quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22646: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte VIII: Contuboel , Fajonquito e Sonaco. Gravidez da Otília (Jan - ago 1966)



Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Contuboel > Rio Geba > 1969 > Uma belíssima foto de uma lavadeira, em contraluz. O Valdemar Queroz atribuiu os créditos fotográficos ao seu "irmão siamês" Cândido Cunha.

Foto (e legenda): © Cândido Cunha / Valdemar Queiroz (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar. Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Continuação da (re)publicação do "Diário de Guerra", do nosso camarada açoriano e escritor Cristóvão de Aguiar (1940-2021), que faleceu na passada dia 5, aos 81 anos (*).

Organização: José Martins; revisão e fixação de texto (para efeitos de publicação no nosso blogue): Virgínio Briote (,a partir da parte VI, Carlos Vinhal).

Estes excertos, que o autor cedeu amavalmente ao José Martins, para divulgação no blogue, fazem parte do seu livro "Relação de Bordo (1964-1988)" (Porto, Campo das Letras, 1999, 425 pp). (**)



Cristóvão de Aguiar.
Foto: Wook (com a devida vénia...)


Diário de Guerra


por Cristóvão de Aguiar


(Continuação)

Contuboel, 12 de Janeiro de 1966


Ontem o nosso batalhão, Sete de Espadas [,BCAV 757, Bafatá, 1965/67] , so­freu dez mortos numa emboscada [, em Sare Dicó, na estrada Fajinquito-Canjambari]  Tinha ficado com o meu pelotão na base, para montar a segurança e dar apoio logístico, quando, pouco depois de terem par­tido para uma operação no mato do Caresse, terra-de-ninguém e de muita pancada, se ou­viram grandes rebentamentos na direcção que tinham tomado. 

Uma hora e pouco mais tarde, chegou uma viatura com os mortos a trouxe-mouxe sobre o estrado da carroça­ria. Ti­nham morrido ali como tordos, de­pois de os guerrilheiros te­rem lançado algumas gra­na­das defensivas para o interior da GMC. 

Fiquei encar­regado de transportar aquela carne humana para Fa­jon­quito, sede de uma compa­nhia tam­bém pertencente ao nosso bata­lhão.



Guiné > Carta geral da província (1961) > Escala 1/599 mil > Posição relativa de Sare Dico, na estrada entre Fajonquito e Canjambari, ondee forma mortos em combatem no dia 11/1/1966, dez militares da CCS/BCAV 757 (Bafatá, 1965/67).

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2021)


Fajonquito, 13 de Janeiro de 1966


Enquanto o capelão procedia às exéquias fú­nebres e rezava missa campal por alma dos dez mortos irreconhecíveis, safei-me, re­voltado, para um canto solitário, longe de toda aquela cruel comédia desumana. E pe­guei da esferográfica e do meu caderninho e fui escrevinhando:

O VISIONÁRIO

Rasguem-se as corti­nas do sacrário,
Onde ficou Jesus aprisionado
Tal como há dois mil anos no Cal­vário
Pregado num madeiro, ensanguentado...

Era Sua Pala­vra pão sagrado
E o gentio que escutava o Visionário
De tal arte ficou maravi­lhado
Que O elegeu seu re­volucionário...

Depois, o tirano, opressor do povo,
Julgando apagar esse Sol novo
Mandou matar o vate desordeiro...

Crucificaram-no então no Calvário:
- Está agora a ferros num sacrário,
Não vá Ele tornar-se guerrilheiro...


Bissau, 17 de Janeiro de 1966

Vim ao aeroporto de Bissalanca esperar a Otília, que vem passar uns meses comigo nesta guerra. Se calhar, foi uma loucura da mi­nha parte. Sem dúvida que foi. E egoísmo. Chame-se-lhe o que se quiser, mas, an­tes de morrer, gostava de deixar descendência. Ficámos instalados no Grande Hotel de Bis­sau, que só tem grandeza no nome.


Contuboel, 19 de Janeiro de 1966


Acabámos de chegar de Bissau, eu e minha Mulher. A nossa casa é um espaço vago, quarto e corredor, que me cedeu o Chefe de Posto e que fica contíguo ao edifício. Não há água nem electricidade. Alumiamo-nos a petro­max. A água virá todos os dias do quartel, que fica a meia dúzia de pas­sos, para um barril que coloquei na extremidade do corredor oposta à porta de en­trada, onde, com um reposteiro, fiz um pequeno compartimento que vai servir de cozinha.

Antes de minha Mulher chegar, arranjei o nosso quarto o melhor que pude: consegui uma cama de casal, pus cortinas nas janelas, cujo pano comprei no comércio do libanês e que um alfaiate indígena depois talhou, acertou e coseu, mandei fazer uma mesa de boa ma­deira africana. 

Este é que é verdadeiramente o chamado amor e uma ca­bana.


Contuboel, 14 de Fevereiro de 1966

A Otília está grávida, pelo menos tem to­dos os sintomas de uma mulher nesse estado: enjoos, vómitos. Se for mesmo ver­dade, isto significa que, se me for desta para melhor com um qualquer tiro desgo­vernado, já deixo rastro atrás de mim. Um filho engendrado na guerra!

Contuboel, 16 de Março de 1966

Fomos hoje a Fajonquito, povoação a mais de vinte quilómetros de distância, onde também se encontra uma Companhia de Ca­çado­res. A Otília foi comigo, a fim de consultar o médico, meu companheiro da República Corsários das Ilhas, em Coimbra, e muito nosso amigo. 

A Otília queixa-se das pernas, parecem picadas de mosquitos, mas não são. O Ormonde de Aguiar, assim se chama o meu velho companheiro de Coimbra, disse que se tratava de uma qualquer doença de pele e deu-lhe uns medicamentos para o efeito.


Contuboel, 7 de Abril de 1966

Quando vou para o mato por dois ou três dias, a Otília não tem medo de ficar sozinha em casa. É mesmo uma mulher de armas! Fica bem guardada pelas sentinelas que os cipaios fazem dia e noite ao Posto Ad­ministra­tivo, além de ter o quartel à mão de semear. O medicamento que o Or­monde lhe recei­tou fez muito bom efeito: já não tem nada nas pernas.


Contuboel, 23 de Abril de 1966

Faz hoje um ano que desembarcámos em Bis­sau. Não me esqueci de des­carregar a cruz na casa do calendário. Esta é já a tricen­tésima, sexagésima sexta, se me não engano. Esta­mos já a dobrar o cabo tormentó­rio. A partir de agora, começa o tempo a de­s­cer. É a altura de se principiar a ter muito cuidado com a vida, que a morte gosta de pregar partidas nestas ocasiões lembra­das.

Sonaco, 30 de Julho de 1966

O meu pelotão foi finalmente destacado para aqui, que, no meio deste inferno, é um lugar sofrível. A Otília prefere aqui estar. Temos uma espécie de casa de paredes de adobes e coberta de colmo, mesmo ao lado do quartel, mais fresca do que a de Contuboel. Da porta de trás da casa, dou as minhas ordens ao pessoal da cozinha sobre a ementa do dia. Temos aqui uma pista térrea onde poisa uma Dornier com facilidade. É lá que treino a minha con­dução no jipe que per­tence ao destacamento.


Sonaco, 9 de Agosto de 1966

A Otília fez hoje anos e por isso houve rancho me­lhorado. Dormimos com as janelas das traseiras abertas por via do calor e do peso da humidade. Para evitar que os mosquitos e outra bicheza, aqui aos milhares, mordam a gente, mantemos aceso um repelente do qual se evola uns fuminhos cujo odor intenso os afugenta. 

O pior são os gatos que vêm ao cheiro da comida e fa­zem, por vezes, uma estreloiçada de me pôr maluco. Ando com os nervos em franja, por isso qualquer barulho, por mais pequeno que seja, põe-me transtornado. Uma noite destas fui acor­dado e apanhei tal susto que peguei logo da espingarda, encostada à parede, à ilharga da cama do meu lado, acordei a Otília, disse-lhe que ia disparar, que se não assustasse, poisei o cotovelo esquerdo na sua já proeminente barriga, apoiei o cano da arma na mão canhota meio em concha, encostei a coronha ao ombro direito, fiz pontaria e dis­parei, uma, duas vezes. 

Matei um gato e os ou­tros desape­garam-se. A Otília não me disse sequer uma palavra mais azeda e tinha toda a ra­zão para o fazer. Virou-se para o ou­tro lado e principiou logo a dormir.

(Continua)
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Notas  do editor:

(*) Vd. poste de 6 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22606: In Memoriam (410): Luís Cristóvão Dias de Aguiar (1940-2021), ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 800 (Contuboel e Dunane, 1965/67), falecido no dia 5 de Outubro de 2021

(**) Último poste da série > 16 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22634: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte VII: Contuboel e Dunane (entre Piche e Canquelifá) (Out - dez 1965)

terça-feira, 19 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22645: (De)Caras (179): O que é que o José Manuel Matos Dinis (1948-2021) pensava do nosso blogue, em abril de 2013


José Manuel Matos Dinis (1948- 2021)


O nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), que deixou a Terra da Alegria no passado dia 18 (*), há oito atrás, em 27 de abril de 2013, respondia assim a um inquérito por questionário, dirigido aos nossos leitores, por oasião do nosso 9º aniversário (**).

Os seus amigos e camaradas gostarão de rever a sua  opinião, nessa época, sobre o nosso blogue, a que ele pertencia desde 2008. Sempre foi um homem de olhar crítico e frontal (***)-


(1) Quando é que descobriste o blogue?

R - Ainda trabalhava quando um amigo me alertou para a existência do Blogue. Abri umas poucas de vezes, mas não tive logo o entusiasmo para me tornar assíduo. Ao contrário da maioria, eu achei que tinha demasiadas fotografias, e que era um bocado épico.

(2) Como ou através de quem?

R - Vide a resposta anterior.

(3) És membro da nossa Tabanca Grande (tertúlia)?

R - Desde 2008. [Vd. poste 3147, de 24 de agosto de 2008]

(4) Com que regularidade visitas o blogue?

R - Via-o diariamente, e só desde data recente vou alternando os dias de olhadelas. Acho que para isso, também tem contribuído as longas ausências de colaboradores de muita qualidade. Não faço ideia se estão desinteressados, se com outras ocupações, mas que fazem muita falta, acho que sim.

(5) Tens mandado (ou gostarias de mandar mais) material para o Blogue (fotos, textos, comentários, etc.?

R - Sim, já enviei algum material, e ainda não arrumei as botas. [O José Manuel Matos Dinis tinha, até então,  cerca de 130 referências no blogue; até à data do seu falecimento, era, cerca de 230]

(6) Conheces também a nossa página do Facebook (Tabanca Grande Luís Graça)?

R - Não frequento o FB.  [ Acaberia, mais tarde, por criar a sua página no Facebook, José Dinis, foto de perfil à eswuerda, com a devida vénia]

(7) Vais mais vezes ao Facebook do que ao Blogue?

R -Ao Blogue, n'é?

(8) O que gostas mais no Blogue? E no Facebook?

R - Do que gosto mais? Gosto de todas as informações que contribuam para o meu conhecimento; gosto do humor delicioso de alguns camaradas; gosto das manifestações de genuinidade; gosto do sentimento de camaradagem que o mais das vezes se respira no Blogue.

(9) O que gostas menos no Blogue? e no Facebook?

R - Esta, eu salto.

(10) Tens dificuldade, ultimamente, em aceder ao Blogue?

R - Não, acedo sempre, ou quase sempre, pois houve já uma ocasião de dificuldade geral.


Infografia: Miguel Pessoa (2013)


(11) O que é que o Blogue representou (ou representa ainda hoje) para ti? E a nossa página no Facebook?

R - O que é que o Blogue representa? Através dele (Blogue) estabeleci contactos de norte a sul, encontrei pessoas muito interessantes, ponderadas umas, com mais nervo outras, mas sempre generosas e legitimadas pela camaradagem. Também houve o contrário, até oportunismo e aberrações, mas contam-se pelos dedos. 

Portanto, o Blogue representa um convívio, onde se entra e sai a bel-prazer, e através dele tive o privilégio de conhecer, corresponder-me, e conviver com amigos, que até parecem ser de longa data. Acho isto uma felicidade, que prezo muito.

(12) Já alguma vez participaste num dos nossos anteriores encontros nacionais?

R - Sim, já participei em três encontros, e foi sempre muito surpreendente o contacto com malta distante. Afinal, a distância pode não se expressar em quilómetros.

(13) Este ano  [, 2013,] estás a pensar ir ao VIII Encontro Nacional, no dia 8 de Junho, em Monte Real?

R - Não, este ano não penso lá ir. Em primeiro lugar, o encontro da minha companhia foi marcado para o dia 1 de Junho, perto das pedras parideiras. Em segundo lugar, porque o dinheiro escasseia, há outras despesas pendentes, e a minha deslocação ficaria carote. Tendo em conta os tempos dificeis, com rendimentos reduzidos e cilindrados por impostos, proponho que o Joaquim  [Mexia Alves], para o ano, promova um pic-nick na mata do empreendimento, e cada um leva o farnel.

(14) E por fim, achas que o blogue ainda tem fôlego, força anímica, garra… para continuar?

R - Tem fôlego, claro! Haja vontade de cada um para contar uma estória (que todos temos estórias para contar), notícias reveladoras de situações relacionadas com a Guiné e a guerra, ou, até notícias, comentários, transcrição de contos, de receitas culinárias, de condições turísticas, e a malta que ficou com o bichinho africano, vem cá ler. Mas o blogue pode ainda promover outras iniciativas, como debates, entrevistas, etc.

(15) Outras críticas, sugestões, comentários que queiras fazer?

R - Não esperei, e respondi no ítem anterior.

Abraços fraternos
JD
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Notas do editor:

(*)  Vd. poste de 18 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22641: In Memoriam (414): José Manuel Matos Dinis (1948-2021), ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2679, (Bajocunda, 1970/71), falecido ontem, dia 17 de Outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22644: Os nossos regressos (41): O tempo até aos meus 25 anos e a minha vida de adulto (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616 e CART 2732)

1. Mensagem do dia 18 de Outubro de 2021, do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616 / BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), continua a falar-nos dos tempos próximos vividos após o seu regresso da Guiné.


O REGRESSO (3)

Os dias longos que vivi até aos 25 anos, idade do meu regresso, têm uma dimensão maior na minha memória do que os dias posteriores da minha vida de adulto, quando o tempo começou a fugir (tempus fugit). Os dias anteriores, da infância, adolescência, juventude foram dias de crescimento, de conhecimento, de reflexão, de rebeldia, à espera da independência, da liberdade e da mudança.

A vida militar pelo tempo excessivo que me ocupou e por me ter enviado dois anos para uma zona de guerra noutro continente,  partiu-me a vida em duas partes, que tive dificuldade em ligar quando regressei.

O passado volta do fundo da memória e ganha uma dimensão muito grande, longos dias os da infância, da adolescência, longos dias os da juventude passados em Portugal ou na Guiné.

Decidido a ter noites mais bem dormidas, saí da Pensão Mirandesa e fui para uma hospedaria na parte superior da rua Santa Catarina, bastante perto do trabalho, que era gerida por uma senhora "balzaquiana" solteira ou divorciada, já não sei, expedita e organizada. Fiquei num quarto individual com bom aspecto e condições, como no geral toda a casa.

Nesse tempo muitos solitários enchiam essas pensões e hospedarias legais ou ilegais, iam convivendo uns com os outros e por vezes fazendo boas amizades. Hoje não será muito diferente apesar das redes sociais.

Ao jantar, sempre bem servido, sentados à mesa, na hospedaria da D. Fernanda, estavam os seguintes comensais:
- Uma jovem atraente pela sua beleza e pela forma cuidada como se vestia e cuidava do cabelo, do rosto e da pele, que se dizia esteticista. Bem educada, procurava cultivar boas relações com todos.
- Um cabeleireiro de senhoras, divorciado, regressado há algum tempo de Angola, com cerca de 40 anos, que trabalhava na parte baixa da rua, um cavalheiro muito educado e sempre com boa apresentação.
- Um enfermeiro, divorciado, alto e forte, com cerca de cinquenta anos, regressado da África do Sul, que vivia num quarto com uma moça roliça e com pouca graça, sentada ao seu lado. Este senhor era um pouco abrutalhado, para uma profissão tão delicada, e grosseiro na sua relação com a namorada, já que por vezes, em frente de todos a descompunha por ela não arranjar trabalho. A "gata borralheira" teria o antigo quinto ano liceal mas somente tinha conseguido "esse emprego", de viver com o enfermeiro, que tirando-a de trabalhos, não lhe dava grande tranquilidade. Tinha apesar de tudo a atenção compassiva das senhoras da casa, enfim a solidariedade feminina existe.
- Um mecânico de automóveis, sociável e falador, que trabalhava numa oficina próxima.
- Dois provincianos, um do oeste, outro do leste de Trás-os-Montes, já com a tropa feita, a trabalhar nas Caixas de Previdência.
- De mim nada direi, já todos me conhecem um pouco.

Do meu colega, que trabalhava noutra instituição, e só o conheci lá, direi que era um coscuvilheiro maldizente que tendo andado a investigar a tal jovem esteticista, seguindo-lhe os passos, terá descoberto, segundo me disse, que ela não era esteticista mas sim manicure numa barbearia da rua da Constituição e que muitas vezes vinha um senhor de alguma idade buscá-la de Mercedes, perto da hospedaria.

Ele, penso que estaria frustrado por não ter as atenções da Cinderela mas na verdade ele não merecia mais do que uma bruxa má.

Por vezes em tardes de domingo que não saía fui convidado por essa jovem para estar com ela no quarto, que era grande, bem mobilado, com um toque feminino que o tornava mais acolhedor, para conversar e ouvir música, com as portas abertas, não fosse o diabo intrometer-se na nossa relação.

Tinha um bom relacionamento com ela e com o cabeleireiro, embora me parecesse que entre eles dois o relacionamento era mais próximo, o que seria natural dado que as suas profissões eram afins. Com os outros ia convivendo sem atritos.

Gostava de estar na hospedaria da D. Fernanda. O alojamento era bom, a comida também, o ambiente não era mau e estava a poucos minutos a pé, do trabalho.

Porém um dia, com muita pena para mim, fiz as malas e fui para uma casa de hóspedes mais barata, pois dei-me conta que não me sobravam muitos trocos para outros extras depois de pagar a mensalidade.

Esta ficava num quarto andar, de um prédio antigo, sem elevador da rua Formosa. Era uma casa modesta, gerida por um casal natural da cidade, ambos magros e de aspecto humilde. Fui alojado num quarto com outro hóspede um jovem de Pampilhosa da Serra que trabalhava e estava a acabar o curso de contabilidade. Gostei da companhia dele, era inteligente e trabalhador, e admirei a sua grande força de vontade já que ele, segundo contava, tinha por vezes dores de cabeça terríveis à noite devido a ter tido menigite, mas continuava a lutar pela vida, em duas frentes.

A casa entre os hóspedes era conhecida pela pensão da morte lenta. Já não sei se servia jantares, pois recordo-me de ir muitas vezes fazer essa refeição com outro hóspede, um bom camarada que tinha um trabalho técnico, natural de Fafe, a um restaurante próximo e barato.

Por vezes ia com ele ter com uns seus amigos e conterrâneos, dois rapazes próximos das nossas idades que viviam juntamente com uma irmã numa casa próxima. Trabalhavam na EDP, a irmã já não sei se trabalhava ou estudava, os três eram altos, muito agradáveis no convívio, muito parecidos, física e psicologicamente, até na forma de sorrir me pareciam iguais. A irmã um pouco mais discreta, por ser mulher, não deixava de inspirar uma abertura e franqueza idêntica aos irmãos. Havia uma grande harmonia entre eles talvez também por serem próximos na idade. Com eles e com o outro amigo sentia-me em família.

As nossas conversas versavam sobre o dia a dia, as nossas origens, as raparigas, o trabalho e pouco mais. Já todos tínhamos feito a tropa e experimentado as guerras de África mas evitávamos falar disso, porque eram memórias recentes que magoavam.

As minhas andanças por diferentes casas e ruas da cidade, irão acabar brevemente para me fixar durante alguns anos numa casa.

Até breve.
Francisco Baptista

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Nota do editor

Último poste da série de 5 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22600: Os nossos regressos (40): Os nossos irmãos são sempre cópias desiguais de nós próprios, os amigos podem preencher um espaço de compreensão e entendimento que nem sempre encontramos em família (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616 e CART 2732)

Guiné 61/74 - P22643: Questões politicamente (in)correctas (56): A caminhada para a... "descolonização exemplar" (José Belo, jurista, Suécia)

1. Mensagem do Joseph Belo

Data - 13/10/2021, 19:20 e 20:41

Assunto -A caminhada para a... "descolonização exemplar" !


Em 1962 foi elaborado pela CIA  um plano denominado “Commonwealth  Plan”com vista a fazer aceitar ao governo português as inevitáveis independências das colónias. O plano estipulava a autodeterminação de Angola e Moçambique após um período de transição de oito anos.

O relacionamento futuro de Portugal com as ex -colónias seria resultante de um referendo efectuado durante o período. O planeamento propunha que em 1962 a NATO oferecesse a Portugal 
500 milhões de dólares para modernizar a sua economia.

Foto à esquerda: José Belo,  jurista, o nosso luso-sueco, cidadão do mundo, membro da Tabanca Grande, reparte a sua vida entre a Lapónia (sueca), Estocolmo e Key-West (Flórida, EUA); foi nomeado por nós régulo (vitalício) da Tabanca da Lapónia, agora jibilado; na outra vida, foi alf mil inf, CCAÇ 2391, "Os Maiorais", Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70); é cap inf ref do exército português;  durante anos alimentou, no nosso blogue, a série "Da Suécia com Saudade"; tem cerca de 210 referências no nosso blogue.


Um ano depois esta proposta foi ampliada pelo diplomata Chester Bowles duplicando a quantia. Estes novos 500 milhões seriam pagos durante um período de cinco anos.

Mil milhões de dólares era uma quantia enorme na época tendo-se em conta a verdadeira dimensão da economia portuguesa.

Esta proposta foi apresentada a Salazar em Agosto de 1963 pelo então Secretário do Estado adjunto norte-americano, George Ball, em nome da Administração do Presidente Kennedy.

Salazar recusa a oferta, do mesmo modo que recusara todas as ofertas de uma saída política, por parte dos aliados, aquando da queda (exemplar?) de Goa.

Curiosamente verifica-se a exatidão com que a CIA e vários diplomatas norte-americanos apresentam, com uma antecedência de muitos anos, a previsão da derrocada portuguesa em África a somar-se ao derrube da ditadura em Portugal.

“A ser permitido que as revoltas em África ganhem volume, a incapacidade de uma vitória militar será o resultado inevitável, agravado pela internacionalização dos conflitos.“

Questionava-se mesmo se “os Estados Unidos poderiam permitir que Portugal cometesse suicidio arrastando os seus aliados na mesma via.”

No meio de todas estas análises o então embaixador norte-americano em Portugal, Burke Elbrick, enviou em 1963 um telegrama para Washington, salientando o facto de Portugal se encontrar frente a escolhas muito difíceis: “Não suficientemente forte, nem rico, para enfrentar uma prolongada guerra em três frentes.“

Advertiu ainda que “as guerras de África viriam a significar o fim do império Lusitano e do regime de Salazar. Fim de regime que poderia levar ao poder um governo consideravelmente mais esquerdista ou neutral.”

Um ano depois (1964), dez anos antes de Abril/74, a CIA advertiu que as guerras de África levariam a um aumento do descontentamento interno que poderia vir a convencer os militares da necessidade de substituir Salazar.

Em 1964 o então Presidente Johnson foi advertido pelo Conselho de Segurança Nacional que as perspectivas das guerras de Portugal em África não eram boas a longo prazo. “Já não se tratava de saber se as colónias se tornariam independentementes, mas antes de saber quando e como.”

Tinham como certeza que, quanto mais as lutas se prolongassem, mais violentas, racistas e infiltradas por comunistas se tornariam. Estes prolongamentos levariam a que a crise final a ser enfrentada pelos Estados Unidos seria mais caótica, radical e anti-ocidental (Angola é usada como exemplo).

O governo da ditadura mais uma vez procurou enfrentar a onda em vez de inteligentemente a “cavalgar”. Teriam havido oportunidades de “alinhamentos” diplomáticos passíveis de trazer benefícios nacionais… dentro de parâmetros realistas e dimensionados. Porque “alinhamentos” já os havia então,tanto transatlânticos como europeus.

As características do governo português não o tornariam atraente em muitos “salões” ocidentais. Mas convergências de interesses fazem milagres, principalmente quando os necessitados sabem realisticamente manobrar.

O ditador escolheu o “Orgulhosamente sós“ com êxito (mais uma vez exemplar?) experimentado frente à União Indiana.

Partiu-se do grandioso princípio que tanto os Estados Unidos como os outros aliados ocidentais iriam “acertar passo” por uma política ao revés dos seus interesses (!), porque referirem-se ideais nas relações internacionais seria... despropositado!

Em bicos de pés ditatoriais, que afinal eram de barro, olhando sobre o ombro para Áfricas do Sul e Rodésias que ninguém hoje sabe por onde andam, abriu-se a ampla via que terminou como terminou. Exemplarmente.

Um abraço, J. Belo
__________

Bibliografia:

— Documentos da Secretaria do Estado Norte-Americana para os assuntos africanos.

—Livro de Witney Schneider (Secretário de Estado Adjunto para os assuntos africanos durante a Administração do Presidente Clinton)

—Documentação de Paul Sakwa (Assistente do Diretor Adjunto da CIA  em 1962)

—Memórias do Secretário de Estado Adjunto George Ball.

—Jormal Público/2004


2. Uma adenda ao texto anterior, enviada em 17 do corrente, às 22:35, pelo J. Belo

Spínola e a Comissão Coordenadora do MFA tinham em mente soluções bem distintas para as colónias.

Para a Federação de Estados Lusófonos sob a égide de Portugal já era tarde. 
A situação político-social tinha tomado um rumo de tal modo acelerado que não permitia soluções políticas apoiadas em forças militares com uma coesão, disciplina e vontade, necessárias para tal missão.

“Nem mais um soldado para as colónias “ era então uma onda de fundo, criada na sociedade
civil mas que se fazia sentir dentro da instituição militar limitando-a nas suas capacidades.

Autocolante do PCP (ML).

Fonte: Ephemera - Biblioteca e Arquivo
de José Pacheco Pereira

(com a devida vénia...)


A solução spinolista para ser viável necessitaria de um apoio vigoroso por parte dos Estados Unidos. O resultado do encontro com Nixon a tal não levou.

Ficou demonstrado que o tempo criado pela resistência portuguesa, que poderia ter sido utilizado pelo governo da ditadura para encontrar soluções políticas, fora em vão perante esta nova dinâmica interna e internacional.

O Ocidente já há muito tinha compreendido, e posto em prática, toda uma forma de exploração neo-colonial adaptada às novas realidades e interesses das antigas potências coloniais.

Colhiam-se agora os frutos económicos das ex-colónias sem os custos em vidas e fazenda de todo um retrógrado aparelho colonial.

Portugal não dispunha (como fora reconhecido por Salazar) nem de poder político, económico, industrial, militar ou sequer demográfico, para participar nesta luta.

As colónias não se venderam, na perspectiva do ditador, para mais tarde acabarem por ser dadas ao… desbarato!

Que complexos de culpa, ou de inferioridade internacional, terão levado à afirmação comissieiras….” descolonização exemplar?"

Nenhum dos aliados tradicionais de Portugal se poderia considerar “exemplar” nas suas políticas de descolonização. Não o foram nem nunca sentiram necessidade “moral” de o ser.

Exemplar perante as duas super potências da época? Os Estados Unidos com intervenções continuas, nem sempre pacíficas, nos novos países quando estes não favoreciam os seus interesses económicos ou políticos? A União Soviética com um dos maiores impérios coloniais dos tempos modernos, mas dispondo sempre, segundo alguns, do monopólio da “exemplaridade?" Exemplar perante uma China que já então caminhava, lenta mas consequentemente, para a China de hoje que ocupa em África muitos dos “vazios” exemplarmente criados?

Curiosamente, enquanto muitos apontam algumas figuras “de cartaz”, tanto militares como políticas, a responsabilidade coletiva dos elementos da Comissão Coordenadora do MFA tem sempre passado… ”entre os pingos da chuva", independentemente das violentas cambalhotas políticas que alguns deles fizeram posteriormente.

A descolonização era imprescindível e historicamente irreversível. Delegados às negociações, baseadas nos interesses nacionais e não em agendas partidárias ou complexos internacionais,  não estiveram presentes. Exemplarmente.

Um abraço do J. Belo
______________

Guiné 61/74 - P22642: Memória dos lugares (428): Dunane, destacamento de Canquelifá, região de Gabu

Foto nº 1


Foto nº 2

Guiné > Região de Gabu >Canquelifá > Dunane > CART 1689 (1967/69) > 1968  > "Hotel Dunane" (Foto nº 1) e  "Aeroporto Internaci0nal de Canquelifá" (Foto nº 2)... Ou o humor de caserna no seu melhor...

"Dunane era um destacamento sob a responsabilidade da Companhia instalada em Canquelifá. Estávamos em 1968. A CART 1689/BART 1913 (Fá,  Catió,  Cabedu,  Gandembel e Canquelifá, 1967/69) em final de comissão, foi transferida para Canquelifá, deixando um pelotão aquartelado em Dunane. Em poucos dias deu para entender que estavam a gozar o merecido descanso do guerreiro. Não havia suspeita de guerra, os serviços eram poucos e o tempo ia-se gastando da melhor forma."  

Fotos (e legenda): © José Ferreira da Silva (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 
1. Muita malta terá passado por Dunane (e alguns terão lá estado "destacados" ou "desterrados"), mas poucoos, ao que parece, trouxeram fotos do lugarejo, agora "ressuscitado" com a republicação da série  "Diário de Guerra" do açoriano Cristóvão de Aguiar (1940-2021), que foi alf mil da CCAÇ 800 (Contuboel e Dunane, 1965/67).

Dos que mais se "divertiram" com a sua estadia em Canquelifá e Dunane, foi o nosso Zé Ferreira, grande mestre do humor de caserna. As três histórias que ele nos conta desse tempo e lugar são  uma "delícia"... E ele garante-nos que são mesmo verdadeiras... Não precisava de o dizer: de facto, todas as histórias de guerra são verdadeiras, mesmo com o traço grosso da caricatura ou o ácido corrosivo do humor negro. Por isso até soldados básicos "badalhocos", havia alferes "malucos" e generais "de luneta e opereta", na nossa "Guinesinha" (como lhe chamava, com ternura patriótica, a nossa inefável Cilinha)...

Temos, em todo o caso, uma escassa dúzia de referências a Dunane, destacamento de Canquelifá, a meio caminho entre Piche e Canquelifá.

Daí acharmos útil recuperar os comentários ao poste P22634 (**)

(i) Manuel Luís Lomba:

Um reparo , a propósito de Dunane. A tropa não foi a incendiária daquelas (e outras) tabancas no Gabu, foi o PAIGC e o seu comandante Vitorino Costa, tirocinado em Pequim, nas quais praticou atrocidades e recrutou pela força dezenas de homens para a "reeducação" e guerra no sul.

Amílcar Cabral decidira-se pelo terrorismo no Leste, o resultado foi o seu contrário, serviu para fortalecer a oposição dos Fulas, os recrutados desertaram todos, substituiu-o pelo comandante Domingos Ramos, nosso ex-camarada, colocou-o em Quinara, no sul, morrerá no assalto à tabanca de S. João, em combate com a CCaç 153, deplorável foi o acto de passear o seu cadáver pelas tabancas de Quinara.

(ii) Valdemar Queiroz:

Como estive por aquelas paragens, estou sempre à espera de ler neste, quase tele, "Diário de Guerra", de Cristóvão de Aguiar, pormenores / descrições mais concretas sobre as localidades / tabancas Contuboel, Nova Lamego, Piche mas não aparecem, como de Dunane,  essas descrições.

Passei por várias vezes por Dunane nos finais de 1969 e era exatamente assim como nos descreve Cristóvão de Aguiar. A tabanca / quartel ficava colada à berma da estrada (a meio caminho, entre Piche-e Canquelifá), com um cavalo-de-frisa de porta d'armas a abrigos à prova de bombardeamento. 

Contavam-nos que se defendiam como nos filmes de western contra os índios. Recordo-me de uma das vezes ter sido o meu Pelotão ir de Canquelifá ao Xime (!!!) fazer a segurança a uma coluna de reabastecimento para Piche, Dunane e Canquelifá, e no regresso ao passarmos por Dunane:  eles protestarem com a chegada dos "frescos" por 15 dias antes (Natal) terem sofrido de grandes caganeiras devido ao camarão fresco do reabastecimento.

Também foi perto de Dunane que a minha CART 11 teve a primeira baixa, o  sold. Santoné Colubali, e ferimento grave do 1º.cabo trmas Custódio Marques, devido a minas na estrada para Canquelifá.

Sabia que Dunane não tinha população civil, mas não sabia ter sido uma tabanca de balantas (?) no leste, em terra de fulas e pajadincas, e que tinham sido expulsos pela tropa, mas o nosso Luís Lomba, qual Larousse nestas coisas, diz terem sido escolhidos em Pequim para serem reeducados, provavelmente comiam com as mãos, e servirem de educadinhos no sul.

(iii) Tabanca Grande Luís Graça:

Da "má fama" o então capitão de infantaria José Curto, o carrasco de Vitorino Costa, não se livrou. Provavelmente ainda hoje, na região de Quínara,o seu nome (pelo terror que inspirava) é recordado pelos mais velhos. Pelo menos, era assim em 2008...quando eu lá estive, na Guiné-Bissau, e visitei a região de Tombali. Deve ser caso único, de entre os "tugas", tirando o nome de Spínola e poucos mais...

Continuamos a saber pouco de Dunane, se era originalmente uma tabanca fula, mandinga, pajadinca ou até balanta. Talvez o Cherno Baldé nos possa elucidar. De qualquer modo, estou grato pelos contributos do Valdemar de Queiroz (que conheceu a região) e do Manuel Luís Lomba, a par do Cristóvão de Aguiar e do Zé Ferreira...

No subsector, o L1 (Bambadinca), que me calhou em sorte, havia, isso, sim, tabancas balantas, junto ao rio Geba e ao Corubal, que forma riscadas do mapa... Infelizmente, a sua história é aqui pouco falada, tirando talvez o caso de Samba Silate.
 
(iv) José Ferreira da Silva:

Para melhor caracterizar a minha estadia no chamado "Hotel Dunane", naqueles tempos difíceis, lembro os meus textos da série Memórias Nos d Minha Guerra:



 "O Alferes Maluco".

As histórias são verdadeiras.

2. É igualmente oportuno reler o poste P16661,  da autoria do Cherno Baldé, de que se reproduzem aqui alguns excertos (***):

(...) Canquelifá: Poucas terras fazem jus ao seu nome como esta terra guineense situada no seu extremo nordeste.

Em língua mandinga “Canquelefá” significa campo de batalha e de morte:

Can = campo/acampamento;
quele = batalha/guerra;
fá = morte/matança.

Não sei de quem era o acampamento, quem matou e/ou quem morreu, poderia até ser uma simples bravata dos Soninques animistas para assustar os invasores fulas ou os vizinhos Padjadincas do Bajar, ou outro grupo qualquer que se aproximava dos seus domínios, também eles conquistados em épocas passadas.

Território de transição histórica entre o norte da região sudanesa do Sahel [, Sara,] e a zona da floresta húmida confinada à costa do Atlântico, esta região de Pachisse, Pakessi ou Paquisse com capital em Canquelifá foi, durante muito tempo e em diferentes épocas campo de batalha dos exércitos que invadiram o território da actual Guiné-Bissau e ponto de passagem entre o Senegal e o reino de Futa-Djalon.

Não admira por isso a (des)unidade étnica que se verifica na população local, dividida entre os temerários Camará, os argutos Djaló e os pacientes Sané, resultado da mais diversa mistura e uma autêntica babel linguística a começar pelos antiquíssimos Banhuns, Pajadinca, Cocoli até aos Fulas nas suas diferentes declinações, passando pela bonita, eloquente e musical língua Mandinga ou mandinkan.

Ao contrário de Ziguinchor, típica terra luso-tropical com cordão umbilical fortemente ligado à cultura e a tradição das praças guineenses, Canquelifá poderia passar para qualquer dos territórios vizinhos e não se notaria nenhuma diferença.

Após as constantes disputas entre os reinos vizinhos (Futa-Djalon com Alfa Iaia Jaló, Mussa Molo o rei de Firdu) e a cobiça das potências europeias presentes na zona, a delimitação franco-portuguesa de 1903 acabaria por incorporar o Pachisse na Guiné portuguesa, com a eliminação dos incómodos concorrentes locais que eram Mussa Molo e Alfa Iaia.(...) (****)
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segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22641: In Memoriam (414): José Manuel Matos Dinis (1948-2021), ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2679, (Bajocunda, 1970/71), falecido ontem, dia 17 de Outubro de 2021

IN MEMORIAM

José Manuel Matos Dinis (1948-2021)
Ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71


Começa a ser dolorosa a cadência de postes publicados, no Blogue, na nossa série In Memoriam.

Ontem à noite, mais uma triste notícia, esta de todo inesperada e chegada pelo facebbok, a do falecimento, vítima de doença súbita, do nosso camarada e amigo José Dinis.

O Zé Dinis apresentou-se à tertúlia em 24 de Agosto de 2008, tendo participado em 6 Encontros Nacionais da Tertúlia, entre 2009 e 2016.

Entre as 227 entradas no Blogue, 72 são referentes à sua mais importante colaboração, a História da CCAÇ 2679.

José Manuel Matos Dinis, o primeiro de pé a partir da esquerda, com elementos da sua Secção
Das suas participações nos Convívios da Tabanca da Linha, que organizava em parceria como Jorge Rosales:
1.ª Foto - Com Hélder Valério Silva
2.ª Foto - Com Marcelino da Mata (já falecido) e Miguel Pessoa
3.ª Foto - Com o nosso editor Luís Graça
Monte Real, Junho de 2010, V Encontro da Tertúlia > José Manuel Matos Dinis e José Manuel Lopes

Aqui deixamos as nossas condolências aos seus filhos, restantes familiares e amigos próximos.
Nós, seus amigos e camaradas da Guiné, por aqui ficaremos a lembrar e a honrar a sua memória.
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Em tempo:

Informação do nosso amigo Hélder Sousa, em mensagem de hoje, dia 20:

Caros amigos
Informação recolhida junto da Servilusa, que tratará do funeral, indica que estará amanhã, 5ª feira, dia 21, a partir das 17:00 no Crematório de Alcabideche, numa das salas apropriadas para os velórios e que a cremação será no dia seguinte, dia 22, sexta-feira, pelas 12:00.
Abraços
Hélder Sousa

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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22629: In Memoriam (413): Torcato Mendonça (1944-2021), ex-alf mil, CART 2339 (Mansambo, 1968/69)... Homenageando também um casal que sempre soube, em vida, amparar-se mutuamemnte, "na saúde e na doença" (Luís Graça)

Guiné 61/74 - P22640: Notas de leitura (1389): Cabo Verde, os bastidores da independência, por José Vicente Lopes; Spleen Edições, 3.ª edição, 2013 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Novembro de 2018:

Queridos amigos,
Por uso e costume, circunscreve-se a história da luta armada a um conjunto de intervenções, faseadas no tempo que esta durou, trazendo à cena protagonistas guineenses e cabo-verdianos. No início da guerra, como se viu no chamado Congresso de Cassacá, houve que punir líderes que agiam sem freio, era uma prepotência que aterrorizava as próprias populações coniventes com o PAIGC. Foram severamente punidos, embora não se saiba quantos e como. O PAIGC adquire um formato rígido: todos os comissários militares dependem de uma cúspide pública onde pontificam Cabral, Aristides Pereira e Luís Cabral. A questão cabo-verdiana não se põe, a sua presença é ténue, passará a ser um problema quando os cabo-verdianos chegarem em massa a Conacri, ir-se-ão distinguir como artilheiros e técnicos, viverão à margem dos guineenses, eram outros preceitos culturais. Com este livro, temos pela primeira vez uma linha sequencial do que foi o PAIGC na linha cabo-verdiana, como Cabral teve que gerir problemas de tomo como a unidade Guiné-Cabo Verde e o sonho de uma invasão que era totalmente inviável. Uma obra que deixa claro o papel incontornável dos cabo-verdianos na guerra da Guiné, se dúvidas subsistissem.

Um abraço do
Mário



Cabo Verde, os bastidores da independência (1)

Beja Santos

Trata-se do primeiro livro do jornalista e investigador José Vicente Lopes, construído a partir de entrevistas com mais de cem personalidades cabo-verdianas, guineenses e portuguesas, cruzadas com fontes documentais e bibliográficas: “Cabo Verde, os bastidores da independência”, por José Vicente Lopes, Spleen Edições, 3.ª edição, 2013.

A obra arranca no dia da independência de Cabo Verde, 5 de julho de 1975, tudo aconteceu no Estádio Municipal da Várzea, e vemos Abílio Duarte, líder do PAIGC, a ler a proclamação da independência, é um passeio íntimo, ouvem-se declarações de diferentes protagonistas. Segue-se um capítulo onde se procura interpretar as raízes da independência, destacam-se figuras nos chamados protonacionalistas e caímos na chamada fundação do PAIGC que, segundo a história oficial, teria nascido a 19 de setembro de 1956. A data é questionada por Abílio Duarte que declarou o autor que estranhou, estando em Bissau nessa data, não ter sido convocado para o encontro: “Pode ter havido reunião, mas não pode ser considerada a fundação do partido. A grande verdade é que Amílcar Cabral esteve em 1957 em Paris, onde se encontrou com Mário de Andrade e Marcelino dos Santos, e nunca falou da fundação do PAIGC com ninguém”. E ouve-se longamente o depoimento de Abílio Duarte que saiu de Cabo Verde em jovem e foi trabalhar para o BNU de Bissau. Fala-se da chegada de Amílcar Cabral a Bissau, em 1952, abre-se o proscénio da Casa dos Estudantes do Império, e é referida a atividade dos nacionalistas guineenses no período que precede a eclosão da luta armada.

Salta-se para Cabo Verde, é então governador o Major Silvino Silvério Marques, no período de 1958 a 1962 e entra em cena José Leitão da Graça, um dirigente nacionalista que se confrontará com Amílcar Cabral, Leitão da Graça nunca se conformará com a tese da unidade Guiné-Cabo Verde. E passamos ao Senegal, estamos em Dacar onde há inúmeros cabo-verdianos e guineenses, aqui emergem movimentos de libertação, igualmente como em Conacri. O autor dá-nos a conjuntura internacional, os ventos da História chegaram a África, os Estados Unidos, a esfera socialista e os países do Terceiro Mundo aparecem como os grandes aliados das independências africanas. Amílcar Cabral visita Londres, estivera em Tunes, na Conferência dos Povos Africanos, por enquanto ainda não se fala nas colónias portuguesas, é em Londres que Cabral faz a sua investida, conta com a ajuda de Basil Davidson, distribui documentação, dá conferências, concede entrevistas. Os movimentos nacionalistas procuram conjugar esforços. Amílcar Cabral contribui para fundar a Frente Revolucionária Africana para a Independência Nacional das Colónias Portuguesas, era a herdeira do Movimento Anti-Colonial, surge a Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas (CONCP), agrupando o PAIGC, o MPLA e nacionalistas de Moçambique e Goa, isto em 18 de abril de 1961. E Abílio Duarte parte para a luta, será representante do PAIGC em vários países.

O autor destaca o período do Governo de Alves Roçadas e explica porquê. Alves Roçadas foi governador de Cabo Verde entre 1949 e 1953. Deve-se-lhe um “Plano de ressurgimento de Cabo Verde”, que previa várias fases: colmatar as grandes crises alimentares e fase de reconstrução, ampliação e melhoramento do património cabo-verdiano. Os seus relatórios anuais eram diretos e desabridos: “As padarias, talhos, hotéis, fábricas, garagens, etc., são, regra geral, uma porcaria”. E noutro documento: “Neste Arquipélago, onde o nível de vida da grande maioria da população é baixo, chega-se por vezes a pagar soldadas miseráveis, como remuneração do trabalho humano, a que é preciso pôr, ou procurar pôr, o devido cobro”. Partiu desiludido, não lhe deram os meios suficientes em Lisboa.

Fala-se de Dulce Almada Duarte e das peripécias da sua vida itinerante ao lado de Abílio. A ascensão do nacionalismo é passada em revista, aqui se falará do alferes Pedro Pires, de Osvaldo Lopes da Silva, estudante na Crimeia, de Honório Chantre, que se preparou em Cuba, de Silvino da Luz, que andou pela Argélia, e de Onésimo Silveira e Olívio Pires. Olívio Pires parte para Paris em 1964, aqui se encontrará com Manecas Santos e outros, aqui se mobiliza emigrantes cabo-verdianos para o PAIGC, uns irão para a Argélia, outros para Havana, outros para Conacri. E fala-se igualmente do último encontro entre Leitão da Graça e Cabral, em 1962, em definitivo a unidade Guiné-Cabo Verde separou-os irremediavelmente.

Em 1961, surgem ofertas de armamento da RDA, promessa não concretizada. Serão os marroquinos que enviarão armamento, muita gente converge para Conacri. Nesse mesmo ano, o ministro Adriano Moreira retoma a tese da adjacência de Cabo Verde, não terá futuro. Começam a chegar a Conacri os quadros formados na China, a luta entra no nível da subversão, no segundo semestre de 1962, um pouco por todo o Sul. José Vicente Lopes disseca a agitação nacionalista em Cabo Verde, há prisões, a figura proeminente será Jorge Querido, a partir de 1968, ano em que Salazar deixa o mando e em que Spínola sucede a Schulz. Fala-se sinteticamente da evolução da guerra, de diferentes iniciativas conducentes a um cessa fogo. No Arquipélago, a situação continua controlada pelas autoridades portuguesas. E assim se chega ao assassinato de Cabral, de novo se retomam velhas teses quanto a hipóteses de quem mandou matar o líder do PAIGC, a tónica é sempre a mesma: o complô era conduzido exclusivamente por guineenses e aqueles que foram ameaçados de morte eram todos cabo-verdianos. Ventila-se um compromisso português com os sublevados, Valentino Cabral Mangana depôs a existência de um pacto entre eles e as autoridades de Bissau, barcos portugueses esperariam fora das águas territoriais guineenses os capturados, Cabral e Aristides Pereira, tese delirante, não há qualquer documento sobre envolvimento da Armada ou concentração de barcos no Sul da Guiné, naquela data. Um outro sublevado, Lansana Bangoura, revelara a existência de um plano de agressão em preparação contra a Guiné Conacri e contra a Tanzânia e Zâmbia, nestes dois casos por causa do apoio à Frelimo e ao MPLA, depoimento sem pés nem cabeça. Volta-se a falar do ambiente podre em Conacri sem explicitar em que se manifestava tal podridão. Depois de desfiar contas do rosário que vêm em muitos livros, o autor fala no culminar de rivalidades entre guineenses e cabo-verdianos. Em setembro de 1972, segundo Osvaldo Lopes da Silva que tivera com Cabral uma conversa tensíssima, nasce a ideia de destruir um quartel fundamental, era preciso sair do impasse já que Spínola pusera em andamento a reocupação do Cantanhez, ressuscitara gravíssimos problemas na liberdade de ação do Sul, com a evacuação de escolas e hospitais. Fala-se igualmente num possível envolvimento de Sékou Touré, um pouco de mais do mesmo. Segue-se a tomada de Guilege e retoma-se a velha questão de como invadir Cabo Verde.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 11 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22620: Notas de leitura (1388): Um acontecimento científico de renome: A Missão Geoidrográfica da Guiné (1947-1957) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22639: In Memoriam: Cadetes da Escola do Exército e da Escola de Guerra (actual Academia Militar), mortos em combate na 1ª Guerra Mundial (França, Angola e Moçambique, 1914-1918) (cor art ref António Carlos Morais Silva) - Parte XV: António Madeira Montez Júnior (Santarém, 1885 - França, CEP, 1918), cap inf


António Madeira Montez Júnior (1885 - 1918)


Nome: António Madeira Montez Júnior
Posto:  Capitão de Infantaria
Naturalidade:  Santarém
Data de nascimento:  27 de Dezembro de 1885
Incorporação;  1903 na Escola do Exército (nº 132 do Corpo de Alunos)
Unidade:  4º Grupo de Metralhadoras, 5º Grupo de Metralhadoras
Condecorações; Cruz de Guerra de 3ª classe
TO da morte em combate;  França (CEP)
Data de Embarque: 24 de Dezembro de 1916
Data da morte: 9 de Abril de 1918
Sepultura:  França, Cemitério de Richebourg l'Avoué
Circunstâncias da morte; Faleceu em combate devido a ferimentos provocados por fogos alemães.

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António Carlos Morais da Silva, hoje e ontem


1. Continuação da publicação da série respeitante à biografia (breve) de cada um oficiais oriundos da Escola do Exército e da Escola de Guerra que morreram em combate, na I Guerra Mundial, nos teatros de operações de Angola, Moçambique e França (*).

Trabalho de pesquisa do cor art ref António Carlos Morais da Silva, cadete-aluno nº 45/63 do Corpo de Alunos da Academia Militar e depois professor da AM, durante cerca de 3 décadas; é membro da nossa

Tabanca Grande, tendo sido, no CTIG, instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972.
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Nota do editor:

Ultimo poste da série > 9 de setembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22527: In Memoriam: Cadetes da Escola do Exército e da Escola de Guerra (actual Academia Militar), mortos em combate na 1ª Guerra Mundial (França, Angola e Moçambique, 1914-1918) (cor art ref António Carlos Morais Silva) - Parte XIV: Alfredo Guimarães (Guimarães, 1884 - França, CEP, 1918), cap cav

domingo, 17 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22638: Memória dos lugares (427): Coimbra, cemitério da Conchada, onde repousam os restos mortais do alf mil António Maldonado, morto em combate em Porto Gole, em 4/3/1966 (João Crisóstomo)


Foto nº 5 - Coimbra > Cemitério da Conchada > 22 de setembro de 2021 > Jazido da família de Maria Conceição Maia Antunes. leirao nº 15, nºs 9 e 10. Placa que foi posta na frente, na parede exterior do jazigo, e onde se lê: "Alferes António Aníbal Maia de Carvalho Maldonado, morto em combate na Guiné em 4.3.1966".

 
1. Mensagem, com data de 23 de setembro último, enviada pelo João Crisóstomo, o nosso camarada luso-americano que está de visita à sua Pátria, tendo logo nos primeiros dias ido a Coimbra, a casa de uns amigos, com quem está ligado "por mor de Timor"... Aproveitou para ir ao Bussaco e ao cemitério da Conchada, em Coimbra, à procura do túmulo do nosso camarada António Maldonado, morto em combate em Porto Gole, na Guiné, em 4/3/1966, e que era natural de Coimbra.

O Eduardo Jorge Ferreira (1952- 2019) veio-me à memória outra vez quando visitei o Bussaco. Lá encontrei uma evocaçãoda batalha do Vimeiro, de cuja “reencarnação" o nosso saudoso Eduardo era o um dos interprtes mais entusiastas,. Incluo uma foto dessa pedra onde a evocação da batalha aparece. (Foto nº 1).



Foto nº 1 - Mealhada > Buçaco > Antigo Convento de Santa Cruz do Buçaco > Placa alusiva a Arthur Wellesley, 1.º Duque de Wellington que, no contexto da Guerra Peninsular, em 1810, que comandou as forças anglo-portuguesas contra as do general francês André Massena na batalha do Buçaco, e que esteve ali hospedado.

 

Mas isto foi só a "ponta do fio”. Uma vez que ia a Coimbra, pois queria ver o barco de Timor onde, já faz quatro anos, estão dois contentores cheios de coisas para a escola de S. Francisco de Assis que tanta falta fazem nessa escola e aos seus alunos, eu lembrei-me de ir visitar um nosso antigo  camarada, o infeliz Maldonado. Nunca o cheguei a encontrar pessoalmente na Guiné, mas a sua vida e morte cruzaram-se comigo, conforme posts 22131 e 19517 , em que ele é mencionado pelo Jorge Rosales.

Pelo que depreendo,  o Rosales esteve em Porto Gole até 1964. Porto Gole era um dos destacamentos a que pertencia ao (ou estava a cargo do)  Enxalé, embora os comandantes destes destacamentos fossem de outros unidades ou em rendição individual. 

Quando o Rosales saiu de Porto Gole quem o devia ter substituído era o Maldonado. Que por sua vez iria ser substituído pelo Henrique Matos. Mas por razões que desconheço, o Maldonado não veio logo e, como sucedia com Missirá, antes da chegada dos alferes Marchand e depois Beja Santos, nestes casos o Enxalé servia de “tapa-buracos”. Em ambos os casos ( Missirá e Porto Gole) eu desempenhei esse papel de tapa-buracos mais que uma vez. Estive em Porto Gole umas semanas e, quando o Maldonado estava para chega,  eu voltei ao Enxalé, sem nunca o ter encontrado pessoalmente ( ou pelo menos eu não me lembro dessa “rendição”.)

Uma semana ou duas depois do Maldonado chegar, o destacamento de Porto Gole foi alvo dum ataque violento por parte do IN e o infeliz Maldonado foi atingido por uma granada de morteiro 82 que lhe causou morte quase imediata. 

Por razões que desconheço fui instruido para voltar para Porto Gole mais uma vez, onde fiquei até que o Henrique Matos, do Pel Caç Nat 52, chegou, para assumir o comando desse destacamento. Mas …não me posso esquecer que podia ter sido eu no seu lugar, como podia ter sucedido em outras ocasiões em que as vítimas estavam mesmo a meu lado, como no caso do Queba Soncó em 1966 ou logo no início da minha estadia na Guiné em Agosto de 1965 na operação Avante.



Foto nº 2 -  Coimbra > Cemitério da Conchada > 22 de setembro de 2021 > Talhão dos combatentes, naturais de Coimbra


Foto nº 3 - Coimbra > Cemitério da Conchada > 22 de setembro de 2021 > Lápide fúnebre, evccativa da memória dos  antigos combatentes. Liga dos Combatentes, Núcleo de Coimbra, Talhão dos combatentes: 

"Silêncio… Névoa… Campos sepulcrais 
Ali dormem soldados de alma forte.
Deram à Pátria e vida num transporte
Que foi o seu Deus p’ra nunca mais

Eram Homens… Tornaram-se imortais
Souberam dominar a própria morte.
Na guerra todos são irmãos na sorte!
Na sepultura todos são iguais."



Foto nº 4 - Coimbra > Cemitério da Conchada > 22 de setembro de 2021 >
Jazido da família de Maria Conceição Maia Antunes, onde foi inumado o António Maldonado, leirao nº 15, nºs 9 e 10

 
Foram estas considerações que me levaram a procurar o cemitério da Conchada em Coimbra. Depois de longa e repetida exposição do que pretendia, consegui convencer a pessoa que se encontra na administração do cemitério a procurar o nome do nosso Maldonado que foi encontrado depois de longa procura. Encontra-se no “ leirão" 15, número 9 e 10 deste leirão. (Foto nº 4).

Foi um encontro duro e emocionante para mim. Na pessoa dele eu revia e lembrava o Mano, o Abna na Onça ,o Queba Soncó, o Açoriano e tantos outros que acabaram a sua vida nas terras da Guiné e outros que voltaram mas que também da lei da morte já se libertaram: os Zagalos, os Pires, os Rosales, os Eduardos…

Saí do cemitério em busca de umas flores; e foi pensando em todos aqueles nossos camaradas para quem a memória dos nossos falecidos é algo sagrado que deixei este pequeno ramo de flores na porta/entrada do jazigo onde se encontram os restos mortais do Maldonado (Fotos nºs 5 e 6). Naquele momento o Maldonado não era ele só, mas todos aqueles irmãos nossos , mortos em qualquer situação, incluindo os nossos camaradas nativos que foram vítimas de represálias, depois de já termos deixado terras da Guiné; e por eles todos "elevei o meu pensamento”,  independentemente da sua raça, religião e posição ideológica.



Foto nº 5 - Coimbra > Cemitério da Conchada > 22 de setembro de 2021 > Pequeno ramo de flores o melhor que pude arranjar) que deixei em nome de todos nós, conforme se pode ler no improvisado “cartão" (Vd. Foto nº 6)


 Foto nº 6 > Coimbra > Cemitério da Conchada > 22 de setembro de 2021 > Ramo de flores depositado à pporta do jazigo da família do Maldonado: "Ao Maldonad com saudades. Os teus amigos e camaradas da Guiné, 22/9/2021". 

Fotos (e legendas): © João Crisóstomo (2021).. Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Entretanto o Gaspar Sobral e esposa (, meus amigos, ligados à causa de Timor, ele timorense e ela natural do Sabugal) tinham encontrado uma área grande onde descobriram que "todos as sepulturas são de militares; mas todas as sepulturas são iguais…" E logo me dirigi a esse lugar do cemitério. (Foto nº 2).

Verifiquei que todos aquelas sepulturas ( um total de 75 ) são de militares da região de Coimbra que prestaram serviço nas diversas campos de acção fora de Portugal territorial em Angola, India, Moçambique etc, mas a grande maioria era de militares que estiveram na Guiné. Soldados, sargentos e oficiais de todos as patentes... Na base dum pequeno monumento aí erguido está gravado: "na guerra todos são irmãos na sorte; na sepultura todos são iguais." (Foto nº 3).
Voltei , mas o resto do dia foi um contínuo reviver. (*)

João Crisóstomo



Guiné > Bissau > Praça do Império > Novembro de 1965 > O Jorge Rosales mais o Maldonado, junto ao monumento "Ao Esforço da Raça" ...

De seu nome completo, António Aníbal Maia de Carvalho Maldonado, morreu no dia 4/3/1966. Natural da Sé Nova, Coimbra, foi inumado no cemitério da Conchada. Pertenceu à 1ª CCAÇ / BCAÇ 697 (Fá Mandinga, 1964/66). (**)

Foto (e legenda): © Jorge Rosales (2010).. Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 7 de setembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22520: Memória dos lugares (426): Paço, União das Freguesias de São Bartolomeu dos Galegos e Moledo, Lourinhã, inaugura o seu monumento aos antigos combatentes (46 no total estiveram presentes nos vários teatros de operações do séc. XX, da I Grande Guerra à Guerra do Ultramar)

(**) Vd. poste de 22 de fevereiro de 2019 > uiné 61/74 - P19517: In Memoriam (340): Até sempre, 'comandante' Jorge Rosales (1939-2019)