quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22626: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte V: Do Tejo ao Geba (17 de Abril de 1965/25 de Maio de 1965)


N/M "Ana Mafalda" (1951-1975): navio misto (mercadorias e passageiros), que tinha o comprimento (fora a fora) de um campo de futebol... Alojamentos para 16 passageiros em primeira classe, 24 em segunda e 12 em terceira classe, no total de 52... Nº de tripulantes: 47...


1. Continuação da (re)publicação do "Diário de Guerra" (*), do nosso camarada açoriano e escritor Cristóvão de Aguiar (1940-2021), que faleceu na passada  dia 5, aos 81 anos (*). Organização: José Martins; revisão e fixação de texto (para efeitos de publicação no nosso blogue): Virgínio Briote. 

Estes excertos, que o autor cedeu amavalmente ao José Martins, para divulgação no blogue,  fazem parte do seu livro "Relação de Bordo (1964-1988)" (Porto, Campo das Letras, 1999, 425 pp). (**)



Cristóvão de Aguiar.
Foto: Wook (com a devida vénia...)


Diário de Guerra

por Cristóvão de Aguiar


(Continuação)

1965

Lisboa, 17 de Abril 1965 - Sábado de Aleluia

Com repiques ao contrário den­tro de mim. Acabei de embar­car com a minha Companhia Independente de Caça­dores número oitocentos. Vamos com destino marcado para a Guiné. O "Ana Ma­falda" vai cheio de carne para canhão e ainda se encontra atracado no Cais da Ro­cha.

São três as companhias de caçadores e parte de uma de coman­dos e serviços de um batalhão. No salão de primeira classe, há pouco, houve discursos e vinho do Porto e uísque e sal­gadinhos.

Uma falta de respeito. Mal acabou a cerimónia, en­fiei-me no meu ca­ma­rote de primeira, pois en­tão! Morra Marta, mas morra farta! Estou para aqui so­zi­nho, la­vado em lágrimas, en­quanto os outros oficiais meus ca­ma­radas, talvez mais corajosos, se en­contram na amu­rada do navio nos últimos acenos de despedida. Puta de Pátria a minha!

Já fora Barra do Tejo, no mesmo dia, à noite

BARCO DE ESPERANÇA

Fizeste um barco de esperança e partiste
Ao longo de um mar verde de ternura.
Ficou no cais ainda o eco triste
Do mar acalentando a aventura...

Geme agora o mar contra a noite escura,
Num beijo sincopado de segredo...
E a alma num alentejo de secura
Cai de joelhos tran­sida de medo.

Medo da longa noite onde me canso,
Comprida noite onde nunca há descanso,
Nem estrela, nem barco ou gaivota...

E o mar que nos meus olhos cabia inteiro,
É agora um soluço de guerreiro,
Caindo em duas lágrimas de derrota.


18 de Abril - Mar e céu

Neste Domingo de Páscoa triste, cele­brada com amêndoas amargas que nos serviram à sobremesa do almoço para que hou­vesse sabor a festa. O navio não dá um balanço sequer. No porão, os soldados jo­gam às car­tas e fazem algazarra. Ouço-os do deque de primeira. À mesa, o capitão só diz as­neiras com ar compenetrado e sábio.

22 de Abril - Véspera de chegada.

Ainda se não adivinha terra nem rumor dela. Após a última refeição, passeio no deque, obstinada­mente, como um burro à roda da nora. Houve mudança súbita de ventos, o que fez com que logo cor­resse o boato de que estaríamos mudando de rumo.

Ainda se não perdeu a crença num súbito milagre que nos leve à Ilha do Sal, nosso primordial destino! Só assim, so­n­han­do, se aguenta esta patriótica estopada.


23 de Abril - Bissau

Evola-se desta terra avermelhada e ressequida um bafor que se transmite ao corpo e o faz destilar rios de suor. Logo após o de­sem­bar­que e com as tropas já aquarteladas na Amura, fomo-nos apresentar ao co­mando mili­tar. Desconhe­cia pura e simplesmente a nossa existência. Que não nos des­tiná­vamos a esta guerra, mas à da Ilha do Sal − foi-nos dito na secre­taria, antes de apresentarmos cumprimentos ao comandante.

Ainda olhámos uns para os outros com um pequeno clarão nos olhos, mas depressa nos desiludiu SEXA, refastelado no seu gabinete, com ar condicionado, onde pouco depois entrámos, perfilados. Ti­nha na verdade havido um pequeno deslize de informação, mas iria ser ime­diata­men­te remediado. Ficaríamos, para compensar, à or­dem do comando-chefe. Uma honra para a nossa com­panhia, que tinha vindo da me­trópole para defender este tão pátrio chão.

26 Abril - Carreira de tiro

Fomos todos para a carreira de tiro treinar a ponta­ria e experimentar pela primeira vez as espingardas G3, que se utilizam nesta guerra. Nos cur­sos de preparação, em Mafra, Tavira e Santarém ainda se treina o pessoal com a Mauser da última guerra mundial. Que se divide em dez partes, a saber: cano com es­trias, coronha, gatilho, guarda-mato, etcetra e tal.

29 de Abril - Ordem unida na Amura

Houve tentativa de levantamento de rancho na nossa companhia. Como ninguém se tivesse acusado como cabecilha da frustra­da rebelião, o capitão, furioso por não ter bode expiatório, deu como castigo aos três pelotões ope­ra­cio­nais, neles incluindo cozinheiros e outras especialidades não béli­cas, oito horas se­guidas de ordem unida, entremeada com passo de corrida.

Para que não hou­vesse que­bra de ritmo nem de suor, ordenou que os quatro alferes des­sem, à vez e na ordem in­versa da sua antiguidade, duas horas de in­s­trução cada um. Ainda se acre­dita pia­mente, na tropa, que a ordem unida é a mãe de todas as virtu­des mili­tares, sobretudo da disci­plina.

No quartel da Amura, os velhos de caqui amarelo, que aguardam em­bar­que de regresso após dois anos de comissão, olharam para nós, maçaricos, vesti­dos de verde-bilioso-vomitado, como se pertencêssemos a outra ga­lá­xia.


5 de Maio - Primeiras baixas, nos arredores de Bissau

O nosso capitão e o seu guarda-costas foram feridos numa operação-treino nos arredores de Bissau. Foram ambos transportados de ur­gên­cia, de helicóptero, para o hospital militar. O primeiro, com estilhaços fin­ca­dos por todo o corpo; o último, sem as duas pernas dos joelhos para baixo e com as tri­pas de fora e sujas de terra. Como oficial mais antigo, tomei o co­mando da com­pa­nhia.


8 de Maio - Em Bissau, como Cmdt da CCaç 800


Recebi um rádio do gabinete do comando-chefe, anun­ciando a transferência para a metrópole do capitão e do seu soldado guarda-costas. Es­tou fragilizado e com muito medo. Não nasci para comandar tropas.

Para me sen­tir mais aconchegado e protegido no meio de toda esta engrenagem de insegurança e de morte pressentida, escrevi uma longa carta a meu tio Fran­cisco, que mal conheço, de­vido às zangas fraternais entre ele e meu Pai que se estenderam du­rante quase toda a minha vida. Agora estão de bem um com o outro. Fizeram as pa­zes há cerca de dois meses, após meu tio ter frequentado, durante três dias, um Curso de Cris­tan­dade na Ilha, na estância termal do vale das Furnas.

Soube-me bem acolher-me ao robusto tronco fami­liar, durante as duas breves horas de escrita epistolar, regada a lágrimas sa­borosas. Pressinto a morte, muito perto, rondando-me os gestos, as pa­la­vras e os pas­sos.


10 de Maio de 1965 - No HM 241


Hospital Militar de Bissau, para uma pequena in­ter­venção cirúrgica. Circuncisão, isto é, um corte no freio, que tinha dificuldade em arregaçar.

Se tivesse nascido judeu, ter-me-ia poupado ao incómodo nesta idade de quase um quarto de século. Saí do hospital pouco depois e vim para o quartel da Amura, sem sequer sentir necessidade de me ir recostar na tarimba. Fui antes para o bar dessedentar-me e dar umas boas tragaças, que o cigarro tem sido para mim um ex­celente camarada de armas...

24 de Maio de 1965 - Bambadinca


Veio a companhia por aí a cima, sob o meu co­mando, escoltada por outras tropas e por brigadas especializadas na de­tecção e le­van­tamento de minas e armadilhas, atravessando terra-de-ninguém de Man­soa até aqui, em não sei quantas viaturas, abarrotando de tudo quanto é ne­ces­sário para ins­talar uma companhia operacional no mato, desde tarimbas de ferro até tachos e pa­nelas, pas­sando por móveis para a secretaria, que, na guerra, a papelada tem grande impor­tân­cia. Chamam-lhe mesmo a guerra dos papéis, por vezes ainda mais renhida do que a sua irmã colaça.

Chegámos à margem esquerda 
[, o autor queria dizer direita.. ] do rio Geba, es­tava um capitão, Ga­briel Tei­xeira,  de sua graça, com duas secções à nossa es­pera. Pertencem ao batalhão ao qual vamos ficar logisticamente ad­s­tritos, uma vez que, operacional­mente, conti­nuamos à ordem do comando-chefe.

Ainda temos, porém, de atravessar tudo de jan­gada para a outra mar­gem  [, a esquerda...] , incluindo as viaturas, a fim de seguirmos para Bafatá e de­pois para Con­tu­boel, nosso des­tino. O rio Geba está su­jeito ao regime das marés, nesta altura vivas, aqui chamadas macaréu, de forma que vamos demorar muito tempo até nos passar­mos to­dos para o lado de lá.

Bambadinca, 25 de Maio de 1965

A TUA AUSÊNCIA

A tua ausência
É este estar nu por dentro,
E ter um rosto velho
Gretado de suor
Do sol dos prados
E das manhãs
Que nunca tive...

Em cada segundo te habito
Como a loira canção das abelhas
O indomável cio
Das flores abrindo-se
Loucas de tesão...

(Continua)
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Notas do editor:

Guiné 61/74 - P22625: In Memoriam (412): Torcato Mendonça (1944-2021), ex-Alf Mil Art da CART 2339 (Mansambo, 1968/69)

IN MEMORIAM

Torcato Mendonça (1944-2021)
Ex- Alf Mil Art da CART 2339 (Mansambo, 1968/69)

Acaba de chegar ao conhecimento do nosso Blogue, por intermédio do seu filho Ricardo, mais uma triste notícia, a do falecimento do nosso camarada e amigo Torcato Mendonça.

Hoje, a partir das 15 horas, estará em Câmara Ardente na Capela de S. Miguel, no Fundão.

Amanhã, pelas 14,45 horas, será celebrada Misa de Corpo Presente na Igreja Matriz do Fundão, finda a qual, os restos mortais do nosso malogrado camarada seguirão para cremação.


Nesta hora difícil, especialmente para a sua companheira de vida, Ana Mendonça, e para os seus filhos Pedro e Ricardo, deixamos o nosso mais profundo pesar pela perda do seu ente querido e nosso amigo de há 15 anos.

Alf Mil Art Torcato Mendonça em Mansambo

O Torcato, que se apresentou à tertúlia em 2006,[*] tem no nosso Blogue 255 referências com uma vasta colaboração, seja com as suas famosas "Fotos Falantes", ou memórias escritas publicadas nas suas séries: "Pensar em Voz Alta", Ao correr da bolha, "Estórias de Mansambo (I e II)" e "Nós da memória". Esteve presente em 2007 no II Encontro da tertúlia e em 2008 já se fez acompanhar da Ana.

O casal Mendonça participou nestes Encontros anuais sempre que puderam e a saúde de ambos o permitiu.


Com a morte do Torcato continua a engrossar o "Batalhão" dos amigos e camaradas que aqui nos deixam cada vez mais sós.
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Notas do editor

[*] - Vd. poste de 15 DE MAIO DE 2006 > Guiné 63/74 - P753: O Nosso Livro de Visitas: Torcato Mendonça, ex-Alf Mil da CART 2339 - O Malan Mané estava vivo em Novembro de 1969 e eu abracei-o

Último poste da série de 13 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22624: In Memoriam (411): Hernâni Mergulhão (Lisboa, 1958 - Lourinhã, 2021), professor do ISEL e dirigente do GEAL - Museu da Lourinhã

Guiné 61/74 - P22624: In Memoriam (411): Hernâni Mergulhão (Lisboa, 1958 - Lourinhã, 2021), professor do ISEL e dirigente do GEAL - Museu da Lourinhã


Hernâni Mergulhão (Lisboa, 1958 - Lourinhã, 2021)


1. Morre, muito antes do tempo, aos 62 anos, um bom amigo, colega e conterrâneo. De doença prolongada, inexorável. Não éramos exatamente da mesma geração, mais de uma década nos separava. Nascido em Lisboa, foi criado pelos avós, meus vizinhos, na Lourinhã.  

Eu admirava-lhe a seu fino humor, a sua grande afabilidade, a sua enorme alegria de viver, a sua empatia, a espontaneidade, a capacidade de lidar com a diferença, a sabedoria com que fazia a ponte entre a cultura científica e tecnológica e o contributo das ciências sociais e humanas, mas também o seu empenho cívico, a sua postura como cidadão, a sua coerência e coragem na luta pela causas políiticas, sociais, profissionais,  sindicais  e comunitárias em que acreditava... 

Acompanhei-o, de mais perto, no GEAL - Grupo de Espeleologia e Arqueologia da Lourinhã (de que foi diretor e membro da assembelia geral), e sou testemunha da sua dedicação, de anos e anos a fio, ao projeto de criação do Museu da Lourinhã e depois do DinoParque da Lourinhã, ao lado de outros históricos "geálicos", como, por exemplo, os nossos Horácio Mateus (**) e Isabel Mateus (***), e seus filhos Horácio Mateus e Simão Mateus.

Tinha o sentido da "res publica", do bem público, da solidariedade... e adorava a sua terra de coração, a terra do seu pai, Eurcio Mergulhão, dos seus tios, primos  e avós, mesmo quando lhe parecia pequena demais para nela poder caber todos seus sonhos de menino.

 Como muitos outros, foi um lourinhanense da diáspora. Mas soube voltar, na vida adulta, na altura devida e justa, depois de ter arrostado com incompreensões, preconceitos, discriminações, etc., de que foi alvo no pós-25 de Abril.

Foi um homem bom e tolerante. Tinha orgulho na sua terra e na sua pátria. Para a Cecília, grande (mas sempre discreta) companheira de uma vida, para os seus três filhos, para o seu pai ainda vivo (aos 89 anos, com quem falei na capela de N. Sra. dos Anjos, ontem durante o velório), demais família e amigos do peito, vai a minha solidariedade na dor, compartilhada pela Alice, e pelos meus filhos, Joana e João. 

Hernâni, não serás inumado na vala comum do esquecimento, temos a obrigação, os teus conterrâneos e os teus companheiros "geálicos", de saber honrar a tua memória. Luís Graça (sócio do GEAL nº 141).

Lourinhã, 12 de outubro de 2021, 16h


2. Mensagem de condolências do ISEl . Instituto Superior de Engenharia de Lisboa, com data de ontem (, aqui reproduzida con a devida vénia):

É com consternado pesar que informamos do falecimento do Professor Hernâni Mergulhão.
Ao longo de mais de 30 anos, dedicados ao ISEL, de onde se destaca a sua vertente no ensino e na pedagogia, o professor Hernâni empenhou-se de uma forma exemplar no ISEL.

Licenciado em 1986, pela Universidade Técnica Checa, entrou no ISEL em 1988 como Equiparado a assistente, foi Equiparado a assistente do 2.º triénio entre 1989 e 1995, Equiparado a professor adjunto entre 1995 e 1999 e Professor adjunto a partir de dezembro de 1999.
 
Participou ativamente na gestão do ISEL, destacando-se os seguintes cargos:
- De maio de 2004 a abril de 2006, foi Presidente do Conselho Pedagógico do ISEL.
- Entre 1990 e 1995, foi membro do Conselho Pedagógico do ISEL, em representação do corpo de assistentes.
- Em 1979 e 1980, foi membro do Conselho Diretivo e da Assembleia de Representantes do ISEL, em representação dos alunos.
- Foi também membro do Conselho Científico, da Assembleia de Representantes do ISEL, e Assessor do Conselho Diretivo.
- Destacou-se também como Vice-coordenador do Departamento do Ensino Superior do Sindicato dos Professores da Grande Lisboa e Membro do Conselho de Departamento do Ensino Superior da FENPROF.
 
Neste difícil momento endereçamos à família e amigos, muitos deles do ISEL, as mais sinceras e sentidas condolências.
Viverá para sempre na memória da comunidade do ISEL.

3. Mensagem de condolências do GEAL - Museu da Louirnhã (, aqui reproduzida com a devida vénia):

É com grande pesar que partilhamos a notícia do falecimento do nosso associado Hernâni Mergulhão, até há pouco tempo Presidente da Assembleia Geral do GEAL - Museu da Lourinhã.

Hernâni Mergulhão, pessoa de convicções fortes e rigor nas suas atuações, nos diversos domínios, deixou-nos após uma luta inglória contra a doença prolongada que o atormentava.

Aos familiares e amigos próximos, os órgãos sociais, colaboradores, investigadores e voluntários do GEAL - Museu da Lourinhã endereçam os mais sentidos pêsames.

Lourinhã, 11 de outubro de 2021
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Notas do editor:


(**) Vd. poste de 28 de abril de 2013 > Guiné 63/74 - P11492: Blogpoesia (333): A notícia do fim da notícia (Luís Graça)

(***) Vd. poste de 19 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21918: Manuscrito(s) (Luís Graça) (199): Elegia para Isabel Mateus (Soure, 1950 - Lourinhã, 2021)

Guiné 61/74 - P22623: Convite (18): O nosso camarada João Crisóstomo vai estar presente na Cerimónia de Concessão de Honras de Panteão Nacional a Aristides de Sousa Mendes, no próximo dia 19 de Outubro pelas 11 horas

Convite do presidente da Assembleia da República

1.  Mensagem da Assembleia da República, enviada ao nosso camarada e amigo João Crisóstomo: 

From: Parlamento-Protocolo <Parlamento-Protocolo@ar.parlamento.pt>

Subject: Convite | Cerimónia de Concessão de Honras de Panteão Nacional a Aristides de Sousa Mendes | 19 de outubro de 2021 | 11.00 horas

Date: October 12, 2021 at 12:25:52 PM EDT

To: "crisostomo.joao2@gmail.com" <crisostomo.joao2@gmail.com>

Exmo. Senhor
João Crisóstomo,

Agradecemos a melhor atenção de V. Exa. para o convite junto.

Com os melhores cumprimentos,

Divisão de Relações Públicas e Protocolo
@ parlamento-protocolo@ar.parlamento.pt



2. Comentário do editor LG:

De passagem por Portugal, o João Crisóstomo vai estar, com toda a justiça, entre os convidados oficiaisque irão assistir à cerimónia de Concessão de Honras de Panteão Nacional ao Aristides de Sousa Mendes (1885-1954=, no prózimo dia 19 do corrente.


João Crisóstomo, um dos activistas que, desde 1996, 
mais contribuiu em todo o mundo para a reabilitação da memória 
de Aristides de Sousa Mendes. A residir em Nova Iorue desde 1975,
foi alf mil, CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé,
Porto Gole e Missirá, 1965/67) 


Até há dias, ele desconhecia a realização desta cerimónia. Foi por nós alertado. Em boa hora, a Fundação Aristides de Sousa Mendes (que tem novo presidemte do conselho geral, Silvério Sousa Mendes) terá contactado os serviços da Assembleia fa República, que fez chegar o convite ao nosso camarada luso-americano (e que este já aceitou).

Recorde.se aqui a decisão, de há mais de um ano, da Assembleia da República, de homenagear o diplomata português que passará a ter, no Panteão Nacional, um túmulo vazio: não haverá trasladação do corpo, os seus restos mortais deverão continuar a permanecer em Carregal do Sal, distrito de Viseu, terra natal do "cônsul de Bordéus" e onde viveu parte da vida, e onde a Fundação, com o seu nome, tem a sede.

(Foto à esquerda: Aristides de Sousa Mendes, 1940.Cortesia de  Fundação Aristides de Sousa Mendes)


Recorde-se a notícia de 13 de julho de 2021, no sítio do Panteão Nacional:

Aristides de Sousa Mendes no Panteão Nacional

Jul 13, 2021
Aristides de Sousa Mendes terá honras de Panteão Nacional, conforme decisão da Assembleia da República. A cerimónia irá realizar-se em data a anunciar oportunamente.
Nascido em 1885, no concelho de Carregal do Sal, licenciou-se em Direito, na Universidade de Coimbra, em 1907. Ingressou na carreira diplomática, tendo passado por vários postos, designadamente em Zanzibar, no Brasil, em Espanha, nos Estados Unidos e na Bélgica. 
Foi, contudo, a sua atuação no consulado de Bordéus, que marcou, de forma decisiva, a sua vida e pela qual viria a ser recordado. A concessão de vistos, em junho de 1940, salvou a vida a milhares de judeus, perseguidos pelo regime nazi. Um ação que o Estado Novo não lhe perdoaria. O cônsul Aristides de Sousa Mendes foi alvo de um processo disciplinar e afastado da carreira diplomática por Oliveira Salazar, terminando os seus dias, em 1954, na penúria e com crónicos problemas da saúde.
O regime democrático reintegrou-o postumamente na carreira diplomática, reconhecendo expressamente a importância da sua atuação no salvamento de milhares de vidas. A sua memória será, a partir deste ano, perpetuada no Panteão Nacional, através da colocação de uma placa de homenagem.
___________
Nota do editor:
Último poste da série > 11 de outubro de  2021 > Guiné 61/74 - P22619: Convite (17): 'Por delegação, a título póstumo, de' (e em homenagem a) o nosso amigo, colega, companheiro e camarada Eduardo Jorge Ferreira (1952-2019), estão convocados/as todos/as os/as "eduardianos/as" para a monumental caldeirada de Ribamar, Lourinhã, segunda feira, dia 10 de outubro de... 2022

terça-feira, 12 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22622: (Ex)citações (394): A propósito da evocação dos fuzilamentos de Comandos Africanos e de milhares de guineenses (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil Cav da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66), com data de 11 de Outubro de 2021:


A propósito da evocação dos fuzilamentos de Comandos Africanos e de milhares de guineenses

O Partido armado da Guiné começou a fuzilar guineenses em 1964, logo que ascendeu a Partido-único-armado-Estado da G-Bissau, em 1974, implementou o seu crescimento exponencial de Comandos e Fuzileiros africanos e de milhares de guineenses que serviram a Guiné sob a administração portuguesa, sem julgamento, selvagem.

O blogue evocou-os e vou repetir-me: O Gen. Nino Vieira tinha acabado de separar a Guiné de Cabo Verde e iniciado o seu consulado, em Bissau os fuzilamentos andavam na boca do mundo, ouvi da boca de pessoas em funções governativas que, entre 1964-1980, os “libertadores” tinham passado pelas armas cerca de 10.000 guineenses, opositores políticos, ex-tropas nativas especiais, do contingente geral e outros “colaboracionistas”.

O que a Descolonização portuguesa teve de exemplar foi o seu desastre, parafraseando o Cor. Morais da Silva, o seu extraordinário, no imediato e a médio prazo não foi o fim da guerra, mas a substituição duma ditadura por outras, o seu maior activo são as suas mais que muitas vítimas e a falência de Portugal - factos acontecimentais e indissociáveis da nossa e da história do ex-Ultramar português.

Na Guiné, estava a Operação Tridente/Batalha do Como no auge, o seu líder eng.º Amílcar Cabral, gestor talentoso dos contextos da sua guerra, convocou e veio ao I Congresso de Cassacá explicitar o Código de justiça e penal, o seu articulado plasmava a pena de morte (terá sido menos um congresso e mais uma reunião de quadros), a sua ordem de trabalhos incluía fuzilamentos e o seu instituto, sindicava de inimigos e traidores à pátria os seus opositores, passou a mandar fuzilar os desalinhados políticos, os seus desertores e os militares e milicianos nativos que caíam prisioneiros, no entanto, merece ênfase o tratamento humano aos militares portugueses da Metrópole seus prisioneiros.

Até à concessão das independências, todos os nascidos no Portugal africano eram portugueses de lei, os rebeldes inclusive, os nossos descolonizadores negligenciaram esse código, era uma verdade inconveniente, a sua derrogação não convinha nem ao PR Luís Cabral nem ao seu modelo político, este acabou destituído pelo Gen. Nino Viera, só não foi fuzilado, ao abrigo desse código, em deferência à intercessão dos PR Léopold Senghor, Fidel Castro, generais Ramalho Eanes e Lausanna Conté, sorte que não tiveram os acusados da “revolta dos balantas”.

O “golpe de Bissau” do MFA, o 26 de Abril de 1974 da Guiné, aconteceu 10 anos depois, muita água havia passado sob as pontes da Guiné, não será plausível que esse código e o seu efeito dirigido fossem do desconhecimento da oficialidade protagonista da “capitulação” na mata de Morés, ou o “cessar-fogo de facto” em politicamente correto, ou da oficialidade negociadora da sua “descolonização”, o Exército não negligenciava a investigação, é-lhe intrínseca e rigorosa, o acesso à informação apurada era privilégio da oficialidade; por exemplo: enquanto os historiadores têm dúvidas e discutem a paternidade do PAIGC, em 1964 já o Exército partilhava com os oficiais a sua informação, classificada, que o fundador era Rafael Barbosa e que Amílcar Cabral lhe aderiu e se apropriou da sua liderança quatro anos depois.

A sua ignorância da parte dos civis, nomeadamente dos notáveis drs. Mário Soares e Almeida Santos, será plausível e merecedora de condescendência, tinham escapado ao serviço militar, apenas habilitados a dirimir as armas do direito e dialógicas, a paz pela guerra é habilitação dos militares, os do contexto começaram logo a baixar a espada, o caminho mais rápido à paz é a derrota, as posições relativas haviam-se invertido, os militares tinham deixado de se subordinar ao poder civil, o poder civil passara a subordinar-se ao poder dos militares - já os centuriões de Roma haviam feito o mesmo.

Mário Soares, arauto da Descolonização, queixou-se ao General Spínola que na de Moçambique foi desautorizado pelo então Major Otelo Saraiva de Carvalho, “não discutamos, entregamos isto aos camaradas da Frelimo e ponto final”, também desabafava que na da Guiné os seus negociadores, os notáveis comandante Pedro Pires e dr. José Araújo, aquele desertor de controlador aéreo da FAP e este desertor de jogador da Académica, eram uma cassette, a tudo respondiam “não, não, vão-se embora, têm que ir embora!” – de leão Portugal passara a sendeiro.

Conjugando a sobranceria à mesa das negociações com adequadas (e toleradas) manobras no terreno, o PAIGC não só impôs a Portugal a imediata retracção do seu dispositivo militar, mas também a obrigação do imediato desarmamento dos militares das suas forças militares e militarizadas… com a sua ajuda! - os termos do n.º 17 do Anexo ao anterior Acordo. O rabo escondido e o gato de fora… Se necessário o recurso às armas, combatiam-nos ao nosso lado…

O efectivo das forças militares e militarizadas nativas da guarnição era superior a 10 mil combatentes activos, tropas de recrutamento gerais e especiais de Fuzileiros, Comandos e Milícias, os reservistas eram outro potencial, eram mais do dobro dos do outro campo, a sua superioridade uma evidência, o projecto “uma Guiné melhor” do Gen. António de Spínola tinha feito escola e produzido muitos “estragos” à essa reunião quimérica, os sentimentos da cidadania e a pluralidade estavam em crescendo, a maioria desses combatentes já não combatia por Portugal mas por rejeição ao PAIGC, os fulas e os mandingas eram antimarxistas, islamizados, moderados e pluralistas, o seu código de justiça era “não matar, a Natureza faz”, o PAIGC já tinha conseguido a nossa fragilização.

Essa celebrizada “corrupção” com o adiantamento de seis meses de salários (os metropolitanos não recebiam a “ponta dum corno” quando terminavam a Guerra da Guiné e), a sua “desistência” de portugueses de direito e a trama recambolesca do seu desarmamento são temas merecedores de melhor estudo e discussão.

A implosão do Bloco comunista foi o início da verdadeira descolonização do antigo Portugal africano, evidência de quão a sua ideologia e interesses geoestratégicos “assalariaram” as suas guerras de libertação e a descolonização portuguesa.

A Guerra da Guiné foi o combate pelo passado, Amílcar Cabral contra ele e Portugal para o manter – as suas consequências mais lastimáveis resultaram directamente desses desideratos.

Enquanto a guerra conduzida por Spínola tinha os guineenses por seu sujeito, com materializada no projecto de “Uma Guiné Melhor”, a guerra concebida e conduzida por Cabral era quimérica que se eclipsou, destruiu muito e pouco construirá, infernizou-lhes a vida no início e no durante – perdura desde o seu fim.

Na realidade, não foi a Guiné que se libertou de Portugal, foi Portugal que se libertou da Guiné…

Os ex-combatentes visitantes da Guiné em turismo de nostalgia, não raro se comovem e sofrem, confrontados com camaradas do antigamente, a tal “praga grisalha”, orgulhosos das suas recordações materiais e mentais do tempo da sua condição de soldados, de portugueses de direito e esperançosos, - mas que acabarão por morrer sem receber as suas reformas e as suas pensões de sangue…

Portugal não pode escusar-se às suas responsabilidades com a Guiné!

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Nota do editor

Vd. postes de:

30 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22584: Recortes de imprensa (119): Reacção de Mário Beja Santos ao artigo do "Diário de Notícias", de 29 de Setembro de 2021, "Comandos africanos nas Forças Armadas Portuguesas. Histórias de abandono e traição"

1 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22588: (Ex)citações (393): Estas teses elaboradas sem reflexão e apreciadas por ignorantes, obrigam-me a vir ajudar a clarificar o que respeita aos militares dos Comandos (Cor Art Ref Morais da Silva)

2 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22590: (Ex)citações (394): Em cerca de 600 militares do Batalhão de Comandos da Guiné, 200 estiveram inscritos numa lista para seguir para a metrópole, com as respetivas famílias, confirma o último 2º comandante e comandante (jun/out 1974), ex-cap art 'comando' Glória Alves, de "uma das mais nobres e heróicas unidades militares portuguesas", em depoimento público de 2007, aqui transcrito (Cor art ref Morais da Silva)

5 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22599: Questões politicamente (in)correctas (55): Na hipótese de terem aceitado vir para Portugal os ex-comandos guineenses, pergunta-se: que tipo de país os iria receber ao aeroporto de Figo Maduro? (José Belo, jurista, Suécia)

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22621: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XVII: a minha "bigodaça”... que tanto incomodou os senhores da guerra


Foto nº 1 > Guiné > Região de Tombali > Aldeia Formosa > 1973 >  A "grande... bigodaça" que, em Bissau, no Depósito de Adidos tanto incomodou os senhores da guerra.

Fot (e legenda): © Joaquim Costa (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] 






O ex- furriel mil Joaquim Costa, Natural de V. N. Famalicão,
vive hoje em Fânzeres, Gondomar, perto da Tabanca dos Melros.
É engenheiro técnico reformado.
Tem quase pronto o seu livro de memórias, 
de que estamos a editar alguns excertos, por cortesia sua.


Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74)

Parte XVII: O “Cantiflas”...  do  Cumbijã (ou a  "bigodaça”  que  tanto incomodou os senhores da guerra)

Estava eu em Bissau, regressado de férias a Portugal, quando, ao entrar no quartel dos Adidos, completamente alheado de tudo (ainda estava a digerir/moer a notícia que um camarada da companhia tinha morrido atingido por uma granada num ataque ao Cumbijã) (*), sinto um soldado a correr atrás de mim, já esbaforido por muito me chamar,  e me informa que o comandante do quartel queria falar comigo.

Fiquei atónito. Pensei: "fAinal, devo ser muito importante neste teatro de guerra. Com centenas de militares a passarem diariamente aquela porta e logo havia de me chamar a mim! Queres ver que me vai oferecer um lugar nos altos comandos?"

Lá vou eu, meio entusiasmado e a tremer como varas verdes, falar com o “homem grande” do quartel dos Adidos. O altíssimo graduado (altíssimo, já que o amarelo ocupava quase na totalidade os seus ombros) ainda antes de me mandar entrar, sem perguntar quem eu era, de onde vinha e para onde ia, atira-me à cara: "Você já se viu ao espelho?"

Eu, a gaguejar, lá fui dizendo: "Meu comandante, no nosso destacamento não há espelhos"… 

Seguiu-se a ordem: "Vá imediatamente ao barbeiro e rape-me essas excrescências dependuradas nesse lábio superior".

Não obstante a “tremideira”, ainda pensei: com toda a região a ferro e fogo, com a guerra praticamente perdida e a preocupação deste altíssimo graduado é o bigode (ou quase bigode) do Furriel Costa?… Pensaria o homem que, cortando o bigode do furriel Costa, a situação dramática que se vivia no terreno ia dar a volta? Enganou-se. Não deu! Em abono da verdade talvez porque eu, não respeitando a ordem superior, não cortei o bigode!… (Foto nº 1)

Analisando hoje mais friamente a situação, constato que o homem (em abono da verdade não sei se era o comandante ou alguém do seu “staff”) teve muita sorte na pessoa que escolheu para alimentar o seu ego. Alguém que ansiava, mais que tudo, que o tempo passasse para regressar a casa para junto da família e amigos, pelo que, disposto a cumprir, até ao limite da dignidade, todos os ensinamentos e conselhos do seu irmão e “padrinho de guerra”: "Respeita os teus superiores"!!!

Acabado de chegar de férias, a caminho de uma zona a ferro e fogo, com a notícia da morte de um camarada (o terceiro), no dia anterior num ataque ao destacamento, e ser confrontado por um alto graduado do ar condicionado de Bissau, com sofá de veludo (pelo menos parecia) e cristaleira com garrafas de uísque e copos de cristal (pelo menos pareciam já que não tinham pó – coisa rara na Guiné), embirrando, com a arrogância dos fracos, com o seu bigode,!... fosse alguém com o sangue mais quente e uma tragédia teria acontecido…

Este altíssimo graduado precisava de passar um dia no Cumbijã, fazendo revista às tropas em parada no dia da operação “Balanço final” (assalto a Nhacobá). O mais provável era não haver operação já que, analisando a fotografia do meu pelotão, ninguém estava em condições (de ir de fim de semana) de sair do destacamento (Foto nº 2)…
 

Foto nº 2 > Guiné > Região de Tombali > Cumbijã > CCAV 8351 (1972/74) > 
O meu pelotão, em mais uma saída para o mato, “devidamente fardado” e armado “até aos dentes” para o que der e vier…

Foto (e legenda): ©  Joaquim Costa (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem  complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] 


Veja-se, a propósito, o comentário (que me foi enviado por mail),  feito pelo meu camarada e grande amigo Machado, ex-furriel mil da minha companhia,  ao meu post sobre o regresso de férias:

Amigo Costa

Já li o teu último post e gostei muito,  apesar de teres levado o terceiro murro no estômago quando chegaste de férias em 1973. Eu estava no Cumbijã e o ataque foi de noite no meio duma grande trovoada que não nos deixava distinguir as saídas do canhão ou rampa de lançamento.

Só tive tempo de sair do bar e abrigar-me atrás do embondeiro 
 [, talvez poiolão] que estava perto da saída, embondeiro esse que foi furado dum lado ao outro por uma das granadas. Apanhei um susto que até perdi o meu isqueiro Ronson mas encontrei-o no dia seguinte. 

O pessoal de noite com lanternas na mão procurou rapidamente abrigo nas valas pois a iluminação elétrica do Cumbijã tinha sido cortada por falta de pagamento, mas o Fausto Costa que era do meu pelotão e um excelente camarada foi atingido por uma granada que lhe caiu nos pés. 

São os horrores da guerra que daí para a frente iria ficar mais complicada. Eu, no início de 1974, vim de férias e só consegui sair de Aldeia Formosa numa avioneta militar que foi fazer uma evacuação dum soldado do Batalhão com uma perna partida, havia 5 ou 6 dias. O sargento que conduzia a avioneta ofereceu-se como voluntário para a evacuação. Não havia aviões privados para alugar, já não levantavam voo por causa dos misseis. Estava em Aldeia a ver se aparecia algum meio de transporte para Bissau e estava a ver as minhas férias a ir ao ar, já com o bilhete TAP marcado tinha 2 dias para chegar a Bissau. 

Quando vi a avioneta militar a pousar na pista fui a correr falar com o piloto pedir para me levar. Ele acedeu ao meu pedido, mas obrigou-me a fazer uma declaração de responsabilidade assinada pelo comandante do batalhão de Aldeia Formosa. Corri tanto para um lado e outro lá encontrei  Tenente-Coronel que me disse: "Você sabe como está o espaço aéreo", eu disse que sim e que me responsabilizava , ele assinou a minha declaração e lá vim eu com e doente da perna partida a gemer. A avioneta levanto voo e esteve a ganhar altura a fazer círculos durante meia hora por causa dos misseis. O piloto depois mostrou-me que estava a ser escoltado por dois T6 que voavam muito alto e que nos acompanharam até Bissau.

Com tantas voltas cheguei a Bissau enjoado. Quando a avioneta parou e abriu a porta, eu saí a fugir e só ouvia piloto a dizer "Não atravesse a pista". Quando li este teu post, pensei que até para virmos de férias era uma aventura de grande risco.

Um grande abraço …. e continua a escrever. Machado.


Em abono da verdade (e para descanso do meu irmão Manuel), não desrespeitei a ordem do superior, mas, tal como dizia o meu irmão Avelino “finúria” para quem se arma em fino:  antecipando a viagem para o Cumbijã, embarcando nesse mesmo dia num Nordatlas, não sobrou tempo para o corte…


Foto nº 3 > Guiné > Região de Tombali > Cumbijã > CCAV 8351 (1972/74) >  Foto do pelotão do furriel Machado (o primeiro da esquerda de pé) e do furriel Aleixo (o segundo da direita de pé e de óculos escuros)... As bigodaças do Machado e do Aleixo, bem como de um ou outro soldado, ao contrário da minha, sempre passaram na vistoria da “ASAE” de Bissau...  Á foto é do Machado.

Foto (e legenda): © Joaquim Costa (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem  complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] 

(Continua)
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Nota do editor:

(*) Vd. poste de 22 de setembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22561: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XVI: O regresso de férias e o terceiro murro no estômago

Guiné 61/74 - P22620: Notas de leitura (1388): Um acontecimento científico de renome: A Missão Geoidrográfica da Guiné (1947-1957) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Outubro de 2018:

Queridos amigos,
Jamais em tempo algum naquele período que levei de idas quase diárias de Missirá a Mato de Cão, uma espécie de patrulhamento com segurança da entrada do Geba estreito, para evitar eventuais ataques à roquetada por parte do PAIGC, que aconteceu entre agosto de 1968 e novembro de 1969, associei a existência de um medidor hidrológico em belíssimo estado, o que apodrecera fora o passadiço em madeira entre a estrada e aquela peça para a qual eu olhava como boi para palácio, uma estranhíssima relíquia de outras eras, eu estava ali era para ver passar bairros militares e civis em completa segurança. Pois aquele medidor estava ali por obra e graça desta missão geoidrográfico, seguramente que aquelas tabelas de marés seriam essenciais para a circulação marítima e muitos outros conhecimentos. Admirador e devedor de Teixeira da Mota, modestíssimo seguidor do seu amor pela Guiné, trago-vos ao conhecimento este trabalho do investigador Carlos Valentim.

Um abraço do
Mário



Um acontecimento científico de renome:
A Missão Geoidrográfica da Guiné (1947-1957)


Beja Santos

O investigador e oficial da Armada Carlos Manuel Valentim escreveu no n.º de outubro-dezembro de 2006 dos Anais do Clube Militar Naval um artigo intitulado “Teixeira da Mota na Missão Geoidrográfica da Guiné (1947-1957)”. Esta missão foi de um excecional valor científico, trouxe um conhecimento em profundidade que permitiu um mapeamento como jamais existira da geoidrografia guineense, foi a alavanca para cartas geográficas que mantêm um valor incalculável. O trabalho desta missão iniciou-se no pós-guerra, prendia-se com a necessidade de modernização em bases científicas para assegurar um desenvolvimento racional ao Ultramar português, era a proposta para o trabalho da Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais, designação que seria reformulada com a revisão constitucional de 1951. Marcello Caetano, enquanto Ministro das Colónias, apostara na ocupação científica do Ultramar, era um imperativo para cimentar a soberania portuguesa. É a altura de falar de Avelino Teixeira da Mota.

Em novembro de 1947, Teixeira da Mota cessara as funções de Ajudante de Campo do Governador Sarmento Rodrigues e passou a prestar serviço na missão geoidrográfica da Guiné Portuguesa. Deixara o cargo altamente prestigiado: foi o motor da organização e primeira fase da publicação do Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, contribuíra para um inquérito etnográfico, base de uma nova carta geográfica e etnográfica da colónia. O governo condecorou-o com a Medalha de Prata dos Serviços Distintos ou Relevantes do Ultramar. Teixeira da Mota irá ficar ligado à missão geoidrográfica até 1957. Apaixonara-se por aquela parcela de território africano, vai recolhendo elementos essenciais para futuros trabalhos com destaque para a sua monografia (ainda hoje em alguns pontos incontornável) da Guiné Portuguesa, publicada em 1954. Prestará serviço no navio hidrográfico Mandovi, Teixeira da Mota é 2.º Tenente. Toma posse do lugar mas vai participar na 2ª Conferência Internacional dos Africanistas Ocidentais, que se realizou em Bissau em novembro de 1947. Como diz Carlos Valentim, a Hidrografia era um mundo à parte na Marinha: “O trabalho hidrográfico nos territórios ultramarinos de África associava um saber científico e técnico, baseado em disciplinas como a Matemática, a Geofísica, a Cartografia, a Biologia Marinha, a Geodesia, a Topografia, a uma aura de aventura, proporcionando um contato profundo com o meio marinho, no oceano ou próximo da costa, nos estuários e nos canais navegáveis, e em terra, por vezes em períodos longos de exploração, em contactos estreitos com as populações locais”. Era um ramo da investigação que tinha pergaminhos na Guiné, estavam inventariados trabalhos hidrográficos e geográficos entre os finais do século XIX e 1916.

Em novembro de 1947 o 1.º Tenente Pereira Crespo, que será o último Ministro da Marinha do Estado Novo, assumirá as funções de comandante do Mandovi, o navio encontrava-se praticamente reparado, houvera uma transformação completa dos seus equipamentos que custara ao Estado 8 mil contos. Carlos Valentim elenca os aspetos práticos do abastecimento, da guarnição branca e indígena, logo nesta primeira fase. Teixeira da Mota continua a produzir os seus trabalhos aproveitando fundamentalmente o período da época das chuvas, contacta com os membros do Institut Français de l’Afrique Noire, prestigioso centro de investigação científica da África Ocidental Francesa, aquando das reparações do Mandovi nos estaleiros de Dacar. Em 1950, Teixeira da Mota publica a sua primeira obra de fôlego, sobre a toponímia de origem portuguesa usada para denominar vários locais na costa ocidental de África, a comunidade científica internacional endereça-lhe público louvor. A monografia sobre a Guiné Portuguesa espelha o seu conhecimento e estudo sobre África. Como observa Carlos Valentim, era o corolário de quem aprendera a viver em África, no meio das populações africanas, a estudar a cultura e as sociedades com o rigor da observação e encará-las de um modo que diferia da maioria dos outros europeus. Entretanto o Mandovi irá ser substituído por outro navio hidrográfico, o Pedro Nunes, será o seu comandante quem lhe dará o último louvor em novembro de 1957 quando Teixeira da Mota findou a sua prestação de serviço na missão geoidrográfica.

A última parte do artigo de Carlos Valentim é um levantamento sumário dos trabalhos da missão. Logo à partida: medição de uma base geodésica em Bissau; desenvolvimento da base e reconhecimento de uma triangulação formada por figuras fechadas que ligam geodesicamente Bissau e Bolama; determinação de declinação magnética, inclinação, e componente horizontal em Bissau e Bolama; sondagem parcial do porto de Bolama e observação das marés em Caió, Bolama e Bissau. Escreve Pereira Crespo: “A realização de trabalhos hidrográficos na Guiné é tarefa dura, difícil e demorada. Todas as condições e todos os elementos se parecem conjugar para dificultar tais trabalhos. Mau clima, má visibilidade, costas baixas, que em virtude das marés – 5 a 6 metros – ou se transformam em enormes zonas de lodo, ou em denso arvoredo semimergulhado. Correntes impetuosas. Más condições de mar motivadas pelo vento e correntes. E principalmente a preocupação permanente da segurança do navio e embarcações, navegando em zonas baixas, rodeadas de perigos, e por cartas que são certamente das mais erradas do mundo”. E conclui Carlos Valentim: “Durante dez anos, os levantamentos topográficos e hidrográficos, triangulações e sondagens, trabalhos em terra e no mar, fizeram da missão geoidrográfica da Guiné um empreendimento científico/técnico – modelo para o conjunto dos territórios ultramarinos que Portugal dominava.”

Navio hidrográfico Mandovi (1945). Imagem extraída do blogue “Os Rikinhus”, com a devida vénia.
Navio hidrográfico Pedro Nunes. Imagem extraída do blogue “Os Rikinhus”, com a devida vénia.
Avelino Teixeira da Mota
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Nota do editor

Último poste da série de4 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22596: Notas de leitura (1387): Imagens à procura de comentários: Augusto Trigo e a CART 1746 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22619: Convite (17): 'Por delegação, a título póstumo, de' (e em homenagem a) o nosso amigo, colega, companheiro e camarada Eduardo Jorge Ferreira (1952-2019), estão convocados/as todos/as os/as "eduardianos/as" para a monumental caldeirada de Ribamar, Lourinhã, segunda feira, dia 10 de outubro de... 2022

1. Mensagem de Luís Graça, por 'delegação, a título póstumo', do nosso querido amigo, colega, companheiro e camarada Eduardo Jorge Ferreira, e assumindo, "à contre-coeur", o lugar do comandante sucombido no combate da vida:

Data - segunda feira/11/2021, 00h01 


Assunto - Caldeirada de Ribamar


Caros/as amigos/as "eduardianos/as":

Em nome da pró-comissão para a convocação da mais famosa caldeirada do mundo, a de Ribamar (na segunda 2ª feira do mês de outubro, no âmbito da Festa de Nª Sra. Monserrate, a última tendo-se realizado em 14/10/2019 ), interrompida em 2020 pela pandemia de Covid-19 e ensombrada pela inesperada, traiçoeira, trágica morte, no mês seguinte, a 23, ,do nosso querido Eduardo Jorge Ferreira,), coube-me o triste papel  de vos anunciar  que este ano ainda não houve condições para vos chamar a capítulo...

O cartaz das festas de 2021...

A razão, simples, prosaica, brutal, irreversível, inapelável, por mais absurda que possa paraecer ser para um/uma "eduardiano/a", e contrariando as nossas mais que legítimas expectivas, é esta: ainda não houve festa a sério este ano, por causa da pandemia de Covid-19, pelo que também  não haverá caldeirada, hoje,  dia 11 de outubro de 2021...

Ou melhor: a grandiosa festa de Ribamar da Lourinhã, que tradicionalmente se prolongava por uns oito ou nove dias, este ano realizou-se apenas em "formato reduzido", no fim de semana de 9 a 10 do corrente, conforme cartaz que se reproduz à direita.  

Como se pode ler em triste nota de rodapé, para alegrar o corpo, houve apenas "Bar-Bifanas-Bolos de festa"...e pouco mais. Valeu-nos ao menos a proteção da Nossa Senhora de Monserrate, a Virgem Negra cujo culto remonta, na península ibérica, ao séc. IX, ao tempo das guerras entre mouros e cristãos... eque mais uma vez percorreu, em procissão, as ruas desta terra de gente valente, de pescadores e agricultores (que construiram 
as casas pro "cima do mar", de modo a defenderem-se
~melhor das incursões dos piratas, muçulmanos, cristãos e outros.

Eu sei que andamos todos com uma vontade danada de "fazemos prova de vida", " darmo-nos uns aos outros aquele abraço retido desde há 2 anos" e homenagearmos, como estava prometido, a memória do nosso amigo, colega, companheiro e camarada Eduardo, que durante mais de um quarto de século foi o bom cristão e o grande ser huamno que nos convocou para a caldeirada de Ribamar... 

Recorde-seque este evento, que nos primeiros anos se restringiu aos colegas do agrupamento de escolas de Ribamar, onde o Eduardo foi professor e diretor, estendeu-se depois a colegas de seminário e camaradas da tropa e da guerra na Guiné, chegando a juntar mais de uma centena de convivas, anualmente, oriundos das mais diversas partes do país.

Falei com a São, que se mostrou sensibilizada pelo vosso reiterado e caloroso interesse em continuar a manter viva esta iniciativa a que o Eduardo deu corpo e alma, com aquela generosidade e aquele brilhozinho nos olhos que todos/as lhe conhecemos...

Vamo-nos mantendo em contacto, na esperança de podermos marcar encontro à grande mesa "eduardiana", em Ribamar, Lourinhã, na segunda feira, dia 10 de outubro de 2022... Afinal, não falta muito, menos de um ano...

Isto, se os mordomos da festa nos quiserem lá e, mais importante,se Deus nos der vida e saúde, o que nem sempre acontece, como sabemos por amarga experiência, fixada no anexim popular: "Muita saúde e pouca vida, que Deus não dá tudo".

Boa saúde e melhor vontade de continuar a viver e conviver. Até lá portem-se bem, não nos preguem nenhuma partida... E esperemos que nessa altura alguns camaradas da diáspora, como o João Crisóstomo, se possam juntar a todos nós.

Lourinhã, 11 de outubro de 2021.

Luís Graça


PS1 - Mais próximo da data, a pró-comissão para a convocação da caldeirada de Ribamar (em constituição...) confirmará a realização do evento... que obviamente terá de ter o acordo, tácito ou formal,  da comissão das festas de N. Sra. Monserrate, Ribamar, Lourinhã.

PS2 -  No passado dia 23 de novembro de 2020, +or ocasião do 1º ano da sua morte, um pequeno grupo de amigos, colegas, companheiros e camaradas do Eduardo, acompanhados da São e do filho João, fez-lhe uma singela mas bonita homenagem no cemitério do Vimeiro onde repousam os seus restos mortais. Vd. aqui notícia no nosso blogue.

Se fosse vivo, o Eduardo Jorge Ferreira, que foi alf mil PA - Polícia Aérea, BA 12, Bissalanca, 1973/74, teria feito 69 anos em 1 de outubro passado. A sua memória, essa, continua viva bem como continua a ser inspirador o seu exemplo de vida. Tem mais de seis de dezenas de referências no nosso blogue.  

Guiné 61/74 - P22618: Parabéns a você (1996): Patrício Ribeiro, ex-Fuzileiro Naval (Angola, 1969/72) - Residente na Guiné-Bissau

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Nota do editor

Último poste da série de 10 de Outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22615: Parabéns a você (1995): Manuel Resende, ex-Alf Mil Art da CCAÇ 2585/BCAÇ 2884 (Jolmete, 1969/71)

domingo, 10 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22617: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte IV: Mafra e Tomar (Julho 1964/Abril 1965):


Capa da edição original da "Praça da Canção", de Manuel Alegre (Coimbra, Vértice, 1965, 143 pp., Col. Cancioneiro) que o Cristóvão de Aguiar ainda foi a tempo de adquirir e ler na véspera de Natal, passado em Coimbra, quando já era aspirante miliciano no RI 15, em Tomar. O livro de poemas, que marcou a estreia literária de ;Manuel Alegria, foi de imediato apreendido e proibido pela PIDE. Imagem: cortesia de Manuseado


1. Continuação da (re)publicação do "Diário de Guerra" (*), do nosso camarada açoriano e escritor Cristóvão de Aguiar (1940-2021), que faleceu na passada terça feira, dia 5, aos 81 anos (*). Organização: José Martins; revisão e fixação de texto (para efeitos de publicação no nosso blogue): Virgínio Briote. 

Estes excertos, que o autor cedeu amavalmente ao José Martins, para divulgação no blogue,  fazem parte do seu livro "Relação de Bordo (1964-1988)" (Porto, Campo das Letras, 1999, 425 pp).

Citado pela agência Lusa, no passado dia 5,  o presidente do Governo Regional dos Açores, José Manuel Bolieiro, lamentou a morte do escritor açoriano,, dizendo que "a literatura portuguesa, a lusofonia e sobretudo os Açores perdem muito hoje com o seu falecimento".



Cristóvão de Aguiar.
Foto: Wook (com a devida vénia...)


Diário de Guerra

por Cristóvão de Aguiar

(Continuação)

 
Julho, 13, 1964 - Como os instrutores nunca ministraram um curso tão comprido, não sabem que mais hão-de dar.

Andamos a re­petir o que fizemos na re­cruta. Aplicação militar, ordem unida, crosses, obstáculos, rastejar, percursos fan­tas­mas, in­s­trução nocturna, o raio.

A grande novidade é darem os instruen­dos al­gumas aulas de ginástica para irem treinando as vozes de co­mando. Hoje coube-me a mim dar a minha, na parada. O meu vozeirão chegou ao convento. Al­guns amanu­enses vieram às janelas para ver o que estava acon­te­cendo. No final da aula, o comandante de pelo­tão chamou-me e disse-me que tinha uma voz invejável. Prometeu-me que me da­ria uma boa classi­fica­ção nessa alínea.

Julho, 18 - O que são as coisas! Nunca gostei de melão

Quando estava na Ilha 
[, de São Miguel, ], nem o cheiro dele podia suportar. Meu Avô Anselmo (que hoje faria anos se fosse vivo) bem que in­sistia co­migo para que experimentasse. Dizia-me que devia começar pela meloa, que era me­nos cus­toso. Qual quê! Dava-me vontade de lançar tudo quanto tinha e não tinha no estô­mago. 

Aqui, no refeitório da unidade, têm dado todos os dias me­lão à sobre­mesa. Ao princípio, e julgando que não insistissem muito, dava a minha parte ao camarada que se sentava ao pé de mim. Ficava sem so­bremesa, o que me deixava um buraquinho no estômago. E pus-me a pensar na minha fobia. Até que hoje re­solvi experimentar. Que tivesse o meu camarada de armas santa paciência. Provei a medo. E gostei tanto, que, em meia tarde, quando saí do quartel, fui com outros comprar melões a um lugar de fruta. Fo­mos depois comê-los para o quintal de uma tasca. Foi um fartote. E ve­nham-me cá dizer que na tropa não se aprende nada!

Agosto, 28 - Terminei o meu primeiro curso.

Amanhã é a entrega das armas e ala bote para Coimbra passar umas férias até ser colocado numa Unidade para dar instrução. Durante este longo curso apanhei chuva, árvores em flor, sol de estorricar os miolos, Agosto sem cheiro sequer a mar.

Sofrimento, suor, medo, espe­ranças logo abortadas. E com umas seguras noções de como se engraxa o calçado, e se muda de farda várias vezes ao dia, e alguns conhecimentos sobre a Pátria, virtudes militares, granadas, inimigo, armas automáticas – obtive a minha carta de curso...

No fim, os homens que entraram já não eram os mesmos. Nas conversas, em casa, no café com os camaradas, saía-nos da boca uma virtude militar com o mesmo à vontade com que toda a gente se peidava na caserna. Esta foi para alguns mais aplicados, ou com o cérebro mais bem lavado, um verdadeiro campo de treino, depois da instrução do dia: passos à frente e à retaguarda, meia volta volver, continências como mandam as re­gras, vozes de comando...

Terminou hoje a primeira fase da escola de virtudes. Bebe­deiras de fictícia alegria, com a tristeza ferindo, subtil, certos gestos e sentidos, ga­lões ensopados em whisky, como manda a praxe militar... E fica a EPI de Mafra, a casa-mãe da Infantaria (Entrada para o Inferno), aguardando, na sua adiposa arquitec­tura conventual, mais magotes de jovens cadetes para tentar fa­zer deles máquinas com o pensamento estrangulado no fundo opaco do crânio. Mas muitos resistem e conti­nuam sendo jovens, embora tristes e abstractos.

Agosto, 29 - Fui promovido a aspirante a ofi­cial mil­i­ciano (isto é, trouxe os galões comigo e enfiei-os, já fora de Mafra, nas platinas do dól­men), mas já sei que fui colocado no Regimento de Infantaria 15, em Tomar.

Te­nho de me apre­sen­tar em meados de Setembro, numa segunda-feira, e só então po­derei usar os ga­lões, mas hoje quis entrar em Coimbra já promovido e de facto apa­nhei algumas conti­nências pela rua. Tinha pedido para ir para o Batalhão Inde­pen­dente 18, acanto­nado na freguesia dos Arrifes, na Ilha. Não calhou.

Talvez por­que vou ser mobili­zado muito em breve. Até à minha apresenta­ção em Tomar, vou go­zar umas fé­rias nesta Coimbra de­serta. Na República não há quase nin­guém. Al­guns de férias, nas Ilhas, outros já na guerra, como o José Bretão e o Viri­ato Ma­deira, ambos na Guiné e ou­tros como eu, quase a partir. O calor é muito. De dia não se pode sair de casa. À noite, dou grandes passeios pela fresca, jun­tamente com um rapaz da Terceira, o Helder Gomes, que está a preparar-se para o exame de aptidão à Uni­versidade. É interessante conver­sar com ele. Noto que me tem muito respeito, não sei se por ser oficial do exército, se por ser terceiranista da Universi­dade e ele simples para­quedista, isto é, nem bicho nem ca­loiro, segundo a praxe académica.

Tomar, Setembro, 14 - Apresentei-me ao coman­dante da uni­dade.


Den­tro de dias, vou principiar a dar uma recruta em substituição de um aspi­rante, perten­cente a um Batalhão de Caçadores com des­tino a An­gola, que se encontra de baixa. O comandante desse contingente, um tenente-coronel muito aprumado e de pinguelim, tem um ar de lunático e parece de uma tropa de outro tempo.

Encontrei dois açoria­nos na unidade. O capitão Moniz e um cabo mil­ici­ano, o Pedro Jácome Correia. Três ilho­tas neste mar de terra e oliveiras. Não há ainda instalações para oficiais no quartel novo, que ainda se não acabou de construir. E no velho estão já lotadas. Tive de ar­rendar um quarto, que fica na rua da sinagoga.

Setembro, 30 - O comandante do regimento mandou-me cha­mar ao gabi­nete.

Fiquei assustado. Depois de lhe ter pedido licença para en­trar, ele, depois de desfazer a continência, disse-me com bons modo:
- Soube que o nosso aspi­rante acamarada com um cabo mili­ciano e até se tratam por tu; quero infor­má-lo que tal atitude é contra o Regulamento Militar.

Nem justificando-me que se tratava de um con­ter­râ­neo e colega de Liceu, o homem se demoveu. Vem no regu­la­mento!

Dezembro, 15 - A minha companhia tem o número oito­cen­tos e destina-se a Cabo Verde, Ilha do Sal.

Acho que é muita sorte para um homem só.

Coimbra, Dezembro, 22 - Cheguei de Tomar em meia tarde, ainda a tempo de comprar a "Praça da Canção", que saiu ontem ou anteontem, mas que já os­ten­ta, na capa, a data de 1965.

Foi o Antero Dias quem me deu a novidade. Fui com ele jantar ao Texas da baixinha e a seguir viemos para a República, onde es­tive até al­tas horas a ouvi-lo ler em voz alta o livro do Manuel Alegre do primeiro ao úl­timo verso. Ele declama tão bem e com tamanha força expres­siva, que fiquei arre­piado por dentro e por fora. Como não houvesse mais poe­mas, principiámos de novo.

Ficámos com a sensação de que nos encontráva­mos perante uma poesia tão diferente daquela que estávamos habitua­dos, revolucionária e lírica ao mesmo tempo, com uma lingua­gem poética tão encan­tatória, que nos encheu o íntimo não sei de que energia e entu­siasmo. Dava vontade de sair por aí tocando os sinos que cada homem tem no cora­ção. É livro para ser proibido pela PIDE. Felizmente, está a edição prestes a esgo­tar-se, se­gundo me disse o livreiro. É natural que os esbirros não cheguem a tempo.

Coimbra, Dezembro, 24 - Natal passado com a família cor­sária, com vinho abundante para afogar não sei que saudade im­pertinente.

Não consigo arrancá-la do pensamento. E nestes dias lem­brados ainda pior. Não sei que nome hei-de dar a este ardume que me corrói as vísceras como um ácido forte. Não, não quero sequer pensar que seja o que neste instante estou pen­sando!

1965

Hospital Militar de Coimbra, Fevereiro, 26, 1965 - Dei entrada de urgência neste hospital.

Apendicite aguda. Fui operado ontem de manhã. Anestesia só da cin­tura para baixo. Dei conta de tudo. Depois de uma aula de aplicação mili­tar, em que pus o meu pelotão de língua de fora e completamente enlameado, como eu, que era sempre o primeiro a demonstrar o que queria que os homens fizessem, sobre­veio-me o castigo, dores de barriga insuportáveis. Vim de am­bulância de Tomar para Coimbra e aqui estou numa cama de hospital. Há pouco veio-me ver o Antero Dias.

Março, 4 - Cabo enfermeiro

Como não me permitiram que saísse do hospi­tal para ir dar uma volta, chamei o cabo enfermeiro, dei-lhe uma nota de vinte escudos e disse-lhe que ia guindar o muro das traseiras. Nem esperei pela reacção dele. No fim e ao cabo, era ou não era seu superior hierárquico? E, com a breca, a ginástica de apli­ca­ção militar sempre havia de servir para alguma coisa de préstimo.

Abril, 6 - Afinal, a minha companhia vai para a Guiné.

O co­man­dante recebeu hoje um rádio urgente a anunciar a mu­dança. Olhámos uns para os ou­tros como condenados à morte. Só o capitão é que aparentemente se não des­caiu. É a vida que escolheu. E eu que já tinha comprado sabonetes es­peci­ais para a água salo­bra da Ilha do Sal!

(Continua)
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Nota dos editores VB/LG:

(*) Vd. postes anteriores:

Guiné 61/74 - P22616: Blogpoesia (751): "Bons hábitos"; "Louvor a Deus"; "Vá e desapareça..." e "Janela da alma", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. Publicação de poesia da autoria do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66):


Bons hábitos

Bons hábitos na vida são aqueles que nos fazem viver.
Se cresce vivendo.
A letargia cria micróbios mortais.
Voltar ao "motocas" é um nosso hábito velho.
Saímos daqui difrentes. Melhores.
Por isso aqui estamos mais uma vez.
É preciso sair de casa.
O mofo é inimigo do bem-estar.
Lá fora do "motocas" há um mar de motas, espampanantes.
Os alemães são espalhafatosos nos seus fatos a rigor.


Bar dos "motocas", 26 de Setembro de 2021
16h8m
Jlmg


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Louvor a Deus

Louvar a Deus por cada momento de nossa vida é tarefa que não pode parar.
Erguer ao céu nossos olhos em cada dia que nasce e se põe.
Atravessá-la como uma viagem que não tem paragem nem retorno.
Sentir seu peito a arder em fogo de oração.
Vela a arder que nunca apaga...


Berlim, 2 de Outubro de 2021
17h25m
Jlmg


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Vá e desapareça...

Vá e desapareça esta névoa negra de dor e constrangimento
Que nos humilhou e reduziu a zero.
Pró inferno e lá fique soterrada eternamente.
Alcançou sòzinha como guerra atroz o que uma guerra faz sem matar as gentes.
Dizimou penachos e vaidades ocas de poder e glória.
Cobriu os rostos que são espelho da alma e fonte de alegria e de tristeza.
Secou a fonte benfazeja da sã convivência.
Reinou despótica enquanto quis.
Só desertou quando lhe deu na real gana, sem dizer adeus...


Berlim, 3 de Outubro de 2021
17h20m
Jlmg


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Janela da alma

A voz é nossa janela da alma.
Por ela espreitamos prá-frente e prós lados.
Não há canto ou recanto onde ela não vá.
Traduz em palavras os vãos das escadas.
Perscruta escaninhos ocultos sem conta.
Revela segredos.
Pinta quadros de cor com letras doiradas.
Exala os sonhos, poemas que dormem profundos.
Enquanto houver vida nunca se cala.
Um dom e uma prenda a janela da alma.


Berlim, 9 de Outubro de 2021
17h25m
Jlmg

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Nota do editor

Último poste da série de7 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22608: Blogpoesia (750): "Guiné-Bissau - Canchungo", por Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS/BCAÇ 2845 (Teixeira Pinto, 1968/70)