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quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26053: Timor Leste: Passado e presente (25): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Anexo IV: a situação sanitária em 1944: "um presente desolador e um futuro sombrio"...


Timor > Álbum Fontoura > c. 1936-1940 > Série 6 > Ação Civilizadora e Colonizadora > Vila Salazar (Baucau)


Timor > Álbum Fontoura > c. 1936-1940 > Série 3 > Trajos, ornamentos, pertences e armas > Foto 16890 > Chefes tradicionais e suas esposas (e um labáric, criança em tétum):  Dom Aleixo, régulo de Ainaro, António Magno, chefes e suas mulheres. D. António Magno, de Ainaro, é o terceiro a contar da esquerda, na primeira fila dos homens.


Timor > Álbum Fontoura > c. 1936-1940 > Série 3 >  Trajos, ornamentos, pertences e armas > Foto 16890 > Talvez o liurai Carlos Borromeu Duarte, de Alas



Timor > Álbum Fontoura > c. 1936-1940 > Estimativa da população: 472,2 mil

Fotos do Arquivo de História Social > Álbum Fontoura. Imagens do domínio público, de acordo com a Wikimedia Commons. (Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, 2024)


1. José dos Santos Carvalho (de quem não conhecemos nem temos uma única foto) foi médico de saúde pública, no território português de Timor, ao tempo da ocupação estrangeira da ilha (primeiro, da parte dos australianos e holandeses, e, depois,  dos japoneses).  

Exerceu as funções de chefe interino da Repartição Técnica de Saúde e Higiene, em Lahane,nas imediações de Díli,  desde meados de 1943. Deva ter uma dupla formação em medicina tropical e saúde pública (ou medicina preventiva, como se dizia nesse tempo).

Fora colocado, em  meados de 1940, em Timor como médico de 2ª classe, do "quadro comum colonial".  Devido à guerra, levou alguns meses a chegar ao território (seguindo pela rota do Cabo). Desembarcou em Díli nas vésperas do ano novo de 1943.

O livro que escreveu sobre Timor durante a ocupação japonesa,  baseia-se nas suas vivências,  recordações e registos  pessoais bem como nas memórias de outros portugueses, seus companheiros de infortúnio. 

Em anexo, o autor publica também os relatórios anuais do serviço de saúde relativos a 1943, 1944 e 1945  (pp. 142-194), que têm algum interesse documental para  a historiografia da presença portuguesa em Timor.  

Um produto da Bayer,
antes da "bala mágica". Fonte: cortesia de 
Museu da Farmácia de Brixen (ou Bressanone),
Itália

Igualmente são interessantes para a história  da medicina tropical e para se conhecer o limitado e obsoleto  arsenal terapêutico da época bem como as causas da morbimortalidade nas colónias  

Havia produtos, por exemplo, como o calomelano (ou cloreto mercuroso) que era  
usado como purgante e fungicida, hoje descartado devido à sua toxicidade; ou o neosalvarsan (que veio substituir nos anos 10/20 do século passado o altamente tóxico salvarsan),  usado no tratamento da sífilis, antes do aparecimento da penicilina (a "bala-mágica", já disponível na farmacopeia ocidental desde 1941, mas completamente desconhecida em Timor nessa época; de resto, o farmacêutico, o   capitão miliciano Mário Artur Borges de Oliveira, foi o primeiro a desaparecer, tendo-se refugiado na Austrália). 

Antes da guerra, a farmácia era reabastecida semestralmente, com produtos oriundos da Metrópole...

O dr. José  dos Santos Carvalho nunca deixou de elaborar esses relatórios,  apesar das dramáticas circunstâncias em que teve de exercer as suas funções de médico e  chefe interino da Repartição Técnica de Saúde e Higiene. 

Não sabemos se chegaram, na altura, ao conhecimento de quem de direito, para além  do governador da colónia (que, na prática, esteve, durante os três  anos de ocupação, na situação de refém dos japoneses e sem possibilidades de comunicação com Lisboa).

O livro, de 208 pp.,  ilustrado com algumas fotografias, terá sido  escrito, em 1970, quando passavam  já 25 anos sobre o fim da ocupação japonesa do território de Timor e a libertação dos prisioneiros portugueses, timorenses e outros. Foi composto e impresso na Gráfica Lamego e publicado pela Livraria Portugal, 1972, editora que já não existe. 

O livro e o autor merecem, contudo,  não ser esquecidos. 

Imagem à direita: Capa do livro de José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972,  208 pp. , il... Livro raro, só possível de encontrar em alfarrabistas, ou então no Internet Archive, em formato digital; está registado na Porbase - Base Nacional de Dados Bibliográficos, podendo ser encontrado na Biblioteca Nacional de Portugal e no Instituto Científico de Investigação Tropical.

Sobre a situação da saúde da população nessa época e naquele território, bem como sobre a organização e funcionamento dos serviços de saúde naquela longínqua colónia portuguesa do sudeste da Ásia, continuamos a 
reproduzir aqui alguns excertos e apontamentos. 

A sua leitura ajuda-nos a perceber até que ponto a saúde das populações e os serviços de saúde são tão  vulneráveis em situações-limite como a guerra com todo o seu cortejo de horrores e privações.


Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) 

Anexo IV:  Relatório dos Serviços de Saúde 
(Ano de 1944) (pp. 156-169)


(i) "Não houve epidemias nem se registaram casos 
de doenças eminentemente contagiosas."...  
A afirmação consta do relatório dos serviços de saúde de Timor, 
respeitante ao ano de 1944, e é subscrita pelo dr. José dos Santos Carvalho, chefe interino da Repartição Técnica de Saúde e Higiene... 

Como se a guerra, a ocupação japonesa, a guerrilha e a contraguerrilha, o terror das "colunas negras", o isolamento total dos portugueses e dos timorenses, a fome, as deslocações, etc.,  não tivessem sido em si uma verdadeira calamidade...


(ii) de tempos a tempos, o cônsul do Japão serve de intermediário 
com as tropas ocupantes e, inclusive, consegue dispensar algum material médico-hospitalar ao dr. José dos Santos Carvalho.

(iii) recorre-se também aos médicos militares japoneses 
em casos em que um doente necessita de  uma grande cirurgia;

(iv) estranhamente há poucas referências à saúde da população local 
(que no princípio dos anos 40 seria superior a 400 mil): 
espalhada pelas montanhas,  não parece afluir aos serviços de saúde 
em Lahane e Liquiçá,  sobretudo por razões de segurança 
(medo dos bombardeamentos dos Aliados,  
e das represálias dos nipónicos); 
por essa razão, e devido também 
ao confinamento do próprio médico,
há um evidente enviesamento nestes relatórios, 
onde se fala sobretudo da saúde 
da pequena comunidade portuguesa e dos assimilados 
(cerca de 160 pessoas);

(v) os profissionais de saúde (com apenas 2 médicos) 
estão reduzidos ao mínimo (18, de um quadro original de 52, 
dos quais restavam 34 em 1943).

(...) Estado sanitário da população 

(...) Não houve epidemias nem se registaram casos de doenças eminentemente contagiosas. O sezonismo [paludismo ou malária], endemia que reina em Timor, mostrou-se em inúmeros casos, a que, felizmente, pudemos atalhar por termos recebido quinino. Não nos foi possível, porém, distribuí-lo com fins profiláticos, como seria conveniente. 

Muitos portugueses não têm rede mosquiteira nas camas, as aberturas das casas não são protegidas com redes metálicas e é impossível fazer-se uma campanha antimosquito. Por isso a estatística mostra muitíssimos casos de sezonismo, felizmente benigno, com exceção de dois casos de sezonismo pernicioso cerebral, um em Lahane, numa menina de quatro anos, que felizmente se salvou, e outro em Liquiçá, numa rapariga de quinze anos, filha de pai europeu, que faleceu com um acesso pernicioso epileptiforme.

 A febre biliosa hemoglobinúrica atacou dois europeus: um de dezasseis anos, que faleceu, em Maubara; outro de oito anos de idade, que foi salvo, em Liquiçá. 

A caquexia palustre matou uma criança, em Liquiçá. 

Registou-se somente um caso de disenteria, em Liquiçá. 

A gripe foi rara. 

Registaram-se dois casos de tuberculose: pulmonar, um num europeu e outro num timorense. 

Uma senhora teve várias hemoptises.

 As úlceras e feridas, como de costume, foram muito frequentes. 

Apareceram doenças resultantes da carência ou defeito da alimentação. 

As doenças restantes foram: 
  • cáries dentárias
  • diarreias 
  • colites
  • enterites
  • helmintíases
  • dispepsias 
  • dermatoses (sobretudo a sarna, furunculose e a micose designada por "Hong-Kong foot") [ou pé de atleta]
  • abcessos
  • boubas
  • reumatismo
  • nefrite
  • blenorragia
  • ascite 
  • otite
  • conjuntivite 
  • infeção puerperal.
Registaram-se seis óbitos, em Liquiçá e Maubara (em Díli não os houve) de europeus ou seus descendentes, por:
  • diarreia infantil 
  • caquexia palustre 
  • sezonismo agudo 
  • acesso pernicioso epileptiforme 
  • febre biliosa hemoglobinúrica 
  • gripe (insuficiência cardíaca) 
  • tuberculose pulmonar  (...)
 
Entre os portugueses, não europeus, tratados nas enfermarias, houve vários óbitos: 

(a) Em Liquiçá e Mambara: 

  • diarreia crónica (2)
  • tuberculose pulmonar (2) 
  • anasarca (hipoalimentação) (1)
  • traumatismo (queda) (1) 
  • cirrose alcoólica (1)
  • debilidade congénita (recém-nascido) (1)
  • parto (1)
  • infeção puerperal (2) 
(b) Em Lahane :

  • caquexia palustre (1)
  • gangrena (1)
  • astenia (1)
  • sezonismo pernicioso (1)
  • beribéri (1)

TOTAL 16 
 
(...) O óbito por gangrena deu-se numa timorense que veio pedir tratamento ao nosso hospital, passados dias de ter sido ferida num pé por estilhaço. Era impossível salvá-la por a gangrena estar já generalizada. 

A média de doentes internados no Hospital Dr. Carvalho foi de quatro, por dia. 

Pelo acima dito conclui-se que o estado sanitário da população não foi mau, atendendo às lamentáveis circunstâncias em que vivemos que, sem exagero, podem ser classificadas de péssimas. 

Os meses de junho e julho foram os piores, devido ao elevado número de casos de sezonismo, pelo que foram classificados de maus pelo senhor Delegado de Saúde de Liquiçá [ dr. Francisco Rodrigues]; fevereiro e agosto foram bons e os meses restantes regulares. 

Em Lahane o estado sanitário, abstraindo do sezonismo, com que sempre contámos, pôde, sempre, considerar-se regular. Não nos atacaram a valer os gérmenes infecciosos. As nossas forças e resistências orgânicas é que estão muito desfalcadas, devido a vários factores que descreverei na parte deste relatório respeitante à Higiene Pública. 

Medicamentos e material de penso 

Foi-nos fornecido durante o ano, por intermédio do sr. Cônsul do Japão, o seguinte : 

  • bicarbonato de sódio 
  • dermatol 
  • calomelanos 
  • lactose 
  • neosalvarsan 
  • sufaminum 
  • salicilato de bismuto 
  • sulfato de magnésio 
  • óxido amarelo de mercúrio 
  • tablóides de quinino (...)
  • ataduras de gaze (diversos tamanhos) 
  • gaze (...) 
  • algodão hidrófilo (...)
  • material diverso 
  • seringas de vidro (...) 
  • irrigadores
  • frascos conta-gotas
  • tubo de borracha para irrigador (...)

Sempre que há transporte, tenho mandado [de Lahane] para Liquiçá o máximo possível dos medicamentos que nos restam. 

Não se podem enviar grandes quantidades de medicamentos em frascos pois é necessário que estes vão bem acondicionados em caixotes para que não partam com os solavancos da camioneta. Os medicamentos expedidos em maior quantidade, durante o ano, foram: 

  • vaselina (32 kg)
  • enxofre (5 kg) 
  • sulfato de sódio (20 kg)
  • mel (6 litros)
  • borato de sódio (15 litros)
  • glicerina (2 litros)
  • ácido bórico (5 litros)
  • permanganato  de potássio (1,400 kg)
  • sulfato de cobre (6 kg)
  • calomelanos (0,450 kg)

Faltam-nos muitos medicamentos. Aqueles cuja necessidade mais se tem feito sentir, são os:

  • tónicos e antianémicos (arsenicais, iodados, sais de cálcio, fitina, etc) ; 
  • produtos opoterápicos (extratos de fígado e baço, ovarina, etc) ; 
  • derivados de ópio (codeína, dionina, etc) ; 
  • anestésicos locais (cocaína, salicilato de metilo, etc.) ; 
  • antisséticos intestinais (benzonaftol, fermentos láticos, etc); 
  • purgantes oleosos; 
  • ácido salicílico (para tratamento das micoses) ; 
  • tópicos antidermatósicos (óxido de zinco, ictiol, etc); 
  • iodofórmio (para tratamento das úlceras tropicais); 
  • e pode dizer-se que todos os medicamentos de uso corrente, em injeção (quinina, arrenal, cacodilato de sódio, cânfora, vitaminas, mercuriais, hemostáticos, etc., etc.). 

O permanganato de potássio, precioso para múltiplos fins, acabou, praticamente, e grande falta fará por ser de uso corrente nas moléstias que aparecem todos os dias. 

Tem-me preocupado imenso o facto de não poder vacinar contra a varíola, pelo menos as crianças. Neste capítulo de vacinas, nada poderemos improvisar. 

Movimento cirúrgico 

Os dois médicos portugueses têm feito tudo que lhes permitem os limitadíssimos recursos em material para operações. 

Além das suturas de feridas traumáticas, extrações de dentes e abertura de abcessos e fleimões, foram por eles praticadas operações de pequena cirurgia. 

O Delegado de Saúde de Liquiçá tratou os portugueses feridos por bala de metralhadora (ou estilhaço?) em Liquiçá e Maubara e extraiu um quisto cebáceo a um europeu; a mim coube fazer a extracção duma placenta aderente (post-abortum) à mulher de um europeu e o tratamento de feridas de guerra por estilhaços de bombas de avião numa mulher e numa criança timorense, tendo empregado o método de Friederich, que tão bons resultados deu na guerra de Espanha os quais, agora, eu pude verificar também. 

A pedido do Consulado do Japão foi por mim tratado um timorense com a maior parte da mão esquerda esfacelada, tendo o Hospital Nipónico fornecido o material preciso e dois enfermeiros que me ajudaram. 

Houve dois casos em que os nossos recursos não bastavam, um por falta de material e medicamentos e outro por necessitar operação de grande eirrurgia. No primeiro caso tratava-se de uma menina europeia que apresentava um enorme lipoma na região escapular esquerda; impossível operá-la por faltar o material de penso e cirúrgico esterilisados e todo o material de anestesia, além de que seria necessário reunir os dois médicos em serviço, o que agora não convinha, por que a saída de qualquer deles da sua zona de acção durante vários dias, significaria ausência de assistência médica aos portugueses da zona respectiva. 

No segundo caso tratava-se de uma senhora grávida de quatro meses, com hemorragias profusas e frequentes, devidas a uma inserção baixa da placenta. Somente uma operação com laparotomia a poderia salvar. 

Pelos motivos apontados foi necessário pedir auxílio ao hospital nipónico, onde as duas portuguesas foram operadas sendo os resultados inteiramente satisfatórios. Em seguida às operações, as doentes voltaram para o hospital português, tendo vindo os médicos nipónicos que as operaram, muito dedicadamente, fazer os curativos subsequentes tendo-me eu encarregado da sua assistência médica. (...)

Higiene pública Alimentação 


Tem deixado muito a desejar. Se no ano de 1943 já se não passou bem, no ano presente a situação agravou-se de tal modo que só Deus sabe para onde vamos. O total efectivo de calorias diárias, provenientes dos alimentos fornecidos, e é somente com esses que praticamente podemos contar, está longe do mínimo suficiente. 

Passa-se grande necessidade. O pouquíssimo que se obtém, quase se reduz ao arroz, hortaliças e cocos, e qualquer destes produtos vegetais nem sempre existem. Têm-se comido como hortaliças: 

  • folhas da batateira doce
  • baião (Amarantus sp.)
  • cancoom (Ipomoea aquática, Forsk.)
  • beldroegas
  • folhas de papaeira 
  • e mesmo as folhas e até medula de árvores (que os timorenses só aproveitam quando nada mais têm para o seu sustento). 

Mesmo assim, é frequente não termos verduras nas refeições. Por muito felizes nos damos quando recebemos folhas de nabos e das mostardas timorenses. Conforme as épocas do ano, aparece um ou outro complemento alimentício como: jacas verdes, bananas verdes, etc, etc, que depois de cozidos podem ser consumidos. 

Tomates e agriões são mimos raríssimos, que poucas vezes aparecem no mercado ou que alguns portugueses conseguiram pela cultura de escassos palmos de terra, pois nem sequer há terrenos próprios para horta, à sua disposição. 

Qualquer espécie de fruta é iguaria que raramente podemos provar. Os alimentos ricos em vitaminas, albuminóides e sais minerais, são precisamente os de mais difícil aquisição. A carne é fornecida em quantidades muito reduzidas. Recebem-se, em Liquiçá, algumas garrafas de leite que são distribuídas pelas crianças de tenra idade e pelos doentes. A carne de galinha e os ovos são manjares que não alcançamos. As batatas da Europa, que tão bem se davam e já tão largamente se cultivavam em Timor, desapareceram. Os feijões só raramente se vêem em Liquiçá. Em Díli há muito que não os há. A batata doce também já é rara. 

Os alimentos intoxicantes, que se podem tornar comestíveis por meio de preparação, em regra trabalhosa, já entraram na alimentação (mandioca amarga, feijão bravio e outros). Não é pois de admirar que se registassem casos de intoxicação alimentar (Liquiçá, em novembro, e dezembro) e de dispepsias, gastralgias, enterites e diarreias, devidas à má qualidade dos alimentos ingeridos. 

Além disso, a hipoalimentação já se revela por sintomas de doenças por carência. Os edemas maleolares são frequentes, a maior parte da população está asténica, a fadiga é rápida, há repetidas indisposições intestinais, a cárie dentária, a queda dos dentes e as hemorragias gengivais são quase gerais. A desnutrição de todos é evidente. 

Se não fora o nele (nome que se dá em Timor ao arroz ainda não descascado) que temos recebido (que por não ser polido contém vitamina BJ) e as verduras, já teríamos tido que lamentar a perda de vidas por avitaminoses, sobretudo por beribéri. Para cúmulo a preparação da comida torna-se difícil por haver pouca lenha.

O quadro presente é pois inteiramente desolador. Não há ninguém que não se tenha preocupado com a falta de alimentos. Pela minha parte, sempre que as ocasiões o proporcionaram indiquei a todos os perigos que adviriam da deficiência das refeições, ao mesmo tempo que dava conselhos úteis.

 Sentindo-me na obrigação de empregar o máximo do meu esforço para aumentar os recursos alimentares, preparei e conclui um trabalho em que registei tudo quanto pude apurar sobre a existência em Timor de produtos vegetais comestíveis, aproveitando-me quer do que encontrei nos livros, quer das informações dos timorenses, cuja experiência de séculos fornece muitos conhecimentos aproveitáveis. 

Este trabalho não só como documentário bromatológico (que nunca foi feito na Colónia) mas também pela aplicação às circunstâncias atuais, tem, por certo, bastante utilidade embora ela seja limitada pela forte razão de que nós não podemos procurar os alimentos mas somente receber os que nos trazem. 

Aos senhores Administradores do Concelho prontamente dei todas as indicações que particularmente me solicitaram, tendo-lhes fornecido tabelas da composição e valor calórico dos géneros alimentícios, dados sobre a quantidade e qualidade dos alimentos necessários para os europeus nos países tropicais, etc, habilitando-os assim a conhecer as bases do problema da nutrição dos portugueses. (...)


Bebidas alcoólicas 

Se, por um lado, é bom não as termos por motivos óbvios, por outro fazem falta como fontes de energia, e mesmo como tónico contra a acção deprimente do clima, o que é recomendado pelos higienistas tropicais, sobretudo ingleses, desde que as quantidades ingeridas sejam moderadas. 

Os vinhos de palmeira, sobretudo, possuem vitaminas B e C em quantidade apreciável, sendo bebida agradável e refrescante e fracamente alcoólica. É pena pois que em terra tão rica em palmeiras, não a possamos obter. 

Tabaco 

É de todos conhecida a imperiosa necessidade que o viciado tem de fumar. Praticamente todos os portugueses fumam. Poder-se-á pois calcular o quanto os indispõe e irrita o não poderem satisfazer esse hábito. Recorrem às folhas secas de arbustos e árvores que embrulham em qualquer papel por não haver mortalhas nem ao menos papel de seda. Assim iludem um pouco o seu vício, mas a saúde é que terá forçosamente de se ressentir. 

Asseio 

A água é pouca, em Liquiçá, e não há sabão. É de notar o esforço de uma senhora, cuja idade já não é para trabalhos, a qual consegue preparar sabão utilizando óleo de coco e os álcalis obtidos da cinza. Porém o óleo de coco é pouco para a alimentação... 

Vestuário

 Já velho e gasto e em reduzidas quantidades, a não ser para um ou outro mais protegido da sorte, em breve faltará. É de calcular que em época muito próxima, a maioria dos portugueses não tenha senão andrajos para vestir. 

Também, não existe calçado à venda nem material para o fabricar. Há muito que se calçam camparas — sandálias de madeira que se seguram aos pés por uma tira de pano. 

Utensílios domésticos 

Tem sido precioso o trabalho dos artífices portugueses que fabricam,  com folha de zinco, panelas, tachos, chaleiras, pratos, candeeiros ,etc. 

Outros portugueses têm fabricado, com muita habilidade, objetos muito úteis: escovas de dentes e pincéis para a barba (com crina de cavalo) , pentes (de tartaruga) , etc. 

Habitações 

Com a vinda dos portugueses de Maubara para Liquiçá, acentuou-se a plétora de habitantes em cada casa. O encombrement [sic, em francês, sobrelotação]« é manifesto. 

Ambulâncias 

Devido à concentração dos portugueses em Liquiçá, a ambulância de Maubara foi extinta. Nela prestou bons serviços o enfermeiro Vítor Madeira. Foi criada, na Granja Eduardo Marques, uma ambulância para tratamento dos portugueses que aí trabalham. Todos os enfermeiros auxiliares em serviço na Delegação de Liquiçá habitam, agora, na Granja. 

Cursos de enfermagem 

A 27 e 28 de abril fizeram-se em Liquiçá e Lahane os exames de frequência dos alunos do curso do primeiro ano Em junho começaram as aulas do segundo ano. 

Todas as lições que eu dei, foram escritas, constituindo um volume de cerca de 220 páginas dactilografadas. Deste modo ficou concluído um guia de enfermagem aplicado às condições de Timor, assim como um formulário constituído pelas fórmulas mais práticas para o tratamento dos doentes pelos enfermeiros, contando-se somente com os medicamentos essenciais que deverão existir em todas as ambulâncias, que agora se podem indicar com rigor. 

Este assunto é uma das partes do estudo da futura organização dos Serviços de Saúde, em que continuo a trabalhar. 

Bombardeamentos 

Este ano mostrou-se particularmente violento para nós. Liquiçá e Maubara foram metralhadas. Em Lahane caiu grande quantidade de bombas junto ao hospital e ao palácio do governo. As chapas de zinco que cobrem o hospital foram furadas pelos estilhaços e deslocadas pelo movimento do ar; os vidros que restavam partiram-se. 

É de notar a boa vontade com que o mestre Pinto (sargento artífice), por si próprio, se encarregou de reparar os estragos; o seu auxílio profissional tem sido dos mais úteis para o hospital. 

O ruído das explosões das bombas foi aterrador. Os enormes buracos que elas fizeram no terreno impressionaram imenso, até os menos timoratos. Os aviões vieram em certos meses quase todos os dias. Compreender-se-ia, pois, que o moral dos habitantes do Hospital e do Palácio estivesse profundamente deprimido. Felizmente tal não se verificou, sendo de notar que as senhoras demonstraram coragem surpreendente. 

Apesar de, após um bombardeamento se contar sempre com outro (pelo menos no dia seguinte), ninguém pediu para sair de Lahane. Todos se mantiveram no seu posto. 

Funcionários 

Têm estado sempre ao serviço, na sua totalidade, e por eles não foi requerida qualquer licença. Pode afirmar-se que, considerando o estado de intensa depressão moral em que vivemos, têm cumprido bem o seu dever. Os serviços de secretaria continuam a ser feitos com toda a boa vontade e proficiência pelo aspirante Domingos Afonso Ribeiro. 

Também ajudaram muito desinteressadamente, todos os serviços, o chefe de posto Francisco Torrezão e o chefe de posto João Gamboa (enquanto habitou em Díli) . 

Conclusões 

O estado sanitário da população só por milagre foi regular. A higiene pública deixa cada vez mais que desejar. O futuro é carregadamente sombrio. 

Contemos no próximo ano com elevada percentagem de óbitos, pois que, não possuindo os géneros alimentares convenientes nem os meios de fortalecer os organismos depauperados, também não teremos os medicamentos essenciais e as dietas próprias para tratamento dos numerosos doentes que forçosamente aparecerão. 

Repartição Técnica dos Serviços de Saúde e Higiene, em Lahane, aos 9 de fevereiro de 1945. O Chefe da Repartição interino, José dos Santos Carvalho
________
 
 (...) Pessoal em serviço e sua situação em 31 de Dezembro de 1944 

Médicos:
  • José dos Santos Carvalho,  Chefe da Repartição, interino, Director do Hospital, Delegado de Saúde de Díli;
  • Francisco Rodrigues,  Delegado de Saúde de Liquiçá.

Enfermeiros:

  • Victor José Gregório Madeira,  Sede da Delegação de Liquiçá; 
  • Luiz Correia de Lemos, idem;
  • Daniel Madeira, idem; 
  • Emílio Francisco de Oliveira, idem; 
  • António de Oliveira,  Hospital Dr. Carvalho;

Praticantes estagiários:

  • Orlando Correia de Lemos,  Sede da Delegação de Saúde de Liquiçá,
  •  Óscar Correia de Lemos, idem.

Enfermeiros auxiliares: 

  • Paulo de Jesus Granja Eduardo Marques Sebastião da Costa
  • João da Costa Pereira 
  • João Guterres
  • Francisco da Silva Vila Taveiro (Oekussi) 
  • Mateus Pereira
  • Pedro da Cruz,  Hospital Dr. Carvalho António Lopes 
  • Mateus Ribeiro,  Granja Eduardo Marques João Soriano
  • Aleixo da Costa, idem 
  • Manuel da Costa, Hospital Dr. Carvalho 

Repartição Técnica de Saúde e Higiene, em Lahane, aos 31 de Dezembro de 1944. O Chefe da Repartição, int.°, José dos Santos Carvalho. 

(Seleção, revisão / fixação de texto, notas, bold a vermelho, título: LG)

______________

Nota do editor:

sábado, 31 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25897: Timor: passado e presente (19): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Parte X: O ano de 1944, de intensos bombardeamentos dos Aliados sobre Díli






Timor > Díli > c. 1945 > Ruínas de Díli após a II Guerra Mundial. Relatório do governo da colónia de Timor, 1946-47. Fonte: Arquivo Histórico Ultramarino. Cortesia de RTP > 4.A II Guerra Mundial e o início das descolonizações (com a devida vénia...)






Capa do livro de José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, 208 pp. Cortesia de Internet Archive. O livro é publicado trinta anos depois dos acontecimentos. O autor terá nascido na primeira década do séc. XX.




António Oliveira Liberato, capitão: capas de dois dos seus livros de memórias: "O caso de Timor" (Lisboa, Portugália  Editora, s/d, 242 pp.)  e "Os Japoneses estiveram em Timor" (Lisboa, 1951, 33 pp.). São dois livros, de mais difícil acesso, só disponíveis em alguns alfarrabistas e numa ou noutra biblioteca pública.



Carlos Cal Brandão: "Funo: guerrra em Timor". 
 Porto, edições "AOV", 1946, 200 pp.




Mapa de Timor em 1940. In: José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, pág. 11. (Com a devida vénia). Assinalado a vermelho a posição relativa de Maubara e Liquiçá, a oeste de Díli, onde se situava a zona de detenção dos portugueses, imposta pelos japoneses (finais de 1942 - setembro de 1945)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)


Timor Leste > Com c. 15 mil km2, e mais de 1,3 milhões de habitantes, ocupa a parte oriental da ilha de Timor, mais o enclave de Oecusse e a ilha de  Ataúro. Antiga colónia portuguesa, tornou-se independente desde 2002, depois de ter sido  invadida e ocupada pela Indonésia durante 24 nos, desde finais de 1975.

Infografia : Wikipédia > Timor-Leste |  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné 



1. Estamos a publicar notas de leitura e excertos do livro do médico de saúde pública José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (*), disponível em formato digital no Internet Archive.


Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) 

Parte X:   O ano de 1944, de intensos bombardeamentos dos Aliados sobre Díli (pp. 80-87)


(i) 1944 é  mais um ano de martírio para a pequena colónia portuguesa de Timor,  para a população timorense (que não seria mais do que 400 mil em 1940) e para a não-timorense (umas escassas 3 centenas de portugueses) com frequentes bombardeamentos da aviação dos Aliados, por um lado, e a continuação das arbitrariedades e prepotências dos ocupantes japoneses, por outro. 

O ano fica marcado pela prisão de dois elementos-chave da população portuguesa da colónia, o engenheiro Artur Resende do Canto e o tenente António Oliveira Liberato. O primeiro pertencia à Missão Geográfica de Timor, e estava a exercer, voluntária, abnegada e corajosamente,  as funções de administrador do concelho de Díli. O segundo era o adjunto da Companhia de Caçadores, que já tinha perdido, em 1942, o seu comandante, o cap inf  Costa Freitas.

Há uma novo cônsul nipónico, que fala espanhol, e um vice-cônsul que fala português (sendo casado com uma brasileira). Mas nem por isso a situação dos portugueses, detidos na ilha, vai melhorar. 
Nem muito menos a da população autótone, 
que os japoneses insidiosamente tentaram virar contra Portugal.

Quando se comemora os 25º aniversário do referendo de 30 de agosto de 1999, em que 4 em cada 5 timorenses (78,5%) se manifestaram livremente pela independência do território, curvamo-nos à memória de todos aqueles que, durante a ocupação japonesa, 
na II Guerra Mundial, 
 deram-nos exemplos de dignidade, coragem e patriotismo.  

A questão de Timor chegou a ser um foco de tensão entre Portugal e os seus velhos aliados ingleses. A invasão por tropas autralianas e holandesas foi a gota de água e o pretexto de que os japoneses precisavam para, por sua vez, ocuparem o território,  de importância estratégica para ambos os lados,

 Portugal chegou a estar em risco (ou foi ponderada a hipótese pelos ingleses) de entrar na II Guerra Mundial por causa da minúscula e longínqua parcela do império que era Timor, segundo revelam documentos do arquivo do Foreign Office, estudados pelo diplomata e investigador português, Carlos Teixeira da Mota (1941-1984),  "O caso de Timor na II Guerra Mundial : documentos britânicos", Lisboa,  Instituto Diplomático, Ministério dos Negócios Estrangeiros, 1997, 202 pp.   

Em 28 de novembro de 1944, Portugal assina finalmente um acordo (secreto) com os EUA (com mediação inglesa):  em troca da concessão de facilidades militares nos Açores (ilhas de Santa Maria), Portugal conta com a ajuda americana para recuperar a soberania de Timor, território ocupado prlosd japoneses e objeto da cobiça dos australianos.

Timor é paradigmático: é aqui, no Sudoeste Asiático (mas também no norte de África, ambos sangrentos palcos de guerra) que, em boa verdade,  começa(m) a(s) descolonização(ões)...


(...) A 23 de janeiro recebemos em Lahane comunicação de Liquiçá informando-nos que, no dia anterior, aviões australianos haviam atacado Liquiçá tendo metralhado a enfermaria onde estava hasteada a bandeira portuguesa!

Haviam ficado feridos quatro timorenses e a esposa do chefe dos correios Fortunato Mourão, senhora D. Aida Cassagne Mourão, que ali estavam internados, tendo esta última cegado de um dos olhos atingido por um estilhaço de bala.

No dia 17 de fevereiro, com evidente prazer nosso embora não isento de natural desconfiança sobre as suas intenções, retiraram os japoneses as guardas ao hospital e ao palácio, cessando daí em diante qualquer fiscalização do trânsito dos portugueses entre esses dois edifícios. (...)

Em princípios de março, o engenheiro Canto trouxe de Liquiçá para Lahane, acompanhada de sua mãe, uma menina de 17 anos, filha do velho colono sr. Gregório José Morato. Apresentava uma volumosa tumefacção sobre a omoplata esquerda que diagnostiquei ser um lipoma que facilmente seria extirpado por uma operação de pequena cirurgia, se os dois médicos portugueses a praticassem, dispondo dos meios normais que antes tinham, sobretudo de material asséptico.

Verificada por mim a impossibilidade de tratarmos a menina pediu o engenheiro Canto a ajuda nipónica, no respectivo consulado, conseguindo que a operação se viesse efectuar no hospital japonês, no dia 15, sendo a menina, logo após a operação, transportada para a nossa ambulância onde terminou o tratamento.

Por este tempo, constou à população portuguesa que o engenheiro Canto havia pedido a exoneração do cargo de administrador do concelho de Díli. De facto, ele há tempos me confidenciara que a sua atuação em Liquiçá e Maubara se apresentava cada vez mais cheia de escolhos, sobretudo por nada de importante poder resolver, no momento preciso e no local, pois todas as medidas necessárias que poderia aplicar para a resolução de problemas prementes e urgentíssimos tinham, obviamente, de esperar por despacho favorável do Governador, necessariamente moroso pela dificuldade de comunicações entre a zona e o palácio.

Assim, ele estava na disposição inabalável de se demitir, no caso de o Governador não o nomear seu delegado na zona de concentração. Confirmada a apresentação do pedido de exoneração do administrador do concelho de Díli, foram presentes ao Governador duas exposições, uma de chefes de família e outra de «mulheres e mães portuguesas» pedindo a sua não concessão.

Redigidas e assinadas pela grande maioria da população da zona, foi, a primeira, trazida ao hospital de Lahane onde lhe foram apostas as seguintes assinaturas (1) : José dos Santos Carvalho, Roque da Piedade Pinto e Rodrigues, António de Oliveira Oscar Lemos, Manuel da Costa, Júlio Madeira, Adão Exposto, Joaquim Francisco da Silva.

O despacho do Governador a estas petições (1) não pôde ser favorável, o que nele era lamentado, pelo que foi nomeado administrador do concelho o capitão Manuel do Nascimento Vieira, por portaria de 9 de março de 1944. (...)


(ii) A visita, de uma semana, iniciada em 19 de março de 1944,  do cap art José Joaquim da Silva e Costa, ajudante do governador de Macau, fazendo-se transportar numa aeronave japonesa, não trouxe benefícios percetíveis à população do território.

Em 29 de abril, dia em que se comemorava o aniversário do imperador do Sol Nascente, Dília sofre forte bombardeamento por parte da aviação  dos Aliados.  O engº Canto e o tenente Liberato são presos. Sabe-se também da prisão do tenente Pires, antigo administrador de Baucau.


(...) Após estes acontecimentos foi a população informada de que estava para chegar a Timor um enviado do Governo de Portugal.

De facto, no dia 19 de março aterrou no campo de aviação de Díli um avião japonês que trazia o capitão de artilharia José Joaquim da Silva e Costa, ajudante do governador de Macau comandante Gabriel Teixeira, o qual vinha a Timor como delegado especial do Governo português.

Neste mesmo avião viajaram o novo cônsul japonês em Timor, senhor Sotaro Hossokawa e o vice-eônsul, senhor Suzuki.

O capitão Silva Costa demorou-se em Timor uma semana,  tendo-se deslocado a Liquiçá e Maubara, para entrevistar vários portugueses e assistido a um almoço no palácio e a um jantar no consulado, para os quais o engenheiro Canto e eu fomos convidados e em que estiveram presentes o general comandante dos japoneses e os seus oficiais ajudantes, os dois cônsules, o Governador e o seu ajudante, capitão Vieira.

Das entrevistas que o capitão Silva e Costa teve comigo e com outras pessoas, depreendeu-se que ele estava a fazer um inquérito sobre os acontecimentos passados e a situação atual na Colónia. Bem informado, regressou a Macau no dia 26, seguindo no mesmo avião o ex-cônsul, senhor Yodogawa e o chanceler senhor Irie.

O novo cônsul japonês falava espanhol e o vice-eônsul senhor Suzuki, falava fluentemente português, pois, segundo referiu era casado com uma senhora brasileira. O novo chanceler do consulado, senhor Yanaguiwara, não comprendia ou falava senão o inglês.

A vinda do capitão Silva e Costa não trouxe melhoria de situação, como se esperava. Logo a seguir a ela, no dia 9 de abril, o tenente Liberato foi preso, na sua residência em Liquiçá, por três agentes da Kêmpy, dois dos quais eram o sargento Nerita e o cabo Kato, acompanhando-os como intérprete o chinês Há-Hói, filho do comerciante Mie-Hap de Díli, e três soldados armados de espingardas (2).

Levado de automóvel para Díli, pelo sargento Nerita, foi metido na cadeia de Díli e aferrolhado numa cela. No dia seguinte começaram os seus interrogatórios, sempre acompanhados de pancada e violências físicas, feitos pelo comandante da Kêmpy, tenente Akusawa, e pelo sargento Nerita, com o Ha-Hói como intérprete (1).

No dia 29 de abril, manhã cedo, apareceram as barracas dos aquartelamentos nipónicos, à roda do hospital de Lahane, ornamentadas com bandeiras japonesas, nas portas e outros espaços, inclusivamente nos telhados, sentindo-se bem um ar de festa e alegria da tropa. Mais tarde soubemos pelos criados timorenses que era o aniversário do Imperador do Japão que estava a ser comemorado.

Porém, ainda não eram nove horas a sereia japonesa anunciou a aproximação de aviões inimigos que não se fizeram esperar. Seguiu-se um terrível bombardeamento por dezenas de aviões que, conforme era de prever pelo tremendo estrondo e depois soubemos, reduziu a escombros a cidade de Díli, não havendo qualquer espaço que não tivesse sofrido a acção aliada.

As bandeiras nipónicas, escusado seria dizê-lo, logo desapareceram como por encanto e nunca mais as vimos em qualquer lugar, até ao fim da guerra.

Também, este bombardeamento deu origem à destruição por cargas de dinamitei das altas e elegantes torres da catedral de Díli, o que constou ter sido motivado por constituírem um precioso ponto de referência para os aviões atacantes.

Aquando do bombardeamento, estava o tenente Liberato aferrolhado numa cela da cadeia de Díli pelo que pôde num dos seus livros (2) descrever o terrífico espectáculo com um realismo que ainda hoje nos esmaga.

Atingido o compartimento onde se encontrava, transferiram-no para outra dependência menos danificada e onde já tinham sido reunidos os restantes presos, entre os quais reconheceu, a custo por estar magríssimo, ferido na cabeça, e coberto de cabeça, o chefe de posto Matos e Silva (2) .

Recebeu deste, então, algumas informações. O tenente Pires havia voltado da Austrália, num submarino americano e ficara em Timor, em serviço de observação, com um pequeno grupo de portugueses, oferecendo informações aos aliados (3).

Obrigado o grupo a fraccionar-se, para escapar às "colunas negras", haviam sido, sucessivamente, presos o tenente Pires, os chefes de posto José Tinoco e Matos e Silva, o enfermeiro Serafim Pinto e os irmãos, cabos Cipriano Vieira e João Vieira (3).

Presos, durante meses, em Baucau, foram mais tarde transferidos para Díli (3) e aí havia já falecido o chefe de posto José Tinoco e os irmãos Cipriano e João Vieira (2) . Quanto ao enfermeiro Serafim Pinto nada sabia, pois vira-o entrar um dia na prisão, de olhos vendados, mas desconhecia o destino que lhe haviam dado. Provavelmente, já não pertencia, também, ao número dos vivos (2) .

O senhor Matos e Silva, ferido na cabeça por um estilhaço de bomba, foi transferido, tempos depois, para uma casa de China Rate, onde se presume que tenha morrido (3), a 8 ou 9 de maio (2) .

«Fora de dúvida é que todos eles sofreram horríveis maus tratos e as agruras da fome, que os japoneses impunham a todos os seus prisioneiros» (3).

No dia 4 de maio, o tenente Liberato foi algemado, vendaram-lhe os olhos, meteram-nos num automóvel e levaram-no para China Rate onde o meteram na casa que era das máquinas da T.S.F., num compartimento sem janela. Aí viveu ( !) sessenta e sete dias, completamente incomunicável, a juntar aos vinte e inco passados na cadeia de Díli (2) .

Por estes tempos e, infelizmente, nos que se lhe seguiram, o cabo Kato, chefe da polícia japonesa em Liquiçá, continuava  fazer tropelias, insultando e vexando com prepotência os não- timorenses da zona de concentração.

No dia 5 de julho registou-se um ataque aéreo aliado, com fogo de metralhadoras, a Liquiçá e Maubara. Em Liquiçá ninguém foi atingido, mas em Maubara sofreram ferimentos graves  (...).

Uma das mais infelizes e inexplicáveis prepotências da polícia japonesa surgiria, com uma bomba, a 10 de julho. Cerca do meio-dia, apareceu no hospital de Lahane o sargento Nerita acompanhado de alguns soldados armados, transortado num automóvel do exército.

Não procurando o engenheiro Canto, como costumava fazer, dirigiu-se à sala onde estava instalado o telefone que estabelecia comunicação com o palácio, arrancou-o e levou-o consigo.

Apareceu, então, o Engenheiro e logo compreendemos ser ele a vítima escolhida, pois o sargento não o cumprimentou, antes lhe disse qualquer coisa, com modos bruscos, que nós não ouvimos, por estarmos afastados.

O  Engenheiro dirigiu-se, então, ao seu quarto, já acompanhado por soldados, enquanto c sargento foi procurar o gerente do Banco Ultramarino, senhor João Jorge Duarte, para o intimar a acompanhá-lo, também. Tal com estavam, em mangas de camisa, tiveram de seguir com os esbirros, levando o Engenheiro uma malinha de mão e despedindo-se com um olhar que, para sempre, ficou no nosso
pensamento.

Logo que o automóvel se afastou, o chefe de posto Torresão correu para o palácio com o fim de avisar ao Governador, seu primo, o sucedido. Mas, em vão atuou. Chegado ao cruzamento com a estrada que liga ao palácio aí encontrou um soldado japonês que lhe impediu a passagem, forçando-o a regressar ao hospital.

No dia seguinte já não houve entraves e o Governador pôde ser inteirado do acontecimento, não tendo os protestos que, pronta, enérgica e repetidamente, pessoalmente apresentou no consulado nipónico, obtido resultado favorável nem qualquer explicação para tão arbitrário ato. (...)


(iii) Surpreendente, ou talvez ou não, é a situação do tesouro público: o gerente do BNU é preso, e o seu quarto fica trancado...É lá que ele guardava parte do pecúlio da colónia, ou seja, o "mealheiro" do Governador, o cofre forte do  banco... ~

Como pagar agora aos funcionários, civis e militares,  que restam na colónia, incluindo os deportados (que também comiam à "mesa do Estado" )?... Sem esse dinheiro, agravar-se-ia  a situação de miséria em que já todos viviam, apesar da solidariedade de muitos timorenses  que, apesar de tudo, tinham os seus meios de subsistência... 

Uma solução "ad hoc", expedidta, à portuguesa foi encontrada, o clássico "desenrascanço"... Um momento algo hilariante no meio de um drama coletivo...

 (...) Entretanto, verificáramos no hospital de Lahane que o Gerente havia fechado a porta do quarto onde estava instalado e não pudera entregar a chave aos seus dois funcionários ali presente ou a qualquer de nós, pois nem sequer lhe fora permitido calçar uns sapatos em substituição das chinelas que trazia quando foi preso.

Conforme, então, o Dr. Tarroso Gomes (4) me contou,  situação complicava-se porque o Gerente, visto lhe ser impossível ir ao edifício do Banco, situado em Díli, conservava guardados no seu quarto, uma parte dos fundos da Colónia. 

Aguardaram-se vários dias, na esperança de a detenção ser temporária, mas como não houvesse indícios duma libertação próxima, o Governador, obrigado pelas circunstâncias e porque não  era possível deixar a população sem dinheiro, porque isso representava a fome, determinou que se arrombasse a porta do quarto e se retirassem os fundos da Colónia que passariam à responsabilidade do Dr. Tarroso.

Coube esta tarefa a uma comissão, nomeada pelo mesmo espacho que determinou o arrombamento, constituída pelo capitão Vieira, o Dr. Tarroso, o secretário e o tesoureiro do Banco Nacional Ultramarino, senhores Anselmo Bartolomeu e Almeida e Fausto do Amaral e eu e o sargento Vicente, como testemunhas.

Encontrou-se bastante dinheiro em gavetas e malas, mas havia vários cofres que só mais tarde o deportado, senhor Serafim Martins, habilíssime serralheiro, vindo de Liquiçá para o efeito, conseguiu arrombar e depois tornar a reparar à força de muito trabalho e competência técnica.


 (iv) A "zona de concentração" fica agira reduzida a Liquição, com a transferência forçada dos portugueses "residentes" em Maubara, que perdem os seus parcos haveres e as suas pequenas hortas...

Os bombardeamentos continuam, mais intensos em outubro e novembro. Díli é agora um monte de ruinas. 

Timorenses e portugueses vão entrar no último ano da guerra, sem saber qual é o seu desfecho, completamente isolados do mundo...


(...) Em meados de setembro surgiu mais uma grande crise para a população não-timorense de Maubara que na sua totalidade, não poupando as mulheres e crianças, foi obrigada pelos japoneses e abandonar a vila, onde tinha todos os seus haveres e cultivava hortas pelos próprios meios, e seguir para a já superpovoada Liquiçá, fazendo o percurso a pé!

Chegaram esses desgraçados, mortes de fome e de cansaço,  Liquiçá, no dia 15, tendo pernoitado na noite da véspera em palhotas de timorenses caridosos que fraternalmente os acolheram (5).

Assim, na vila de Liquiçá mais se agravou o problema alimentar que só não se tornou completamente desesperado por os japoneses permitirem que alguns nossos serviçais timorenses se dedicassem a trabalhos agrícolas na Granja Eduardo Marques, fornecendo géneros alimentícios. 

Outra grande ajuda foi sempre a da plantação de Fátu-Béssi que nunca foi ocupada los japoneses, embora eles requisitassem daí o melhor para as suas tropas. Porém, a diplomacia do senhor Jaime de Carvalho conseguiu furtar-lhes quantidades preciosas para entregar aos seus famintos compatriotas.

No mês de outubro, violentos bombardeamentos aéreos incidiram sobre a área onde os japoneses se tinham instalado em Lahane, bem junto do nosso hospital, os quais só por milagre não nos atingiram. Ficaram memoráveis para nós os realizados nos dias 14, 29 e 30 (de setembro).

Continuaram os ataques aliados em novembro, ainda a Lahane, mas, agora, nas proximidades da residência do governador. Assim, no dia 8, caíram dezoito bombas a uma distância, entre 20 e 50 metros; no dia 10, sete bombas, à mesma distância; e no dia 15, mais nove, oito das quais muito próximas (entre 20 e 30 metros) e uma que providencialmente não rebentou, a dois metros de um dos torreões da frente da residência, onde cavou um buraco. (6) .

(Continua)

(Seleção, revisão / fixação de texto, itálicos, negritos, comentários, reordenação das notas de rodapé: LG)

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Notas do autor (JSC):

(1) As exposições da população ao governador Ferreira de Carvalho, pedindo para não conceder a exoneração ao engenheiro Canto, podem ler-se no In Memoriam a Artur do Canto Resende, publicação do Sindicato Nacional dos Engenheiros Geógrafos, Lisboa, 1956, pp. 37 a 41.

(2) Vd. Capitão António de Oliveira Liberato, "Os japoneses Estiveram em Timor". Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade. Lisboa, 1951.

(3) Vd. Carlos Cal Brandão: "Funo: guerrra em Timor".  Porto, edições "AOV", 1946, 200 pp.

(4) O Dr. Tarroso Gomes, desde Dezembro de 1942 que vinha regularmente a Díli, uma vez por mês, a fim de levantar da caixa de tesouro os fundos necessários para as despesas oficiais do mês e despachar com o governador os assuntos da Repartição de Fazenda. Hospedou- se  sempre no hospital.

(5) A odisseia dos portugueses de Maubara foi-me relatada pelo Dr. Tarroso Gomes que assistiu à sua chegada a Liquiçá onde o seu mísero estado provocou, em todos a maior indignação e profundos desejos de vingança.

(6) Os efeitos dos bombardeamentos da zona vizinha do palácio do governador, foram por mim directamente observados. O número de bombas caídas foi-me referido pelo próprio governador.
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Nota do editor LG: 

(*) Vd. postes anteriores da série >