sábado, 27 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24344: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXVIII: Na 1ª fase da instruçáo da 2ª CCmds Africanos, fomos atacados em Candamã como se fôssemos do PAIGC...


Guiné > s/l > s/d > O furriel graduado 'comando' Cicri Vieira a cumprimentar o Major Raul Folques, comandante do Batalhão de Comandos da Guiné (no período de 28jul73 a 30abr74) (O major Raul Folques sucedeu ao major Almeida Bruno). (Foto publicada no livro, na pág. 197).



Guiné  > Zona Leste >  Sector L1 (Bambadinca) > BART 2917 (1970/72) >  Forças da CCAÇ 12, a descansar na Ponte dos Fulas (sobre o Rio Pulom, afluente do Rio Corubal), por ocasião de uma coluna logística Bambadinca - Xitole (Xitole era a unidade de quadrícula, do Setor L1, mais a sul; era a sede da CART 2716, em 1970/72).

Perspetiva: norte-sul, quando se vem de Bambadinca e Mansambo para Xitole e Saltinho.  A ponte, em madeira, de construção ainda relativamente recente e em bom estado, era vital para as ligações de Bambadinca e Mansambo  com o Xitole, o Saltinho e Galomaro... A ponte era defendida por um 1 Gr Comb do Xitole, em permanência, dia e noite... Na foto sãos visíveis, em segundo plano à esquerda, o fortim; em terceiro plano, ao fundo, à direita, as demais instalações do destacamento. Foto do álbum de Arlindo T. Roda, ex-fur mil da CCAÇ 12 (1969/71).

Foto: © Arlindo T. Roda (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação das memórias do Amadu Djaló (Bafatá, 1940-Lisboa, 2015), a partir do manuscrito, digital, do seu livro "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada) (*).

O seu editor literário, ou "copydesk", o seu camarada e amigo Virgínio Briote, facultou-nos uma cópia digital; o Amadu, membro da Tabanca Grande, desde 2010, tem cerca de nove dezenas de referências no nosso blogue.



Capa do livro do Amadu Bailo Djaló,
"Guineense, Comando, Português: I Volume:
Comandos Africanos, 1964 - 1974",
Lisboa, Associação de Comandos,
2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.


O autor, em Bafatá, sua terra natal,
por volta de meados de 1966.
(Foto reproduzida no livro, na pág. 149


Síntese das partes anteriores:

(i) o autor, nascido em Bafatá, de pais oriundos da Guiné Conacri, começou a recruta, como voluntário, em 4 de janeiro de 1962, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;

(ii) esteve depois no CICA/BAC, em Bissau, onde tirou a especialidade de soldado condutor autorrodas;

(iii) passou por Bedanda, 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), e depois Farim, 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), como sold cond auto;

(iv) regressou entretanto à CCS/QG, e alistou-se no Gr Cmds "Os Fantasmas", comandado pelo alf mil 'cmd' Maurício Saraiva, de outubro de 1964 a maio de 1965;

(v) em junho de 1965, fez a escola de cabos em Bissau, foi promovido a 1º cabo condutor, em 2 de janeiro de 1966;

(vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo 'cmd' Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amesterdão);

(vii) depois da última saída do Grupo, Op Virgínia, 24/25 de abril de 1966, na fronteira do Senegal, Amadu foi transferido, a seu pedido, por razões familitares, para Bafatá, sua terra natal, para o BCAV 757;

(viii) ficou em Bafatá até final de 1969, altura em que foi selecionado para integrar a 1ª CCmds Africanos, que será comandada pelo seu amigo João Bacar Djaló (Cacine, Catió, 1929 - Tite, 1971)

(ix) depois da formação da companhia (que terminou em meados de 1970), o Amadu Djaló, com 30 anos, integra uma das unidades de elite do CTIG; a 1ª CCmds Africanos, em julho, vai para a região de Gabu, Bajocunda e Pirada, fazendo incursões no Senegal e em setembro anda por Paunca: aqui ouve as previsões agoirentas de um adivinho;

(x) em finais de outubro de 1970, começam os preparativos da invasão anfíbia de Conacri (Op Mar Verde, 22 de novembro de 1970), na qual ele participaçou, com toda 1ª CCmds, sob o comando do cap graduado comando João Bacar Jaló (pp. 168-183);

(xi) a narrativa é retomada depois do regresso de Conacri, por pouco tempo, a Fá Mandinga, em dezembro de 1970; a companhia é destacada para Cacine [3 pelotões para reforço temporário das guarnições de Gandembel e Guileje, entre dez 1970 e jan 1971]; Amadu Djaló estava de licença de casamento (15 dias), para logo a seguir ser ferido em Jababá Biafada, sector de Tite, em fevereiro de 1971;

(xii) supersticioso, ouve a "profecia" de um velho adivinho que tem "um recado de Deus (...) para dar ao capitão João Bacar Jaló"; este sonha com a sua própria morte, que vai ocorrer no sector de Tite, perto da tabanca de Jufá, em 16 de abril de 1971 (versão contada ao autor pelo soldado 'comando' Abdulai Djaló Cula, texto em itálico no livro, pp.192-195) ,

(xiii) é entretanto transferido para a 2ª CCmds Africanbos, agora em formação; 1ª fase de instrução, em Fá Mandinga , sector L1, de 24 de abril a fins de julho de 1971.


Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXVII:

Atacados em Candamã como se fôssemos do PAIGC 
(pp. 195-200)

Em Tite, oito dias depois (*), embarcámos com o pessoal seleccionado para a 2ª CCmds, com destino a Fá Mandinga, para dar início ao curso que iria durar seis meses.

Foi muito duro, terminou com uma prova individual duríssima. Começámos a 2ª parte do curso com a formação das equipas e depois seguiu-se a técnica de combate. Alterámos os horários, o dia passou para a noite e a noite passou para o dia. Começávamos a instrução às 19h00, que era a hora do pequeno-almoço, almoçávamos à 01h00 e jantávamos às 06h00 e a seguir deitávamo-nos no dia seguinte. Era uma semana maluca, diziam alguns.

Num desses dias saímos das viaturas na estrada de Bambadinca para o Xitole. Cinco grupos largados à distância, mais ou menos de três quilómetros uns dos outros, todos com o mesmo objectivo. Tinham-nos sido dados os azimutes para a nossa orientação e, mesmo assim, tivemos muitas dificuldades. A mata tinha um tipo de espinhas que eu nunca tinha visto. Agarravam-se ao camuflado e só saíam à faca. Saímos de lá com os camuflados todos cortados. Até fomos atacados por um civil da tabanca, em auto-defesa, de Candamã [1].

Homens que estavam a trabalhar na monda dos campos de arroz, a que nós na Guiné chamamos lugares de pampam[2], avistaram-nos e como, entre nós, não havia nem um branco, pensaram que éramos do PAIGC e fugiram para a tabanca, a avisar os milícias que a tabanca ia ser atacada. Depois começámos a ser flagelados com tiroteio e não podíamos responder.

Nós sabíamos quem eles eram, mas eles não sabiam que nós também estávamos do lado deles. Como a mata não nos deixava entrar, continuámos a contornar a campada[3] de arroz até que conseguimos deitar a mão a um homem que conhecia um dos nossos cabos monitores, o Califa Embaló, que estava à espera de ser graduado em furriel no final do curso. Convencemo-lo a dirigir-se à tabanca e avisar os milícias que nós éramos de Fá Mandinga e que nos estávamos a dirigir para a ponte do rio Pulom. Cerca de 15 minutos depois, fomos no caminho dele, até à tabanca, que estava vedada com arame farpado.

Quando chegámos, vimos que à volta da tabanca havia uma vala com abrigos que até podiam servir para armas pesadas e toda a população estava lá metida. Quando entrámos não cumprimentámos nem falámos com ninguém, continuámos a andar até sairmos pelo outro lado da tabanca, que ficava a leste da povoação. Seguimos então na direcção do nosso objectivo, a ponte do Pulon e as tabancas de Fulamori, Dulogenjele, Guerleje e Polo, que era o objectivo final. Na ordem de missão não devíamos nem podíamos tocar em nenhuma das tabancas.

Durante o trajecto, o furriel Cicri Marques Vieira informou pelo rádio que tinha chegado a Dulogengele e que ele e o Vasconcelos tinham reunido toda a população e que não havia problemas. Eu e o furriel Sada Candé só chegámos ao pôr-do-sol e encontrámo-nos todos em Bamtabá. Quando estávamos sentados, a descansar, vi umas casas cobertas com capim, à moda Futa-Fula e disse para o Sada Candé:

– Aquelas palhotas ali parecem de patrícios meus. Vou lá ver se me arranjam um local para as minhas orações.

Sada Candé quis ir também e quando lá chegámos ouvi um velhote perguntar a alguém se todos tinham ido e ouvi também esse alguém responder que sim.

–  Olha, Sada, estamos tramados. Fugiram todos para Galomaro. E agora? Temos que saber quantos fugiram e para onde foram.

Em passo rápido para a palhota, cumprimentei o velhote, ele respondeu com consideração, e eu perguntei-lhe:

–  As populações fugiram?

–  Mandámos mulheres e crianças passarem a noite em Galomaro.

–  Porquê?

– Porque não temos confiança no homem que se reuniu convosco. Tem barba muito grande!

O velhote estava a referir-se ao Furriel Cicri Vieira. Pedimos a um rapaz, que estava à nossa beira com uma bicicleta, que fosse atrás dos fugitivos e lhes dissesse para regressarem, que não havia perigo nenhum.

De madrugada, retomámos a marcha com destino ao nosso objectivo, que atingimos às 06h45, quase ao mesmo tempo que o capitão Miquelina Simões e o tenente Oliveira. E às 07h30 iniciámos as provas de equipas que terminaram já passavam das 20h30.

Mais dura foi a semana a seguir. Iniciámos a instrução colectiva, por grupos, que durou poucos dias e depois começámos[4] o treino operacional.

Saímos de Fá Mandinga, depois do pequeno-almoço em direcção ao Xime e atravessámos o rio Geba. Toda a companhia estava na outra margem por voltas das 13h00. Dali seguimos para o Enxalé.

Os comandantes dos grupos, todos furriéis, entraram na sala de operações, juntamente com o capitão, comandante da companhia[5] dos europeus do pelotão destacado no Enxalé, para consultarem os mapas da zona.

Saímos de Enxalé à tarde e caminhámos durante toda a noite, até de manhã. A marcha decorreu sem problemas, sem qualquer contacto com o IN. Quando atingimos o objectivo informámos, por rádio, que já lá estávamos. Então, recebemos ordem para retirar.

Foi uma retirada penosa. Estávamos com fome, com sede e com sono, a chuva miudinha não parava de cair. Só atingimos o Enxalé por volta das 16h00. Atingimos o porto às 18h00, estava a maré baixa. Não podíamos estar ali muito tempo, a maré cheia estava prevista para as 22, 23h00. Como continuava a chover, e estávamos cheios de frio, decidimos meter-nos na água e atravessar o rio, ao encontro das viaturas que nos aguardavam na outra margem.

Tirámos a roupa toda e enfiámo-nos no lodo, a rastejar. No meio do rio, vi-me atolado, quase sem me pode mexer. As lágrimas caíam-me pela cara abaixo, misturadas com a água da chuva, que nunca parou de cair. Finalmente, com muito custo, cheguei à outra margem, já passava das 18h00.

Na berma da estrada tinha uma enorme corrente de água da chuva a correr para o Geba. A tremer, com as lágrimas ainda a caírem-me pela cara, meti-me na corrente da água. Depois de tirar o lodo do corpo, vesti a farda encharcada. Uma mulher da minha etnia, que morava ao pé, convidou-me a ir aquecer-me à varanda da casa dela, enquanto o resto do pessoal não acabasse de atravessar o rio.

–  Meu furriel, vá lá, porque tem uma corrente de ar forte, fica seco num instante  –  disse-me um condutor.

Fui com a mulher. Tinha uma fogueira acesa, deu-me uma cadeira e estive ali a aquecer-me até que ouvi chamarem pelo meu nome para entrarmos para as viaturas. Vinte e tal quilómetros até Fá Mandinga, em viaturas sem capota, com a corrente de ar durante toda a viagem.

Quando cheguei, mandei um condutor chamar o enfermeiro, o Domingos Lourenço Fernandes, conhecido por Dundo Fernandes. Vesti umas calças e uma camisola, secas, e enfiei-me na cama com duas mantas em cima de mim. Quando Dundo chegou, aplicou-me duas injecções e deu-me três comprimidos para engolir.

Durante minutos, tapado com as mantas, senti calor, transpirei até que já não aguentava mais a roupa em cima.

Ainda antes da meia-noite, entrou no quarto um furriel europeu, que me acordou e disse que o capitão Miquelina Simões queria falar comigo.

–  Estou doente, pá!

–  É melhor ires falar com ele, parece que o teu grupo vai sair esta noite ainda!

Vesti-me e lá fui ter com o comandante, ao bar.

–  Desculpa, Amadu, esqueci-me de te dizer que vais sair esta noite. Devias estar em Bambadinca à meia-noite, mas vais na mesma, prepara o teu grupo o mais depressa possível.

Dei dez minutos ao grupo para se preparar. Com o grupo formado, conferi se estavam todos, o capitão passou revista, estava tudo em ordem e mandei-os subir para as viaturas. Ainda não era meia-noite, quando arrancámos para Bambadinca e, quando lá chegámos, passavam 20 da meia-noite.

Depois de consultar o mapa e inteirado da missão, pusemo-nos a caminho. Foi toda a noite a andar, até de manhã, sempre a chover, tudo bolanhas cheias. Chegámos ao rio, e tivemos que o atravessar para o outro lado. Demorou cerca de uma hora a travessia, depois entrámos numa área cultivada de milho. Fomos andando até às 11h00, atingimos um local, onde, conforme o estabelecido, entrei em contacto rádio e ficámos a aguardar nova ordem.

Entretanto fomos comendo qualquer coisa, que tínhamos levado connosco, e aí pelas 15h00, apareceu uma avioneta a sobrevoar a zona. Estava à nossa procura. Com o rádio ligado, pediram a nossa localização, estendemos telas e deram-nos ordem para nos mantermos naquele local.

Eram para aí 20h00 recebemos a indicação para atravessarmos o rio e para progredirmos até junto do objectivo, onde deveríamos permanecer, até nova indicação. A grande dificuldade foi atravessar o rio. Estava uma noite completamente escura, a ponte era de paus, a corrente era muito forte e no outro lado estava a mata densa. Agarrados uns aos outros pela cintura, demorou horas a travessia do grupo. Na outra margem fizemos um alto. Por volta das 04h00, retomámos a marcha com todo o cuidado, sempre com a companhia da chuva, até que por volta das 05h30 executámos o “golpe de mão”.

Após o golpe de mão simulado, rumámos para a estrada Bambadinca-Xitole e em Demba Juli apanhámos uma coluna que nos levou para Fá. 

Foram quatro dias sem qualquer ração quente e com paludismo.
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Notas do autor e do editor literário:

[1] Nota do editor: no subsector atribuído à CArt 2714 de Mansambo. [No livro, o topónimo está mal grafado: é Candamã, e não Gandamã. (LG)]

[2] Lavra de arroz no mato. O mato é cortado, primeiro, a seguir é queimado e, quando chove, lança-se o arroz e pega-se no covadouro, para se infiltrar melhor no solo.

[3] Campo lavrado.

[4] Nota do editor: em 10 Setembro de 1971.

[5] Nota do editor: CArt 2715 / BArt 2917

[Seleção / Revisão e fixação de texto /  Subtítulo / LG]
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 23 de maio de 2023 > Guiné 61/74 - P24337: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXVI: 16 de abril de 1971, um dia trágico, a morte de João Bacar Jaló (Cacine, 1929 - Tite, 1971)

sexta-feira, 26 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24343: Notas de leitura (1585): "Os Manuscritos de R.", por Jaime Froufe Andrade, segunda edição de Novembro de 2019, um monumento literário aos antigos combatentes que Portugal esqueceu (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Maio de 2023:

Queridos amigos,
Havia algo de tão íntimo nesta narrativa que Jaime Froufe Andrade me enviou em outubro de 2020 que me impediu, após sucessivas leituras que dela fiz, de publicitar a importância deste documento literário. Não há para aqui lamúria nenhuma, põem-se os dados na mesa, exibem-se os factos, fala-se de velhos que parece que têm que contar às escondidas que se fizeram homens para uma guerra para onde foram enviados ou que se juntam uma vez por ano para trocar impressões se foi ou não foi assim mesmo que aquilo se passou, isto depois de já se terem contado as baixas trazidas por mais um ano, daquele encontro para este. Não hesito em chamar-lhe monumento literário e dizer que Jaime Froufe Andrade, alferes-miliciano ranger, em Moçambique (1968-1970) lega à literatura da guerra colonial um texto de arromba, para mim está no pódio do que há de melhor, o Moçambique que ele vai soletrando sílaba a sílaba pode facilmente transmutar-se em picadas guineenses ou angolanas, é assim que se define a universalidade da escrita.

Um abraço do
Mário


Um monumento literário aos antigos combatentes que Portugal esqueceu

Mário Beja Santos

Os Manuscritos de R., por Jaime Froufe Andrade, com segunda edição em novembro de 2019, é um tremendo grito de desespero. No uso de uma arquitetura literária que tem escola, há um editor livreiro a quem foram parar às mãos os manuscritos, uma prosa inquieta, um carrossel de clamores, e tratada como obra póstuma cabe ao escritor burilar as tais folhas convulsas, encontrou a satisfação em dar inteligibilidade a frases descontínuas, e entramos de escantilhão num lugar de guerra, há misturas de falas, farrapos de recordações, alguém vem de mochila às costas, bornal encostado à anca, a descer a estrada da Circunvalação, com o Porto à esquerda, Matosinhos à direita. Tem um objetivo a milhares de quilómetros. Engane-se quem pense que ele vai sozinho, “Acompanha-me um infindável rol de lembranças, acontecimentos bons, maus, poéticos ou prosaicos, dramáticos, fúteis ou de mero entretenimento.”

Tudo em rodopio, em alvoroço, umas vezes estamos no presente outras vezes no futuro, ou num algures pretérito. Parece que vamos a caminho de Tete. E vamos habituarmo-nos a expressões inusuais na literatura da guerra, por exemplo, viventes-a-prazo-indefinido ou vivente-a-muito-curto-prazo. Há gente que aparece aqui com diferentes idades, tanto podem ter 25 como 90 anos, as marchas são frenéticas, quem parece delirante lembra-se que é um ranger, está a esgatanhar-se para que a memória lhe traga à escrita aquilo que se viveu e a dor como se viveu, deste modo:
“A estação quente estava no pino. Caminhávamos há várias horas pela savana. O sol, caustico, mostrava-se pior do que aguarrás. Fazia rechinar as pedras. Extenuados, trôpegos, seguíamos em fila indiana, a vários metros uns dos outros. Os corpos, sujeitos a uma temperatura de 50 graus, lembravam – se os houvesse – fósforos ambulantes, prontos a arder. O inferno mudara-se. Montara arraial nestes ermos desolados, onde parecia não haver vida.”

Quem delira e quem rememora prossegue esta viagem, é de presumir que se trate de uma fuga, haverá talvez um ponto de encontro, pois fique-se sabendo que tudo aquilo que aqui se escreve em desassossego e com raiva, estes velhos desaustinados, desmemoriados, guardavam, como dever final, imagens retiradas da net, tais como evacuação de feridos, viaturas militares esfrangalhadas, pessoal de G3 na mão a atravessar linhas de água a embrenharem-se na selva. Ponto curioso, tal como Jaime Froufe Andrade, este delirante autor dos manuscritos ainda lembra o nome de pessoas, bichos, rios e lugares que conheceu em Moçambique: Xeringa, Jaissone, Tsimbe; Cahora-Bassa; checa, maningue, saguá, tembé, chibante… é Moçambique e a guerra que lhes coube viver.

Este homem que tem objetivo, de nome Rodrigues, parece que chegou ao destino, dá entrada no hospital psiquiátrico. Agora sim, a guerra parece que está mais próxima, o Rodrigues anda dececionado com os filhos, estes inquietos, o pai não anda bem da cuca, tem muitas desconfianças, teme ser envenenado. Vai trocando informações e descobre que tem à volta antigos combatentes, há para ali alguém que grita:
“Portugal, lembras-te de nós? Não te faças de desentendido. Lembras-te? Somos aqueles que a teu mando reconquistámos a Pedra Verde, passámos dias de terror em Gadamael, pagámos muitas vezes com a vida em Mueda. Lembras-te? Fica-te mal esse teu esquecimento.”

E há os males menores, os maiores foram os que regressaram sem olhos, pernas e braços, ou ficaram estiraçados no capim, “porque tu nem com a viagem de regresso dos nossos corpos te importaste. Isso não se faz, Portugal.” Quanto aos males menores: “Batemos o queixo com o paludismo, urinámos sangue com bilharziose, fomos picados por mosquitos, mordidos por cobras; sofremos insónias com o som da quizumba, coçámo-nos, desesperados, até sangrar, com a penugem de vidro da vagem do feijão-macaco. Por ti, ingrato, até roídos fomos pela matacanha.”

Assume proporção gigantesca a litania por o país que esqueceu aqueles que mandou para a guerra, marcando-os no corpo, na alma, na consciência. Bem se grita, Portugal às vezes tem consciência do que eles passaram, dá-lhes isenção de taxas moderadoras, gratuidade nos transportes públicos, visitas aos museus nacionais, um discreto pecúlio uma vez por ano. E Jaime Froufe Andrade fala-nos no recém-morto-definitivo, alguém que tinha vivido assombrado pela guerra e fizera do mau-vinho o seu tratamento diário, a costumada vida familiar infernal, a mulher, os filhos e os netos aprenderam que existe uma síndrome pós-traumático.

Lá no hospital ou coisa parecida parece que há propósitos de partir para uma operação especial. Então, estoira na memória aquela recordação de que os Chiticula estava a ser atacado, um cabo de transmissões gritava desesperadamente de que aquela secção que montava guarda a máquinas de Arma de Engenharia, estava a embrulhar, à frente de um grupo de voluntários o nosso ranger pôs-se ao caminho. “Portugal, lembras-te de nós? Não te faças desentendido. Lembras-te?” Tudo isto se contava lá à malta do hospital ou da pensão onde se encontravam aqueles velhos que tinham andado pela guerra. Mas que fique bem claro que era mesmo um hospital e todos aqueles voluntários, em estado de grande tensão, lá vão progredindo a corta-mato, entram em Chiticula, não há camaradagem maior do que percorrer todos aqueles perigos e abraçar gente amiga. Tudo isto se vai contando entre viventes-a-prazo-indefinido.

A operação não descola, a falta de memória é evidente, alguém consola o alferes, quando ali chegarem e cheirarem o capim, a festa vai continuar. Sabemos agora que está tomada a decisão, vão partir em boa companhia. “Um último aceno e os primeiros passos rumo ao objetivo, situado a milhares de quilómetros. Indiferentes a uma lua pequena e desconsolada que entristece a noite, vamos já a descer a estrada da Circunvalação, com o Porto à esquerda, Matosinhos à direita.”

Estou finalmente a ressarcir-me do silêncio em que guardei esta joia que me foi enviada pelo Jaime Froufe Andrade, com data de 19 de outubro de 2020, é uma narrativa prodigiosa, uma escrita incandescente que não pode deixar indiferente quem andou de armas na mão por aquela ou por outras picadas, cada um de nós teve o seu Tete. O que posso dizer a quem me lê e ao Jaime Froufe Andrade, que conheci no Jornal de Notícias, onde escrevi 28 anos a fio, é que o ponho no pódio dos grandes livros que se escreveram da guerra de Moçambique, logo a seguir a Nó Cego, de Carlos Vale Ferraz, e Olhos do Caçador, de António Brito, é narrativa de arromba, mais tocante monumento ao antigo combatente esquecido não há.

O Alferes Jaime Froufe Andrade e um guerrilheiro da FRELIMO.
Imagens extraídas do site Dos Veteranos da Guerra do Ultramar
Jaime Froufe Andrade, em 2015, durante uma entrevista
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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24334: Notas de leitura (1584): "Onésimo Silveira, Uma Vida, Um mar de Histórias", por José Vicente Lopes; Spleen Edições, 2016 (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P24342: Álbum fotográfico do Padre José Torres Neves, ex-alf graduado capelão, CCS/BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) - Parte X: mais fotos do destacamento e tabanca de Cutia


Foto nº 1A


Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 2A


Foto nº 3


Foto nº 3A


Foto nº 4


Foto nº 5


Foto nº 6


Foto nº 7


Foto nº 8

Guiné > Região do Oio > Sector 4 (Mansoa) > BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) > Destacamento e tabanca de Cutia >  Imagens diversas

Fotos (e legendas): © José Torres Neves (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Continuação da publicação do álbum fotográfico do Padre José Torres Neves, ex-alf graduado capelão, CCS/BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71). Desta vez tendo por tema o destacamento e a tabanca de Cutia, que ficava a meio caminho entre Mansoa e Mansabá. (*)

Estas são as terceiras de um lote sobre Cutia. Temos mais de  35 referências a Cutia. O Jorge Picado tem aqui, no poste P2881, uma excelente descrição do destacamento e tabanca de Cutia do seu tempo (1970/72) (**).

Na altura, havia em Cutia um Pelotão da CCAÇ 2589 / BCAÇ 2855 (Mansoa, 1969/71) e ainda o Pel Caç Nat 61 (ou Pel Caç Nat 57) e ainda um Esquadrão de um Pelotão de Morteiros.

A oganização e a seleção das fotos são feitas pelo seu amigo e nosso camarada, o médico Ernestino Caniço, ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 2208 (Mansabá e Mansoa), tendo passado depois pela Rep ACAP - Repartição de Assuntos Civis e Ação Psicológica, (Bissau) (Fev 1970/Dez 1971).

O José Torres Neves é missionário da Consolata, ainda no ativo. Vai fazer, em 2023, os 87 anos. Vive num país africano de língua oficial portuguesa. Esteve no CTIG, como capelão de 7/5/1969 a 3/3/1971. Estamos-lhe muito gratos pela sua generosa partilha.

As fotos (de um álbum com cerca de 200 imagens) estão a ser enviadas, não por ordem cronológica, mas por localidade, aquartelamentos ou destacamentos do sector de Mansoa. 
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Guiné 61/74 - P24341: Parabéns a você (2173): Jorge Narciso, ex-1.º Cabo Especialista MMA da Força Aérea Portuguesa (BA 12/Bissau, 1969/70)

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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24324: Parabéns a você (2172): Joaquim Fernandes Alves, ex-Fur Mil Art da CART 1659 (Gadamael, 1967/68

quinta-feira, 25 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24340: Memórias de Gabú (José Saúde) (97): Jovens da tabanca Rostos de inocência. Pedaços de vida de uma Guiné que conhecemos. Crianças (José Saúde)


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

As minhas memórias de Gabu

 Jovens da tabanca Rostos de inocência

Pedaços de vida de uma Guiné que conhecemos

Crianças

Camaradas,

Viajo pelas ondulantes ondas do tempo, afirmando seguramente que recordar é viver, tal como assevera o povo e com razão, que nós, antigos combatentes na Guiné, conhecemos, em parte, a vivência das crianças numa tabanca localizada no interior de um mato denso, onde o seu viver quotidiano na comunidade local, uma comunidade, aliás, essencialmente limitada pela falta da chamada liberdade de acção, uma condicionante que por força de uma razão maior terá de ser analisada em toda a sua verdadeira extensão, era simplesmente uma incógnita.

Nesta conjuntura, não entremos pelo mundo imaginativo literalmente irreal ou pressupostamente histérico que o nosso raciocínio ético nos propõe, mas baseado na isenção da realidade então observada. Analisemos sim, e imparcialmente, o viver dessas crianças que habitavam encurraladas entre as duas forças inimigas que, no terreno, não davam tréguas.

Nesses tempos, sempre hostis, as crianças despertavam em mim, tal como sempre o fizeram, sentimentos de uma profunda sensibilidade. Com elas, as crianças, compreendi que viver em liberdade era um confortante revigorante para que as suas almas no calor da luta armada reclamassem apenas paz.      

Mas a guerra é feita pelos homens, homens com os seus hobbies particulares à flor da pele, logo os possíveis sonhos das crianças ficavam, e ainda ficam, para trás. Para vocês crianças de outrora que conheci, hoje homens e mulheres da região de um Gabu que dantes calcorreei, fica o meu profundo sentimento de saudade.

Bem-haja a vossa infantil coragem por um sofrimento que era tão-só proveniente dos senhores da guerra. Das vossas carinhas inocentes guardarei eternamente imagens de jovens residentes em tabancas onde as necessidades imperavam.

Neste contexto, permitam-me deixar o meu grito de Ipiranga em conflitos armados que deixaram e vão desmesuradamente deixando abalos: Não às guerras! Não aos “senhores” das guerras! Não às opulências dos homens! Não às suas riquezas de “senhores” possessores de armamentos que só matam! Não à morte de inocentes crianças! Sim à paz! Disse.

Que sejam vocês crianças, principalmente as que conheci nessas tabancas da Guiné, os mensageiros de uma paz que nós, homens com carater, tão bem o desejamos. 

Mais um pequeno texto do meu livro "UM RANGER NA GUERRA COLONIAL GUINÉ/BISSAU 1973/1974, Edições Colibri. 

Jovens da tabanca

Rostos de inocência

Os seus olhares espelhavam uma extrema inocência. Os seus rostos, meigos, imploravam uma paz que teimosamente se esvaziava no infinito do horizonte tantas vezes nublado. As crianças são pequenos seres humanos que sempre me despertaram múltiplos sentimentos. Gosto de crianças!

A minha passagem pela Guiné – Gabu – ficou também marcada pela inequívoca afeição aos miúdos guineenses. Num flash às minhas memórias a sensibilidade das garotas e garotos, nascidos e criados numa tabanca escondida algures no mais denso mato ou na sua orla, mexeram com a minha susceptibilidade.

Deparei-me com rostos que me transmitiam visões verdadeiramente arrepiantes. Crianças que não conheciam o prazer de brincar. A guerra, essa maldita realidade constatada no terreno, impingia frágeis condições às populações para sua sobrevivência.

Crianças que não conheciam o prazer de saborear um pudim flan e que não sabiam o que era a luz elétrica e a água canalizada. A tabanca, o seu doce lar, apresentava condições muito débeis. Não tinham camas e nem tão-pouco brinquedos. Os seus corpos descansavam sobre um pano garrido que apelidavam de colchão. No interior da tabanca pouco existia. Não havia móveis nem talheres de prata para receber um ilustre convidado. Olhava e via-se… nada!

À porta da tabanca, os cuidados da mãe passavam por bater a mandioca enquanto as crianças, por vezes infestadas de moscas, esperavam encarecidamente pelo momento em que as migalhas lhe caíssem a jeito. Noutras ocasiões era o arroz que atendia os seus desejos. Comiam com as mãos!

Nas alturas do fanado, uma festa tradicional nalgumas etnias indígenas, era comum deparámo-nos com grupos de jovens no mato que tinham sido submetidos a um rito de passagem, um processo cultural, de resto, fundamental em qualquer sociedade humana que é a iniciação dos rapazes e das raparigas à idade adulta. A minha ideia inicial sobre o fanado - minha e de muitos dos meus camaradas na época - era de que se tratava de uma espécie de operação primária, feita por métodos obsoletos utilizados pelos homens e mulheres grandes aos jovens que se preparavam para despontar para uma vida sexual futura, isto é, na fase exata que implica a passagem da puberdade para a idade adulta. Sabíamos vagamente - já que a cerimónia era secreta - que os seus órgãos genitais, pénis e vagina, sofriam pequenos cortes focais, sendo a sua principal finalidade manter a tradição dos seus antepassados. Era uma pequena cirurgia dolorosa, confessavam aqueles que conheceram o sofrimento.

Mas as coisas, vistas num campo correcto, não eram bem assim. Ou seja, se no caso dos rapazes, a microcirurgia se resumia ao corte do prepúcio, no caso das raparigas trata(va)-se de uma autêntica Mutilação Genital Feminina (MGF). Sabemos que a excisão do clítoris e dos grandes lábios nas meninas, era, e é, uma prática inaceitável à luz dos direitos humanos, e como tal um crime, penalizado pela lei dos Estados modernos, designadamente Portugal e a Guiné-Bissau. Porém, a lei está longe de ser cumprida na Guiné-Bissau, face ao atavismo desta prática milenar e ao secretismo das cerimónias, que são realizadas em separado (rapazes e raparigas).

Por outro lado, as fanatecas (mulheres que fazem a excisão feminina) têm ainda, em termos simbólicos e materiais, um grande peso nas comunidades mais tradicionais (em geral islamizadas).  É, no fundo, uma prática - para a qual é necessário encontrar alternativas - de há muito denunciada e combatida pela Organização Mundial de Saúde - a que acresce as suas graves implicações para a saúde sexual e reprodutiva das mulheres que são submetidas ao fanado tradicional.                 

O método, rude, era feito com facas de mato entre outros apetrechos caquécticos e as feridas curadas com mesinhos caseiros, asseguravam os antigos sofredores.

A juventude da tabanca era cordial. Recebiam-nos com carinho. Acontecia, e disso sou testemunha, que, com chegada da tropa branca a algumas das tabancas, a miudagem parecia “coelhos” a correrem directos às suas tocas. Deparávamo-nos, então, com os seus pequenos olhos luzidios a espreitarem do interior das tabancas os intrusos que, entretanto, tinham chegado. Depois tudo voltava à normalidade, os miúdos aproximavam-se e o convívio conhecia um novo rosto.  

As crianças conviviam com as agruras da guerra. Trabalhavam no campo a par das suas mães. O pai descansava. Semeavam o milho, a mancarra, criavam galinhas, cabritos e colhiam os frutos que a Natureza gentilmente lhes oferecia.

Um espelho de sobrevivência! 


Um abraço, camaradas 

José Saúde

Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

___________

Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série de 9 DE SETEMBRO DE 2020 > Guiné 61/74 – P21341: Memórias de Gabú (José Saúde) (96): A fé na guerra (José Saúde)

Guiné 61/74 - P24339: Tugas, pocos pero locos: algumas das nossas operações temerárias (2): Op Gavião (Madina / Belel, 4-6 de abril de 1968): 300 homens desbaratados pelas abelhas, armas extraviadas, um cadáver abandonado, um homem perdido, etc.


Cracá do Pel Caç Nat 52 (1966/1974), "Os Gaviões". Divisa: "Matar ou morrer"


Operação Gavião (Madina / Belel, 4-6 de Abril de 1968)  

1. Todos os anos, pela época seca, de preferência entre março e abril, o comando do batalhão sediado em Bambadinca, Sector L1, zona leste, região de Bafatá, mandava uma força de cerca de 300 homens à procura do acampamento IN do Enxalé, algures na península de Madina / Belel, mesmo já no limite do Sector, a sudeste da base de Sara.  Por aqui o IN e a população sob o seu controlo viviam com relativa tranquilidade, só sendo importunados por alguma incursão de tropas helitransportadas ou pelos bombardeamentos da FAP. A ida a Madina / Belel era quase sempre azarada: em geral as NT levavam prisioneiros que serviam de guias, e que procuravam ludibriar as NT, "perdendo-se" propositadamente ou tentando inclusive a fuga (como aconteceu, por exemplo, na Op Anda Cá, 22 e 23 de fevereiro de 1968) (*), 

Todos os anos aconteciam erros de planeamento, guias que se perdiam, itinerários mal escolhidos, PCV (antes da época do Strela...) que denunciavam a presença das NT, falhas no abastecimento de água, progressão para o objectivo a horas proibidas, confusão de (ou chegada tardia aos objetivos), flagelações do IN, tabancas abandonadas e queimadas, casos de exaustão, insolação e  desidratação, indisciplina de fogo, ataques de abelhas, debandada geral, perda de armas e muniçóes, e até de homens, regresso dramático ao Enxalé com viaturas a sair até São Belchior para transportar os mais "desgraçados", tentatativa de recuperação, no dia seguinte, do material perdidos… e, claro, relatórios por vezes fantasiosos, pouco rigorosos, etc....

Em 1968 (Op Gavião), aconteceram também estas coisas, próprias de uma guerra de contraguerrilha, num terreno inóspito para muitas das tropas portuguesas... É também caso para dizer, "tugas pocos pero locos" (**).

2.  Op Gavião: Desenrolar da acção

Iniciada no dia 4 de abril de 1968, às 18h00, com a duração de 3 dias, tinha como finalidade excutar uma acção ofensiva na mata de Belel, começando por um golpe de mão ao acampamento IN  do Enxalé. 

Forças ( c. 300 homens) que tomaram parte na operação:

(i) Cmdt: 2º cmdt BART 1904;

(ii)  Destacamento A: CART 2338 a 4 Gr Com + Pel Caç Nat 52;

(iii) Destacamento B: CART 2339, a 4 Gr Comb + Pel Caç Nat 53


Destacamento A

O Pel Caç Nat 52 deslocou-se de Missirá para a região de Aldeia do Cuorno dia 4 de abril de 1968, às 15h00, onde se instalou protegendo a cambança das restantes forças do Destacamento (CART 2338), cambança essa que foi efectuadas às 18h45 do mesmo dia.

Uma vez completo o Destacamemnto, as NT iniciaram a marcha para Missirá, tendo pernoitado um pouco antes de o atingir, pelas 22h00. 

Reiniciaram o movimento no dia 5, às 5h30, utilizando um guia natural de Missirá, ao qual foi acordado e indicado qual o serviço a desempenhar só pouco antes do início do movimento, por razões de sigilo e segurança.

Ao fim  da tarde do dia 5 atingiu um ponto cerca de 1 km atrás do local previsto onde pernoitou.

Reiniciado o movimento no dia 6, pelas 5h30, foi detectado um sentinela por volta das 7h30. Começou então a instação de 3 Gr Comb para proteger o ataque dos outros dois grupos. 

Entretanto a sentinela detectou as NT e fugiu. Passados poucos minutos o IN emboscou as NT com LGFog e armas automáticas
Zacarias Saiegh, mais tarde,
na 1ª CCmds Africanos,
como  tenente graduado
'comando'

Com o Pel Caç Nat 52 à frente, impulsionado pelo seu comandante, o fur mil Zacarias Saiegh, que demonstrou um sangue frio, decisão e temeridade  dignos de serem apontados, reagiu à emboscada,  perseguindo o IN durante cerca de 1,5 km. 

Deparou nessa altura com a tabanca de Belel que imediatamente atacou e destruiu totalmente, tabanca essa que tinha sido abandonada recentememnte, e que tinha 25 palhotas. Foram destruídos ainda um tanque de água e uma horta grande.

Aquando da  destruição da tabanca pelo fogo, foram ouvidos uns rebentamentos muito fortes, o que levou a concluir tratar-se de um pequeno paiol.

Entretanto, o PCV infornou o Destacamento A que o objetivo destruído era o objectivo do Dest B e deu ordens para reiniciar o regresso para o local previsto onde se devia emboscar durante a acção do Dest B, o que foi cumprido,

Ao chegar ao local previsto, encontrou-se com o outro Dest, que já tinha destruído o objetivo deste Dest (B), e acabava de sofrer um ataque de abelhas que tinha provocado uma grande desorganziação. 

Tendo então recebido ordem do PCV para iniciar o regresso da operação, acordou com o Dest B que seguisse este na frente por já conhecer o caminho. Entretanto, ao iniciar o movimenmto depois da preparação das macas improvisadas para o transporte dos elementos mais atingidos pelo ataque das abelhas, o que demorou um certo tempo, foram emboscados novamente por forças do IN, tendo sido pedido então apoio aéreo, o que foi recusado pelo PCV.

Foi reiniciado o movimento com algumas paragens motivadas por flagelações do IN, com armas automáticas, e mais dois ataques de abelhas na margem do Rio Gandurandim, o que provocou nova desorganização nos Destacamentos. 

Por fim foi atingida a estrada Finete-Enxalé, sendo o Destacamemto recolhido em viaturas em São Belchior, atingindo o Enxalé no dia 6, às 18h30.

Aí, mais tarde, foi constatado o desaparecimento de uma praça metropolitana pelo que o cmdt do Destacamento A resolveu  na madrugada seguinte ir à sua procura, não tendo sido necessário por a praça ter aparecido no Enxalé no dia 7, às 6h00.

Iniciou-se a cambança do Rio Geba para o Xime, e daí, em viaturas, iniciou-se o movimento para Fá que foi atingida no dia 8, às 15h00.

Constatou-se que, durante o ataque de abelhas, duas praças perderam as armas, pelo que o Cmdt do BART ordenou a ida de 1 Gr Comb deste Dest, e um do Dest B no dia seguinte, 8, às 5h00 ao local,  a fim de recuperar as referidas armas, o que foi conseguido. A força regerssou ao quartel em 8, às 20h00.

Destacamento B

A CART 2339 iniciou o seu movimento, em meios auto, no dia 5, às 15h00, de Fá para o Xime onde agregou o Pel Caç Nat 53. Iniciou a cambança do Rio Geba pelas 18h00, recebeu no Enxalé dois guias e iniciou a marcha pelo itinerário previsto, tendo atingido o local a norte de Madina onde se devia instalar, no dia 6, às 7h00, após alguma hesitações ("exitações", no originnal) dos guias,

Cerca das 9h00, o PCV informou que o Dest A tinha já destruído a tabanca de Belel e ordenou que se iniciasse o movimento pelo trilho Mandina-Belel, a fim de iniciar a batida à zona a sul do referido trilho.

Durante o deslocamento foi detectado o acampamento de Enxalé. que imediatamente foi atacado e destruído, sem resistência, verificando-se que tinha sido abandonado há pouco tempo. O objectivo tinha 8 palhotas, e forma capturadas 1 espingarda Mauser, 2 marmitas, 1 granada de RPG, e alguns documentos.

Aquando da destruição pelo fogo, foram ouvidos rebentamentos de munições de armas ligeiras e granadas de RPG.

Entretanto, os elementos do Dest instalados, quando se procedia ao assalto, foram atacados pela abelhas, o que provocou uma desorganiozaçáo grande, e pôs 2 homens em estado grave, que não permitiu que se deslocassem pelos seus meios.  

Devido ainda a esse ataque de abelhas, no seu movimento desordenado o Dest encontrou-se com o Dest A instalado no local previsto.

Nessa altura e como havia uma linha de água perto, 3 elementoso do Pel Caç Nat 53, sem autorização, deslocaram-se para se reabastecerem de água. Foram atacados pelo IN tendo sido abatido o soldado milícia 60/64, Tura Jau, e tendo o IN capaturado a sua arma, espingarda G3 nº 035786.

Acorrendo imediatamente ao local, repeliu-se o IN e recuperou-se o corpo  do referido mílicia.

Como o PCV informara que ía Bissau abastecer, foi pedido pela rede de operação a evacuação dos elementos feridos e do morto. Entretanto, ao chegar o PCV, foi pedida novamente a evacuação, tendo o mesmo  determinado que não houvesse evacuações, após se ter inteirado que os feridos picados pelas anelhas estavam a recuperar, e ter decidido o regresso ao quartéis em face dos objectivos previstos terem sido destruídos, o terreno a sul da picada onde nos encontrávamos estar queimado e não havendo possibilidade de se esconderem instalações do IN e ainda pelo facto do Dest GAMA (BCAÇ 1912) não se ter instalado no local previsto para proteger a acção deste Dest.

Por lapso que se explica pelas circunstâncias de momento, o PCV não foi informado que já tinha sido pedida a evacuação pela rede de operações, o que provocou a vinda do héli a Bambadinca, não sendo contudo utilizado.

Depois de uma certa demora, com o Pel Caç Nat 52 e 53 à frente, iniciou-se o regresso, tendo as NT sofrido 3 flagelações sem consequèncias, e tendo o IN sofrido 5 mortos confirmados.

Já junto da estrada Finete-Enxalé as NT sofreram mais 2 ataques de abelhas, provocando o desmaio de alguns elementos que tiveram de ser transportados às costas.

Continuando a progressão atingiu-se São Belchioronde se foi recolhido por viaturas para Enxalé, que foi atingo cerca das 18h00.

Verificou-se que o morto tinha ficado na zona d0 último ataque de abelhas pelo que foi decidido o Pel Caç Nat 53 ficar em Enxalé, a fim de ir de madrugada no dia seguinte recuperar o corpo, o que foi feito.

A CART 2339 inicou a travessia do Rio Geba, e deslocou-se em viaturas para Fá, que atingiu no dia 7 às 3h00.

Ao conferir o material foi constatada a falta de 2 espingardas G3 e alguns cantis e bornais ("burnais", no original), o que foi comunidacado ao Cmdt do BART que ordenou a ida no dia seguinte à zona do último ataque das abelhas juntamente com 1 Gr Comb da CART 2338, o que foi feito e conseguido recuperar parte do material perdido. As NT regressaram  a Fá, que atingiram no dia 8, às 20h00.

Fonte: Excerto das  páginas 43, 44 e 45 da História da Unidade: Batalhão de Artilharia nº 1904, 1966/68. Relatório da Op Gavião, iniciada em 4 de Abril de 1968: com a duração de três dias, e destinada a executar um golpe de mão contra o acampamento do Enxalé, do PAIGC, na mata de Belel, teve a participação da CART 2338, a 4 Gr Comb, mais o Pel Caç Nat 52 (Destacamento A), bem como da CART 2339, a 4 Gr Comb, mais o Pel Caç Nat 53 (Destacamento B). Foi comandada pelo 2º Comandante do BART 1904.


Documento digitalizado: © Armando Fernandes (2008). Direitos reservadas.


3. O Armando Fernandes, ex-alf mil cav, cmdt do  Pel Rec  Info,  CCS / BART 1904, Bissau e Bambadinca, 1966/68), mandou-nos em 8 de maio de 2008 fotocópias das páginas 43, 44 e 45 da história da unidade, com base nas quais transcrevemos o texto acima (com algumas adaptações, devido ao facto de estar mal redigido e ter alguns erros de ortografia).

Na altura, o nosso camarada escreveu o seguinte:

Professor Luís Graça:

Chamo-me Armando Fernandes, fui alf mil cav, comandei o Pel Rec do BART 1904 que esteve sedeado em Bambadinca, de Janeiro a Setembro de 1968. Durante todo o ano de 1967 o Batalhão esteve sedeado em Santa Luzia, Bissau, onde rendeu, em Janeiro de 67, o BCAÇ 1876.

Entrei ontem, pela 1ª vez, no seu blogue e chamou-me a atenção o nome de uma operação referido em P2817 (***), Operação Gavião.

Sobre essa operação consta da história do BART 1904, pags. 43/45 (edição não canónica em meu poder) que o fur mil Zacarias Saiegh nela participou, o que está em desacordo com uma resposta do doutor Beja Santos registada em P2817. Parece, também, que relativamente à entrada em Belel há discrepância entre o registado na história do BART e o afirmado no mesmo poste. Onde estará a verdade?

Em anexo envio cópia das páginas que referi.

Apresento os meus cumprimentos, Armando Fernandes

4. Comentário do editor L.G.:

Na altura agradeci ao camarada Armando Fernandes, dizendo-lhe que ia divulgar a sua versão (que era a versão do BART 1904)  (****) e dar conhecimentos aos camaradas que tinham escrito sobre a Op Gavião (Mário Beja Santos, do Pel Caç Nat 52, e Torcato Mendonça e Carlos Marques dos Santos, da CART 2339, estes dois últimos participantes da Op Gavião) (*****). 

Escrevi então: 

"A nós interessa-nos a verdade e só a verdade... Em muitos casos, há discrepâncias factuais entre os nossos relatórios de operações e os depoimentos pessoais. É normal. O Mário Beja Santos, que comandou o Pel Caç Nat 52 (a partir de agosto de 1968), não poderia obviamente ter participado nesta Operação Gavião (abril de 1968). Socorre-se da memória dos seus antigos soldados, alguns dos quais felizmente ainda estão vivos e vivem em Portugal."

O ex-alf mil Torcato Mendonça e o ex-fur mil Carlos Marques dos Santos, da CART 2339 (Mansambo, 1968/69), esses,  infelizmente, já náo estão entre nós...

Na altura também convidei o Armando Ferreira  a ingressar na nossa Tabanca Grande.  Infelizmente nunca mais nos contactou, pelo que nem ele nem mais ninguém representa o BART 1904 no nosso blogue.

De qualquer modo, ficou claro na altura que  o fur mil Zacarias Saiegh, a comandar interinamente  o Pel Caç Nat 52, tinha particiapdo na Op Gavião, e que recebera do comandante da operação, rasgados elogios, como se depreende deste excerto do relatório:

(...) "Com o Pel Caç Nat 52 à frente, impulsionado pelo seu comandante, o fur mil Zacarias Saiegh, que demonstrou um sangue frio, decisão e temeridade  dignos de serem apontados, reagiu à emboscada,  perseguindo o IN durante cerca de 1,5 km. " (...)
__________

Notas de L. G.:

(*) Vd. poste de 23 de fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1542: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (34): Uma desastrada e desaosa operação a Madina/Belel

(**) Último poste da série > 21 de maio de 2023 > Guiné 61/74 - P24330: Tugas, pocos pero locos: algumas das nossas operações temerárias (1): Op Tigre Vadio, 30 de março a 1 de abril de 1970, sector L1, Península de Madina / Belel, zona leste, sector L1 (Bambadinca)

(***) Vd. poste de 7 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2817: Blogoterapia (51): O Alentejo do Casadinho e do Cascalheira, o Tura Baldé, a Op Gavião... (Torcato Mendonça / Beja Santos)
(****) Vd. poste de 11 de maio de 2008 > Guiné 63/74: P2833: Op Gavião (Belel, 4-6 de Abril de 1968) (Armando Fernandes, Pel Rec CCS / BART 1904, Bissau e Bambadinca, 1966/68)

(*****) Vd. ppostes de:

9 de maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2823: Dando a mão à palmatória (11): Operação Gavião, 5 de Abril de 1968, com as CART 2338 e 2339 (Torcato Mendonça / Beja Santos)

2 de janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9303: Memórias do Carlos Marques dos Santos (Mansambo, CART 2339, 1968/69) (1): Op Gavião: Abril de 1968, antes o fogo do IN que o ataque das abelhas

quarta-feira, 24 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24338: Historiografia da presença portuguesa em África (369): Da CUF à Casa Gouveia, da Casa Gouveia à CUF: Uma viagem interminável (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Setembro de 2022:

Queridos amigos,
Sendo inviável fazer uma pesquisa com uma certa diacronia entre António da Silva Gouveia e Alfredo da Silva/Sociedade Geral, socorro-me do que vem na literatura sobre esta empresa em obras centradas nas atividades daquele que foi um dos mais ousados industriais portugueses, Alfredo da Silva. Não há nenhuma literatura sobre a Casa Gouveia, no entanto ela teve um papel preponderante e impôs-se dentro da lógica da exploração agrícola, do comércio, indústria e transportes, estava praticamente disseminada pela Guiné, havia armazéns nas principais povoações e mesmo lojas. Recordo que nos relatos enviados pelo responsável do BNU da Guiné a partir de 1962 a subversão irá também incidir sobre a apreensão de matérias-primas no Sul pertencentes à Casa Gouveia, serão capturadas embarcações, os negócios da Casa Gouveia ficarão seriamente afetados nesta região. Vamos agora saber um pouco mais dos papéis existentes sobre António da Silva Gouveia nos primórdios da I República, tentar-se-á seguidamente ver nos arquivos da Assembleia da República como usou da palavra como deputado.

Um abraço do
Mário


Da CUF à Casa Gouveia, da Casa Gouveia à CUF:
Uma viagem interminável (2)

Mário Beja Santos

Sempre questionei onde parava o acervo da Casa Gouveia, a principal empresa da Guiné, envolvida em explorações agrícolas, compras sobretudo de oleaginosas, algum tratamento industrial e transporte para a metrópole. Começam agora a aparecer papéis sobre António da Silva Gouveia, comerciante na Guiné e deputado, a este assunto voltaremos.

Batendo à porta da Fundação Amélia de Mello, encontrei acolhimento por parte do seu secretário-geral, dr. Jorge Quintas, que esteve profundamente ligado ao processo terminal dos Armazéns do Povo (que, como se sabe, integrava os Armazéns do Povo criados durante a luta armada e o acervo da Casa Gouveia, Sociedade Comercial Ultramarina e Barbosa e Comandita), cedeu-me um conjunto de publicações donde extraio hoje elementos que poderão ser úteis para entender como Alfredo da Silva, através da Sociedade Geral de Comércio Indústria e Transportes, incluiu no seu património a Casa Gouveia. O professor Miguel Figueira de Faria é o responsável por 3 livros editados por Publicações Dom Quixote em 2021 com os respetivos títulos: "Alfredo da Silva Biografia", "Alfredo da Silva e Salazar" e "Alfredo da Silva e a I República". É dessas publicações que procuraremos extrair algumas informações sobre a Sociedade Geral e como esta se veio articular com a Casa Gouveia.

Inesperadamente, dei com o livro de apologia de defesa da Guerra do Ultramar saído do punho do jornalista do Diário de Notícias Martinho Simões, "Nas Três Frentes Durante Três Meses", artigos publicados no DN em 1965 e editados pela Empresa Nacional de Publicidade no ano seguinte. Visita a Guiné e elogia o portuguesismo dos seus comerciantes. Começa por um comentário que não corresponde à verdade dizendo que Barbosas & Comandita foi a primeira firma a hastear a bandeira nacional em território guineense, isto em 1920. Refere as três casas grandes que dominam o vasto complexo mercantil: a Casa Gouveia, a Sociedade Comercial Ultramarina e a Barbosas & Comandita. “As duas primeiras, alargando o âmbito das suas atividades, detêm e orientam importantes setores industriais, essencialmente constituídos por centros de transformação das matérias-primas, os mais representativos dos quais se ocupam do descasque do amendoim e do arroz, dos óleos vegetais e dos sabões; a última, mantendo-se, essencialmente, no campo comercial, dispõe de um conjunto de estabelecimentos, cujo primordial objetivo é a compra de amendoim.”

E dá-nos conta das obras sociais dessas empresas, destaco o que diz sobre a Casa Gouveia:
“A par de constantes gastos na ampliação das suas instalações, concede maiores regalias aos seus empregados: bolsas de estudo a naturais da província, para frequentarem cursos universitários na metrópole; assistência médica e cirúrgica, frequentes vezes prestada na metrópole, quando os recursos locais são insuficientes; pensões de reforma por velhice ou invalidez, orçadas em 550 contos anuais; visitas à metrópole dos empregados naturais da Guiné com certo número de anos de casa, a fim de lhe proporcionar melhor conhecimento da comunidade portuguesa; cursos práticos para formação, entre os naturais da Província, de técnicos de mecânica, metalomecânica, eletricidade, química orgânica, marcenaria e outros, abrangendo preparação complementar em organizações industriais da metrópole.”

E visita com satisfação um centro industrial modelar, no Ilhéu do Rei, como escreve:
“Visitei o centro industrial da Casa Gouveia servido por ponte-cais privativa, devidamente equipada para cargas e descargas e cujas ligações são asseguradas por transportes fluviais próprios. Perfeitamente montado, dispõe de centrais diesel-elétrica e de vapor; de fábrica de descasque de mancarra com capacidade para setenta toneladas em oito horas de laboração; de fábrica de extração, por expellers, de óleo de amendoim, com capacidade de laboração de vinte e duas toneladas diárias de matéria-prima e de refinação, com controlo laboratorial; de instalações automáticas de lavagem, enchimento e pesagem e um grupo fixo de armazenagem para quatrocentas toneladas, bem como para farinação de bagaços; de um estaleiro, com plano inclinado, para recondicionamento de embarcações; e de um sistema de captação de água potável a grande profundidade.”

Em texto anterior, aludimos a duas obras de Miguel Figueira de Faria [foto à direita] sobre Alfredo da Silva, volumes dedicados à biografia e à sua atividade na I República. No volume dedicado a Alfredo da Silva e Salazar, volta-se a mencionar a Sociedade Geral e o seu avanço para a carreira de África. Alfredo da Silva, refere o autor, geria a Sociedade Geral, a sua frota era responsável pelo transporte de matérias-primas importadas que alimentavam as fábricas da CUF, frota fundamental na exportação dos produtos prontos a comercializar. E teve duras batalhas durante os anos 1930, a Sociedade Geral era temida pela concorrência e em 1932, embora a crise mundial desse sinais de abrandar houvera diminuição do comércio internacional e os preços dos serviços caíam a pique, a Sociedade Geral acumulava prejuízo nas suas carreiras.

É nesta atmosfera que Alfredo da Silva se dirige a Salazar, recém-chegado à Presidência do Conselho, dá-lhe a saber que recorrera a um empréstimo pessoal que se não pudesse solver prontamente teria de hipotecar a própria casa de habitação, pede apoio ao Governo. Acresce que a ida dos navios da Sociedade Geral para a exploração do comércio colonial só era praticável com autorização do chefe do Governo. Alfredo da Silva tenta uma vez mais adquirir a Companhia Nacional de Navegação, segue-se uma assembleia-geral desta empresa em grande agitação, acaba em tumulto, continua no dia seguinte, e no dia depois, e por aí fora, Alfredo da Silva afasta-se, deu como falhada a segunda tentativa de aquisição da CNN. E lança-se na carreira de África, faz requerimentos ao ministro da Marinha, procura rentabilizar alguns dos seus barcos. A 6 de abril de 1933, a Sociedade Geral transmitiu ao diretor da marinha mercante que o vapor Maria Amélia sairia a 21 do corrente até a Angola, a notícia deixa alarmados os administrados da Companhia Colonial, Alfredo da Silva verá as suas pretensões aprovadas, a Sociedade Geral pôde alargar as suas carreiras até Angola, limitadas até então à Guiné.

A CUF vai recuperando do pior período da sua história, a Sociedade Geral obtém permissão para continuar com os seus quatro navios na carreira de Angola, Alfredo da Silva estava autorizado a fazer o tráfego sem restrições entre a Guiné e a metrópole. Vão começar os diferendos entre Alfredo da Silva e Salazar. Este envia um convite ao industrial para integrar a Câmara Corporativa. Entrara-se numa nova era, vem a guerra civil de Espanha, haverá a conceção de estaleiros navais do porto de Lisboa à CUF. Em 1942, Alfredo da Silva falece em Sintra, a CUF entrará numa nova era sobre a égide do seu genro Manuel de Mello.

Como não disponho nesta altura mais nada sobre a Casa Gouveia vou ver o que se pode encontrar em António da Silva Gouveia, membro do Partido Republicano na Guiné.


(continua)
Navio Silva Gouveia, no porto de Lisboa, em 1941
Ilhéu do Rei, vista parcial do complexo da Casa Gouveia, fotografia de Francisco Nogueira, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24322: Historiografia da presença portuguesa em África (368): Da CUF à Casa Gouveia, da Casa Gouveia à CUF: Uma viagem interminável (1) (Mário Beja Santos)