quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22899: Historiografia da presença portuguesa em África (298): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Março de 2021:

Queridos amigos,
Para quem está a acompanhar o laborioso levantamento de factos e feitos, da memória que Senna Barcelos prometeu à Academia das Ciências,não podem subsistir dúvidas que após o desgraçado período vivido na União Ibérica, as parcelas coloniais sofreram e muito os impactos na guerra da Restauração e, em concomitância, a crescente cobiça de franceses e britânicos. Faltava tudo no que restava da Senegâmbia Portuguesa, e as citações que aqui se deixam são concludentes dessa atmosfera degradada e degradante. Senna Barcelos teve o enorme mérito de proceder a uma organização escritural que permite hoje aos historiadores ir do século XV até aos princípios do século XX. É evidente que hoje há fontes muito mais ricas, para além de arquivos ainda inexplorados. Mas exalte-se este levantamento como um dos pontos de partida que contribuíram para lançar as bases da historiografia guineense e de tudo quanto se pode e deve estudar em Lisboa, em Bissau e em todos os outros espaços de investigação. Isto para enfatizar que Senna Barcelos é incontornável.

Um abraço do
Mário



Um oficial da Armada que muito contribuiu para fazer a primeira História da Guiné (3)

Mário Beja Santos

São três volumes, sempre intitulados "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, a parte III, de que agora nos ocupamos, em 1905; o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada, oficial distinto, condecorado com a Torre e Espada pelos seus feitos brilhantes no período de sufocação de sublevações em 1907-1908, no leste da Guiné. O levantamento exaustivo a que procede Senna Barcelos é de relevante importância e não há nenhum excesso em dizer que em muito contribuiu para abrir portas à historiografia guineense. Esclareça-se que o autor não se apresenta como historiador, aliás não faz conexões nem análises, esta memória apresentada à Academia Real das Ciências de Lisboa tem a forma de um levantamento de factos e feitos, trabalhou estrenuamente, não poupou esforços nos arquivos e a sua narrativa tem um caráter personalizado, desanca nos políticos corruptos, nos governadores ineptos, na selvajaria dos negócios, nunca ilude as desgraças e inclemências da natureza em Cabo Verde, a falta de presença portuguesa na Guiné e a permanente hostilidade dos autóctones com os portugueses.

Foi profundamente crítico do reinado de D. João V, procurou que o reinado de D. José fosse mais auspicioso. Diz mesmo que muitas súplicas se dirigiram a D. João V para fortificar Bissau e que D. José, com melhores olhos, compreendeu a necessidade de dar vida a esse riquíssimo domínio, onde só tinha uma praça fortificada, Cacheu, na foz do rio Farim.

Nos primeiros dias de 1753, partiu de Lisboa uma expedição com destino a Cacheu tendo à frente a nau Nossa Senhora da Estrela, a missão era levantar a fortaleza de Bissau. E veja-se o tom crítico do autor: “A praça de Bissau estava sem capitão-mor de nomeação régia, era governada por um preto boçal que desconhecia a língua portuguesa. Houve regozijo com a chegada dos barcos portugueses a Bissau, pois quem ali estava não podia comerciar pela belicosidade dos povos da vizinhança”. Começou um jogo de artimanhas entre portugueses e o régulo Palanca. Umas vezes celebrava-se a paz, outras vezes havia recontos sangrentos, voltava-se a pedir a paz, seguia-se nova arremetida do gentio, rechaçada. Então, Palanca mostrava-se amistoso, subia a bordo da nau e pedia para trocar um casal de negros por aguardente. Assim começou a construção da fortaleza de Bissau, obra que havia de durar quase dez anos (1766-1775). A Companhia de Cacheu falhara e em 1755 fora criada a Companhia do Grão-Pará e Maranhão, tinha o exclusivo do comércio de todas as ilhas e da costa da Guiné desde o Cabo Branco até ao de Palmas. E o autor comenta: “Nada adiantaram as ilhas no reinado de D. José, que aturou as loucuras e espoliação da celebérrima Companhia do Olho Vivo, conhecida com o nome oficial de Grão-Pará e Maranhão”. Vamos de seguida fazer um apanhado de notas envolvendo o reinado de D. José até ao reinado de D. Maria I, ocasião em que o administrador da Companhia da Guiné informou que a Praça de S. José de Bissau estava completamente acabada e aportou elementos úteis para se ficar com uma ideia nítida do que era a presença portuguesa na Guiné no último quartel do século XVIII. E muito mais adiante iremos falar de outro período tormentoso, de 1816 a 1835.

Envia-se um relato, pois, falando da Praça de S. José, diz-se que está completamente acabada, mas que há edifícios em ruína, mesmo a igreja, o ofício religioso só se podia celebrar numa pequena capela na praça, na qual mal cabiam 40 pessoas. Não havia sacerdotes, a guarnição constava de 190 soldados, o autor dizia que a povoação tinha uma população de “700 pretos católicos, que viviam sem pensarem no espiritual”. E bem importante é o que o comandante da Companhia descreve a seguir:
“A povoação de Geba contava com mil católicos, não tinha sacerdote, falta que também se sentia nos cristãos dispersos pela Serra Leoa, tinham deixado de lá ir religiosos de Bissau. No rio Nuno havia mais de 18 anos que lá não ia um missionário. A guarnição de Bissau andava rota e esfarrapada. O governador, sem meios, faltava-lhes com o pagamento; como não recebesse géneros da Companhia, reinava grande descontentamento entre a guarnição da Praça. A praça de Ziguinchor estava sujeita ao comando de Cacheu, quase deserta por viverem os moradores com os gentios. O administrador João da Costa profetizara que apenas a guerra entre a França e a Inglaterra terminasse, era para recear que uma dessas nações tomasse conta de Ziguinchor por estar perto do rio de Gâmbia, e estar Cacheu num estado que a não podia socorrer; sendo essa praça tão importante e de onde se costumava enviar a maior porção de cera para Lisboa, e não menos de escravatura para outros pontos, era realmente para lastimar. A artilharia da Praça de Cacheu estava como a de Bissau, sem reparos; a guarnição sofrendo grandes faltas, e até os particulares, para comprarem géneros, vendiam os seus escravos para Bissau. Nas mesmas condições sofriam os de Farim”.

Suplicava-se à rainha que os deixasse com o monopólio do comércio, que lhes fosse oferecida uma embarcação que impedisse os ingleses e franceses de roubarem gado, escravos e forros.

Senna Barcelos dá-nos também informação de relevo sobre a situação de Ziguinchor, à entrada do século XIX:
“Em princípios de 1801, sendo comandante da Praça de Ziguinchor Manuel de Carvalho Alvarenga, a qual era dependente da Praça de Cacheu, que tinha por governador Manuel Pinto de Gouveia, atacaram repentinamente os gentios de Sandegú, próximo de Ziguinchor, umas embarcações mercantes portuguesas que se achavam na costa a negociar. O comandante de Ziguinchor deu conhecimento deste facto ao governador de Cacheu, e este mandou logo um gentio, velho e prudente, amigo dos portugueses, para ir a Sandegú saber o motivo das hostilidades, respondendo os gentios inimigos que não o atendiam. Em vista da resposta, ordenou o governador que se lhes desse um assalto, ficando eles derrotados e aprisionando-se alguma gente. Durante algum tempo ficaram mansos e subjugados, até que traiçoeiramente voltaram a atacar as embarcações, matando e aprisionando alguns marinheiros. O governador de Cacheu mandou então preparar 17 canoas, tripuladas por senhores e escravos, que seguiram para Ziguinchor, e ali com o auxílio do gentio vizinho, auxiliares, se organizou a expedição. Fora encarregado de uma das canoas Julião Mendes, alferes da companhia do Capitão Francisco Rabaça, do Corpo de Infantaria de Ziguinchor, sem vencimento, o qual conseguira essa patente do ex-governador de Cacheu, Farim e Ziguinchor, Lopo Joaquim Almeida Henriques. Julião Mendes tinha sido escravo e recebera a alforria em 20 de novembro de 1799. Ele tinha deixado a condição servil para ter a patente oficial e por isso não lhe causava repugnância cometer o crime de traição. Mandara ele avisar ao gentio de Sandegú, por um seu escravo, do assalto que lhe estava preparado e forneceu-lhe pólvora e bala. Com o mesmo gentio tinha ele já combinado que no caso de saírem bem da luta lhe fossem vendidos todos os escravos que ficassem prisioneiros. Indispôs algumas tribos aliadas da praça contra outros aliados que forneciam mantimentos, dando-lhes pólvora e bala, pois seria insustentável a Praça de Ziguinchor, faltando estes aliados, únicos que mantinham o comércio de víveres com ela. O velho gentio de Cacheu descobrira a traição estando já as embarcações em viagem e pelos gentios que Julião Mendes quisera revoltar soube a verdade de tudo. Houve grande desânimo entre os expedicionários, que duvidavam uns dos outros, por isso pensou o velho gentio de Cacheu de tornar ali mesmo público o procedimento de Julião Mendes, pois que a maioria estava falada para nos atraiçoar”.

A história não acaba aqui, o traidor fugiu, foi apanhado, pediam ao governador para o enterrarem vivo, o governador preferiu mandá-lo degredado para o Pará toda a vida e foram-lhe sequestrados os seus poucos bens. Julião Mendes chegou ao Maranhão, iludiu o governador dizendo que estava inocente, veio até Lisboa queixar-se de que lhe tinham tirado os seus bens, foi mandado um sindicante a Ziguinchor para descobrir a verdade, e o que ele escreve dá mesmo muito que pensar, o sindicante achou que dos bens do tal Julião faltavam seis escravos e três embarcações, mas que os acusados não eram responsáveis por elas: “Que Julião Mendes nutria ódios contra José Domingos por este ter requerido contra ele, ao comandante de Ziguinchor, em Alvarenga, em 1800, como traidor, pois que tendo José Domingos concordado com os Grumetes-Forros de Ziguinchor para fazer guerra aos Balantas de Sandegú, que lhes aprisionaram três canoas, as quais foram vendidas em Cacheu e Farim”. E prossegue a descrição da trama com várias cambiantes de rancores e não é difícil perceber o envenenamento e a carga de ódios entre todos estes mercadores, prontos a escravizar quem quer que seja.

Neste levantamento de Senna Barcelos há também aspetos pícaros e não se registe a contar um:
“Em fevereiro de 1805 fora chamado Manuel Pinto de Gouveia pelo Conde da Anadia para ir governar a Praça de Bissau, que se achava abandonada por terem envenenado o governador desta, António Cardoso Faria. A tropa que guarnecia Bissau era composta de pretos, naturais do país, que conviviam com os gentios, que se negavam a fazer serviço. O novo governador pediu o posto de brigadeiro, e tendo ido ao paço solicitar ao príncipe regente este dissera-lhe: ‘Já estou bem informado do teu requerimento. O prémio não se procura antes da comissão feita. Sabe desempenhar ao que vais, e logo que as coisas estejam em paz pela secretaria te será remetido o que pretendes, pois vejo que é de justiça’. Seguiu Pinto Gouveia para Bissau, com 150 degredados tirados do limoeiro, facínoras e dos maiores crimes, tendo alguns destes a alva vestida, que lhes foi despida. Em Cabo Verde recebeu mais 80 homens de péssimos costumes, e com 230 soldados indisciplinados em Bissau formaria um batalhão de 460 desordeiros. Com muito trabalho montou o serviço militar, que estava relaxado, e restabelecia a paz entre os gentios”.

Não tem em conta as insubordinações na Praça de Bissau, os relaxamentos eram permanentes e as relações entre todos intoleráveis, veja-se este apontamento de Senna Barcelos:
“Havia quatro anos que o governador de Bissau não recebia os seus vencimentos; porém com ele vivia oficiais e negociantes que o acusavam de intriguista e turbulento, que negociava e proibia que os outros o fizessem, que vivia amancebado com uma Clara Gomes a qual saía a altas horas da noite da fortaleza, que ele absorvia os rendimentos reais, roubando a pólvora da fazenda para seu negócio e o dinheiro que lhe era remetido de Cabo Verde para pagamento da tropa e que falsificava os livros”. Por sua vez o governador queixava-se aos seus superiores de que havia amotinadores, apontava os cabeças de motim, desde oficiais a escrivães.
E Senna Barcelos dá-nos um parágrafo que clarifica o estado de desmando em que se vivia em Bissau:
“Em 12 de Julho deu-se nova insubordinação dos soldados. Ao toque da assembleia, às horas da parada da guarda, não quiseram os soldados entrar na formatura, e passando o governador ao quartel foi ali insultado, exigindo-lhe os soldados o pagamento no meio de ameaças, e pegando em armas, que não quiseram entregar. Retirou-se o governador e pela tarde daquele dia foi avisado de que os soldados tinham resolvido assassina-lo a golpes de baioneta, bem como a família, em vista do que o governador mandou logo dizer que no dia seguinte faria o pagamento com o seu dinheiro”.

E mais peripécias se podiam contar, mas este cenário não se modificaria tão cedo, anos depois, na sua famosa Memória da Senegâmbia, Honório Pereira Barreto não poupará pormenores ao estado calamitoso em que se vivia na Guiné.

(continua)

Fortaleza de S. José da Amura, na atualidade
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Nota do editor

Último poste da série de 5 DE JANEIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22877: Historiografia da presença portuguesa em África (297): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22898: Antologia (81): A grande paródia da guerra... "Pessoal, bó berra, ir no guerra bó persiste?... Nega!... Cá miste!" [Poema de Alberto Bastos (1948-2022), ex-alf mil op esp, CCAÇ 3399 / BCAÇ 3852, Aldeia Formosa, 1971/73), poeta, dramaturgo, encenador e ator, natural de Vale de Cambra]

 








Mais uns "instantâneos" do
 amigo Bastos. Aqui no lançamento do seu livro “A Máscara” (teatro), em 2015,  salvo erro na sua terra natal, Castelões, Vale de Cambra. Era assim,  alegre, teatral e jocoso (olhem o pormenor do adereço).

Fotos (e legenda): © Joaquim Pinto Carvalho (2022). Todos os Direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

















Fonte: Alberto Bastos - "Alguém". Lisboa: Círculo de Leitores, 2008, pp. 105/114. Seleção e digitalização: Joaquim Pinto Carvalho. Livro autohgrafado com a seguinte dedicatória: 'Ao meu especial amigo Joaquim A. Pinto de Carvalho com a magia dos 'bons velhos tempos'. O autor, (assinatura ilegível), 07/10/2009". Na contracapa, o Pinto Carvalho deixou este jsutíssimo e belo retrato físico, psicológico e moral,  do Alberto: (*)

(...) “Tem a fúria do viver no olhar, como um vulcão,
mas no verbo a leveza da corrente
genuína!

Tem nos gestos a garra e o voo do falcão
e a volúpia da serpente
que nos fascina!” (...)  (**)

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terça-feira, 11 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22897: Tabanca Grande (529): Alberto Bastos (1948-2022), ex-alf mil op esp, CCAÇ 3399 / BCAÇ 3852 (Aldeia Formosa, 1971/73), natural de Vale Cambra, o primeiro grã-tabanqueiro do ano, o nº 856, embora infelizmente a título póstumo

 

Foto nº 1 > Guiné > Região de Tombali > Aldeia Formosa > CCS/BCAÇ 3852 (1971/73) >  De pé,  Manuel Gonçalves, alf mil manutenção (CCS); em 1º palano: da esquerda para a direita, Alberto Bastos,  alf mil op esp (CCAÇ 3399) e Carlos Santos, alf mil sapador (CCS)


Foto nº 2 > Guiné > Região de Tombali > Aldeia Formosa > CCS/BCAÇ 3852 (1971/73) > Da esquerda para a direita: Mesquita, alf mil (Artilharia antiaérea); Rodrigues alf mil (C CAÇ 3399) Alberto Bastos, alf mil op esp (CCAÇ 3399(; Manuel Gonçalves alf mil manutenção (CCS) (em pé); e António Faria, alf mil cavalaria.


Foto nº 3 > Guiné > Região de Tombali > Aldeia Formosa > CCS/BCAÇ 3852 (1971/73)

Da esquerda para a direita: Mesquita, alf mil (Artilharia antiaérea); Manuel Gonçalves, alf mil manutenção (CCS) (em pé); Rodrigues,  alf mil (CCAÇ 3399); Alberto Bastos, alf mil op esp (CCAÇ 3399); Trindade, alf mil médico (CCS) (em pé); e Carlos Santos, alf mil sapador (CCS).


Fotos (e legendas): © Manuel Gonçalves (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Mafra > EPI > COM > 1970 > 3º Turno de Instrução > 6ª Companhia de Instrução > 4º Pelotão > O soldado-cadete  Alberto Tavares de Bastos, nº  127 (Imagem extraída da clássica fotografia de grupo. Cortesia de Joaquim Pinto Carvalho, que também pertenceu ao 4º Pelotão da 6ª Companhia)

Fotos (e legenda): © Joaquim Pinto Carvalho  (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O Alberto Bastos, ex-alf mil op esp, CCAÇ 3399 / BCAÇ 3852 (Aldeia Formosa, 1971/73), foi o primeiro camarada da Guiné, que saibamos, a morrer este ano, logo no primeiro dia do ano de 2022 (*).

Foi desde logo nossa intenção, em honra da sua memória, integrá-lo na Tabanca Grande, a título póstumo.  Acabámos de receber  fotos dele do seu do tempo da tropa e da guerra,  enviadas pelos seus camaradas e amigos Joaquim Pinto de  Carvalho e Manuel Gonçalves.

Será, por outro lado,  o primeiro representante da CCAÇ 3399 no Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. O seu lugar, à sombra do nosso poilão, será  o nº 856 (**) . E o seu nome passa a figurar na lista daqueles que "da lei da morte já se foram libertando" (Vd. badana do lado esquerdo do blogue, ou coluna estática).

Poeta  (e homem de teatro: dramaturgo, encenador, ator), com vários livros publicados, foi ele o autor da letra do hino do BCAÇ 3852, datada de 12/6/1971, e reproduzida no seu livro de poesia Alguém (Lisboa, Chiado Editora, 2008, pp. 125/126).

É também autor do poema "Na estrada do Cumbijã", dedicado ao cap mil Vasco da Gama, comandante da CCAV 8351 (Cumbijã, 1971/73), "Os Tigres do Cumbijã" (, já publicado no poste P3640), e reproduzido, a pp. 138/139, no recentíssimo livro do Joaquim Costa, "Memórias de Guerra de um Tigre Azul: O Furriel Pequenina (Guiné, 1972/74)". (Rio Tinto, Lugar da Palavra Editora, 2021.)

Deste batalhão, o BCAÇ 3852,  temos vários camaradas registados na Tabanca Grande:

  • Joaquim Pinto Carvalho,ex-alf mil at inf, CCAÇ 3398 (Buba) e CCAÇ 6 (Bedanda) (1971/73) (nº 633)
  • Manuel Carmelita (ex-fur mil mecânico radiomontador, CCS/BCAÇ 3852, Aldeia Formosa, 1971/73) 
  • Manuel Gonçalves, ex-alf mil mec auto, CCS/BCAÇ 3852 (Aldeia Formosa, 1971/73) (nº 776);
  • Silvério Lobo, ex-sold mec auto, CCS/BCAÇ 3852, Aldeia Formosa e Buba, 1971/73

Da CCAV 8351, além do Vasco da Gama, temos também o Joaquim Costa (, imagem à esquerda), que todavia não privou com o Alberto Bastos, mas que escreveu no poste P22878 (*), surpreendido pela notícia da sua morte repentino, o seguinte comentário:


(...) "Fomos contemporâneos e pisamos o mesmo chão minado da estrada Mampatá-Cumbijâ. Nunca privei com ele mas era muito conhecido na região. No Cumbijã era conhecido por Poeta.

Vivíamos isolados no nosso buraco, pelo que só nos cruzávamos com camaradas de outras companhias em operações de risco onde apenas trocava-mos algumas palavras de circunstância.

"O poema que dedicou ao Cap Vasco da Gama, para além de pôr em evidência as suas qualidades literárias , mostra um homem atento ao que o rodeia, amigo e fundamentalmente solidário.

"O meu singelo livro de memórias é pequeno para a grandeza do poema que dedicou à CCav 8351 e ao seu Capitão. Como alguém já referiu: Um Poeta não morre.

Joaquim Costa. (5/1/2022)" (...)

O Joaquim Pinto de Carvalho (, imagem  à direita), que o conhecia bem desde o COM em Mafra, e na Guiné pertenceu ao mesmo batalhão, tendo ambos ficado amigos para a vida, fez-lhe o restrato físico e psicológico nestes versos (que constam da contracapa do livro de poesia Alguém, Chiado Editora, Lisboa, 2008);

(...) “Tem a fúria do viver no olhar, como um vulcão,
mas no verbo a leveza da corrente
genuína!

Tem nos gestos a garra e o voo do falcão
e a volúpia da serpente
que nos fascina!” (...)

Guiné 61/74 - P22896: Notas de leitura (1408): "Aldeia Nova de São Bento: Estórias, Memórias e Gentes", de José Saúde: nota sobre o autor, introdução e sinopse

 


"Aldeia Nova de São Bento - Memórias, Estórias e Gentes": capa, badana e contracapa do livro (Edições Colibri, Lisboa, 2021, 299 pp.). 

Sessão de autógrafos, no sábado, dia 15 de janeiro, às 15h00, no Pátio Àrabe da Casa do Alentejo, Rua Portas de Santo Antão, 58, Lisboa. (*)



José Saúde, escritor e jornalista, 
ex-fur mil op esp, CCS/BART 6523 
(Nova Lamego, 1973/74), 
membro da nossa Tabanca Grande, 
com mais de 210 referências no nosso blogue


Autor: José Saúde

José Saúde nasceu em Aldeia Nova de São Bento no dia 23 de Novembro de 1950, todavia, o seu registo oficial de nascimento reporta-se a 23 de Janeiro de 1951. 

Ainda muito jovem, e sem nunca renegar as suas origens, fez da cidade de Beja a sua terra de adoção. Na velha Pax Júlia concluiu o ensino primário e foi aluno da antiga Escola Industrial e Comercial de Beja, agora D. Manuel I, na qual finalizou o Curso Geral de Comércio, ainda que pelo meio tivesse ficado uma passagem pela Escola Comercial Veiga Beirão, em Lisboa. Mais tarde completou o 12º Ano na Escola Diogo Gouveia, antigo Liceu de Beja. 

Desportivamente, iniciou a sua carreira futebolística no Despertar Sporting Clube e aos 16 anos ingressou no Sporting Clube de Portugal, como juvenil. 

Depois dessa experiência enriquecedora em Alvalade, e já como jogador sénior, representou o Desportivo de Beja e o FC Serpa. 

Em 1975, com o serviço militar obrigatório cumprido, foi um dos grandes impulsionadores do reaparecimento do futebol de competição na Aldeia Nova de São Bento ao reativar a atividade no Clube Atlético Aldenovense. 

O jornalismo foi sempre uma das suas grandes paixões. Em 1985 iniciou a sua carreira como jornalista no jornal desportivo bejense “O ÁS”. De agosto de 1989 a janeiro de 2000 assumiu o comando do pelouro desportivo da Rádio Voz da Planície (RVP), em Beja. Coordenou a equipa do desporto da Planície Desportiva da RVP aos domingos; foi o rosto do programa “Estádio” aos sábados e desenvolveu ao largo dos vários anos radiofónicos duas rubricas diárias desportivas de nome Livre Direto.

No ano de 1994 frequentou o Curso de Comunidades Europeas para Profisionales de Medios de Comunicacion no Centro de Documentacion e Formacion Europea de Extremadura, em Badajoz, onde recebeu o Diploma.

A nível nacional foi colaborador do jornal A Bola entre 1990 e 2015. Colaborou, também, com o JN - Jornal de Notícias - no período de 1996 a 2006 na área desportiva.

Em 2006 estreou-se na TV Beja (televisão por internet), sendo responsável pela área desportiva e em agosto de 2008 integrou o Departamento Desportivo do Diário do Alentejo, órgão no qual se mantém.

Em maio de 2009 foi galardoado pela Câmara Municipal de Beja com o Diploma de Medalhas e Insígnias Municipais – Mérito Grau “Prata” – “por ter sido destacado por serviços distintos e altamente meritórios ao Município, e cujo nome está intrinsecamente ligado a Beja” e em junho de 2015 foi distinguido com o Diploma de Sócio Honorário da Associação de Futebol de Beja. 

De entre a sua bibliografia fazem parte as obras:

  • Glórias do Passado, volumes I, 1999 e II, 2006 - relatando a evolução do futebol no século XX na Associação de Futebol de Beja; 
  • AVC Na Primeira Pessoa, 2009; 
  • O Trilho, 2013; 
  • Guiné-Bissau, As Minhas Memórias de Gabu 1973/1974, 2014; 
  • Associação de Futebol de Beja, 90 Anos de Memórias e Relatos, 
  • 2015; AVC Recuperação do Guerreiro da Liberdade; 
  • Do Aldenovense Foot-Ball Club ao Clube Atlético Aldenovense 1923 em 2016; 
  • Um Ranger na Guerra Colonial Guiné-Bissau 1973/74, em 2019.   


Introdução

por José Saúde


Nasci em Aldeia Nova de São Bento no dia 23 de novembro de 1950 e sou filho de Francisco Saúde e de Ana dos Reis Romeiro, ambos naturais da povoação.

Oriundo de uma família humilde, gente que “comeu o pão que o diabo amassou”, mas cujo princípio familiar passou por me colocarem a estudar num ensino secundário, ensino este que ia para além da então trivial quarta classe, foi, de facto, o literal propósito dos meus saudosos pais, pessoas modestas, mas que oportunamente se identificaram com uma enorme solidez humana que motivou o homem que hoje sou.

Neste contexto, e num desafio permanente às “Memórias da Minha Aldeia”, deixo escrito, neste livro, parte das raízes da minha infância e dalguns pormenores de profissões que marcaram épicas gerações, onde os mestres foram personalidades que inspiraram épocas inesquecíveis, sendo que o seu labor ficará eternamente contemplado. Para além dessas inequívocas lembranças, recordo alguns dos nossos conterrâneos que ficarão perpetuamente expostos numa montra de eloquentes e requintadas individualidades.

Mas, além de tudo o que aqui vos deixo escrito, o que é sempre muito pouco, preocupei-me em investigar temáticas sobre a lenda da origem da nossa Aldeia, do seu Padroeiro São Bento, da Festa das Santas Cruzes, um dos nossos ícones anuais, assim como a envolvência da Procissão, do nosso fabuloso Cante Alentejano, do simbolismo das Santas Cruzes feitas em casas de devotos, enfim, uma panóplia de narrativas avulsas indiscriminadas no tempo e que dão maior força ao tema trabalhado com imensa ternura e resplandecente paixão.

É, ainda, plenamente crível que articule histórias genuínas da nossa terra e, obviamente, dos seus antigos costumes. Recupero, também, parte de narrativas inseridas numa outra obra que em tempos lancei para os escaparates, mas que julgo apresentarem-se determinantes para a composição de recordações do antigamente da comunidade aldeã e que jamais serão esquecidas.

Reconheço que muito mais haveria para expor, admito. Mas, neste planeta da escrita, sempre perplexo, o autor procura, neste caso, dar uma imagem do universo aldeão, embora o faça meticulosamente, sem preconceitos e isento de presumíveis susceptibilidades. Os textos, avulsos, são determinados por capítulos, mas não por ordem cronológica no tempo e nem tão-pouco sequencial no plano alfabético.

Deixo explícito nesta introdução à obra que me propus efectuar, o meu profundo agradecimento ao David Monge da Silva pela sua prestável colaboração, e pelo excelente espólio de memórias da nossa terra que possui e de onde bebi profícuos saberes, bem como ao Francisco Costa, à Constança Joana pela sua enorme disponibilidade de comigo colaborarem, sobretudo na recolha de fotografias e de instrumentos básicos para a construção dalguns dos textos, ao Zé Bica e à minha prima Mariana pelas muitas perguntas que lhes fiz sobre questões de outrora o que implicava, como é óbvio, um conhecimento mais rigoroso dessas eras, principalmente quando a minha perspicaz curiosidade impunha um saber mais sóbrio e literalmente verdadeiro.

A todos os meus conterrâneos um bem-haja! (**)

José Saúde

Sinopse

(...) "Ao ler estas deliciosas crónicas regresso de imediato à minha infância e adolescência, a um tempo de felicidade em que todos os nossos familiares e amigos estavam connosco para nos ajudar a crescer e descobrir, sem sobressaltos, o mundo e a vida.

(...) Tudo hoje é diferente. O passado apenas subsiste na minha memória, nas minhas recordações. Somos as nossas memórias. Somos quem fomos. É a nossa história que nos caracteriza e define.

(...) Eu e o Zé Saúde vivemos a nossa infância e juventude nas décadas de 50 e 60, conhecemos a nossa aldeia com a sua população máxima, e acompanhámos o seu progressivo decréscimo.

(...) As memórias que nos são trazidas nesta obra situam-se, sobretudo, nestas duas décadas, trazem-nos personagens, profissões, modos de vida, relações sociais e formas de convívio que não voltarão mais. Há que ler atentamente para que os mais idosos recordem as suas vivências e os mais novos conheçam um pouco do que foi a vida dos seus pais e avós. Este livro é serviço público." (...)




(...) Esta é a décima obra de José Saúde que apresenta este livro como “uma obra que cruza gerações e onde explanei-o temáticas diversificadas. Aliás, nesta obra, que se estende pelas suas 299 páginas, relato a origem da localidade e os povos que lhe deram o nome em plena guerra da Restauração de 1640 (que durou 60 anos) aquando a dinastia dos Filipes se apoderou no nosso reino, das suas festividades mais marcantes (Festa do Círio e das Santas Cruzes, nomeadamente), assim como da sua originalidade, ou a forma que a história as relata, a antiga feira anual, em setembro (1, 2 e 3), gentes que marcaram a localidade, as antigas profissões, de pessoas simples que ficarão memorizadas na terra.”

José Saúde aborda também “os costumes da aldeia, as virtualidades dos mestres, o início do seu futebol, 1923 e o seu processo evolutivo, enfim, um conjunto de situações que nos leva a viajar no tempo, onde ressalta o êxodo rural para os grandes centros populacionais, Lisboa e os seus arredores assumindo-se como ponto fulcral, as “carradas” de famílias que diariamente deixavam a terra que os vira nascer em procura de uma vida melhor, da emigração, conterrâneos que partiam a salto para países que lhe proporcionavam um futuro mais risonho, o contrabando, ou do uivar dos lobos, as lutas politicas dos trabalhadores rurais” (...)

O autor destaca ainda “o Cante Alentejano elevado ao ponto mais alto, Património Cultural Imaterial da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) a 27 de novembro de 2014 numa reunião do Comité em Paris, os jogos da minha infância, os amigos, as conversas dos mais velhos, mulheres e homens sábios que profetizavam o tempo e as culturas no campo, os petiscos, o tempo da miséria, o tempo das crianças com os pés descalços, enfim, um quase interminável número de circunstância a que propus e deixarei escrito para o meu povo.” (...)


_________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 9 de janeiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22892: Agenda cultural (795): Convite para sessão de autógrafos do meu livro "Aldeia Nova de São Bento: memórias, estórias e gentes", sábado, dia 15, às 15h00, no pátio árabe da Casa do Alentejo (José Saúde)

(**) Último poste da série > 10 de janeiro de  2022 > Guiné 61/74 - P22893: Notas de leitura (1407): Um livro que é "serviço público": "Aldeia Nova de São Bento: Memórias, Estórias e Gentes", José Saúde, Edições Colibri, 2021 (Prefácio de David Monge da Silva)

segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22895: O nosso blogue em números (76): Quem nos visita continua a usar o Chrome (38,7%) como navegador, e o Windows (72%) como sistema operativo.


Fonte: Blogger (2022). Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2022)


1. Os principais navegadores usados pelos nossos leitores, os que visitam o nosso blogue, desde junho de 2010, são o Chrome, o Firefox, o MSIE (Microsoft Internet Explorer) e Safari (Gráfico nº 7).

Relativamente aos dados de 2020,  não há alteraçãoes de maior, com um ligeiro crescimento do Chrome e  um descréscimo do Firefoz (menos 2,8 pontos percentuais) e do MSIE (2,4), a favor do Safari (mais 3,4)
 (*).



Fonte: Blogger (2022). Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2022)



2.  O Windows, por sua vez, continua, destacado (72%), à frente dos demais sistemas operativos (Gráfico nº 8)... 

No entanto, desceu 5 pontos percentuais relativamente ao ano de 2020, a favor do Macintosh (que tem mais 3,9 pontos) e do Android (mais 1,1).

Comparando estes dados de 2021 com os do ano de 2014, constatava-se que (**):

(i) por navegador, o Internet Explorer ia à frente (38%), seguido do Chrome (28%) e do Firefox (22%); os restantes somavam, juntoss,  12% do total dos visitantes;

(iv) por sistema operativo, o Windows era então (como continua a ser) o rei e o senhor (82%), destacadíssimo da concorrência: McIntosh (6%), Linux (5%) e outros (7%).


(**) Vd. poste de 3 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14111: O nosso blogue em números (34): no final de 2014: (i) 6,8 milhões de visualizações de páginas; (ii) 676 membros registados; (iii) 14 mil postes publicados; (iv) 55600 comentários; (v) 1638 amigos no Facebook da Tabanca Grande...

Guiné 61/74 - P22894: Notas de leitura (1407A): O Gabú entre 1900 e 1930, num ensaio de Eduardo Costa Dias (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Novembro de 2018:

Queridos amigos,

O agora jubilado professor do ISCTE e durante muito tempo o responsável pelo Centro de Estudos Africanos desta instância universitária tem vasto currículo de investigação guineense, são, por exemplo, incontornáveis, os seus artigos de caráter enciclopédico sobre a Guiné, escrito com José da Silva Horta, os seus estudos sobre os judeus na Senegâmbia. 

Neste trabalho desvela-se uma realidade com base na evidência científica e que tem a ver com conceções de aproveitamento de alianças, de negociação de fidelidades e da escolha entre um grande território com um grande chefe ou régulos implicados na gestão da administração colonial, mesmo com um campo de liberdade específica. Prevaleceu a segunda conceção, foi essa que observámos nas nossas comissões sem perceber muito bem o que estava por detrás delas. Eduardo Costa dias dá-nos uma interessantíssima chave explicativa, a propósito do Gabú entre 1900 e 1930.

Um abraço do
Mário



O Gabú entre 1900 e 1930, num ensaio de Eduardo Costa Dias

Beja Santos

O Professor Eduardo Costa Dias, com larga investigação referente à colónia da Guiné, publicou na revista Africana Studia, n.º 9 de 2006, edição do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, um trabalho intitulado “Regulado do Gabú (1900-1930): A difícil compatibilização entre legitimidades tradicionais e a reorganização do espaço colonial”

Uma visão singular que apraz aqui registar, indo diretamente às questões nodais que a investigação contempla.

Primeiro, os problemas da dominação territorial colonial como se puseram nas primeiras décadas do século XX, um processo diversificado que contou com operações militares contra potentados recalcitrantes, cartografia rigorosa, sujeição dos africanos a uma lógica económica e política colonial, que obrigou a novas regulamentações e alargamento da malha político-administrativa, concomitante com o desenvolvimento das comunicações e de outras infraestruturas. 

A Guiné, mesmo a uma escala relativamente modesta, contou com uma rede de estradas ligando o litoral ao interior, generalizou-se o telégrafo e depois o telefone, substituíram-se os antigos postos, presídios e fortificações por pontos locais da quadrícula político-administrativa. 

Enfim, uma dominação territorial que se fez com desacertos, cumplicidades e submissão de poderes locais, havendo resistência passiva, desobediência por parte das populações e dos poderes ditos tradicionais, que se manifestavam sobretudo na recusa do pagamento de impostos, na contestação dos chefes reconhecidos pelas autoridades coloniais, mas muito mais.

Segundo, o estudo centra-se nos anos 1900-1930 na região do Gabú, a figura principal do estudo é o régulo do Gabú entre 1906 e 1927, Monjour Meta Bâlo, já vimos anteriormente referências a este régulo no livro “Monjur, o Gabú e a sua História”, por Jorge Vellez Caroço, filho do Governador Jorge Frederico Vellez Caroço. Monjour tinha legitimidade tradicional e era benquisto pelas autoridades portuguesas, até ao dado momento em que se coligaram contestações locais e coloniais.

Terceiro, o investigador dá-nos um retrato da Guiné Portuguesa nesse período: décadas de afirmação da dominação territorial, expedições militares punitivas em territórios recalcitrantes: Papéis da ilha de Bissau, Balantas de Mansoa, regiões dos Bijagós, os Mandingas do Oio, entre outros. Tudo acompanhado de questiúnculas e queixas da administração e dos militares: o antigo herói Abdul Indjai fez-se cair em desgraça; Teixeira Pinto envolver-se-á em confrontos com a Liga Guineense; Vellez Caroço teve vários conflitos com o secretário do Governo, Sebastião José Barbosa, por exemplo. 

A despeito das frequentes mudanças de governadores e das orientações da administração colonial, ir-se-á afirmando uma linha de apoio à administração portuguesa, terão a etnia Fula à cabeça.

Ainda antes do Estado Novo, foi promulgada a Carta Orgânica da Guiné, que dividiu a população residente em civilizada e indígena; em 1919, o território da Guiné Portuguesa foi dividido em dois concelhos e treze circunscrições; substituiu-se o imposto de cabeça por palhota; e manteve-se, mesmo com simulação, a requisição dos indígenas para um sem número de atividades, o trabalho forçado mascarado, e o autor dá vários exemplos com a Casa Gouveia, a Companhia Estrela de Farim e a Companhia Agrícola e Fabril da Guiné.

Quarto, atenda-se ao conceito de Vellez Caroço para a modernização da colónia, ele era defensor da figura do “chefe de território” em vez do “chefe de raça”, de uma política diferenciada para cada etnia e de aproximação aos chefes muçulmanos em detrimento dos animistas. Nesta ótica, observa o autor, ele foi o pai da estratégia colonial que privilegiará durante décadas a aliança da administração com os chefes Fulas.

É nesse contexto que vamos agora situar o Gabú, povoado maioritariamente por muçulmanos (Fulas e Mandingas). Escreve o autor: 

“A soberania portuguesa no Gabú fez-se quase por delegação de poderes, isto é, controlando meia dúzia de chefes tradicionais e remunerando a sua lealdade com uma quase total liberdade de exercício do poder sobre as populações, recebendo em troca apoio para ações militares no resto da Província”. 

O termo Gabú era automaticamente conotado com a área onde pontificava o régulo Monjour e muito menos como a porção de território administrado pela circunscrição sediada em Bafatá. Lembra igualmente o autor que o regulado do Gabú herdou o nome e parte significativa do território do antigo reino Mandinga “animista”, do Kaabu, que existiu, na região compreendida entre os rios Gâmbia e Corubal. A administração portuguesa marcou presença em meados da década de 1910, apareceu a circunscrição administrada do Gabú com sede em Oco, depois em Gabú Sara (futura vila de Nova Lamego, hoje cidade do Gabú). O Gabú estava pouco integrado no espaço da colónia e não era alvo prioritário para intervenções das tropas portuguesas.

Quinto, e assim se passa para a lógica política de entendimentos preferenciais, escolha de interlocutores e relacionamento com os chefes tradicionais. Os chefes eram classificados em três grupos: o dos leais, o dos interesseiros e o dos rebeldes. 

Vellez Caroço, nos anos 1920, estruturou a política de aproximação aos muçulmanos e teceu os contornos da aliança estratégica do poder colonial com os chefes Fulas. Monjur, o régulo do Gabú, foi um precioso auxiliar da administração colonial, combateu ao lado por portugueses nas guerras de pacificação e durante muito tempo dominou as rivalidades entre etnias. E como diz o autor, acabou destituído quando a administração colonial perdeu o interesse em manter um território tão grande nas mãos de um único homem. Monjour é apanhado neste turbilhão de mudanças. No livro escrito pelo filho de Vellez Caroço é bem claro que ele, tal como o pai, era partidário da política dos grandes regulados e adversário acérrimo da multiplicação de regulados. E no seu livro ele apresenta Monjour como vítima das sucessivas traições da sua gente e de alguns administradores que eram favoráveis à lógica da “independência das raças”.

Sexto, o autor historia a ascensão e queda deste régulo que terá nascido em 1850 e faleceu em 1929 na região do Corubal, a sua ascensão não foi pacífica, a chefia do regulado fora contestada por um irmão e por vários descendentes de régulos anteriores. É no choque destas duas lógicas, do “critério da independência das raças” com pequenos regulados e a dos grandes regulados em que apostou sempre Vellez Caroço que veio a prevalecer, em 1917, uma divisão do Gabu em vários regulados, a situação durou pouco, no ano seguinte o regulado foi unificado e Monjour reinvestido como grande chefe. Mas a sua liderança era ameaçada por novos líderes. E com a retirada de Vellez Caroço para Portugal, acaba por ser destituído com uma pensão de trezentos escudos mensais, em 1927, e deportado com residência fixa para o Corubal, onde morre em 1929.

Sétimo, assim chegamos às conclusões. 

Foram-se impondo duas conceções dominantes: a dominação do território via o controlo de um único interlocutor, e que prevaleceu entre os anos 1900 e 1917; e uma conceção de dominação que privilegiava não só os pequenos regulados em prejuízo dos grandes como igualmente a efetiva circunscrição territorial de cada regulado a uma malha precisa da quadrícula político-administrativa colonial, a partir de 1917 e aplicada sobretudo a partir de 1926.

 Prevaleceu a segunda, os régulos foram funcionalizados, a ter obrigações, a despeito de aplicarem, dentro de moldes aceites pela administração colonial, decisões próprias dentro da área de jurisdição. E esta lógica vai chegar até à emergência do nacionalismo, foi com esta lógica que Amílcar Cabral e o seu PAIGC foram obrigados a lidar.
Tocador de korá no Gabú.
Jorge Frederico Vellez Caroço
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Nota do editor

Último poste da série de 10 de Janeiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22893: Notas de leitura (1407): Um livro que é "serviço público": "Aldeia Nova de São Bento: Memórias, Estórias e Gentes", José Saúde, Edições Colibri, 2021 (Prefácio de David Monge da Silva)

Guiné 61/74 - P22893: Notas de leitura (1407): Um livro que é "serviço público": "Aldeia Nova de São Bento: Memórias, Estórias e Gentes", José Saúde, Edições Colibri, 2021 (Prefácio de David Monge da Silva)



Capa do livro "Aldeia Nova de São Bento - Memórias, Estórias e Gentes",de José Saúde. Lisboa, Edições Colibri, 2021, 299 pp. (*)Para encomendas com oferta de 10% de desconto sobre o PVP + portes de envio para Portugal: encomendas@edi-colibri.pt


O escritor e jornalista José Saúde, ex-fur mil op esp, CCS/BART 6523 (Nova Lamego, 1973/74), é membro da nossa Tabanca Grande, tendo mais de  210 referências no nosso blogue, Natural de Aldeia Nova de São Bento, vive em Beja. Prefácio de David Monge da Silva que aqui reproduzimos com a devida vénia  (**).


Prefácio

por David Monge da Silva


Quando o Zé Saúde me convidou para prefaciar esta obra aceitei imediatamente e sem qualquer hesitação. Temos, na infância e adolescência, um passado comum na nossa aldeia, e uma posterior ligação ao desporto, ele como praticante de futebol e depois como jornalista e escritor, e eu como profissional da educação física e do desporto. Mas aquilo que mais nos liga é o amor à nossa terra, à nossa aldeia, e o orgulho que sempre mostrámos quando dizemos que somos de Aldeia Nova de São Bento.

Apesar de estarmos fisicamente afastados contactamos muitas vezes usando as novas tecnologias. O tema de que habitualmente falamos é a nossa terra, os seus costumes e as suas gentes. Partilhamos alguma informação, sobretudo fotografias e documentos antigos, que tenho vindo a coletar e a publicar nas redes sociais. Aprendemos um com o outro somando memórias e linhas de investigação.

Ao ler as suas deliciosas crónicas regresso de imediato à minha infância e adolescência, a um tempo de felicidade em que todos os nossos familiares e amigos estavam connosco para nos ajudarem a crescer e descobrir, sem sobressaltos, o mundo e a vida.

O Zé tem uma escrita muito própria que o identifica de imediato. Ao descrever um facto ou um personagem utiliza muitos adjetivos portadores de sentimentos e emoções, que imediatamente despertam a minha sensibilidade adormecida.

Quando o leio surge em mim um inevitável sorriso de alegria e felicidade, volto a ser quem fui, os meus familiares e amigos voltam a acompanhar-me na escola, nas coletividades, nas brincadeiras de rua, nas súcias e nas futeboladas intermináveis. Estou a escrever estas simples linhas e estou a sorrir.

Quando volto à minha e nossa terra natal, o que cada vez é menos frequente, fico sempre triste, não consigo encontrar a aldeia da minha infância. A casa onde nasci está fria e abandonada, os meus amigos emigraram para a periferia de Lisboa ou para o estrangeiro. Todos partiram levando consigo o ambiente onde cresci e fui feliz.

Tudo hoje é diferente. O passado apenas subsiste na minha memória, nas minhas recordações. Somos as nossas memórias. Somos quem fomos. É a nossa história que nos caracteriza e define.

O que explica, muito sumariamente, a minha aldeia e, por extensão, todo o Baixo Alentejo é a enorme emigração, a perda continuada de população. É uma região cada mais deserta, cada vez mais envelhecida, cada vez mais esquecida.

Mas nem sempre foi assim.

Se olharmos para os dados disponíveis nos recenseamentos da população entre 1747 e 2011, encontramos longos períodos de aumento populacional e de posterior diminuição.

Tentemos compreender o fenómeno olhando rapidamente para esses números.


Da observação destes dados podemos destacar os seguintes pontos:

  • Foi em 1950 que Aldeia Nova atingiu o maior número de habitantes (8842). No último recenseamento, em 2011, tinha apenas 3072, o que significa uma redução populacional de 65%. 
  • É preciso recuar mais de 140 anos para encontrar, em 1878, um número inferior (2839) 

  • De 1747 a 1950 verificou-se um continuo e gradual crescimento com uma nítida aceleração a partir de 1900/1910, data em que as glebas da Serra de Serpa foram distribuídas pela população de Aldeia Nova. Esta desintegração do maior baldio do país, com cerca de 40.000 hectares, iniciou-se em1906, mas a população de ANSB protestou, como já o havia feito em 1755, por não concordar com a metodologia seguida pela Câmara de Serpa, o que atrasou o processo. Estas sortes, como o povo lhe chamava, tinham 16 hectares e foi algo de muito positivo o que permitiu e suportou um rápido aumento da população. Houve um grande incremento da cultura cerealífera, principalmente do trigo, o que deu trabalho a muita gente, sobretudo na monda e na ceifa. Contudo, a pobreza dos terrenos e a sua continuada exploração levou a um rápido esgotamento dos solos e ao seu progressivo abandono. Muitos possuidores de glebas viram-se obrigados a vende-las aos grandes proprietários que acabaram por ser os maiores beneficiários. Os montes abandonados espelham esta triste realidade. A progressiva mecanização da agricultura reduziu a oferta de trabalho. Só lhes restava partir. 
  • De 1950 até aos dias de hoje verificou-se uma contínua perda de população com os valores mais altos de decréscimo nas décadas de 50 (menos 1164 habitantes) e de 60 (menos 2450). Em apenas 20 anos houve uma diminuição populacional de 40,8%. 

Eu e o Zé Saúde vivemos a nossa infância e juventude nas décadas de 50 e 60, conhecemos a nossa aldeia com a sua população máxima, e acompanhámos o seu progressivo decréscimo.

Como exemplo, verificámos que actualmente há somente 40 rapazes a frequentar os quatro anos do 1º ciclo do ensino obrigatório, sendo apenas dez no primeiro ano. Nos pretéritos anos 50, no meu 1º ano, com a excelente professora D. Ermelinda Calvinho Grilo, éramos 52 rapazes, as meninas tinham uma outra professora, já que não havia ensino misto. Houve, comparando aqueles números do 1º ano, um decréscimo de 80%, muito superior ao decréscimo total da população que no mesmo período é de 65%, o que mostra o envelhecimento dos actuais residentes. Não se vêem rapazes a brincar nas ruas, o que nos anos 50 era uma exuberante realidade.

 Destes 52 saudosos colegas só um ou dois permaneceram na aldeia. Todos os outros partiram e constituíram família longe do seu berço natal, tal como eu e o Zé. Alguns não tiveram tempo de o fazer, morreram na guerra colonial.

As memórias que nos são trazidas nesta obra situam-se, sobretudo, nestas duas décadas, trazem-nos personagens, profissões, modos de vida, relações sociais e formas de convívio que não voltarão mais. Há que ler atentamente para que os mais idosos recordem as suas vivências e os mais novos conheçam um pouco do que foi a vida dos seus pais e avós.  

Este livro é serviço público.

David Monge da Silva

Nota final - Para além das razões que, muito brevemente, apresentámos para explicar a fuga dos nossos conterrâneos, há muitas outras de natureza sócio política que conduziram a uma sobre exploração da classe trabalhadora e a uma enorme degradação da sua qualidade de vida.

Como não cabe num simples prefácio a análise desse problema proponho a leitura deste poema em que pretendo mostrar o percurso de vida do trabalhador alentejano e as razões que o levaram à emigração.






_____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de:


25 de dezembro de 2021 > Guiné 61/74 – P22844: Agenda cultural (794): General Manuel Monge na apresentação do meu último livro (José Saúde)

5 de dezembro de 2021 > Guiné 61/74 – P22783: Agenda cultural (793): Aldeia Nova de São Bento - Memórias, Estórias e Gentes, 10º livro do José Saúde: sessão de lançamento, 11/12/2021, 15h00, Vila Nova de São Bento. Apresentação do prof David Monge da Silva.

(**) Último poste da série > 7 de janeiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22886: Notas de leitura (1406): CCAÇ 1550 - Quando a história de uma unidade militar ajuda a perceber a evolução da guerra da Guiné (Mário Beja Santos)

domingo, 9 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22892: Agenda cultural (795): Convite para sessão de autógrafos do meu livro "Aldeia Nova de São Bento: memórias, estórias e gentes", sábado, dia 15, às 15h00, no pátio árabe da Casa do Alentejo (José Saúde)



Convite do autor, José Saúde, das Edições Colibri e da Casa do Alentejo, para a sessão de autógrafos, a realizar em Lisboa, na Casa do Alentejo, sábado, dia 15, às 15h00



1. Mensagem do escritor  José Saúde, ex-fur mil op esp, CCS/BART 6523 (Nova Lamego, 1973/74), 
membro da nossa Tabanca Grande, com 210 referências no nosso blogue:

Data - sábado, 8/01/2022, 16:42 

Assunto - Convite para a apresentação do livro "Aldeia Nova de São Bento - Memórias, Estórias e Gentes"



Luís Graça, meu amigo:

Junto envio um convite para uma sessão de autógrafos que se realizará no próximo sábado, dia 15 de janeiro, pelas 15 horas, na Casa do Alentejo em Lisboa, para o lançamento do meu décimo livro: "Aldeia Nova de São Bento - Memórias, Estórias e Gentes".

É óbvio que o convite é endereçado, não só para a tua pessoa, assim como todos os camaradas da nossa Tabanca.

A obra estende-se pelas suas 299 páginas, onde cruzo textos que vão desde as épocas (principalmente de 1950 e 1960) onde o êxodo rural, a emigração, ou imigração, ao contrabando e os seus trilhos, às lutas dos trabalhadores rurais, aos presos políticos, a queda populacional dos seus residentes foram inequívocas realidades na terra, a gentes do meu povo, ao tempo em que as crianças iam para a escola descalços, aos camaradas que morreram na guerra colonial, enfim, um reavivar de memórias permanentes que deixo à localidade que me viu nascer a 23 de novembro de 1950.

O prefácio é do professor David Monge da Silva.

Um abraço,

José Saúde
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Guiné 61/74 - P22891: Antologia (80): O Natal, mesmo na guerra, é quando um homem quiser (e puder)... (Jorge Cabral, 1944-2021)



Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Missirá > Pel Caç Nat 63 > 1970 ou 1971 > O Alf Mil At Art Jorge Cabral mais o seu amigo Malan.

Foto (e legenda): ©  Jorge Cabral (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. As mensagens que acompanhavam as  "estórias cabralianas" eram sempre curtas, para não dizer telegráficas. Como esta que acompamnhou a "estória cabraliana" nº 30 (Natal em Novembro). (*)

Querido Amigo, Para ti e todos os Tertulianos, o Bom, o Melhor, o Óptimo!

Estar vivo é já celebrar o Natal!

Abraço Grande
Jorge

PS - Junto Foto. Regressado de uma operação, tinha sempre à minha espera o meu Amigo Malan


Republico a "estória" como homenagem ao nosso "alfero Cabral" (**), o "alter ego" de Jorge Cabral (1944-2021).  A sua sensibilidade humana e o sua capacidade de contar uma pequena história em meia dúzia de linhas continuam a surpreender os seus leitores e admiradores...  "Um Natal em Novembro", chamou-lhe. Em plena guerra. No regulado do Cuor, em "terra de ninguèm". Afinal, o Natal, mesmo na guerra, é quando um homem quiser (e puder). Um texto de antologia (***).


2. Estórias cabralianas (30): Um Natal em Novembro

por Jorge Cabral


Amanheceu igual, só mais um dia em Missirá. Para o Mato Cão, vai o Alferes, uma secção, e o maqueiro Alpiarça. É lá chegar, esperar, ver o barco e voltar. Não há tempo para o sonho – do outro lado nem Gaia, nem Almada…

Já estamos de regresso, ouvimos restolhar. Vem aí gente. Neste lugar só podem ser os turras. Claro que, como sempre, o Alferes empunha apenas o seu pingalim e, em vez do camuflado, enverga camisa branca e calções de banho.

Paramos, agachamos, aguardamos. Porra, e se são muitos? Apanhado à mão, assim vestido, pensa o Alferes… Mas não, são três mulheres e um bebé. Doente, muito doente, informa a jovem mãe. Quem são, de onde vêm, ninguém pergunta.

Monta-se segurança, rodeando a mãe, o filho e o Alpiarça. O bebé está muito mal, quase não respira.
- Dá-lhe soro, aspira o muco, alivia-lhe os brônquios – grita o Alferes, subitamente médico.

Arrebita o bebé, elas agradecem e partem. Não perguntou o Alferes para onde, mas não era difícil adivinhar…

Foi em Novembro, estava calor, o Menino era Braima e não Jesus, nenhuma estrela iluminava o céu, e o Alferes não se parecia com os Reis Magos. Porém ainda hoje, ele acredita, que ali no meio do mato, naquela tarde, aconteceu Natal.

Jorge Cabral

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 21 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2369: Estórias cabralianas (30): Um Natal em Novembro (Jorge Cabral)

(**) Vd. poste de 8 de janeiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22890: "Alfero Cabral cá mori": Lista, por ordem numérica e cronológica,  das 94 "estórias cabralianas" publicadas (2006-2017) - Parte II: de 20 a 39