quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22568: Questões politicamente (in)correctas (54): Heróis... e heróis: um debate necessário, quando, numa guerra, estão em causa os direitos humanos (José Belo, jurista, Suécia)


Guiné > Região do Cacheu > Barro > CCAÇ 3 >  1968> Um "suspeito" do PAIGC..."Turra" não era "prisioneiro de guerra", à luz do entendimento das autoridades político-militares do território...

Foto (e legenda): © A. Marques Lopes (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de José Belo, jurista, o nosso luso-sueco, cidadão do mundo, membro da Tabanca Grande, que reparte a sua vida entre a Lapónia (sueca), Estocolmo e Key-West (Flórida, EUA). Foi nomeado por nós régulo (vitalício) da Tabanca da Lapónia. (Na outra vida, foi alf mil inf, CCAÇ 2391, "Os Maiorais", Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70); é cap inf ref; durante anos alimentou, no nosso blogue, a série "Da Suécia com Saudade"; tem mais de duas centenas de referências no nosso blogue.)


Data - quarta, 22/09/2021, 23:39 
Assunto - Heróis e heróis: um texto que busca debate



Tendo em conta a duração da guerra e o número de militares nela envolvidos nos três teatros de operações, foram muitos os actos de heroísmo nela praticados.

Como em todas as guerras, alguns procedimentos criminosos terão existido mas, pelo seu número e frequência, não foram representativos.

No caso da Guiné, elementos nativos integrados nas forças militares portuguesas salientaram-se pela sua extraordinária coragem pessoal e dedicação no cumprimento das missões que lhes foram atribuídas. São inúmeros os militares portugueses que a eles devem a vida.

Infelizmente entre alguns dos medalhados, ações do maior heroísmo são acompanhadas por frequentes procedimentos dentro de uma área que legalmente se pode considerar abrangida por sevícias ou mesmo crimes de guerra.

Não só sevícias, a seu modo justificáveis por praticadas no calor dos combates, como também praticadas a “frio” e em situações “resguardadas”.

O contraste com a generalidade do procedimento do PAIGC para com os prisioneiros portugueses foi marcante. Considerados pelo PAIGC como prisioneiros de guerra, foram tratados de acordo com as Convenções Internacionais.

O governo português não crendo caracterizar a situação na Guiné como uma situação de guerra,  recusava-se a aplicar tais Convenções aos seus prisioneiros o que permitiu uma impunidade quanto ao tratamento dos mesmos.

Impunidade que levou ao “desaparecimento” da maioria deles às mãos da polícia política, das milícias e tropas especiais formadas por naturais da Guiné.

O facto de estes actos serem praticados por naturais da Guiné ao serviço de Portugal sobre outros guinéus, não deverá levar a considerá-los menos graves, sob o perigo de uma “graduação” não aceitável por profundamente racista nos seus fundamentos.

No contexto do Direito Internacional referente aos conflitos armados, englobando as leis das Convenções de Haia e Genebra, Portugal sempre se referenciou como um país respeitador das mesmas.

Especificamente, a Convenção de Genebra define normas para as leis internacionais relativas ao Direito Humanitário Internacional que mais não são que um conjunto de normas que procuram limitar os efeitos dos conflitos armados tanto no respeitante a indivíduos como às populações não combatentes.

Tendo em conta as numerosas violações destas regras por alguns dos mais representativos (e díspares) países da cena internacional, alguns mais “pragmáticos” têm dificuldade em aceitar a existência de uma “moral internacional” apoiada em princípios jurídicos.

Mas, e com todas as reconhecidas limitações, é a única forma de defesa dos verdadeiramente mais desprotegidos, sejam eles prisioneiros de guerra, populações civis em áreas de combates,ou refugiados.

Uma nítida demarcação entre valores civilizacionais e a lei do mais forte.
Um abraço do J.Belo
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Nota do editor:

Último poste da série > 6 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21422: Questões politicamente (in)correctas (53): Doação / colheita de órgãos para transplante em Portugal: esclarecimento para tranquilizar o nosso amigo Cherno Baldé, que está em Bissau, bem como os guineenses muçulmanos que utilizam (ou podem vir a utilizar) os nossos hospitais públicos ou privados

Guiné 61/74 - P22567: Convite (15): Congresso Nacional de Antigos Combatentes, dia 30 de Outubro de 2021, entre as 9 e as 13 horas, Auditório Marista, Carcavelos, Cascais



ASSUNTO: CONGRESSO NACIONAL DE ANTIGOS COMBATENTES

- Auditório do Colégio Marista, Carcavelos

- A realizar no dia 30/10/2021, entre as 09h00 e as 13h00

Sou um dos mais jovens combatentes da Guerra Colonial e faço parte de um grupo de 6 combatentes, sendo 2 da Marinha, 2 do Exército e 2 da Força Aérea, eleitos numa concentração nacional de Antigos Combatentes, em Setembro de 2018.

Sempre andamos na frente do combate em prol do Estatuto do Antigo Combatente, recentemente aprovado pela Assembleia da República e publicado a 20/08/2020.

Assim, no seguimento da publicação do EAC, do qual não concordamos totalmente, decidimos promover este Congresso Nacional de Antigos Combatentes, para dar voz aos combatentes.

Abraço de combatente.

JOSE MARIA MONTEIRO... um dos mais jovens combatentes, (c/16 anos)

Cascais

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Nota do editor

Último poste da série de 10 DE OUTUBRO DE 2017 > Guiné 61/74 - P17843: Convite (14): Palestra subordinada ao tema "Terrorismo", a ter lugar no Salão Nobre do Comando do Pessoal do Exército, antigo Quartel General do Porto, Praça da República, no próximo dia 13 de Outubro de 2017, pelas 15 horas

Guiné 61/74 - P22566: Os nossos regressos (39): Regressei em 1972 da guerra Guiné mais queimado por dentro do que por fora (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616 e CART 2732)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616 / BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 22 de Setembro de 2021, falando-nos do seu regresso da Guiné:


O REGRESSO (1)

Regressei em 1972 da guerra Guiné mais queimado por dentro do que por fora já que quando passados dois meses tentei estudar para fazer o exame de aptidão à Universidade, me pareceu que não conseguia fixar as matérias em estudo.

Desiludido com a minha perda de capacidades e consciente de que, tendo saído da tropa, não poderia continuar a deixar arrastar os dias ao sabor das quatro estações depois de viver em África sob as estações secas e das chuvas e na sucessão dos dias calmos, intercalados por alguns dias agitados, com tiros, com granadas, com bombas, que me despertavam desse torpor da melhor ou da pior maneira. Sim porque muitos de nós gostávamos da guerra sem mortos nem feridos para quebrar a monotonia em que vivíamos.

Como oficial miliciano tinha um vencimento com que nunca tinha sonhado e porque somente podia enviar dois terços para a Metrópole sobrava-me muito dinheiro para alimentar diversões e vícios que criei para entreter os dias. Tinha parado no tempo e porque não morri na guerra, como outros que tiveram esse infeliz destino, dei-me conta que ainda poderia ter um longo futuro para gerir à minha frente. Teria que arranjar trabalho. Por percalços relacionados com a minha independência e rebeldia falhei a minha entrada em dois bancos que o meu pai, um negociante honesto com boas relações com bancos e com um industrial de cortiça de Lourosa, me garantiam, sendo um a Caixa Geral de Depósitos que nesse tempo até pagava bem.

Para não me tornar num indigente a viver às sopas dos meus pais, em fins de 1972, decidi concorrer à Caixa de Previdência e dos Serviços Médico Sociais do Porto que tinha aberto um concurso de entradas, com formação e provas e dava prioridade a ex-combatentes do ultramar. Éramos quatro ex-militares e duas jovens que tinham acabado de tirar um curso superior. Fizemos boas provas de ingresso e todos fomos admitidos. Dentre esses camaradas criei uma relação mais próxima com o Barcelos Monteiro por afinidades várias, éramos ambos transmontanos, com formação liceal na área de letras, tínhamos alguma curiosidade política e literária, ele bastante extrovertido, eu um pouco introvertido.

No ano de 1973 houve mais uma farsa de eleições para a Assembleia Nacional, a que a Oposição concorreu muito limitada na campanha eleitoral sem poder falar da censura da pide, dos presos políticos,   da guerra colonial, de outros assuntos que eram tabu para o regime.

Com pouca formação política e sem estarmos inscritos em qualquer partido, mas porque sentíamos o ambiente político opressivo em que se vivia, participamos em algumas manifestações e comícios da oposição, como apoiantes, e por vezes tivemos que fugir à polícia como os outros.

O ano foi passando, entre calmo e agitado, alegando, com razão, falta de liberdade para fazer campanha, a Oposição Democrática desistiu das eleições, como no geral acontecia e a União Nacional ocupou todos os lugares da Assembleia da República, com a benção da Igreja e de Salazar, esse santo hipócrita, que já estava no céu dos pardais.

Ganhava-se pouco, o trabalho, com tarefas repartidas, tipo trabalho à peça, era pouco interessante. Na secção para onde entrei, com cerca de 30 pessoas a maior parte mulheres, era chefiada por um homem, inteligente, competente, mal alinhado com o regime, por vezes bem humorado mas com uma pancada própria que o levavam a ter atitudes pouco racionais. Tinha um adjunto com quem não se entendia bem e para o castigar, tinha-lhe distribuído um trabalho, que consistia em carimbar documentos todos os dias, à Mariana que trabalhava junto dele a dactilografar-lhe os ofícios e a fazer outros trabalhos, raro era o dia em que não a fazia chorar a recriminá-la com ou sem razões. Em toda a instituição trabalhavam sobretudo mulheres sendo porém os chefes praticamente todos homens.

As mulheres casadas algumas eram pequenas burguesas quando os maridos tinham rendimentos bastante superiores aos delas, outras equilibravam os vencimentos com o dos maridos para pagarem as prestações da casa, do carro e para alimentarem a família. As raparigas solteiras suspiravam, algumas bem alto, pelos namorados que estavam no ultramar a lutar pela Pátria uns e outros pela vida. Havia a Rosa, era casada e tinha duas filhas, a mulher mais generosa e solidária que já conheci, frequentemente a ser chamada ao guichet para tratar de assuntos de muitos amigos e amigas, pobres ou ricos que tinha por toda a cidade e arredores. Ajudava igualmente os colegas em tudo o que podia e no trabalho sempre activa e faladora, distribuia boa disposição por todos. Pouco convencional era capaz de se sentar nas minhas pernas ou de outro colega, para escândalo de algumas mais conservadoras, outras vezes fazia-lhes perguntas que as embaraçava, do género nunca fizeste amor dentro do carro e terminava dizendo que era muito bom. Um dia já depois de almoço acercou-se de nós, a Amélia, uma colega da minha idade, casada, com um filho, vinha nervosa e disse-nos com tristeza, pedindo segredo, que de manhã tinha ido fazer um aborto. Dramas que aconteciam nesse tempo, ainda hoje talvez com mulheres de todas as classes e condições sociais.

No final desse ano as senhoras organizaram uma festa de Natal numa pequena sala contígua à secção, com enfeites, com música, boa comida e alguma bebida, memorável.

Em Abril de 1974 dá-se a Revolução dos Cravos, com que eu tanto tinha sonhado que já não me parecia que fosse possível. Há todo um povo que adere se levanta, e procura os novos caminhos e o sabor da liberdade que desconhece.

A propaganda politica surge por toda a parte, nas praças, nas avenidas, nos locais de trabalho, nas cidades nas aldeias, com slogans da Revolução Francesa, das revoluções comunistas, Russa e Chinesa, é sobretudo a esquerda que no antigo regime estava amordaçada que agora fala e grita bem alto.

As chefias dos serviços públicos, que eram afectas ao regime caído, por convicção, por obrigação ou necessidade, ficaram apáticas e temerosas. Nem todas, pois um conhecido Chefe de Serviços da Instituição, que segundo testemunhas de crédito, recebia pides regularmente no seu gabinete, filiou-se num partido de esquerda e em Julho, soube depois, pois eu estava de férias, encabeçou uma manifestação em direcção ao Quartel-General do Porto, para exigir o saneamento dos fascistas.

O meu amigo Barcelos Monteiro adere logo, de alma e coração, a um partido vermelho e não se cansa de procurar convencer os outros das verdades em que acredita. Está sempre presente em comícios e manifestações, onde procura conquistar também o coração e o calor de algumas camaradas, a revolução sexual, de vento em popa nos outros países da Europa, estava-se a expandir finalmente em Portugal.
Vende o jornal do partido à porta do trabalho e nas ruas e praça mais próxima.

Durante muito tempo insiste comigo para o acompanhar, eu vou resistindo, os anos de tropa e de Guiné tinham esmorecido o meu fervor revolucionário, estava diferente, mais maduro e tinha reflectido muito sobre acontecimentos mundiais que desvirtuavam os amanhãs que cantam. No entanto pela insistência dele ou por curiosidade acabo para aderir. Nunca me senti bem dentro desse partido pois cedo me apercebi que as ideias e opiniões dos militantes de base não eram escutadas. A direcção partidária pensava por todos, os outros não tinham esse direito. Nós simplesmente tínhamos que obedecer às ordens emanadas superiormente, encher os comícios, bater palmas a tudo o que os dirigentes dissessem e fizer todo o trabalho físico que nos fosse determinado. Saí pelo meu pé, um ano depois, entregando uma carta de demissão que nunca teve resposta.

Com o passar dos anos, pela comunicação social e por conversas com militantes doutros partidos. apercebi-me que em relação à democracia interna, todos eles duma forma mais ligeira ou acentuada, eram semelhantes.
No antigo regime ouvíamos falar da democracia, o melhor dos regimes políticos, como uma miragem.

A democracia criada em Atenas dava direitos iguais a todos os cidadãos mas atente-se que, os metecos (estrangeiros) e os escravos, em número muito superior aos cidadãos livre , não tinham quaisquer direitos.

A nossa democracia, nascida com a Revolução dos Cravos, dá voz aos partidos que interpretam a seu bel-prazer a vontade dos seu seguidores, por isso ela definha, vejam-se as votações.
Contudo eu prefiro a democracia a qualquer outro regim , devia ser mais participada pelos cidadãos e respeitada pelos políticos.

Este texto já vai longo, longo demais, para quem o quiser ler. Terá continuação se se achar que poderá interessar a alguém.

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Nota do editor

Último poste da série de 31 DE JULHO DE 2020 > Guiné 61/74 - P21213: Os nossos regressos (38): Comando e CCS/BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70): uma longa viagem de nove dias, no velhinho T/T Carvalho Araújo, de 16 a 26 de junho de 1970, com um dia no Funchal (Fotos: Otacílio Luz Henriques)

Guiné 61/74 - P22565: Notas de leitura (1383): "Um caminho de quatro passos", de António Carvalho (2021, 219 pp.): apontamentos etnográficos para o retrato da nossa geração, de antigos combatentes - Parte I (Luís Graça)


Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Candoz > Quinta de Candoz >  2011 > O velho carro de bois, centenário, típico da região de Entre Douro e Minho. Não existe mais, hoje, a não ser as rodas...Símbolo de um mundo que desapareceu... E com ele,  uma certa ruralidade e rusticidade do homem português, características socioantropológicas sem as quais muito possivelmente não teria sido possível manter a nossa longa guerra colonial / guerra do ultramar (1961/74).

 Foto (e imagem): © Luís Graça (2011). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Para além das pequenas histórias relacionadas com a sua experiência como furriel miliciano enfermeiro na Guiné, durante dois anos (BART 6520/72, Mampatá,1972/74), o que me encanta, no livro do António Carvalho (, foto atual à esquerda), são algumas das suas memórias da infância, passada em Medas, Gondomar, num ambiente rural que não era muito diferente daquele que muitos de nós conheceram, de norte a sul do país. (*)


São apontamentos, observações, registos, relatos, pequenos retratos e histórias de pessoas da família e vizinhos. etc., que considero de interesse etnográfico ou documental para se poder conhecer um pouco melhor a infância e a adolescência da nossa geração, aquela que, nascida ao longo dos anos 40 e ainda no início dos anos 50 (,como é o caso do autor), iria depois fazer a guerra colonial / guerra do ultramar, de 1961 a 1974.

A maioria de nós nascemos em aldeias ou pequenas vilas, e temos em comum muitas dessas vivências ou experiências, a começar pelo trabalho no campo ainda em tenra idade. Em 1950, quando o António Carvalho nasceu, a nossa população activa era de  3.2 milhões, distribuindo-se pelo sector primário (ou seja, agricultura, silvicultura e pescas) (50%), sector secundário (24%) e sector terciário (26%). 

Aqueles de nós cujos pais (ou tios, avós, etc.) eram agricultores, sabiam pelo menos o que era a segada (ou ceifa), a vindima, a apanha da batata, a rega do milho, a apanha da azeitona, etc. Enfim, sabiam donde vinha o trigo, o centeio, o milho, os legumes, o leite, o toucinho, o salpicão… Sabiam distinguir um carvalho, um castanheiro... Sabiam como se fazia o pão. Participavam da matança do porco. Iam ao “monte” ou às “sortes” apanhar carqueja, pinhas, caruma… Alguns inclusive sabiam conduzir os bois... E a sua vida era pautada pelo ritmo circadiano das estações do ano e sobretudo dos solstícios (o do verão e do inverno). (**)

E, mesmo depois da escola, aos 7 anos, não havia “férias grandes” (privilégio de alguns dos “meninos da cidade”), que, no campo, o trabalho do menino era pouco mas quem o desperdiçava era louco…Menino que  só tardiamente descobriria a cidade, a praia, o mar... (***)

2. O próprio topónimo Medas poderá estar relacionado com as “medas de palha” (pág. 13), embora na terra do António Carvalho fosse mais comum chamar-lhes “rolheiros”.

De resto, o léxico usado pelo autor também já não é frequente ouvir-se (nem ler-se( e os nossos filhos e netos têm seguramente que recorrer ao dicionário para entender, termos e expressões tais como “paveias”, “vencilho”, “broa”, “restivada”, “malhada”, “chadeiro”, “tarara”, “colmeiros”, “canastro”, “juntas de bois”, "soga", "carros de milho", etc.

(…) "O trigo e o centeio, semeados entre dezembro e janeiro, em junho eram segados e transportados para a eira onde o grão acabava de secar. A segada era um trabalho árduo que decorria sempre sob muito calor, normalmente feito por mulheres, levando cada uma o seu eito e deixando para trás as paveias que outra mulher ou homem se incumbia de amarrar, uma a uma , com um vencilho feito de meia dúzia de caules do mesmo cereal.

"Ao meio da manhã e pela meia tarde algum rapazinho da casa havia de chegar com uma cesta onde raramente havia mais do que broa , vinho e azeitonas, e era esta a hora de reparação de energias e de alguma consolação." (…) (pág. 12).


E já agora, leia-se mais um bocado da descrição das operações associadas à segada (ceifa) do trigo e do centeio:

(…) "Nesse dia ou no seguinte as paveias eram levadas, no carro de bois, para a eira onde se enrolheiravam e assim esperavam mais alguns dias de sol até serem malhadas, quando já o grão se separava facilmente da palha. Nesses campos de cereal de inverno ainda se conseguia semear , em julho, feijão fradinho a que chamávamos a restivada

Na minha freguesia, às medas de palha era mais comum chamar-se-lhes rolheiros, pese embora haver autores que consideram o topónimo Medas derivado precisamente de medas de palha. Nas malhadas cada pessoa batia com os molhos ou paveias sobre o chadeiro do carro de bois, tantas vezes quantas as necessárias para que nem um daqueles preciosos grãos ficasse preso. Depois, o cereal era limpo numa tarara e levado para casa onde se guardava em grandes caixas de madeira com três metros de comprimento por um de largura e altura da cintura de um adulto."(…) (pág. 12).

O trigo, o centeio e o milho eram fundamentais na alimentação dos portugueses. No Norte predominava a broa de milho com mistura de centeio, cozida semanalmente em forno a lenha. No Sul usava-se mais a farinha de trigo.

Capa do livro
(…) “Numa ou duas caixas ficava o centeio, numa outra ficava o trigo, o cereal mais nobre, panificado só em ocasiões mais festivas. A farinha de centeio era sempre consociada com a de milho, numa proporção de uma para três partes, respetivamente, nas cozeduras da broa, aquelas que se faziam na maior parte do ano. Mas nada se perdia nas casas de lavoura.” (…)(pág. 14).


De facto, aqui nada se perdia: nesse tempo, com a palha de centeio faziam-se os colchões das camas das famílias, palha que era substituída, todos os anos, antes da chegada do inverno.

(…) “Os molhos da palha de centeio, depois de malhados, eram desenvencilhados e passados por uma forquilha que se espetava no chão pelo cabo a fim de serem limpos da parte folear e de novo atados em molhos do tamanho de uma braçada a que chamávamos colmeiros. Eram depois estes colmeiros utilizados na renovação da palha de todos os colchões da nossa casa e os restantes vendidos a quem não semeava centeio e deles precisava.” (…) (pág. 14)

Havia “a meda grande, feita da palha de trigo e de centeio”, que servia para pensar o gado em estábulo, no inverno, 
quando não havia erva no campo; e ainda “outras medas 
mais pequenas, a que chamávamos rolheiros de palha de milho, 
que eram feitas nos campos, depois de se removerem as espigas 
dos caules”, igualmente importantes na alimentação do gado.

Ora “essas medas, as de palha de milho disseminadas pelos campos e a meda mestra, de palha de trigo e centeio, erigida altaneira junto à eira e ao canastro, eram formações de uma arquitetura móvel demonstrativa, pelo sua quantidade e volume, do tamanho de cada casa de lavoura.” (pág. 14).

3. Muito interessante a história da origem do cemitério de Medas (“O sítio das quatro casas", pp. 33/34), que só muito tardiamente, em finais de 1890, foi construído, graças a uma comissão de seis medenses onde estava representadas as figuras gradas da terra, incluindo o pároco, o professor, o regedor e o presidente da Junta de Paróquia. E logo ali foram construídos os primeiros quatro jazigos funerários… 

Ficavam, assim, representadas na nova necrópole as quatro classes sociais da freguesia: “as que tinham três juntas de bois, as de duas juntas e as que possuíam só uma ou nenhuma” (pág. 34).

Na realidade, a estratificação social daquela comunidade camponesa tinha a ver com a riqueza de cada família, sendo esta “aferida pelo número de juntas de bois que possuía e pelo número de carros de milho e, nessa altura, nas Medas, não havia ninguém mais rico que o lavrador mais abastado”. 

De acordo com dados recolhidos pelo autor, e relativos ao ano de 1922, “em Medas, havia cinquenta lavradores com uma junta de bois, vinte com duas e apenas cinco com três.(…) (pág. 69).

Tirando o período de 1890 a 1930 (correspondente à emigração para o Brasil, a I Grande Guerra, a pandemia de "gripe espanhola" e a crise económica dos finais dos anos 20), a população de Medas tem vindo a crescer, desde  o segundo triénio do séc. XX: 990 (em 1920) e 2433 (em 1991). Tem vindo, naturalmente, a decrescer (e a envelhecer) no séc. XXI: 2129 (em 2011), dos quais 16,7% com 65 ou mais anos. O concelho, Gondomar, faz parte da Área Metropolitana do Porto.

(Continua)

PS - Selecção de excertos, itálicos e negritos, da responsabilidade do editor LG.
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Fonte: António Carvalho - Um Caminho de Quatro Passos. Rio Tinto: Lugar da Palavra Editora, 218 pp., ISBN: 978-989-731-187-1.

O livro pode ser adquirido, ao preço de 15,00 Euros (portes incluídos, no território nacional ou estrangeiro) Contactos do autor, António Carvalho, Medas, Gondomar

Email: ascarvalho7274@gmail.com | Telemóvel: 919 401 036
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Notas do autor:

(**) Vd. poste de 11 de setembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22533: Notas de leitura (1380): "Um caminho de quatro passos": temos um novo escritor, o António Carvalho passa o teste, e espero que seja com louvor por unanimidade e aclamação dos seus leitores (Luís Graça)

(...) Muitos de nós, antigos combatentes, que nasceram em aldeias ou pequenas vilas, do interior do país, vão-se reconhecer neste retrato da infância e adolescência do autor. Em boa verdade, é o retrato da nossa geração... Muitos de nós, para não dizer a grande maioria, que nasceu, cresceu e viveu no campo até à idade de ir para a tropa. Uma geração que: 

(i) nasceu de parto com dor, em casa, sem assistência médica;

(ii) foi batizada segundo os cânones da Santa Madre Igreja Católica, Apostólica, Romana;

(iii) foi alimentada a caldo e broa, e alguns provaram pela primeira vez o leite, ainda não pasteurizado, da vaquinha;

(iv) assistiu ao espetáculo, hoje cruel, da matança do porco (, fabulosa a sua reconstituição, em "O festim", pp. 20/22):

(v) aprendeu as primeiras letras à luz do candeeiro a petróleo e, muitas vezes, ia descalço até à escola da vila, com os sapatos de ir à missa atados ao ombro;

(vi) vivia em casas sem saneamento básico, sem eletricidade, muito menos rádio, telefone e televisão;

(vii) foi a 1ª geração de portugueses a ser vacinada contra algumas das mais temíveis doenças infetocontagiosas que no passado causaram elevada morbimortalidade;

(viii) passou a dispor, a partir de 1945, da bala mágica, a penicilina;

(ix) só conheceu a capital do país, quando embarcou para a guerra da Guiné, que a mobilidade espacial (ainda era um luxo)...

(x) mas começou também a perceber a importância da educação como forma de mobilidade social, ou seja, para se poder sair do círculo vicioso da pobreza;

(xi) num tempo em que a democratização do ensino (e a universalização da proteção social) só começaria a chegar no final do consulado de Marcelo Caetano;

(xii) é também a geração que sai, das suas casas da aldeia e das vilas, para fazer a última guerra do Império, ou para emigrar, a salto, para o Eldorado transpirenaico. (...)

Guiné 61/74 - P22564: Parabéns a você (1992): Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto do CMD AGR 16 (Mansoa, 1964/66)

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Nota do editor

Último poste da série de 21 de Setembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22559: Parabéns a você (1991): Cor Art Ref Alexandre Coutinho e Lima (CART 494 / COM-CHEFE do CTIG e COP 5 (Ganjola, Gadamael, Bissau e Guileje, 1963/73) e José Macedo, ex-2.º Ten Fuzileiro Especial do DFE 21 (Bissau, 1973/74)

quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22563: (In)citações (193): 125 exemplares do livro que publiquei há um mês, já estão despachados, já pedi mais 25 exemplares que espero receber em breve (Carlos Silva, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2548/BCAÇ 2879)


1. Mensagem do nosso camarada Carlos Silva, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2548/BCAÇ 2879 (Jumbembem, 1969/71), com data de 17 de Setembro de 2021:

Amigos e Camaradas

125 exemplares do livro que publiquei há um mês, com apresentação no dia 14 de Agosto na Tabanca dos Melros em Fânzeres, Gondomar, já estão despachados, o que para mim já é um êxito.[*]

Hoje já pedi para a Editora 5 Livros mais uma reedição de 25 exemplares que espero receber em breve.

Assim, quem estiver interessado em adquirir, pode fazê-lo para o meu mail csilva2548@gmail.com.
Preço: 10€ + 5€ portes de correio.

O livro está quase ao preço de custo.

Com um abraço
Carlos Silva

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Notas do editor:

[*] - Vd. poste de 18 DE AGOSTO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22466: Agenda cultural (781): O livro da autoria do nosso camarada Carlos Silva, "Os Roncos de Farim", foi apresentado no dia 14 de Agosto no habitual convívio da Tabanca dos Melros

Último poste da série de 15 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22544: (In)citações (192): "António Carvalho, foi bonita a festa, pá!" (Joaquim Costa, ex-fur mil arm pes inf, CCAV 8351, Os Tigres do Cumbijã, 1972/74)

Guiné 61/74 - P22562: Historiografia da presença portuguesa em África (281): A pacificação da Guiné de 1834 a 1924 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos,
Por determinação do Governador Vellez Caroço, o Tenente-Coronel de Infantaria João José de Melo Miguéis lança-se numa explanação sobre os principais eventos indicadores do princípio da "pacificação", encetado a partir de 1834 e tendo o seu termo em 1924. Seria a primeira vez que a nível oficial se produzia uma listagem de acordos, convénios e tratados entre a soberania portuguesa e as chefias indígenas. Imprevistamente, o Coronel Miguéis resolve por sua conta e risco pronunciar-se sobre a rebelião de Abdul Indjai, que nos vem dizer não está conforme outros relatos, seguramente este oficial do Exército intuía que a detenção e o exílio do régulo do Oio podia empalidecer os atos militares de Teixeira Pinto, e daí as considerações um tanto barrocas e atenuantes que ele profere, como se lerá adiante. Hoje, está claramente demonstrado que Abdul Indjai, independentemente da sua bravura pessoal, cometeu desmandos incríveis e deixou de praticá-los com os seus mercenários, praticaram-se pilhagens e raptos em toda a península de Bissau. E desmandou-se como régulo do Oio, aterrorizando e impondo impostos como direito de saque. Esta é a verdade dos factos.

Abraço do
Mário



A pacificação da Guiné de 1834 a 1924 (2)

Mário Beja Santos

Como é sabido, a Biblioteca da Sociedade de Geografia possui uma secção de Reservados onde tenho tido a felicidade de encontrar algumas peças preciosas. Houve agora oportunidade de regressar a este filão de manuscritos, e deparou-se-me um dossiê intitulado Res 1 – Pasta E-21, que se intitula Apontamentos Relativos às Campanhas para a Pacificação da Guiné de 1834 a 1924, compilados pelo Tenente-Coronel de Infantaria João José de Melo Miguéis, Bolama, com data de 6 de agosto de 1925, Repartição Militar da Colónia da Guiné, 1.ª Secção. É então Governador Velez Caroço.

Trata-se de um inventário minucioso, o oficial procurou esmerar-se, manda o bom-senso que não se vai escrever por atacado toda a sua narrativa, e não há nada como explicar porquê. Começa por nos dizer que desde a descoberta da Guiné até ao ano de 1834 não encontrou nos arquivos da Repartição quaisquer elementos respeitantes a operações militares.

Como vimos anteriormente, é um elenco extensíssimo, mas de extrema utilidade para quem investiga todo este período da pacificação, já possuímos elementos com certa vastidão nesta matéria, como é o caso do admirável levantamento feito por Armando Tavares da Silva em Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926, Caminhos Romanos, 2016.[*]

O Tenente-Coronel Miguéis mantém uma narrativa neutra até chegar à prisão de Abdul Indjai, aí o seu coração balanceou, quer proceder a uma certa advocacia, seria possível traição daquele que foi o braço-direito de Teixeira Pinto, e temos agora um quase solilóquio à procura de explicação para essa estranha rebelião do régulo do Oio, damos-lhe a palavra:
“Revolta-se contra quem? Contra o governo da Província, representado por Henrique Sousa Guerra, seu companheiro de armas, seu comandante durante o período da doença de Teixeira Pinto, e portanto seu amigo? Não, a rebelião de Abdul Indjai não representa uma rebelião contra o domínio português no Oio, seu regulado, deve representar qualquer coisa que ignoro, mas suponho ser forjada pela intriga que campeia em toda a província da Guiné.
João Teixeira Pinto, se te pudesses levantar do túmulo e lançar em rosto as vilanias daqueles que tem adulavam movendo a intriga, por certo Abdul Indjai, teu companheiro e amigo, não mandaria disparar um único tiro contra as forças portuguesas; correria a abraçar-te e apesar da sua cor e raça serem diferentes chorariam ambos a infeliz pátria que impulsionada pela vil traição de alguns dos teus filhos, que nada produzem, deixa muitas vezes no esquecimento aqueles que por ela sacrificaram o seu bem-estar, o seu sangue e a sua vida.
Por vil intriga, tu, Teixeira Pinto, meu camarada, amigo e condiscípulo, não foste galardoado pelo grande serviço que prestaste à Guiné, na ilha de Bissau. Sofredor como eras, contentaste-te com a dispensa do exame para o posto de major. Não serias tu um general em vez de um major? Tenho fé que apagadas as paixões mesquinhas, num futuro não muito longe, a História há de fazer-se e justiça ser-te-á feita assim como ao teu companheiro Abdul Indjai”
.

E pondo termo à exaltação pessoal, preito de homenagem ao camarada e amigo Teixeira Pinto, lança-se na documentação existente, ela é de uma grande importância, não encontrei até hoje nada de tão substancial para descrever os acontecimentos:
“Não se encontra na Ordem à Guarnição a nomeação de qualquer força para combater as hostes rebeldes de Abdul Indjai. Na Ordem à Força Armada apenas se lê que desde 23 de junho até 26 partem para Farim e para Mansoa alguns oficiais, que, suponho, irem tratar desta questão.
Um relatório que tenho presente diz que em 19 de março foi a povoação de Solinhoté assaltada pela gente armada de Abdul que tinha por fim prender o indígena Malam Sanhá para ser por Abdul Indjai morto na povoação de Mandorno; que em 20 de maio, 2 Oincas refugiados no território de Bissorã entre esta região e a de Gansambu foram atacados pela gente de Cherno Sabali, dos quais feriram um, não aparecendo mais o outro; que dias depois esta mesma gente assaltou a povoação de Fajonquito, levando tudo quanto encontraram; que em 2 de julho, indo a mesma gente assaltar a povoação de Batur, dali levou 36 cabeças de gado; que em 3, quando a gente de Abdul se dispunha a atacar a povoação de Gussafari para roubar, foram atacados pelos auxiliares, e que em 26 a gente de Cherno Sali atacou os auxiliares de Gussafari para se apoderarem de uma lancha que estava no porto.
No relatório do capitão-tenente João Quadros vê-se que este oficial conduziu a bordo do “Bissau”, em 24 de julho, um destacamento de 40 praças indígenas, 3 europeias, 2 sargentos e o alferes Trindade. Comandava esta força o tenente Sobral. Chegaram a Farim no dia 26. Em 29 chega a Farim o vapor “Capitania”, conduzindo o capitão Lima e um destacamento do comando do alferes Alonso Figueira, 13 soldados indígenas e um europeu.


Em 1 de agosto segue para Mansabá um reforço de 30 praças sobre o comando do Alferes Figueira, levando três carregadores. Os rebeldes (diz o relatório) hostilizaram esta força e cortaram a linha telegráfica entre Farim e Mansabá. Em 13 de julho uma diligência de 23 auxiliares e 2 guardas da circunscrição de Farim prenderam 3 jauras (homens de guerra) mal-armados, tendo fugido outros nove também mal-armados que impunham à gente da povoação de Nema o pagamento de uma multa de 20 escudos e 5 vacas. Pelo relatório do capitão Lima conclui-se que houve em Mansabá uma conferência entre Abdul Indjai, o Capitão Espírito Santo e outros oficiais, que particularmente sei serem o Tenente Honório de Oliveira Marques e o Alferes Alberto Soares, na qual Abdul Indjai propõe o seguinte a troco de entregar todas as armas: 1 – A redução da guarnição do posto de Mansabá a 1 oficial, 1 sargento, 2 cabos e 27 soldados; 2 – A retirada da força militar de Farim; 3 – Desarmamento dos auxiliares da região de Bissorã; 4 – Anexação ao seu regulado das razões de Tiligi, Binar, Bula, Canchungo e Churo; 5 – Que lhe fosse paga a quantia de 40 mil escudos como recompensa do seu trabalho por ter batido as regiões de Mansoa, Oio, Costa de Baixo e Bissau e que lhe fosse dada uma percentagem de 10% sobre o imposto de palhota cobrado anualmente nas regiões acima referidas.

Em 1 de agosto, quando uma força do comando do Alferes Figueira seguia de Farim para Mansabá foi este oficial avisado durante o trajeto que vários grupos de forças armadas se dirigiam ao seu encontro, pelo que tomou certas disposições no sentido de evitar qualquer surpresa. Até à povoação de Bironque a marcha fez-se sem incidentes, tendo notado apenas que a linha telegráfica se encontrava cortada. O 2.º Sargento Parreira, que comandava a guarda avançada, foi avisado que uma força armada, mais adiante, se opunha à passagem dos nossos.
Como os carregadores informados do caso pretendessem fugir, o sargento abandonou a coluna dirigindo-se para Farim, sendo seguido por um indígena e um cabo europeu que, alcançando-o, se verificou ser Alburi Indjai, alferes de segunda linha, sobrinho de Abdul, que ia comunicar estar Abdul inteirado de que a força não ia atacar e que por isso podia continuar a marcha, pois já tinha avisado a sua gente para lhe não impedirem a passagem."


(continua)
Jorge Frederico Velez Caroço, governador da Guiné
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Notas do editor:

[*] - Vd. postes de:

30 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17526: Notas de leitura (973): “a Presença Portuguesa na Guiné: História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016 (1) (Mário Beja Santos)

3 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17536: Notas de leitura (974): “a Presença Portuguesa na Guiné: História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016 (2) (Mário Beja Santos)

7 de Julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17554: Notas de leitura (975): “a Presença Portuguesa na Guiné: História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016 (3) (Mário Beja Santos)

10 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17563: Notas de leitura (976): “a Presença Portuguesa na Guiné: História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016 (4) (Mário Beja Santos)

14 de Julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17582: Notas de leitura (977): “a Presença Portuguesa na Guiné: História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016 (5) (Mário Beja Santos)

17 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17591: Notas de leitura (978): “a Presença Portuguesa na Guiné: História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016 (6) (Mário Beja Santos)
e
21 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17610: Notas de leitura (979): “a Presença Portuguesa na Guiné: História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016 (7) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 15 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22546: Historiografia da presença portuguesa em África (280): A pacificação da Guiné de 1834 a 1924 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22561: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XVI: O regresso de férias e o terceiro murro no estômago


S/l > s/d > Nordatlas – A viagem de uma vida!!!… Foto; cortesia do blogue  Luís Graça & Camaradas da Guiné  




O ex- furriel mil Joaquim Costa, Natural de V. N. Famalicão,
vive hoje em Fânzeres, Gondomar, perto da Tabanca dos Melros.
É engenheiro técnico reformado. 
Tem quase pronto o seu livro de memórias, 
de que estamos a editar alguns excertos, por cortesia sua.


Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) 

Parte XVI:
O regresso de férias: O terceiro murro no estômago 

 Chegado de férias a Bissau, levo logo com um murro no estômago. Sou informado por camaradas em trânsito que, num ataque ao Cumbijã, com o conhecido canhão sem recuo do IN, manobrado por Cubanos, uma granada atingiu um grupo de soldados da companhia, dentro do destacamento, provocando um morto e vários feridos. Foi mau demais. Ao primeiro passo na Guiné sentir que tudo estava como deixei, ou pior...

Passei o dia arrasado, reconfortado por um conterrâneo, 1.º cabo especialista da Força Aérea, pensando que o melhor era tentar retardar o meu regresso a Cumbijã o mais possível, arranjando todo o tipo expedientes para conseguir tal desiderato. O normal era aguardar a LDG de abastecimento até Buba, esperar pela coluna para Aldeia Formosa e depois apanhar a coluna da água, diária, de Aldeia para o Cumbijã.

O abastecimento de água e outros produto para o Cumbijã continuava a ser feito diariamente com uma coluna da responsabilidade da nossa companhia, onde corríamos riscos permanentes, pois foi numa destas colunas que sofremos a primeira baixa.

Vou dormir ao quartel dos Adidos em Bissau amparado pelo meu conterrâneo que me fez uma visita guiada pelos locais de frequência obrigatória na cidade. Encharcado de ostras, cerveja e whiskym  não me saíam da cabeça as notícias do ataque ao Cumbijá e a perda de mais um amigo. Não dormi um segundo que fosse, sempre com o Cumbijã na mente e com o pensamento na “família adotiva” que estava a viver mais um momento dramático.

Levantei-me cedo, obcecado com a partida urgente para o Cumbijã. Não suportava mais uma noite em Bissau.

Fui saber quando estava prevista a minha partida, ao que fui informado que iria na LDG que partia dentro de 3 dias. Insisti que tinha muita urgência em regressar. Depois de alguns contactosm foi-me sugerido ir no Nordatlas (avião de transporte de carga e passageiros dos anos 50) para Aldeia Formosa, que partia nesse dia.

A viagem de Nordatlas, carregado só com carga, foi surreal. Sentado num banco rebatido, de costas para uma pequena janela, com o cinto bem apertado devido à trepidação, e com os pés em cima de sacos de batatas, transportou-me para imagens da segunda guerra mundial. Para além de batatas, era todo o tipo de produtos, supostamente frescos, alguns já em putrefação dado o cheiro a podre dentro do avião.

Não havia uma peça ou uma chapa do avião que não batesse, dando a sensação que tudo se ia desintegrar. Fiz a viagem em permanente sobressalto, com mais receio da falha do motor, que a cada momento me parecia que ia acontecer, do que dos famosos mísseis terra ar Strela.

 A aterragem, na pista de terra batida em Aldeia Formosa, deslizando no terreno enlameado e saltitando de buraco em buraco até se aninhar definitivamente (acompanhado de um grande suspiro de alívio deste passageiro improvável), foi o pináculo do medo. Situação só comparável à minha primeira visita à Madeira, com os destroços bem visíveis do avião da TAP que tinha caído meses antes (19 de Novembro de 1977 e onde morreram 131 pessoas), aterrando numa pista mais pequena que a de Aldeia Formosa[?], com católicos e ateus a rezarem quando o avião se faz à pista, com aplausos, vivas ao piloto e abraços de gente que não conhecia de lado nenhum...

Não tenho memória de ter caído na Guiné nenhum destes aviões, embora reza a história que, sempre que aterrava, já só levantava com a intervenção dos “milagreiros” dos técnicos.

Toda a minha ânsia de chegar ao Cumbijã não foi, obviamente, nenhum arrebatamento heroico (o medo estava lá), simplesmente concluí que me sentia muito mais seguro e confortável em casa (em Cumbijã, junto da “família”) do que em Bissau. Cidade que mal conheci, da qual guardo uma vaga ideia e uma má memória com a fuga ao “Caifás”, que será revelada no próximo capítulo...

Continua...
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terça-feira, 21 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22560: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XVII: Itália,Veneza, 2016






Itália, Veneza, 2016


1. Continuação da série "Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo" (*), da autoria de António Graca de Abreu [, ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74]. (*)
 

Veneza, Itália, 2016

por Antóni0 Graça de Abreu

[ Escritor e docente universitário, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); natural do Porto, vive em Cascais; é autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); "globetrotter", viajante compulsivo com duas voltas em mundo, em cruzeiros. É membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem cerca de 290 referências no blogue.]


Veneza em 1995, de novo em 2016. Os homens e eu na caminhada breve, célere pala correnteza dos anos, o burgo permanecendo, quase igual, há seis séculos flutuando tranquilo no esplendor do tempo.

O engenho das gentes levantando sumptuosos palácios, esplendorosas igrejas, torres altas, pontes rendilhadas em terras pantanosas, tudo sobre estacarias mergulhadas na lagoa.

Da última vez, acordo de madrugada na cidade Sereníssima. Abro a janela do quarto da pequena hospedaria, um abraço a Veneza no respirar da bruma. Os alvores da manhã, a luz difusa, a silhueta de palácios e pontes, uma barca com legumes no canal. No meu quarto, no leito tépido, dorme ainda o corpo despido de uma bela mulher, voluptuosidade branda ao nascer o dia.

Luminosidade no passeio pela cidade. Gôndolas e gondoleiros, na proa das barcas, o ferro estilizado, as seis paróquias, as três ilhas, a ponte de Rialto, o ondular do Grande Canal mais navegar em Giudecca. Tudo poético, a gôndola rasgando as águas ao de leve, ao sabor do remo e da brisa.

Marco Polo, veneziano, a ditar na prisão de Génova o seu libro delle mararaviglie. os mares, os portos e as estranhas gentes. Entender os povos, a China distante, todo o mundo.

O também veneziano António Vivaldi levita ainda em águas verdes, em concertos, sonatas, nas quatro estações. A música, o beijo nos canais e no vento. O padre Vivaldi, o petre rosso, não oficiava missas, mas acompanhava-se de mulheres formosas. Já Giacomo Casanova, outro veneziano, não foi clérigo, nem militar, tão pouco músico, tocava muito mal violino, mas tangia igualmente o feminino, adorava mulheres, viagens e chocolate. Preso na sua Veneza, foi condenado a cinco anos por deboche, magia, livros proibidos. Do tribunal dos doges para a fétida enxovia, na diminuta ponte ouviam-se suspiri. Ano e meio depois, com o padre Balbi, outro grande pecador, Casanova empreendeu uma fuga recambolesca pelos telhados do cárcere. Logo depois, um oloroso café na praça de São Marcos. Refugiado em França, como Cavalieri di Seigalt, Madame Pompadour encontrou-o na ópera de Paris e, informada das aventuras de Casanova em Veneza, perguntou-lhe:

-- Então, vem lá de baixo?

O libertino, apontou o dedo pecaminoso para o céu e respondeu:

-- Não, venho lá de cima.

No cemitério, na ilha de de San Michele, os túmulos de Stravinsky e de Ezra Pound. Música, poemas, pássaros de fogo. Também gostava de ser enterrado aqui.

[Texto e fotos recebidos em 17 de agosto de 2021 ]. 
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 14 de setembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22541: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XVI: Ilha de Mykonos, Grécia, 2018

Guiné 61/74 - P22559: Parabéns a você (1991): Cor Art Ref Alexandre Coutinho e Lima (CART 494 / COM-CHEFE do CTIG e COP 5 (Ganjola, Gadamael, Bissau e Guileje, 1963/73) e José Macedo, ex-2.º Ten Fuzileiro Especial do DFE 21 (Bissau, 1973/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 15 de Setembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22543: Parabéns a você (1990): Manuel José Ribeiro Agostinho, ex-Soldado Radiotelegrafista da CCS/QG/CTIG (Bissau, 1968/70)

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22558: CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67): A “história” como eu a lembro e vivi (João Crisóstomo, ex-alf mil, Nova Iorque) - Parte XIII: o fatídico dia 6 de outubro de 1966, duas minas A/C, dois mortos, no Mato Cão


Guiné > Zona Leste> Setor L1 > Bambadinca > CCAÇ 1439 (Enxalé, Missirá, Porto Gole, 1965/67)  > Estrada que atravessava a bolanha depois de Mato Cão  quando se vinha de Missirá para Enxalé



Guiné > Zona Leste> Setor L1 > Bambadinca > CCAÇ 1439 (Enxalé, Missirá, Porto Gole, 1965/67) > Ao meio, o furriel de transmissões, à direita de costas, o capitão Pires e à esquerda o fur mil op esp António dos Santos Mano, que irá morrer em 6/10/1966, na sequência de uma mina A/C, na estrada Missirá-Enxale.


Guiné > Zona Leste> Setor L1 > Bambadinca > CCAÇ 1439 (Enxalé, Missirá, Porto Gole, 1965/67) >Embora não possa pôr as mão no fogo sobre a sua exactidão, creio que foi este o Unimog  da coluna de 6 de outubro  que vinha a Missirá  a Enxalé. Eu estou nesta  foto ( em pé, o 3º da esquerda) que me parece ter sido tirada um dia quando eu estava em Missirá  antes do Zagalo .   

Fotos ( e legendas): © João Crisóstomo (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



João Crisóstomo
(a viver em Nova Iorque desde 1977)


1. Continuação da publicação da publicação das memórias do João Crisóstomo, ex-alf mil, CCAÇ 1439 (1965/67)


CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé,
Porto Gole e Missirá, 1965/67) : a “história”
como eu a lembro e vivi
(João Crisóstomo, luso-americano,
ex-alf mil, Nova Iorque) (*)


Parte XIII: Um dia fatídico, 6 de outubro de 1966, duas minas A/C, dois mortos


Depois de 9 Set 1966 (o ataque a Enxalé):

Haverá com certeza muito a lembrar sobre a vida e actividades da CCaç 1439 depois do ataque a Enxalé. Recordo apenas de ter ficado surpreendido e consternado que o IN tivesse tido a coragem de vir atacar a própria Sede da Companhia, onde, pensávamos, estávamos bem seguros.

Lamentavelmente nem eu (mea culpa, mea culpa) nem ninguém mais teve o cuidado de pôr algo em papel para memória desses dias que se seguiuram e portanto nada mais me resta do que continuar esta “história da CC1439” como se tudo continuasse como antes e este ataque não tivesse acontecido. 

De facto, as várias minas de que fomos vítimas, a seguir, o ataque a Missirá e outros acontecimentos levam-me a concluir que este ataque a Enxalé é evidência de que o IN se sentia cada vez mais à vontade para se aproximar das NT, intensificar os seus ataques e aumentar o seu campo de acção. Foi isso que senti e mais tarde vim a confirmar ao ler o primeiro livro de Beja Santos ,“ Diário da Guiné, na Terra dos Soncó”.


Dia 23 de Setembro de 1966

Copio à letra o relatório:

(...) " Um grupo de combate da CCaç 1439 participou na Op Girândola que consistiu numa acção ofensiva na mata de Belel. As NT detectarm um acampamento IN o qual se encontrava abandonado. Foram destruidas as casas de mato e culturas, No regress as NT foram emboscadas duas vezes não tendo sofrido qualquer baixa." (...)

Não posso dizer as datas, mas sei que entre as muitas lacunas deste relatório contam-se muitas “patrulhas de reconhecimento” que fazíamos, e que não chegavam a receber o termo pomposo de “operações”. Umas fáceis e outras “menos fáceis”. 

Lembro de várias vezes termos permanecido , como que emboscados junto de picadas suspeitas de serem usadas pelo IN. Lembro de ter uma vez descansado ao fim do dia com a minha cabeca em cima de uma pedra antes de tomarmos posições para passar a noite junto a uma picada ; não sei se foi nesta mesma ocasião ou foi noutra em que fiquei numa depressão de terreno ( talvez fosse mesmo terreno de bolanha, não sei) e eu fiquei com água pela cintura, quase louco de frio,  esperando que o dia chegasse depressa e não aparecesse ninguém na picada.

Um destes casos, que não constam deste relatório, aconteceu nos dias 4 e 5 de Outubro. E creio que o efectivo das NT neste dia não era de um simples pelotão mas bem maior . A razão de eu lembrar este caso e não outros deve-se ao seu relacionamento com o dia fatídico de 6 de Outubro.



Guiné >Zona Leste> Sector L1 > Bambadinca > Estrada Enxalé-Missirá > Sítio do Mato Cão > 6 de Outubro de 1966 > Cratera povocada por uma mina A/C cuja explosão provocou a morte do Soldad Manuel Pacheco Pereira Junior, da CCaç 1439. Era natural de São Miguel, Açores. Os restos mortais (cerca de 3kg) ficaram no Cemitério de Bambadinca, Talhão Militar, Fileira 2, Campa 1, Guiné-Bissau. NO regresso de Missirá, a mesma coluna accionou outra mina A/C que decepou a perna do Fur Mil Op Esp António dos Santos Mano, acabando por morrer.

Foto (e legenda): © Henrique Matos (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Dia 6 de Outubro de 1966, um dia fatídico

Copio à letra o que consta no relatório: e escreverei depois “a minha versão” como as coisas se passaram, baseado na minha memória, por vezes bem fresca sobre casos como este, e também na memória de outros com quem tenho falado sobre o assunto.

(...) "As NT acionaram dois engenhos explosivos quando se efectuaram duas colunas, uma vinda de Missirá (para) Enxalé, e outra ao encontro da primeira. Os engenhos explosivos encontravam-se em pequenas poças de água, embora se tivesse os cuidados julgados necessaries na picada da estrada.

"Resultados dos dois engenhos explosivos:

Dois Unimogs destruidos
Uma espingarda G3 perdida em virtude de ter sido projectada para o Rio Geba.

Baixas sofridas pelas NT:

Furriel Mil António dos Santos Mano ( morto em combate) (**)

Soldado 203/65 Manuel Pacheco Pereira Jr. ( morto em combate) (***)

Furriel Mil ( Mec Auto) Octávio Albuquerque da Silva ( ferido)

1º cabo 7316565 Manuel Abreu Velosa 

1º cabo 3456665 José Firmino Quintal 

Soldado 9311265 Ernesto Camacho Rodrigues 

Sold 7317965 Manuel Correia

Sold 5974165 Francisco de Freitas Timóteo 

Sold 1011265 Manuel de Sousa Mendes

1º Cabo 9271565 José Ilídio Andrade Gouveia .

Soldado 8356465 Manuel Alves Junior

Sold 9805565 Agostinho Gerardo 

Sold cond auto  2630164 José Maria Mendes 

Sold cond auto5140464 Jerónimo Gonçalves Sadio 

Caç Nat Contratado Pucha Nanan, ferido

Foi detectado na região de Mato Cão uma armadilha antipessoal a qual foi destruida. Foi distinguido nesta acção o soldado telefonista 2642365 Júlio Martins Pereira, louvado pelo Cmdt Militar e condecorado.

Este foi um dia fatídico e traumático para todos e que todos mais ou menos lembram imediatamente quando se fala dele.

O Alferes Zagalo estava destacado neste momento em Missirá e precisava de reabastecimentos. Sabendo que o pessoal em Enxalé estava exausto e não podia fazer uma coluna para o abastecer, resolveu vir ele mesmo a Enxalé buscar o que precisava. A sua coluna constava de um jipe e um Unimog, com todo o pessoal que estes podiam transportar.

Antes de chegar a Mato Cão o Unimog pisou uma mina anticarro escondida numa poça de água. O jipe tinha-se desviado para evitar essa poça, precaução que o Unimog não teve.

Os resultados podem-se avaliar pelas fotos e pelo número de mortos e feridos. Entre estes o Furriel Mano. Como o Unimog vinha superlotado , ele vinha em cima do Unimog mas com a perna de fora e veio a falecer no local antes da chegada do helicóptero.

Houve ainda um outro morto, José Moreira, caçador nativo “contratado” e uma dezena de feridos, alguns deles com muita gravidade que foram evacuados para Bissau. A situação era desesperada e nem meios de comunicações para pedir auxílio tinham. Pelo que o soldado de comunicações Júlio Pereira que felizmente não estava ferido, pegou na sua G3 a tiracolo e foi a correr vários quilómetros , sujeitando-se a ser apanhado pelo IN em direcção a Finete, na margem do Geba, oposta a Bambadinca.

Aqui ,com a ajuda do pessoal amigo desta tabanca, conseguiu passar o Geba numa canoa e chegar a Bambadinca onde lhe facultaram um rádio para chamar os helicóperos e avisar Enxalé do sucedido.

 Em Enxalé esperávamos passar esse dia como um dia de descanso .O pessoal da Companhia tinha acabado de regressar duma dura saída ao mato ( embora nada conste no relatório) e estávamos todos exaustos. E de manhã ouvimos ao longe um estrondo, mas não fazíamos idéia do que fosse. Passado o que me perece ter sido mais de um hora recebemos notícia de que a coluna do Zagalo tinha sofrido uma mina, havia feridos e que os helicópteros já estavam a caminho.

Ficamos todos preocupados, incluindo o capitão Pires. Quando este disse que era preciso ir ao encontro da coluna para ajudar o Zagalo, eu ofereci-me. Ele aceitou logo e disse-me: “Eu sei que o pessoal está todo estafado. Pega em todo o pessoal de serviços que ficaram no quartel (nos dois dias anteriores) e vê se arranjas mais alguns voluntários. Se não arranjares voluntários, diz-me que eu arranjo-os."

Assim fiz e depois de ter dados instruções a todo pessoal de serviços, antes de perguntar a outros por voluntários,   eu chamei o meu pelotão, certo de que haveriam alguns que iriam comigo. Foi para mim uma sensacão tremenda quando, logo após eu ter dito o que precisava, eles barafustavam como se eu os tivesse ofendido; que não havia um nem dois e que iam todos . “O que é que o nosso alferes está a pensar da gente?” ouvi o “Figueira” a dizer para os outros .

E assim fomos, picadores à frente, um Unimog vazio a seguir e o resto da coluna atrás , caminhando tão ligeiro quanto possível. A região de Mato Cão é uma passagem muito perigosa: a estrada passa perto do Geba e do lado esquerdo há uma colina. Era sempre com o coração nas mãos que aí passava.

Por isso ao passar a bolanha que precede Mato Cão, já perto deste eu disse ao furriel Lopes: "Olha, Lopes, isto é mesmo um bom sítio para uma emboscada; eles sabem ( o IN) que a gente (ao ouvir o rebento duma mina) não deixa de vir e são capazes de estar à nossa espera. Pega na tua secção, sobe e faz um reconhecimento pela esquerda". 

Ele assim fez e a coluna continuou; e depois, logo passada a bolanha, de repente houve um grande estrondo e o Unimog deu um salto pelos ares. A mina, como o que sucedeu com a coluna do Zagalo, estava dentro duma poça de água e não foi detectada pelos picadores.

Imediatamente nos deitámos nas redondezas do buraco e do Unimog destruido, prontos a responder, mas nada sucedeu. E depois de algum tempo respirei fundo; ao fim e ao cabo podia ter sido muito pior, pensei eu: perdeu-se o Unimog, mas o importante é que não há mortos nem feridos. E não me recordo do que sucedeu a seguir, e o que foi o resto do dia, mas imagino (agora) o que terá sido para todos quando soubemos da morte do furriel Mano e dos vários feridos.

De volta no Enxalé, no dia seguinte fez-se a formatura geral de manhã. E parecia estar tudo certo, até que quando foi chamado o nome do Manuel Pacheco ( conhecido de todos como o Açoriano por ser dos Açores e o único soldado que não era madeirense) ele não respondeu. Perguntei se alguém o tinha visto ou se alguém sabia onde ele estava e foi então que alguém disse : "Quando o vi ontem a última vez ele estava a caminhar junto do Unimog… com certeza por não ter ouvido as intruções do furriel Lopes a cuja secção ele pertencia, ele estava junto do Unimog quando a mina rebentou"…

Imediatamente voltamos ao local (recordo que o Alferes Henrique Matos que estava naquele dia em Enxalé decidiu ir connnosco ) . Reproduzo o testemunho que sobre este momento ele deixou neste blogue, referindo-se ao Manuel Pacheco: no dia 10 de maio de 2008, poste P 2830 (***):

(...) "Quando digo pulverizado é o termo que melhor descreve a situação, pois sou um dos que andou à procura de restos do corpo e apenas encontrámos pequenos fragmentos de ossos com que fizemos um embrulho que pesava poucos quilos. Tem a sua campa em Bambadinca, como se pode ver na relação do Marques Lopes (...). A G3 dele nunca mais se viu, pensando-se que terá voado para o Geba que passa a não muitos metros de distância."

Mais informa ainda no poste P15998 (**), referenciando o lugar da sua sepultura: (...) "Era natural de São Miguel, Açores. Os restos mortais (cerca de 3 kg) ficaram no cemitério de Bambadinca, talhão militar, fileira 2, campa 1, Guiné-Bissau".

Como já está dito foram momentos tristes e difíceis estes,  em que com todo o respeito fomos juntando o que restava do nosso querido ‘Açoriano'. Lembro também o momento em que os seus restos sairam depois do Enxalé, num caixão normal, como se dentro estivessem uns restos mortais completos.

Durante esta busca pelos seus restos mortais e pela G3 que desapareceu , e que deve ter sido projectada com tanta violência que atingiu o Geba , mesmo ao lado da estrada, veio-se a descobrir uma mina antipessoal. A nossa sorte foi que alguém viu um fio, suspeitou e …lá estava uma mina, que foi destruida no mesmo momento.

16 e 27 de Outubro:

O relatório menciona a seguir três operações neste mês de Outubro de 1966:

Operação Grude a 16 de Outubro, 
Operação Grisu a 16 de Outubro 
Operação Giesta, a 27.

As três são descritas como “patrulhas de reconhecimento fluvial e terrestre ao longo do Rio Geba.” Sem qualquer acontecimento digno de nota. Mas há com certeza engano nas datas pois, tendo nós os forças divididas/destacadas em Missirá e Porto Gole, além de não podermos deixar Enxalé sem protecção, não me parece que fosse possível fazer duas operações no mesmo dia.

(Continua)

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Guiné 61/74 - P22557: Notas de leitura (1382): “Mare Nostrum”, por João Paulo Oliveira e Costa; Círculo de Leitores e Temas e Debates, 2013 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Outubro de 2018:

Queridos amigos,
O historiador João Paulo Oliveira e Costa é hoje um nome de referência obrigatória nos estudos da Expansão Portuguesa. Juntou neste trabalho "Mare Nostrum" as suas tomadas de posição quanto ao relevo que deve ser dado ao reinado de D. Afonso V e como este foi um galvanizador do processo expansionista. O seu trabalho enfatiza a formação do aparelho central da administração ultramarina e aí se confirma que a Guiné foi a primeira peça desse aparelho, lança nomes e refere estratégias. Para que conste, o estudo da Guiné Portuguesa bem merecia que uma equipa de historiadores reelaborasse tudo quanto se tem vindo a escrever, dando à estampa uma obra com novo sopro e dimensão mais ampla a trabalhos anteriores, muitos deles profundamente desatualizados.

Um abraço do
Mário



A Guiné na formação da administração ultramarina no século XV

Beja Santos

A obra “Mare Nostrum”, por João Paulo Oliveira e Costa, Círculo de Leitores e Temas e Debates, 2013, é uma coletânea de ensaios de um historiador, professor catedrático e diretor de Anais de Histórias de Além-Mar, com extensa obra, e reconhecido como cientista de mérito. Como o investigador escreve na introdução, “A primeira parte desta obra reúne estudos sobre a intervenção da Coroa no império emergente. Analisei as origens da Expansão, os primórdios dos Descobrimentos e o modo habilidoso, mas firme, como o reino de Portugal se apropriou do mar oceano, é um fio da História a partir do governo de D. Afonso V. Apresento-vos uma imagem do monarca bem diferente da que é propalada pela maioria dos autores, um monarca empenhado no alargamento do poder marítimo de Portugal”.

O historiador parte da premissa de que os portugueses foram pioneiros na exploração do Atlântico devido à localização geográfica, da precoce definição das suas fronteiras e de terem beneficiado do desinteresse de outras potências europeias, que estavam envolvidas em guerras de fronteira ou em processos de centralização política que as impediam de desafiar o oceano. Estuda a nobreza nos primórdios da Expansão e recorda que até meados do século XV a Coroa permaneceu quase à margem da expansão marítima: “Embora a viagem que desencadeou os Descobrimentos tivesse ocorrido em 1434, no início do reinado de D. Duarte, este faleceu pouco depois, num momento em que as atenções do país estavam concentradas em Marrocos e nas consequências na campanha que D. Henrique comandara desastradamente contra Tânger, em 1437”.
D. Afonso V dará uma atenção especial ao processo expansionista. Nos anos 1450, a despeito dos privilégios do Infante D. Henrique, o infante enviou navios seus à Guiné e instituiu pelo menos um oficial régio relacionado com oso negócios africanos. Assim, em 1453 enviou três caravelas suas à Guiné; em 12 de abril de 1455 criou o cargo de “recebedor de todos os mouros e mouras e quaisquer outras coisas que vierem da Guiné” e atribuiu-o a Fernão Gomes. É muito provável que o nomeado fosse o mesmo indivíduo que mais tarde, em 1468, arrendou o comércio da Guiné à Coroa.

E o historiador continua:
“A criação deste ofício mostra-nos que a Coroa já intervinha nos negócios na Guiné, apesar do articulado da carta de 1443, que dera o exclusivo da navegação e do comércio a D. Henrique e que fora confirmada pelo africano, em 1448. O envio da expedição de 1453, a criação do ofício de recebedor, em 1455, e a doação, em 1457, ao infante D. Fernando, irmão do rei e herdeira da Casa de Viseu, de quaisquer ilhas que este fizesse descobrir no oceano parecem significar que os privilégios de D. Henrique terão sido alterados ligeiramente nos últimos anos da sua vida. Note-se ainda que pelo menos em 1451, a Coroa confirmara uma autorização dada pelo infante a um particular que ia negociar à Guiné. Com efeito, a 5 de fevereiro desse ano, a Coroa emitiu uma carta de seguro em que ‘tomava em sua guarda e especial encomenda’ a Abraão de Paredes, judeu, portador de uma licença do infante D. Henrique para ir negociar à costa da Guiné.
A 30 de setembro de 1459, o rei nomeou Diogo Borges, escudeiro da Casa Real, para o cargo de ‘recebedor do trato da Guiné’. A designação do cargo não é a mesma do original, mas tudo leva a crer que correspondesse exatamente às mesmas funções. Importa ainda assinalar que no caso de Diogo Borges, a documentação é clara quanto ao seu estatuto de membro da baixa nobreza, integrado na Casa d’el-Rei. Começava a definir-se um modelo de nomeações para os cargos relacionados com a administração ultramarina que repetia as práticas que a Coroa já seguia para os ofícios ligados ao governo do reino”
.

Adiante, o historiador Oliveira e Costa explana o que foi o início da administração régia da Guiné. Falecido o Infante D. Henrique, Diogo Borges é nomeado em fevereiro de 1461 ‘tesoureiro do trato da Guiné’. Por outras palavras, a Coroa deixava de receber apenas uma fatia dos proveitos obtidos na Guiné para passar a controlar diretamente a ação dos portugueses na região. Em 1462, Pedro Afonso é nomeado como ‘vedor da Fazenda das partes da Guiné’. Há nomeações, na mesma época, para o trato de Arguim.
Descreve o historiador:
“Entretanto, persistia o envolvimento dos mercadores algarvios nos negócios da Guiné. Num documento de fevereiro de 1464, encontramos referência a Pedro de Sintra, escudeiro da Casa Real, que desempenhava o cargo de ‘recebedor das coisas da Guiné que se arrecadam no Algarve’. A Casa de Viseu continuou a manter uma importante máquina administrativa ultramarina, pois conservava o governo das ilhas atlânticas. Além disso, o Duque tinha pelo menos um oficial ligado diretamente ao trato da Guiné; a 23 de novembro de 1461, Pero de Barcelos, então escudeiro da Casa Ducal, exercia o cargo de ‘recebedor das vintenas da Guiné’, cargo que conservaria pelo menos até 1497. Para os primeiros anos da gestão direta da Coroa sobre a Guiné não conhecemos outras referências a cargos relacionados com a administração dos negócios da Guiné, mas o número de oficiais ligados a esta atividade era seguramente maior. Talvez já estivesse então em funções Pedro de Alcáçova, escudeiro da Casa Real, que a 14 de dezembro de 1468 é referido como ‘escrivão da Câmara d’el-Rei e da Fazenda da Guiné’.”

O progresso da exploração da costa africana provocou a criação de um novo ofício, recorda o historiador. Gil Eanes foi ‘tesoureiro e feitor do trato da Guiné’, ele era Cavaleiro da Casa do Príncipe. “O caso de Gil Eanes é particularmente interessante pois nos anos em que exerceu o cargo a Coroa confiara ao príncipe a administração do comércio da Guiné. Fernão Lourenço, por sua vez, começou por ser designado ‘tesoureiro e feitor da Casa da Mina e tratos da Guiné’, e a 13 de setembro de 1501 passaria a ser designado como ‘tesoureiro e feitor dos tratos da Guiné e de todos os tratos da Guiné, Mina e de Sofala e das ilhas’.”. No seu trabalho, o autor também refere os cargos judiciais e a evolução deste aparelho administrativo decorrente do crescimento do império. Não resta dúvida que a Guiné foi a primeira parcela do continente africano a merecer as atenções da constituição do aparelho administrativo ultramarino. Mais adiante, Oliveira e Costa refere os problemas da missionação e lembra que D. João II procurou estabelecer uma série de alianças, tentando criar estados-satélites unidos a Portugal por uma religião comum. A primeira tentativa foi com o Bemoim, antigo rei dos Jalofos. Este foi batizado em Palmela, falou-se na construção de uma fortaleza junto do rio Senegal. Mas D. João Bemoim foi assassinado pelo capitão-mor da Armada, a fortaleza não se concluiu.
E vale a pena ouvir o autor quando procede ao balanço deste império português em meados do século XVI:
“O império português era uma entidade dinâmica, era um império marítimo que começava a desenvolver uma lógica de domínio terrestre.
Até 1521 predominara uma geoestratégia adequada ao mundo medieval. As áreas descobertas no final de Quatrocentos e início de Quinhentos haviam sido concebidas essencialmente como meios de enriquecimento rápido, e também como pontos de apoio que permitiriam alcançar velhos objetivos, como o da Grande Cruzada contra a Mourama”
.

Recorde-se que toda esta lógica foi ultrapassada com a viagem de circunavegação, com as descobertas do continente americano e a fragilidade de meios que levou à diluição da presença portuguesa na Senegâmbia, uma constante até ao século XIX.


Brasão de armas da Guiné, extraído do relevo da fachada do Banco Nacional Ultramarino, na Rua do Ouro, obra da década de 1960.
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Nota do editor

Último poste da série de 13 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22539: Notas de leitura (1381): "No mato ninguém morre em versão John Wayne, Guiné o Vietname português", por Jorge Monteiro Alves; LX Vinte e Oito, 2021 (Mário Beja Santos)