneta civil, dos TAGP,  para nos levar de Aldeia Formosa a Bissau.

Viagem inesquecível, dada a loucura do piloto tudo fazendo para nos colocar em pânico com manobras estilo campeonato mundial da “Red Bull Air Race”, argumentando, contudo, que tais manobras, visavam apenas evitar veleidades ao IN em nos atingir com a sua nova arma: o míssel terra-ar Strela. (**)



Já dentro do avião da TAP constatei que afinal havia hospedeiras (bem giras e simpáticas...) e tratamento VIP com direito a uma malinha muito “catita”  (, parecida com a da foto acima, cortesia do Núcleo Muselógico da Tabanca dos Melros; foto: LG) e whisky de borla.

A chegada ao Porto, já que em Lisboa apanhei logo avião para a Invicta (sempre ouvi dizer que o melhor de Lisboa era a autoestrada para o Porto, embora para mim continuem a ser os pasteis de Belém), foi uma sensação que jamais conseguirei descrever: poucas horas depois de sair daquele inferno encontro um país sereno, despreocupado, falando de futebol, jornais sem uma única referência ao que se estava a passar em África.

Mergulhei nesta nova realidade, aproveitando ao máximo estes 30 dias, tropeçando aqui e ali no processo de reaprender a viver na dita civilização.

Na primeira noite em casa, depois de um dia bem passado com amigos, deitei-me cedo com a sensação de me deitar numa nuvem protegido por anjos celestiais... e sem rede mosquiteira: - Dorme, “meu anjo”, que hoje com toda a certeza não haverá flagelação nem ataque ao arame e nós estamos aqui para te proteger…

À meia noite, já em sono profundo, ouço rebentamentos muito perto, dou um salto na cama e estilhaço o candeeiro de mesinha de cabeceira à procura da minha G3. Havia festa numa aldeia perto com o tradicional fogo de artifício à meia noite. A minha mãe vem ver o que se passava, muito preocupada, enquanto eu já refeito, tentava acalmá-la inventando uma desculpa esfarrapada para os estilhaços do candeeiro no chão. Não obstante aquele aparato, foi uma sensação tão agradável saber que afinal estava em casa, em segurança, com a proteção dos meus anjos celestiais. Dormi como um justo.

No Minho, durante o Verão, todos os fins de semana há festa, pelo que lá me fui adaptando... tendo partido só mais um candeeiro...

Fui reaprendendo a viver na dita civilização e a matar saudades da maravilhosa gastronomia Minhota (fazendo esquecer o arroz com estilhaços e as rações de combate) : Bom cozido à portuguesa (feito pela minha santa mãe); boas feijoadas (na tasca da Sara Barracoa,  em Famalicão); uns rojões à minhota (no Tanoeiro, em Famalição); bom cabrito à Serra D’Arga e o “Pica no chão” (em Viana); uns magníficos rojões com arroz de sarrabulho (na magnífica Vila mais antiga de Portugal - Ponte de Lima); um Polvo assado na Brasa (na Bagoeira, em Barcelos). intercalado com um bom bife com batas fritas onde calhava...

A praia: o picadeiro da Póvoa de Varzim, cheio de emigrantes falando francês (mas os palavrões eram em português!), onde visitei, a seu pedido, a casa do nosso colega e amigo alferes de artilharia (o homem do fogo amigo) levando-lhe um “miminho” da mamã.

Ainda deu tempo para uma incursão pelo alto Minho: Viana, a bela Caminha, Cerveira (terra adotiva do escultor José Rodrigues e um dos fundadores da Biemal em 1978), e a maravilhosa praia do Moledo (muito frequentada pelas elites, como Vitorino de Almeida, o grande percursor dos festivais de verão, como o mítico festival de Vilar de Mouros e mais recentemente de Durão Barroso, ainda à procura, com uma lupa, das armas de destruição maciça no Iraque).

Esta incursão pelo Alto Minho terminou (aliás, era o objetivo principal), num baile de garagem junto à praia do Cabedelo , em Darque, Viana do Castelo, local onde nasceu (em 1974) a discoteca mais badalada no país e em Espanha - a mítica Luziamar.

Depois do regresso da Guiné fiz de Viana a minha segunda casa (comprando um andar no edifício mais mediático do país – o Prédio do Coutinho), onde a ida ao Luziamar era obrigatório. Esta mítica discoteca, hoje em ruínas, faz parte das minhas boas memórias.

Umas incursões à Invicta: rever amigos nos míticos cafés da cidade (o Estrela, o Piolho, o Magestic, o Ceuta…), cinema (relembrando as sessões duplas do tempo de estudante - uma “Coboyada” para o “macho” e um romance para a “garína”), um magnifico fino, com um pratinho de bolachas salgadas na antiga fábrica da cerveja e no final do dia umas tripas no restaurante Abadia ou na Casa Aleixo (Ramiro, o seu último proprietário, foi do meu pelotão nas Caldas da Rainha, fazendo também o caminho das pedras da Guiné, bem retratado na sua correspondência de guerra exposta nas paredes do restaurante), uma referência da cidade que não resistiu à pandemia. Felizmente o Abadia ainda existe e recomenda-se.

E, ainda, assistir a um jogo de futebol no estádio das Antas, descarregando todo o stress de guerra.

O meu grande problema surgia sempre que pedia uma cerveja, a primeira porção do líquido era lançado ao chão (gesto “pavloviano”) para certificar se esta estava em bom estado (obrigatório na Guiné este teste,  dado que grande parte das cervejas chegavam já estragadas - se fizesse espuma estava boa,  se não fizesse estava estragada). Lá me desculpava ao proprietário com a chegada recente da Guiné, que nunca convenci. Embora gostasse de beber cerveja da garrafa, comecei a intercalar com finos para evitar problemas.

Quando estava já a habituar-me a esta nova vida (já não me perturbava os fogos de artifício e já não deitava cerveja para o chão, já não assustava os meus amigos com saídas inopinadas da mesa de um café após um foguete), chegou a hora do regresso à Guiné.

O meu conselho aos camaradas que estavam a preparar-se para também partirem de férias era: não façam isso! É muito doloroso, mesmo, mesmo muito doloroso o regresso, sabendo o que nos espera, muito diferente da primeira partida. Sem sucesso, claro!

Continua...
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 25 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22482: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XIV: " Bora lá... para a nova casa, Nhacobá" (Op Balanço Final)

(**) Em mail que nos enviou ontem, às 16h47, esclarecendo algumas dúvidas do nosso editor, o Joaquim Costa escreveu:

"Luís, obrigado pela ajuda. Tens toda a razão. Obviamente a avioneta era dos TAGP e só podia ser um Cessna.

"Quanto ao piloto sei que era alguém muito conhecido na altura, com uma grande pedrada, pelo que, de acordo com o que me dizes só pode ser o Pombo.

"A foto da malinha claro que não é a da época mas foi a que encontrei mais aproximada.

"Quanto às minhas férias foram em 1973, no mês de Julho/Agosto (?). 

"(,,,) Uma vez mais obrigado pelo toque profissional que sempre dás aos meus postes.

"Um grande abraço e até ao dia 11 de Setembro, na Tabanca dos Melros." (...)

segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22498: Notas de leitura (1375): “O Império com Pés de Barro, Colonização e Descolonização: as Ideologias em Portugal”, por José Freire Antunes; Publicações Dom Quixote, 1980 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Outubro de 2018:

Queridos amigos,
O então jovem jornalista e repórter José Freire Antunes lançou-se na ensaística, dizendo que ia descontentar muita gente, com as suas apreciações. É um ensaio conciso repartido por alguns marcos históricos dos Descobrimentos, incidindo sobre aquilo que António Sérgio chamava a política do transporte, uma economia em que entregávamos no comércio externo produtos apetecíveis e escravos e recebíamos novas mercadorias para reencetar o mesmo tipo de comércio, em ondas cíclicas. Fala predominantemente da ocupação africana e das ideologias coloniais entre a Monarquia Liberal, o Republicanismo e o Estado Novo, deteta as afinidades e os contrastes. Em caso algum, o jovem jornalista contextualiza a ascensão dos movimentos anticoloniais no mundo bipolar da II Guerra Mundial. É um documento datado, por vezes pretensioso e descabelado. Mais um texto que fica no nosso inventário sobre colonização e guerra em África.

Um abraço do
Mário



O Império com Pés de Barro

Beja Santos

José Freire Antunes é um jovem jornalista, redator do Diário de Notícias, colaborador de revistas e autor de um livro à época em que deu à estampa “O Império com Pés de Barro, Colonização e Descolonização: as ideologias em Portugal”, Publicações Dom Quixote, 1980. Diz o autor no seu currículo que antes do 25 de Abril militou no Movimento Popular Anticolonial. O jornalista, investigador, historiador e político José Freire Antunes faleceu em 2015, com 61 anos.

Explica as razões para esta dissertação ensaística: “Sistematizar algumas linhas de força da questão colonial portuguesa. Evoca a relação de Portugal com as possessões da África e da Ásia, da epopeia henriquina ao fim do Império. Reporta-se às conceções e às práticas coloniais da I República. Debruça-se sobre o colonialismo do regime de Salazar e de Caetano e dos seus mais comedidos adversários. Comenta o percurso ideológico, em relação às colónias, das várias famílias da Oposição. Escandalizará nalgumas deduções. Mas não cedeu. Não cedeu, em primeiro lugar, à mística ultramontana laboriosamente destilada pela ditadura. Não cedeu, em segundo lugar, às fábulas piedosas que trazem num temor reverencial uma parte dos intelectuais portugueses. Não condena, procura explicar, e dispensa tutores ou filiações”.

E entra de facto de punho em riste na questão colonial: “Portugal entrou em África como união e saiu como um sendeiro. Foi o primeiro a chegar e só obrigado por último partiu. Pequeno reino de fronteiras ganhas no século XIII, transformou-se, em nome da cruz e na ponta da espada, no senhor dos mares quinhentistas. Desvendou a face obscura da terra, e abriu à Europa a via láctea da revolução industrial. Mas, esfumada a glória imperial de um século, restou para sempre pobre e submisso no seu recanto peninsular”. É um olhar duro e puro sobre viagens, comércio, páginas de glória, de morticínios, foi a hora portuguesa, como jamais houve outra: “Em meados do século XVI as velas do débil Estado sem desafio se enfunavam numa imensidão de portos e de rotas comerciais, da África Oriental à Indonésia, do Golfo Pérsico à Birmânia. Qual império fugaz sobre areia, assentava o domínio português num arco vasto de feitorias, bordado em torno do Indico, de Sofala a Macau, sem frotas de guerra que lhe pedissem meças. Lisboa tornava-se o cais do mundo e a mais próspera cidade”.

Um império com pés de barro, pois. A extensão era insuportável para os meios e as arremetidas dos concorrentes, cada vez mais poderosos. Ficaram umas parcelas avulsas, o Brasil parecia a terra prometida e o capitalismo monárquico português uma constante. Era uma economia de troca, permanentemente depauperante, trocava-se café africano por algodão americano ou inglês. E no século XIX os intelectuais questionavam: Vale a pena estar assim em África? “Muitos concluíam que não. Exibia Oliveira Martins dois caminhos em alternativa: ou Portugal fazia de Angola uma boa fazenda à holandesa ou com bom senso deveria entregá-lo a quem o pudesse fazer. Jazia o Portugal de Oitocentos longe da comunhão da Europa culta, perdera mesmo a memória do zénite quinhentista. Sumidos os tempos da grandeza na arca da História, a exploração do Ultramar tornou-se inerte. As terras desvendadas com bravura e sangue jaziam como cascos velhíssimos ao sol tropical”. E José Freire Antunes cita Fernando Pessoa:

“Quem te sagrou criou-te português.
Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal.”


Segue-se a ocupação africana, outros impérios andam gulosos por terra, conflituam entre si, a Alemanha e a Inglaterra chegam a negociar, no prelúdio da I Guerra Mundial, a partilha de Angola, fala-se do ouro do Brasil, do Ultimato, e de como este fez estremecer uma classe política e até fazer nascer uma nova administração colonial. O autor estabelece as afinidades entre o pensamento da Monarquia Constitucional Liberal e a ideologia republicana, todos irmanados num império com chão sagrado, com a figura exemplar de Norton de Matos que formou um escol administrativo civil, em substituição do militar, fomentou a colocação de europeus, incrementou transportes e comunicações e quis transformar os indígenas em proprietários e cultivadores por conta própria. Montava-se a mitologia da presença portuguesa em África, e o autor descreve o que aproximava Salazar a Cunha Leal. Noutro termo de comparação, José Freire Antunes observa a evolução do conceito republicano até Mário Soares e noutra dimensão, a evolução dos comunistas até chegarem ao aplauso à luta anticolonial, em ambos os casos o autor releva contradições nos percursos seguidos.

Caminhamos para o fim do império, Marcello Caetano parece tirado de uma peça de Shakespeare, embrulhado em indecisões, incapaz de comportamentos frontais, sem nenhuma chave para solucionar um conflito em que os sucessivos movimentos de libertação possuíam melhor tecnologia e com cada vez mais apoios. Acresce que a tomada de posição internacional incluía já sérios apoios cristãos, sabia-se que tinha havido um massacre em Wiryamu, foi escondido, depois, inevitavelmente mostrado como um dano colateral. A evolução da guerra fez tilintar as espadas por duas vias: as figuras carismáticas e a crescente inquietação dos quadros intermédios das Forças Armadas que sentiam no pelo a escalada da guerra. Freire Antunes, fruto do tempo, estamos em plena guerra civil angolana, detém-se longamente sobre a situação angolana, a investida cubana e soviética, a atuação do Partido Comunista Português e de outras forças e os retornados. E assim termina este ensaio de juventude:
“A URSS ganhou em África o que perdeu na Europa. Os EUA sabem hoje, melhor que ninguém, quanto a aposta pragmática do MPLA teria sido mais rendosa para o Ocidente. Depois da lição do Vietname, a lição de Angola. Carter, Palme, Giscard, querem navegar hoje no desequilíbrio soviético, e na sua aparente incapacidade de explorar intensivamente as riquezas sem fim do solo angolano. Porque uma coisa é exportar um lança-granadas, outra é extrair petróleo. Na parte que nos toca, só muito lentamente, com o pragmatismo de Soares, o esforço de Eanes, coroado no ‘espírito de Bissau’, e o desejo do Eliseu em tornar Belém uma ponte preferencial, se recupera o desastroso passo em falso.
Mas não se diga, como certos cínicos, que Angola foi o fim sem grandeza do Império. Que grandeza pode ter um Império que não prepara em paz a sua própria morte?”.

Aproveito para recordar que neste blogue tenho procurado inventariar não só tudo quanto se escreve sobre a Guiné Portuguesa e a Guiné-Bissau como sobre a colonização e descolonização, é totalmente ininteligível o que se passou na Guiné, dos anos 1950 para os anos 1960, sem contextualizar toda a problemática do colonialismo e da ascensão das independências, o seu porquê e como.

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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE AGOSTO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22481: Notas de leitura (1374): Jorge Monteiro Alves: “No mato ninguém morre em versão John Wayne: Guiné, o Vietname português” (Lisboa, Livros Horizonte, 2021, 191 pp.) – Parte I (Luís Graça)

domingo, 29 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22497: A galeria dos meus heróis (43): De companheiros de infortúnio a amigos para a vida - III (e última) Parte (Luís Graça)


Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Candoz > Quinta de Candoz > 2020 > O tractor da casa, devidamente equipado com arco de segurança, na posição ativa, uma estrutura de segurança que pode evitar mortes e feridos graces por capotamento do veículo, o que já é obrigatório, para os tratores homologados, desde 1994. O arco é utilizado em tratores de dimensões mais reduzidas, enquanto a cabine é utilizadas em tratores de maiores dimensões, oferecendo adicionalmente proteção contra condições climatéricas, poeira, etc. Portugal ainda tem, infelizmente,  uma elevada ttaxa de sinistralidade com tractores e outras máquinas agrícolas. 

Foto (e legenda): © Luís Graça (2021). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


A galeria dos meus heróis > De companheiros de infortúnio a amigos para a vida - III (e última) Parte  
(Luís Graça) (*)


6A. Não me assustei com o 25 de Abril.
Bem, não foi bem assim. 
Não estava a contar, devo dizê-lo. 
Também tinha algo a perder e, se calhar, algo mais a ganhar,
Claro, foi um desgosto para a minha mãezinha.
Para mais, o seu filho mais velho (esse é que era o "morgado",
e que também era professor),
apareceu-lhe um dia, em casa, 
de barbas, cabelo cabelo comprido e cravo ao peito...
E com uma "flausina", de calças, e sem sutiã...
A minha mãezinha ia morrendo. 


Verdade se diga: ninguém a chateou por ser do Movimento Nacional Feminino, que acabou logo, dali a uns dias, por decreto da Junta de Salvação Nacional, onde estava o Spínola com quem eu, aliás,  até simpatizava um bocado. Os outros não me diziam nada, com exceção do Costa Gomes, que foi meu comandante-chefe em Angola, e que também era nortenho como eu. Flaviense, se não erro.

 E, de resto, a minha mãe já não dava aulas, tinha funções meramente burocráticas, na área da administração escolar. Logo que teve condições, pediu a aposentação. Percebeu que o seu tempo (e quiçá o seu mundo) haviam acabado. 

Infelizmente ainda não tinha netos para cuidar. Mas dedicou-se ao seu jardim. Tinha uma cultura de camélias. E abriu a capela  da família, do séc. XVIII,  ao povo da freguesia. Sempre ornada de flores... Achei um gesto bonito. E, afinal, inteligente. A capela até então estava vedada ao povo da aldeia. O que era nal visto. 

Tinha muito orgulo, a minha mãe,  na capela onde repousavam os restos mortais de alguns dos seus, nossos, queridos antepassados. Claro que já nenhum padre lá ia  dizer missa. Os padres também aprenderam com a história passada, e, para o clero, sobretudo o mais jovem, passou a ser de bom tom ser democrata. Como o meu amigo de Mafra, mas esse já era democrata antes do 25 de Abril. 

A chatice maior que a família teve, no pós 25 de Abril,  foi com os rendeiros. Poucos mas ingratos e velhacos, como dizia o meu pai.  Recusaram-se a pagar a renda em géneros. Ainda se usava, e vinha desde há muito,  o sistema da parceria agrícola (pagamento a meias ou ao terço, conforme os produtos eram da terra ou do ar). 

O meu irmão deu um jeito, resolveu o conflito. Era o "comuna" da família, até dava jeito naquele tempo ter um "comuna" na família.  Depois veio a lei do arrendamento rural e tudo se normalizou. Uns anos depois as terras ficaram sem rendeiros.  E a minha mãezinha voltou a ter que comprar batatas e cebolas no mercado. Mal dela se tivesse que viver das rendas dos rendeiros. E em anos ruins perdoávamos-lhes as rendas.

O meu pai também deu a volta ao texto. Extintos os organismos corporativos, foi "reconvertido". Os grémios deram origem a cooperativas. E tudo ficou como dantes. Ou quase. Não perdeu os seus hábitos, muito menos a sua tertúlia dos copos e dos petiscos. " E nunca quis mais saber da política!", confidenciou-me um dia.

Eu próprio também acabei por apanhar o barco. Deixei crescer o cabelo e passei a usar uma boina basca.  Preta. Descobri o meu lado anarquista. E, confesso, soube-me bem respirar o ar da liberdade que eu, em boa verdade, não tinha quando nasci. Apesar de toda a gente ter um rótulo, eu recusei-me  a revelar as minhas opções político-ideológicos. 

O Ravasco, muito mais à esquerda do que eu, quis meter-me no sindicalismo, mas eu disse-lhe que "não senhor, muito obrigado, há coisas para as quais não tenho jeito nem feitio nem vocação". Fiz a tropa, já chegara esse tempo em que andara arregimentado.

A princípio ele era o terror do "adjunto" e do "grupo das meninas", lá  na repartição  de finanças de Mafra Dois.  Tenho que o reconhecer, foi um gajo decente,  não houve saneamentos nem correu sangue, que era uma coisa que eu detestaria, no caso de ter acontecido... A minha consideração por ele subiu mais uns pontos. Mas secretamente deu-me gozo ver aqueles sacanas baixar a bolinha. De um dia para o outro, a sorte mudara. Não vale a pena um gajo cantar de galo e montar as galinhas,  esquecendo-se que quem faz pintos também faz galuchos e garnizés. Mas não tive tratamemto recíproco.

Ainda fui, com ele, no meu carro, a Peniche, ver a saída dos presos políticos. Não tinha lá ninguém meu conhecido. Mas também não concordava com as prisões políticas nem com a  censura à imprensa nem com a PIDE/DGS ... Nunca discutimos política lá em casa, mesmo que os meus pais fossem simpatisantes do Estado Novo. 

Levei também no meu Mini o Ravasco ao 1º de Maio, em Lisboa... Vi ao longe o Mário Soares e o Álvaro Cunhal.  Fiquei com respeito por eles. Pelo menos, foram homens que lutaram pela liberdade dos outros, dando o corpo ao manifesto.  Mas nunca tinha visto tanta gente junta, gritando palavras de ordem, de punho erguido.  Sempre tive a fobia das multidões. E daí nunca ter ido a desafios de futebol ou a touradas e, muito menos, a comícios.

Percebi cedo que "aquela não era a minha praia", preferia a Ericeira e a Foz do Lisandro... Foi mais para fazer companhia ao Ravasco, um gajo de quem a pouco a pouco comecei, sem saber bem porquê,  a gostar como amigo, ou até talvez como o irmão que me fazia falta, a algumas centenas de quilómetros de casa... 

Foi ele que me começou a tratar por tu. A princípio, custou-me, repugnava-me até, mas lá me fui habituando,  a pouco e pouco. Chamava-me agora "pequeno-burguês", com hífen, qualificativo que em nunca soube o que era. Interpelava-o: "É por gostar das coisas boas da vida ? De gajas ? Ou ter um velho Mini com jantes especiais?"... Nunca mo esclareceu... Sempre o achei, nesse aspeto,  um bocado moralista...

Em Braga irei conhecer o verão quente de 1975. Mas desse tempo não gostaria de   falar. Fiquei desgostoso com posições radicais que alguns amigos e conhecidos meus, de um lado e do outro, tomaram, na altura do PREC.  A começar por católicos que se sentavam na missa, ao meu lado. Aí, sim, temi que a coisa degenerasse em guerra civil. 

A minha mãe, que sabia muito da História de Portugal,  falava-me dos horrores que haviam sido as guerras liberais, fratricidas. Na minha família parece que houve tanto "malhados" ou "jacobinos", partidários do Dom Pedro, como "corcundas", seguidores do Dom Miguel, estes em maior número. Ou não estivéssemos no Minho. Daí eu não me admirar de o meu irmão ser "comuna do 26 de Abril". Houve muitos vira-casacas. Acontece em todas revoluções.

Mais tarde voltei a Ponte de Lima onde o meu mui amado tio-avô, solteiro,  e que não tinha herdeiros diretos, me deixou em doação uma quinta. Uma pequena quinta, maneirinha, boa de se fazer. Eu era o seu sobrinho-neto querido. Por causa da política, cortara relações com o meu mano, professor primário, esse, sim, o "senhor morgado", que ficou com as fracas terras da família e estoirou-as em pouco tempo...

Conciliei a vida das finanças . Fiz uma formação em vitivinicultura. Descobri os encantos da vida no campo.  E, para surpresa do Ravasco, não me casei nem fiz filhos (que eu saiba!), nem sequer escrevi um livro, mas plantei árvores e vinhas. E disso posso orgulhar-me.


7. Uns tempos antes, ainda em Mafra Dois,
o Bacelar havia-me apresentado ao padre, seu amigo, 
de que espantosamente já não recordo o nome. 
Simpatizei, de imediato, com ele. 
E depressa encontrei nele um homem 
capaz de ouvir (e sobretudo de saber ouvir) 
o relato dos meus “fantasmas” da guerra de África. 



No fundo, ele acabou por ser o “confessor”, mais do que o simples confidente ou ouvinte passivo, de que eu estava a precisar, ali, desterrado e amargurado. Na realidade, e até então, nunca falara da guerra a ninguém, não tinha sequer amigos íntimos com quem pudesse partilhar as minhas confusas e doridas memórias, da infância, do seminário, da guerra... A não ser, afinal, com o Bacelar...

Ao fim da tarde, antes do jantar, a meio da semana, tínhamos por hábito juntarmo-nos, eu, o Bacelar e o padre, no restaurante e café defronte ao convento. Tomávamos a bica, dávamos dois dedos de conversa, comentávamos as notícias dos jornais. Era uma espécie de tertúlia. Às vezes juntava-se à nossa mesa um ou outro jovem estudante, nosso conhecido, e/ou das relações do padre. 

Talvez já em março de 1974, não sei se antes ou depois do 16 de março, a revolta das Caldas, que nos alvoraçou a todos (, incluindo o Bacelar que lá estivera uns anos antes como 1º cabo miliciano), a conversa foi parar, sem eu dar conta, à Guiné e à guerra. Sei que me perdi e me abstraí do que se passava à minha volta. Não me apercebi sequer de quem estava na mesa do lado. 

O padre gostava de me ouvir e raramente me interrompia com um pedido para esclarecer este ou aquele ponto, e muito menos para manifestar a sua concordância ou discordância. Revelava, isso, sim, uma grande empatia, o que veio reforçar a confiança que ele me inspirava, logo desde o início. Em suma, sabia ouvir, o que era, quanto a mim, uma qualidade essencial num confessor. Os que eu tivera, até perder a fé, eram mais inquisidores do que confessores….

Fiquei também com a ideia de que ele estava minimamente familiarizado com o meio castrense. Não me admirava, estávamos numa terra habituada a lidar com a tropa. Talvez até ele tivesse sido capelão militar, antes de vir para aqui, conjeturei eu. Ou talvez ainda quisesse vir a sê-lo, a guerra do ultramar estava para dar e durar, pensava muito boa gente.  Estava, de resto, em idade para isso, para ser capelão. Teria cinco anos a mais do que eu, já a roçar os 30. Nunca lhe perguntei, por delicadeza. Virei depois a saber que alguns dos seus paroquianos eram militares da EPI ou seus familiares.

Se bem recordo hoje, a quase meio século de distância, o teor da conversa (na realidade, um longo monólogo) girava à volta dos prisioneiros na Guiné. Ali não havia prisioneiros de guerra, garantia eu, ou se os havia não eram tratados como tal. Portugal não estava, técnica e legalmente, em guerra com nenhum país soberano, pelo que não podia haver prisioneiros de guerra. Mas eu nunca lido a Convenção de Genebra. Os guerrilheiros do PAIGC quando aprisionados, no decurso da nossa actividade operacional, eram tratados como simples presos de delito comum. Ou seja, eram "turras". 

Sob tortura, davam-nos informações relevantes sobre o dispositivo militar do PAIGC no setor ou região, bases ou “barracas” (acampamentos temporários), população, nome dos comandantes e dos comissários políticos, bigrupos, armamento, trilhos, depósitos de armamento, etc. E, claro, eram forçados a servir de guias para nos levarem até ao “objetivo”. 

Sempre fora assim, ainda antes do meu tempo,  e eu, como todos os outros graduados, quer do quadro, quer milicianos,  fechávamos os olhos ou assobiávamos para o lado. “Siga a marinha!", dizíamos nós. Mas alguém tinha que fazer o trabalho sujo. Afinal, à guerra não era para meninos de coro.

Estava a contar-lhes, ao padre e ao Bacelar (a minha atenta audiência),  as peripécias de uma operação em que eu comandava a minha companhia, já com o meu capitão de baixa no hospital militar de Bissau. Havia outras forças envolvidas, e nomeadamente um pelotão de caçadores nativos e um pelotão de milícias que faziam parte do meu destacamento. A milícia seguia à frente a abrir caminho e  com o prisioneiro a servir de guia. Éramos dois destacamentos, A e B, a avançar, numa manobra de envolvimento, “em tenaz”, para o “objetivo”, uma “barraca”, um acampamento onde estaria um bigrupo, ou menos (talvez cerca de 40 homens), situado a montante de um rio e na orla de uma mata espessa, de tipo floresta-galeria, ao longo da margem de um rio.



Guiné > Cacheu > CCAÇ 3 > Barro > 1968> Um prisioneiro do PAIGC


Foto (e legenda): © A. Marques Lopes (2005). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 .


Creio que o prisioneiro era balanta, não falando uma única palavra de português. Era jovem e bem constituído. O alferes de 2ª linha, que comandava o pelotão de milícias, mantinha com ele um difícil diálogo em crioulo. Eu seguia no seu encalce, dez metros atrás, com o meu guarda-costas, e o homem da bazuca. Percebi que o prisioneiro há mais de uma hora fazia tudo para nos despistar ou denunciar a nossa presença, à medida que nos aproximávamos. 

Às tantas, fomos detetados por uma sentinela avançada, no alto de um bissilão,  que deu o sinal de alarme… O meu guarda-costas abateu-o, com um tiro certeiro, mas acabámos por ser flagelados por fogo de armas pesadas, nomeadamente de morteiro 81. De imediato, somos vítimas de um brutal ataque de abelhas. Na confusão, o prisioneiro ensaiou uma tentativa de fuga, mesmo algemado e preso a uma corda. O  milícia, que o conduzia foi suficientemente lesto para o impedir de se internar na mata, acabando por o alvejar no último segundo, já no fim de um dos  trilhos que levavam à “barraca”, e que ele bem conhecia, de certeza.

Pelo PCV (Posto de Comando Volante), a avioneta onde estava o major de operações, recebemos ordens para abortar o assalto, uma vez gorado o efeito surpresa e o aparente desnorte das nossas tropas, dispersas pelo ataque de abelhas e a “morteirada” do inimigo. 

Reagrupámo-nos na orla de uma bolanha, com o ferido a sangrar, enquanto os T-6 entraram em ação despejando bombas sobre o “objetivo”. E regressámos sob proteção do helicanhão, a quem eu chamava o meu anjo da guarda. Tenho uma dívida de gratidão para com esses rapazes da Força Aérea, em geral todos mais novos que nós, a "tropa-macaca".

Foi nessa altura que o comandante da milícia, espumando de raiva, salta sobre as costas do prisioneiro, como um verdadeiro felino, e rasga-lhe a coluna vertebral de alto a baixo, com a sua faca de mato bem afiada. O prisioneiro caiu redondo no chão mas não teve morte fulminante. Ainda vi alguém, da milícia,  dar-lhe um tiro de misericórdia na testa e cortar-lhe as orelhas, prática que, de resto, não era invulgar em circunstâncias com estas… Dizia-se que era um ritual guerreiro dos fulas, mas o Spínola deixou de achar graça, quando lhe meteram na cabeça que a guerra também se ganhava pelo charme, a "psico"...


Confesso que fiquei sem pinga de sangue, nunca tinha presenciado uma cena de guerra destas, nem nos filmes do faroeste onde era pressuposto os índios e os os cobóis tirarem o escalpe aos mortos. E não tive sequer tempo nem reflexos para impedir uma barbaridade daquelas. 

O mais grave é que, por cobardia ou para não arranjar chatices, omiti esta cena no relatório que ajudei a fazer com o comandante do outro destacamento. Oficialmente, o prisioneiro-guia fora morto quando intentava fugir… E o alferes de 2ª linha  era um grande operacional, muito bem visto (e protegido) pelo comando do batalhão do setor. Falava-se já na sua próxima gradução em tenente, indo ao encontro da política de Spínola de "africanizar" cada vez mais a guerra.

Estava eu a acabar o relato deste triste episódio da minha e nossa guerra, quando da mesa ao lado salta um jovem que se dirige ao padre e diz com veemência:

- É tudo mentira, padre!... Uma infâmia, uma calúnia!... Isso nunca poderia ter acontecido na nossa querida Guiné e muito menos por homens que envergam e honram a nossa farda. O senhor meu pai, coronel do estado-maior, está lá, neste momento, rezo por ele todos os dias à noite e  sei que ele nunca pactuaria com práticas indignas de um exército que defende a nossa pátria e os valores da nossa civilização cristã e ocidental!...

O padre, reconhecendo de imediato o jovem e temendo pela minha integridade física, arrastou-o com força para um canto da sala e fez tudo para o acalmar… Não contei os minutos, eu próprio estava perplexo e chocado com toda aquela violência verbal gratuita… 

Passaram-se talvez uns bons vinte minutos,  foi longa (e áspera) a conversa do padre com o jovem… De copo de água na mão, o jovem parecia, no entanto,  estar a acatar a autoridade do padre, que o tentava acalmar… Por fim, lá saiu da sala, em passo estugado, não sem antes me voltar a fulminar com o olhar. Por certo que fiquei marcado, pensei eu com os botões. Fiquei com a ideia de que, a partir daquele momento, tinha ganho mais um inimigo naquela maldita terra.

O padre regressou à nossa mesa, limpando o suor da testa, aliviando a pressão do cabeção no pescoço, ao mesmo tempo que pedia desculpa e tentava ensaiar uma explicação para aquele assomo de violência do jovem:


- É um paroquiano meu, excelente rapaz mas muito impulsivo. Conheço-o há uns anos, desde a adolescência. É filho de uma ilustre família de militares, naturais aqui de Mafra. Mas podemos considerá-lo “órfão de pai”, cresceu com o pai em África. Tem uma enorme admiração pela figura paterna e prepara-se para ingressar na Academia Militar no próximo ano letivo.

O Bacelar saiu comigo, mudo e calado. Nunca mais falámos do  assunto. Nem com o padre.


Epílogo


8. Infelizmente, o  Bacelar já não está cá, entre nós, para podermos continuar a manter esta espécie de monólogo a dois... Como o tempo passou, meu Deus!

O Bacelar morreu num estúpido acidente de trator agrícola, há uns anos atrás. Numa vinha, nova, que ele plantara e amanhara com uma paixão e um carinho que me comoveram, até às lágrimas, quando lá fui participar na primeira vindima, talvez por volta de 1997, se não erro, altura em que ele fez 50 anos. Tinha uma bela vinha com castas loureiro e alvarinho. "Era a menina bonita dos seus olhos"... Não tinha filhos, ficara solteiro...

“Contra todas as probabilidades”, como dizia ele, ficámos amigos para o resto da vida. E, no entanto, só convivemos, em Mafra Dois, menos de dois anos, separando-nos já no final do verão de 1974. Conseguimos a tão almejada transferência, eu para a Repartição Central do Imposto Complementar, em Lisboa, na Rua Braamcamp, e ele, para mais perto de casa, na cidade dos arcebispos e, mais tarde, para a sua terra.

Acabei por tirar o curso de direito, graças ao meu estatuto de trabalhador-estudante e beneficiando igualmente das regalias de antigo combatente. Cinco ou seis anos depois, no início dos anos 80, concorri a um lugar de técnico superior de 2ª classe no Ministério do Trabalho. Fui para uma área de que gostava, e tinha a ver com as condições de trabalho, incluindo a higiene e segurança e matérias afins. Ajudei a elaborar diversos materiais de divulgação e sensibilização, fichas técnicas, brochuras, cartazes, etc. Interessei-me, em especial, por sectores de elevada sinistralidade como as minas e pedreiras, a construção e obras pública, a agricultura e pescas.

Era um trabalho de algum modo pioneiro em Portugal, acabei mais tarde por ir parar, com as sucessivas reestruturações do Ministério, sito na Praça de Londres, a um instituto que antecedeu a atual ACT – Autoridade para as Condições de Trabalho.

Do sindicalismo das contribuições e impostos, já não tenho saudades. Aquilo descambou para o sindicalismo corporativo, que é o que temos hoje, ainda com alguma força reivindicativa, dos professores aos magistrados, dos estivadores aos condutores de longo curso, maquinistas de comboios, pilotos da TAP, e quejandos...São essas corporações que podem parar um país... Podem usar a bomba atómica, é certo, que é a greve e  a paralização de sectores-chave da economia, mas também têm que saber muito bem calcular e prevenir os seus efeitos de "boomerang"...

Com o tempo de tropa, e os 36 anos de função pública,  reformei-me. E hoje dedico-me aos cães e aos netos. Tenho um pequeno monte, não longe da terra onde fui parido, na freguesia de São João dos Caldeireiros, lá no cu de Judas, no "Alentejo profundo", com dizem os gajos politicamete corretos, e que eu não sei o que quer dizer... Deve ser a forma eufemística ou cínica de chamar-lhe a periferia das periferias, onde só há coutadas,  de meia dúzia de granjolas, e onde já chegou o pré-Saara, o deserto...

 Tenho pena de nunca ter feito o estágio de advocacia, de modo a poder exercer a profissão a tempo inteiro. Entrei para a função pública, tramei-me, não quis trocar o certo pelo incerto, eu que chamava "pequeno-burguês" ao bom do Bacelar.  Mas, pelo que vejo hoje, a profissão de advogado já não é o que era. E o idealismo de outrora desvaneceu-se. Como tudo, de quando eu era jovem e ainda sonhava com um mundo totalmente diferente daquele em que nascera, filho de mineiros e neto de ganhões. Só espero que não me dê o badagaio, um dia destes. Queria morrer lúcido, em paz comigo e, se possível, com os outros, o que se calhar é pedir demais. Vou ter que negociar com o meu gestor de conta do além.

Não, não casei com a rapariga de Beja, que estava à minha espera. Fartou-se e fez ela muito bem. Um dia encontrou na rua o primeiro namorado, do tempo de escola, e lá juntaram os trapinhos. Nada como a primeira paixão,  sempre ouvi dizer.  Só espero que ela tenha sido mais feliz do que eu fui.

Já do Bacelar não sei tantos pormenores do resto da  sua história de vida. Andou atrelado a uma francesa, no verão de 1974. Chegou a levá-la à sua terra, para escândalo dos pais. Aliás, andámos atrelados. Ela tinha uma amiga ou irmã,já não não me lembro bem. Despacharam os “copains”, que foram atrás das portuguesinhas de Lisboa. Vieram, num “dois cavalos”, ver a “révolution des oeillets”,a revolução dos cravos, ao vivo e a cores. Portugal passou a ser, nesse tempo,  uma espécie de jardim zoológico da Europa. Chegaram cá fotógrafos famosos, tiraram umas chapas e depois esqueceram-nos por mais umas boas dezenas de anos.

O Bacelar acabou por dar um salto até aos Alpes Franceses, já em setembro de 1974, na “rentrée”. As raparigas eram da região de Grenoble. Foi uma espécie de “summer school”, completa, mas sem direito a certificado em papel timbrado, com o “Capital” do Karl Marx, o “Kama Sutra”, os maços de cigarros “Gitanes”, e a garrafa de vinho do Porto Ferreirinha, enrolados nos lençóis encardidos. 

As tipas, finalistas de liceu, eram muito mais politizadas e "sabidas"  do que nós. O Bacelar era obrigado a recitar o “livrinho vermelho”, a bíblia do maoísmo, antes de ir para a cama com a sua “copine”. A que me calhou na rifa era mais dada à poesia e à música de contestação, o Brel, Moustaki, o Leo Ferré… Nada de Dassin ou Bécaud, que eram pirosos, mas os únicos que o Bacelar e eu conhecíamos… Enfim, melhorei substancialmente o meu francês de praia nesse tardio verão de 1974. Mas não acompanhei o Bacelar nas aventuras em França, país de resto que eu já conhecia, do trabalho duro, de sol a sol nas vinhas de Bordéus… Trabalho de escravo branco, diga-se de passagem.

O argumento, era o do costume, e fez-me recuar até à Guiné: “Bacelar, alguém tem de ter a cabeça fresca e  ir trabalhar”… Na realidade, eu sentia-me mal por andarmos com miúdas muito mais novas do que nós. Caí na realidade. Aquilo não tinha nada a ver comigo. E lá foram os três no Mini!... Não sei como o Bacelar conseguiu a proeza, de ir e vir… num Mini já com muitos milhares de quilómetros num contador…

O “açoriano”, o chefe, levantou-lhe um processo disciplinar por faltas injustificadas. Nesse tempo ainda havia livro de ponto. Intercedi pelo meu “amigo improvável”, usando (e talvez abusando de) as minhas funções, 
na altura, de delegado sindical, "eleito democraticamente", em lista única, de braço no ar (, e com quatro ou cinco votos contra, como seria de esperar). E sobretudo fartei-me de esgalhar para compensar o trabalho em falta do Bacelar. 

O tio-avô dele, já reformadíssimo, arranjou-lhe um atestado médico. E, com a “boa vontade de todos”, o caso foi abafado e a “ficha” do Bacelar voltou a ficar limpinha… Éramos um país de gente porreira… Pergunto-me hoje por que razão é que o fiz, por um tipo que afinal tinha poucas afinidades político-ideológicas comigo… Fi-lo simplesmente por amizade, que veio na sequência da nossa comum situação de “companheiros de infortúnio”, na Mafra Dois, como eu lhe chamava… Afinal, a política, a religião, a ideologia... não eram tudo na vida, foi a conclusão a que eu cheguei, da minha passagem por Mafra Dois.

Nesse final de verão de 1974, em que já nos tratávamos por tu,  descobri de repente que tinha ganho um amigo, na realidade o primeiro amigo do peito que ganhava em vida… Despedimo-nos, ainda em Mafra Dois, com um valente  "quebra-costelas"  e uma lágrima no olho... Prometemos visitar-nos uma ao outro,  em próxima oportunidade. O que só viria a acontecer em 1977, três anos depois, por ocasião do meu (e dele) 30º aniversário natalício. Ele veio até Lisboa, dessa vez.

Entretanto, em 1974, depois do 25 de Abril, o  "grupinho do adjunto e das meninas" andava de crista murcha, mas não escondia a sua hostilidade crescente para com o “sindicalista”, que era eu. O Bacelar apanhava por tabela, apenas por ser meu amigo...  

Disseram-me depois que, a partir do verão de 1975, voltaram a sentir-se de novo em casa. A paz voltou a reinar no convento, se bem que as alegres noitadas de sexta feira já não se voltaram a repetir, tal como as "ceias de Natal do fisco"… Com o início da informatização das contribuições e impostos e da modernização administrativa, incluindo uma nova gestão de recursos  humanos, começou a imperar uma certa moralidade e transparência...

Entretanto o “açoriano” fora promovido e regressara à sua ilha natal.   O jovem candidato  à Academia Militar  não sei se chegou a entrar. E do nosso amigo padre também não soube mais nada do seu paradeiro. E a história deste país, já quase com 900 anos,  lá seguiu o seu curso. 

Em Mafra Dois, não deixei amigos, infelizmente, mas quero aqui reconhecer que era terra de boa gente, e sobretudo trabalhadora. Embora eu nunca me tenha reconciliado com a "Máfrica", mas isso é outra história.

O mais triste desta história é a perda, afinal, de um grande amigo, morto estupidamente debaixo de um tractor que ele comprara, em segunda mão  e, por ironia, não obedecia às normas nacionais e europeias de segurança, faltando-lhe por exemplo as estruturas de segurança (nomeadamemte, o arco de segurança, rebatível)...

E eu que, sempre que lá ia, a chamar-lhe a atenção: "Oh!, Bacelar, olha que um dia destes ainda cais de um socalco e ficas debaixo do trator!"... Meu dito, meu feito!... Tal como ao do meu pai, não fui ao seu funeral... Só soube da triste notícia uns tempos depois, pelo irmão. 

© Luís Graça (2021)


Nota do autor: Neste conto, os nomes são fictícios, mas os factos são verdadeiros. Acontece que este país é demasiado pequeno.

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Nota do editor:

Postes anteriores da série:

27 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22489: A galeria dos meus heróis (41): De companheiros de infortúnio a amigos para a vida - Parte I (Luís Graça)