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quarta-feira, 17 de dezembro de 2025

Guiné 61/74 - P27541: Historiografia da presença portuguesa em África (508): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial da Colónia da Guiné Portuguesa, 1952 (66) (Mário Beja Santos)

Mário Beja Santos, ex-Alf Mil Inf
CMDT Pel Caç Nat 52

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Junho de 2025:

Queridos amigos,
É interessante notar como se vai processando a intervenção do Estado na economia, cresceu o funcionalismo, procuram-se melhorar as condições de vida das classes intermédias, dando-lhes habitação, vão surgindo novos bairros, mais alargados esquemas de saúde, substituem-se as fórmulas puramente coloniais como o imposto de palhota que dá lugar ao imposto indígena e na regulamentação não se deixa de fazer a menção de que importa pela via tributária ir procurando dissuadir a poligamia; a Guiné passa a ter uma associação de futebol, ganhou uma autossuficiência no arroz, exporta oleaginosas, não se encontra uma só menção às suas riquezas piscatórias. Usando a fórmula de Salazar, viver habitualmente, tudo parece que a Guiné engrenou nas regras do jogo colonial, procura-se melhorar a agricultura, convém recordar que Amílcar Cabral vai chegar com a sua primeira mulher e ele envidará esforços para melhorar as potencialidades da Granja de Pessubé, mais adiante irá fazer o recenseamento agrícola, a que o Governo português se comprometera com a FAO. No Boletim Oficial, até diminuíram as referências aos problemas disciplinares. Mas há homens avisados, como Castro Fernandes, antigo Ministro da Economia e agora administrador do BNU a quem cabe o pelouro da Guiné, que lançam alertas sobre a necessidade premente de passar a um novo patamar da evolução, é que o mundo vai entrar numa ebulição descolonizadora. Mas aqui, em Portugal, assobia-se para o lado.

Um abraço do
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Oficial da Guiné, 1952 (66)


Mário Beja Santos

Não é explicito, quando lemos este Boletim Oficial, que a exploração dos recursos já não é feita por empresas estrangeiras, dera-se uma operação de nacionalização a partir do comércio, mesmo as concessões de aforamentos de terras recai em grandes empresas como a CUF ou a Sociedade Comercial Ultramarina ou agentes económicos portugueses, cabo-verdianos e sírio-libaneses. É assim que se pode compreender como no Boletim Oficial n.º 3, de 17 de janeiro, o Governador determina o preço das oleaginosas no ano corrente, é o caso da mancarra, coconote e óleo de palma. Quanto à mancarra definiam-se os preços de compra ao indígena (nos portos de exportação, nos centros comerciais do interior servidos por via fluvial e nas regiões fronteiriças) e ao intermediário; para o coconote eram definidos os preços de compra ao indígena e ao intermediário, o mesmo sucedendo para o óleo de palma. Eram preços fixos e únicos, o não cumprimento podia dar azo a infração. Dera-se, por conseguinte, uma intervenção clara do poder colonial do funcionamento da economia. É o que se pode ver também no Boletim Oficial n.º 10, de 6 de março, a intervenção do Governo nos preços das especialidades farmacêuticas, curiosamente os medicamentos aparecem associados às águas mineromedicinais. O diploma legislativo abre com o reconhecimento da necessidade de alterar as percentagens máximas de lucro pela venda de medicamentos e destas águas.

No Boletim Oficial n.º 11, de 13 de abril, Raimundo Serrão louva o Administrador António Carreira nos seguintes termos:
“O censo da população não civilizada de 1950 foi na Guiné inteiramente confiado ao quadro administrativo, desde as primeiras operações de notação até aos apuramentos finais. O Administrador António Barbosa Carreira foi nomeado Delegado-geral do censo da população não civilizada e como tal encarregado de dirigir, orientar e conduzir todos os trabalhos relativos aos apuramentos estatísticos da população não civilizada.
Com um devotado interesse, como é timbre deste funcionário, dedicou-se à difícil missão que lhe foi entregue, seguindo as instruções técnicas do Instituto Nacional de Estatística.
Nunca se fizera na Guiné trabalhos de notação e apuramentos concernentes à população civilizada com resultados tão satisfatórios e tão aproximados dos números verdadeiros, apesar das dificuldades que se tiveram de vencer e do volume da tarefa a realizar.

Na sua ânsia de produzir e bem servir, elaborou o Administrador Carreira logo nos princípios de 1951 o seguinte trabalho sobre o censo: ‘Apreciação dos primeiros números discriminados do censo da população não civilizada de 1950’ que mereceu de Sua Excelência o Ministro de que este funcionário fosse louvado e que se fizesse uma tiragem de mil exemplares para serem distribuídos por todas as secretarias da administração civil, administrações e postos administrativos.
Durante cerca de um ano se trabalho afincadamente nos apuramentos do censo da população não civilizada, na Administração de Cacheu, sob a orientação e presença constante do Administrador Carreira. É altura para louvar este Administrador, por ter dirigido, orientado e conduzido com notável interesse, dedicação e conhecimentos todas as operações concernentes à missão que lhe foi confiada.”


Faz-se sentir, também da leitura deste Boletim Oficial, que se entrara num patamar da vida colonial em que o lúdico e o desportivo ganhara uma popularidade interclassista. No Boletim Oficial n.º 19, de 9 de maio, são aprovados os estatutos da Associação de Futebol da Guiné, esta tem como finalidade dirigir, regulamentar e difundir a prática do futebol na região, organizar os diferentes campeonatos, e dentro da estruturação estatutária definem-se as regras, como a começar pelos direitos e deveres dos sócios. Em 1951, ao abolir-se o Acto Colonial e instituir-se o Ultramar Português, procurava-se fazer a substituição do imposto palhota pelo imposto indígena. Para tal houve que aprovar o regulamento de identificação indígena, com a alegação de que este iria facilitar-lhes a obtenção dos documentos indispensáveis à sua identificação e simplificação dos seus contratos de trabalho, exigindo-lhes de futuro apenas a apresentação de um só documento, a caderneta indígena.

Bem curiosa é a Portaria n.º 400 que se publica no Boletim Oficial n.º 19, de 10 de maio. Fazendo referência à evolução que se estava a verificar nas principais províncias ultramarinas quanto ao sistema tributário, aconselhava-se a que na Guiné se substituísse imposto palhota por uma coleta de caráter exclusivamente pessoal. Veja-se as considerações enunciadas:
“Estando já reconhecido que a incidência de impostos sobre as mulheres tem vários inconvenientes e não fazendo sentido que se usem sistemas diferentes de tributação nas várias províncias do Ultramar onde existe o regime do indigenato, era intuitivo que também se aproveitaria a oportunidade para conceder às mulheres indígenas da Guiné os benefícios de uma completa isenção e assim se fez.
Esta isenção não colide com a legislação em vigor, em que se recomenda que se contrarie a poligamia, visto que, além da atividade dos nossos missionários e da influência das escolas primárias espalhadas pelo interior, o governador pode, por simples portaria, contrapor à imoderação daquele costume, medidas tributárias que dificultem o seu desenvolvimento, fixando aos homens casados um imposto tanto mais elevado quanto maior for o número de mulheres com quem casarem, além de uma.

É que na província da Guiné, a par da necessidade de combater a poligamia entre os indígenas, a circunstância especial de grande parte da sua população estar islamizada, por viver na vizinhança de territórios cujos habitantes são ardentes propagandistas do Islão, é aconselhável, mais do que em qualquer outra província do Ultramar, que se contemporize com usos e costumes tradicionais já profundamente arreigados.
Ao elaborar-se este regulamento teve-se ainda em atenção, como principal objectivo moral, criar novos hábitos de trabalho aos indígenas, que lhes permitam um sucessivo melhoramento das suas culturas, da qualidade e do aumento das suas produções, com consequentes probabilidades de melhores condições de vida.”


E é nesta lógica que se publicou o regulamento do imposto indígena em que todos os indígenas do sexo masculino, de idade compreendida entre os 16 e os 60 anos ficam obrigados ao pagamento do imposto indígena.

No Boletim Oficial n.º 22, de 29 de maio, louva-se o Engenheiro Emídio Corrêa Guedes pelo seu desempenho na realização da ponte Comandante Sarmento Rodrigues, em Ensalmá, sobre o Canal de Impernal, relevam-se as suas notáveis qualidades de organizador e realizador.

E finaliza-se com mais uma referência ao imposto indígena, consta do Boletim Oficial n.º 39, de 1 de outubro. Faz-se saber que os ensaios efetuados para a execução do regulamento do imposto indígena tinham demonstrado a dificuldade da sua aplicação, havia a necessidade premente de um reajustamento, procediam-se a alterações, como as que se mencionam: aos chefes de povoação só será concedida a isenção do pagamento de imposto quando nos respetivos agregados sejam coletados trinta ou mais contribuintes válidos; todos os indígenas desde que possuam duas ou mais mulheres devem beneficiar apenas da isenção do imposto base (150 escudos) pagando a diferença conforme o número de mulheres que possuírem, além de uma.

E estamos praticamente chegados a 1953, último ano da presença de Raimundo Serrão na Guiné.

Imagem retirada de um filme da RTP, Guiné Portuguesa, 1960, régulo Fula desloca-se com a sua comitiva
Ponte-Cais, Bissau. Foto Serra, 1950
Fotografia tirada pelo Alferes Carvalho do BART 2924 em Tite, durante a comissão, retirada da página do Facebook Antigos combatentes da Guiné, com a devida vénia
Imagem de uma escola corânica na Guiné-Bissau

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 10 de dezembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27515: Historiografia da presença portuguesa em África (507): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial da Colónia da Guiné Portuguesa, 1951 (65) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

Guiné 61/74 - P27533: Notas de leitura (1874): "Cartas de Guerra (61-74) Aerograma Liberdade”, por Ricardo Correia; edições Húmus, 2024 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Março de 2025:

Queridos amigos,
É uma raridade, uma peça de teatro, a que se segue uma carta-concerto, o foco são os aerogramas, o pretexto é um filho, no nosso tempo, interrogar por carta o pai, em 1972, saber que homem era enquanto combatente. A mensagem é este alerta de que ainda há muito para saber destas toneladas de escrita, houve pactos em casais para destruir a correspondência desse tempo, seguramente que terão assumido que foram dores a mais, que se cometeram excessos, que o que ali se disse não devia ser lido por outros olhos; há quem procure ganhar uns cobres e venda aerogramas por meios eletrónicos ou em negócios de velharias; há aerogramas de grande recorte literário, como os de António Lobo Antunes. 

Mas o que continua por esclarecer era o sentir destes homens naquele tempo e naquele lugar, para o investigador seria um termo de referência, de valor discutível, é certo, houve quem escrevesse fantasias, e interrogo-me em termos de estudo como será possível alguma vez fazer a medição dos silêncios, penso sobretudo naqueles nossos camaradas que viveram os pavores de Guileje, Gandembel, Sangonhá, Bedanda, Madina do Boé ou Béli, o que silenciaram para não despedaçar mais a vida dos entes queridos - esses silêncios só podem ser esclarecidos com o rigor dos factos históricos. Não tenhamos dúvidas, ficaram silêncios inquebrantáveis, que mudaram tantas e tantas vidas.

Um abraço do
Mário



Querido pai, escrevo-te do meu presente para o teu passado, a tentar chegar até ti

Mário Beja Santos

O que seria a história da guerra colonial se tivesse sido possível ter acesso às toneladas de correspondência trocadas nas duas direções? É mera conjetura, sei muito bem, grande parte destes documentos foram para o lixo, por decisão dos dois fez-se fogueira, há herdeiros que os põem à venda. 

Foi assim que o pintor Manuel Botelho comprou uma resma de aerogramas entre dois namorados, ele no Bachile, cabo das transmissões, ela costureira, não da Sé mas no alto de Alfama, temos ali um percurso que ele aproveitou para uma performance que deu para entender comportamentos havidos a dois e por dois anos: ele deslumbrado, à chegada, com todo aquele fascínio de verdura, braços de ria, a fauna, as queixas da comida, mas sempre o desassossego se tu me amas ou não, escreve-me, há aqui camaradas meus que andam à procura de madrinhas de guerra, eu só te quero a ti; ela responde, tu sais que te fartas, se isso é uma guerra é feita de turismo, eu estou para aqui a trabalhar dia e noite, os fins de semana são para preparar o enxoval; da euforia inicial e da troca de arrufos, os meses passam, e há aerogramas que parecem travessias no deserto, não desampares, isto nunca mais acaba, há noites silenciosas que dão cabo de mim, como é que eu vou poder esquecer este sobressalto em que vivo… E dos muitos aerogramas trocados nos primeiros meses chegamos a um fiozinho de correspondência, há quase uma agonia na expetativa do regresso, experimentada pelos dois. Ora isto é uma simples abordagem da riqueza dos conteúdos, uma das dimensões desse imenso ecrã de quem combatia e de quem deste lado dava apoio e lhe pedia fidelidade.

As autoridades alertavam para a necessidade de muita segurança: nada de dizer no endereço mais do que o SPM; e do lado da guerra nada transmitir que possa cair nas mãos do inimigo e para uso letal.

Escusado é dizer que o teatro é o parente mais pobre da literatura da guerra, avulta a literatura memorial, o romance, a novela e o conto, sobretudo a poesia popular, a diarística, a investigação. Alertado por um dos meus benfeitores, o Dr. João Horta, da Biblioteca da Liga dos Combatentes, “tenho aqui uma peça de teatro que mete a Guiné”, pus-me ao caminho e lá fui àquele ponto do Bairro Alto que tem os passeios completamente escavacados e em frente as obras intermináveis no Conservatório Nacional. 

O livro intitula-se “Cartas de Guerra (61-74) Aerograma Liberdade”, por Ricardo Correia, edições Húmus, 2024, inclui um glossário preparado por Rui Bebiano, com termos alusivos ao conteúdo da peça e de uma carta concerto intitulada “Aurora Liberdade” que tem ilustrações de Cátia Vidinhas.

No tempo presente (2023) um filho escreve uma carta ao pai em 1972, pede-lhe que ele lhe conte o seu viver, que pessoa era o seu pai, quando agora o abraça não sabe exatamente o que escondem os olhos do antigo combatente. “Procuro-te e sei que ainda não te encontrei. Tal como Telémaco procurou o seu Pai, Ulisses.” 

E como nessas peças em que os atores trocam de papel, que ganham uma identidade que acaba por ser transferida para outrem, como nas peças de Luigi Pirandello, iremos percorrer num couro dos soldados portugueses a cronologia dos acontecimentos dessa guerra, entra em cena o Movimento Nacional Feminino, ouve-se Cecília Supico Pinto afirmando que é “aberto à participação de todas as mulheres portuguesas exceto as comunistas e as comodistas”

Graças a este Movimento e ao apoio da TAP nasceu o aerograma, atores e atrizes conversam como militares e família, a conversa também transita para o presente, há cartas a um país que silenciou a guerra colonial, um militar está na Guiné, o autor entra em cena, pede colaboração à assistência, diz que está a fazer um espetáculo sobre a correspondência na guerra colonial portuguesa, diz que o pai esteve mobilizado e combateu na Guiné. Vai ser entrepelado, dão-se sugestões.

A peça muda agora de rumo, estamos no presente, conversam atores com o ex-combatente, mas há também testemunhos, não se esconde que existe o stress pós-traumático, uma atriz em cena, de nome Penélope tem como destinatário Telémaco. 

“As cartas chegavam diariamente, mas era como se falássemos em diferido. Ele respondia-me a coisas passadas. Vivíamos em tempos diferentes.” 

É uma mãe a falar ao seu filho dos amores que teve pelo seu pai, queimaram todo o correio trocado “para avançarmos com a nossa vida”

E faz-lhe um pedido: 

“Cabe-te a ti inventar as palavras que queimámos. Talvez assim, um dia, possas contar esta história aos teus filhos. Já não me cabem mais palavras nesta carta. Um beijo grande desta mãe que te ama.”

Finda a peça teatral, segue-se a carta concerto, de novo o aerograma como fio condutor, há uma triangulação na correspondência, o pai soldado, a mãe e a filha, Catarina da Paz, há saudades e há notícias, ficamos a saber que o soldado compreende a revolta de quem o combate, a mãe não esconde as saudades, e vem os festejos do 25 de Abril, Catarina da Paz despede-se do espectador dizendo que este em cena a história dos seus pais.

Em jeito de posfácio, Sónia Ferreira faz comentário a estes conteúdos. Quanto à natureza dos tais aerogramas que chegavam diariamente, mas era como se eles falassem em diferido, dirá:~

 “O peso de um tempo longo e da não-simultaneidade é-nos hoje estranho. A ideia de que a comunicação se dava em diferido, que não acompanhava o ritmo constante da vida, que as respostas que recebo hoje são sobre o ontem, provocará estranheza no público mais jovem.” 

E deixa-nos este comentário final: 

“A sociedade pós-colonial que hoje somos, fruto do desmoronar de um império que ainda hoje persiste e se afirma em ideologias racistas (como bem identifica Ricardo Correia referindo Alcindo Monteiro e Bruno Candé), em património colonial edificado e em lampejos anacrónicos de grandeza, tem se der pensada e construída em relação direta com esta memória difícil que nos atravessa, mesmo que alguns a queiram convenientemente rescrita.”
Ricardo Correia
Advertências das autoridades para a necessidade de segurança do que se escrevia nos aerogramas
Aerogramas de José Rubira: Guiné-Bissau / Montemor-o-Novo 1971-1973, retirado do site Foto-Síntese
“Aerograma Liberdade”, de Catarina Moura
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Nota do editor

Último post da série de 12 de dezembro de 2025 > >Guiné 61/74 - P27523: Notas de leitura (1873): Uma publicação guineense de consulta obrigatória: O Boletim da Associação Comercial, Industrial e Agrícola da Guiné (4) (Mário Beja Santos)

sábado, 13 de dezembro de 2025

Guiné 61/74 - P27526: Os nossos seres, saberes e lazeres (713): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (234): A ópera Carmen, de Bizet, a maior igreja gótica do mundo, a Casa Lonja, tudo isto se passa em Sevilha, depois Granada e por fim Córdova - 1 (Mário Beja Santos)

Mário Beja Santos, ex-Alf Mil Inf
CMDT Pel Caç Nat 52

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Outubro de 2025:

Queridos amigos,
Este afã, inventado pela sociedade de consumo, de andarmos a visitar lugares só para olhar e pouco ver, finda a aventura excursionista, fica um travo de amargura.

 Começar por Sevilha e não visitar os Alcázares Reales, o esplêndido Museu de Belas Artes, o espaço da Cartuxa onde se realizou a Expo 92, não poder andar pausadamente pela Praça de Espanha, pela Triana e pela Macarena, deixa-me desgostoso, ainda por cima estava um tempo sublime, surpreendeu-me multidões por toda a parte, até ter descoberto que outubro é uma época altíssima do turismo, até ao Natal. 

Cheio de inocência e candura, também me esqueci de comprar bilhetes antecipadamente, paguei um preço severo, vi importantes monumentos do lado de fora. Aos 80 anos ainda tenho muito que aprender.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (234):
A ópera Carmen, de Bizet, a maior igreja gótica do mundo, a Casa Lonja, tudo isto se passa em Sevilha, depois Granada e por fim Córdova - 1


Mário Beja Santos

Não é propriamente ver Braga por um canudo, acordou-se em cerca de nove dias para sair de Lisboa e ir diretamente até Sevilha, daqui rumar para Granada, mudar de autocarro até Córdova, regressar a escassas horas até Sevilha, novo autocarro até Tavira, para uma curta estadia, mas com grande afeto.

O passeio começou em frente à Universidade, a antiga Fábrica dos Tabacos. Diz-se que a Praça em frente ao portão da tabaqueira é o palco de primeiro ato da ópera Carmen, de Bizet. Trata-se do local onde antigamente milhares de mulheres enrolavam folhas de tabaco para fazer charutos. Estamos a ver o portal principal coroado por uma estátua da Fama, é um edifício gigantesco, tem quatro alas, vários salões, no passado houve pátios interiores, estábulos e poços. Nos terraços de armazenamento, eram colocadas as folhas de tabaco em fornos especiais. 

Diz o guia que é possível visitar o gigantesco complexo da Universidade, mas tudo estava fechado. O edifício assemelha-se a uma fortificação militar com as alterações dos hábitos dos fumadores e a chegada do cigarro, a fábrica de tabacos entrou em declínio. Passou-se ao lado do icónico hotel Afonso XIII, passou-se por uma série de estabelecimentos de comidas onde toda a gente tinha à frente chocolate com churros, demandou-se a catedral, mas impunha-se ver com admiração o Arquivo Geral das Índias, não me importaria de andar por aqui a bisbilhotar este acervo de preciosidades dos descobrimentos do Novo Mundo.

Há um dado curioso sobre a vida anterior deste Arquivo. Aqui funcionou a Bolsa de Comércio, e quando esta deixou de ter importância, Carlos III instalou ali o Arquivo, daí o nome Casa Lonja. Segue-se agora a viagem até à Catedral de Santa Maria

Fachada principal da Universidade de Sevilha, antiga Fábrica Real de Tabacos
A Casa Lonja, hoje o Arquivo Geral da Índias, guarda os documentos da história dos descobrimentos do Novo Mundo. Aqui podem encontrar-se menções a Cortés e Pizarro, os descobridores do México e do Peru, a Fernão de Magalhães, e o Tratado de Tordesilhas, pelo qual as casas reais de Espanha e Portugal dividiram o Novo Mundo.
Uma das entradas da Catedral de Santa Maria, a primeira Catedral Andaluza, é a maior catedral gótica do mundo e as suas dimensões são superadas apenas pelas da Basílica de S. Pedro e da Catedral de S. Paulo, em Roma e em Londres, respetivamente.
A Giralda, começou por ser minarete da mesquita, como é patente teve acréscimos posteriores, felizmente não foi desfigurada a impressionante beleza deste património da arte islâmica. Atenda-se a um dos contrafortes da impressionante catedral.
Neste dia não havia visitas à catedral, assisti à missa com o sermão do Bispo de Sevilha, com canto coral, ali estive uma hora sentado em frente do maior retábulo que existe em Espanha.
É rigorosamente proibido tirar fotografias na catedral, a que mostro é obra de outro. Tem uma largura de mais de 18 metros e uma altura que se aproxima dos 28 metros, este é o retábulo principal da Capela Maior. É uma escultura de madeira de nogueira, larício e castanheiro, tem a forma de tríptico coroado por um baldaquino. O retábulo engloba 45 grupos de figuras, são momentos capitais da vida cristã. Para compensar distorções de perspetiva, as figuras de cima são maiores para que não pareçam mais pequenas vistas de baixo.
Lamento não poder mostrar o interior da catedral, a Capela Real, a Sacristia Maior, o túmulo de Cristóvão Colombo, a beleza das abóbodas, o Coro, enquanto participei na missa bem tentei admirar aquela mistura de elementos góticos mudéjares e platerescos, diz-se ser o cadeiral mais belo do sul de Espanha. A catedral foi concebida à semelhança dos salões de basílica, tem uma planta retangular, está dotada de cinco naves laterais e de capelas, que se encaixam entre os contrafortes. A catedral conheceu ampliações. Por exemplo, Carlos V mandou construir a Capela Real por cima de uma capela mais antiga na abside leste.
Impedido de fotografar dentro da catedral, aproveitei o ensejo de captar algumas imagens desde a entrada até à Capela principal propriamente dita, são as imagens que aqui retive, bem como esta última imagem do seu exterior que permite ver um pormenor da sua monumentalidade. 

E daqui parti, cheio de convicção de que era muito fácil ir visitar os Alcázares Reales, há umas boas décadas que cá não entrava. Qual quê! Uma fila quilométrica e a informação de que não era possível entrar antes do meio da tarde. Fica para a próxima.
Esses Álcazares Reales pertencem ao complexo histórico mais interessante de Sevilha, é impressionante a variedade arquitetónica que não retira brilho à harmonia geral. Remonta ao tempo do domínio árabe em Sevilha, o tempo do califado de Córdova e mais tarde aqui moraram os soberanos abádidas. 

Com a reconquista cristã, em 1248, no reinado de Fernando III, o Alcázar tornou-se residência cristã, houve sucessivos acréscimos, fiquei muito triste de não voltar a ver os jardins, o pavilhão de Carlos Pinto, o pátio de Yeso e o Palácio de D. Pedro. Há mais marés que marinheiros. O passeio prossegue.

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 6 de dezembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27500: Os nossos seres, saberes e lazeres (712): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (233): Por casualidade, o fotógrafo interessou-se por tal momento, por ele considerado esplendente - 5 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

Guiné 61/74 - P27523: Notas de leitura (1873): Uma publicação guineense de consulta obrigatória: O Boletim da Associação Comercial, Industrial e Agrícola da Guiné (4) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Outubro de 2025:

Queridos amigos,
Há qualquer coisa de insólito no facto de este Boletim não se ter publicado durante o primeiro semestre de 1961, fala-se em agitações, mas não se dá qualquer explicação. O ano anterior fora simultaneamente de alguma pompa e circunstância, dera-se a inauguração da sede ali mesmo na Praça do Império, exaltou-se a boa comunicação existente entre a Associação Comercial Industrial e Agrícola e o Governo. Mas surgiam problemas novos, os djilas mercadejavam tudo e mais alguma coisa, impunha-se fiscalização; esse ano de 1960 fora marcado por uma quebra nas produções de mancarra e de arroz. Chegados agora a um novo ano apelava-se a uma campanha do coconote com mais regras; lembrava-se, já que havia um grande plano de obras para a regularização do Geba e aproveitamento de terrenos para a agricultura, que não se esquecesse a borracha, bem merecia o incentivo, pois dela havia bastante procura mundial. Pela primeira vez o Boletim faz uma observação clara sobre a situação política que se vive na Guiné, veja-se o que se escreveu:
"1200 mancebos guinéus ofereceram-se para dia e noite manter os matagais até desalojarem por completo os sediciosos desvinculados das tribos e dos parentes, ora convertidos em sectários do mal e da destruição indistinta por virtude de ensinamentos pérfidos ministrados por profissionais da desordem. Com Fulas, Balantas e Mandingas, raças tradicionalmente pouco afins, fundou-se a mais eficaz, aguerrida milícia da guiné portuguesa, numa voluntariosa demonstração de que nos filhos desta terra pacífica sobreleva, de quaisquer considerações de hegemonia, a comunhão fraterna imperante. 1200 homens que as populações regionais - Mansabá e Farim - de diversas etnias sustentam quando em serviço de perseguição aos guerrilheiros a monte, numa tão estreita e valorosa coadjuvância, que formulo sérias dúvidas se nós, civilizados da capital da Província, saberemos imitá-los. E lá para o Xime, ativa milícia de cerca de 600 naturais nasceu e várias outras em fluxo constante se organizam." Assinava A.J.F. Estávamos em outubro de 1962.

Um abraço do
Mário



Uma publicação guineense de consulta obrigatória:
O Boletim da Associação Comercial, Industrial e Agrícola da Guiné – 4


Mário Beja Santos

Foi dada a explicação pelo presidente da direção de que não houvera condições para publicar nos primeiros meses o Boletim da Associação Comercial. Abre-se este primeiro Boletim e surge-nos uma surpresa, o Conselho Técnico da Associação, Dr. Artur Augusto Silva, vem falar-nos do novo franco da Guiné:
“A vizinha República da Guiné acaba de abandonar a zona do franco e de criar uma moeda sua. Este facto, que se situa na linha da evolução antifrancesa que a jovem república tem seguido desde que abandonou a comunidade, causou certa surpresa nos meios internacionais, que não esperavam uma medida tão grave numa altura em que os nossos vizinhos do sul estão atravessando uma crise económica bastante acentuada.
Esta medida entrará em vigor no próximo dia 1 de Março e, embora não tenhamos elementos que possam servir-nos para alicerçar conclusões seguras, afigura-se-nos altamente prejudicial para os interesses dos nossos associados, uma vez que nas regiões da fronteira Leste a maior parte do comércio se faz à base do franco CFA.

Criado o franco guinéu cuja cotação dos mercados nacionais não oferece segurança e que neles não terá qualquer procura, ficarão os comerciantes da nossa Guiné na impossibilidade de receber aquela moeda em pagamento dos produtos que vendiam aos nossos vizinhos.
Poderia o franco guinéu servir localmente como um instrumento de trocas, uma vez que a vizinha Guiné nos costuma vender couros, mel, cera e borracha.
Mas, segundo informações dignas de crédito, que nos vêm chegando, tem afrouxado muito, ultimamente, a entrada de couros e borracha, em virtude já das dificuldades postas pelas autoridades vizinhas, já da maior cotação daqueles produtos na República da Guiné.
Por outro lado, a cotação do mel da nossa Guiné baixou tanto que já se nota o evidente desinteresse por parte dos produtores indígenas e o desinteresse pelo mel sente-se consequentemente à cera: não havendo produção de mel, não há cera.

Conseguirá a República da Guiné impor a sua moeda nos mercados internacionais e dar-lhe aquela estabilidade geradora de confiança?
A solução dos problemas económicos dos nossos vizinhos está ainda no limbo das hipóteses, pelo que se torna extremamente difícil fazer previsões.
País subdesenvolvido – embora com admiráveis perspetivas – a República da Guiné tem-se preocupado mais com a politização das massas do que com a planificação económica, facto que o próprio Sékou Touré reconheceu ainda recentemente. De qualquer forma, a adoção pela vizinha Guiné de uma nova moeda não se nos afigura de bom augúrio para o nosso comércio da região Leste da Província.”


A direção da Associação Comercial sentiu-se profundamente da medida política definida pelo Governo de Lisboa acerca da política açucareira. Daí o teor do ofício enviado ao Ministro do Ultramar em 16 de agosto.

A direção da Associação tinha-se reunido em sessão extraordinária para apreciar o Despacho do Governo que definia a futura política açucareira e vinha agradecer ao Ministro que atendia aos interesses da economia da Guiné. Acontecia, porém, que o Despacho em referência esclarecia “haver a considerar a possibilidade de instalação de uma indústria açucareira na guiné e o desaparecimento das pequenas indústrias rurais”.

Mas a seguir ao agradecimento vinha o queixume:

“O que, no entanto, não define, mas carece de tal é, qual o fim a dar às 25 pequenas unidades agora existentes e que, necessariamente, têm de desaparecer, isto é, o princípio ou critério que deve adoptar-se para a justa medida de indemnização e por quem deva ser feita uma vez tudo indicar que essas pequenas instalações industriais não podem subsistir. Aos seus proprietários só resta o dilema de passarem a simples agricultores de cana, mas há que prever com o tempo a indemnização devida e de modo a não ilusões que sujeita a invitáveis prejuízos muito de supor em tais casos.

Outro lado deste problema e de não menor importância para o qual ousamos chamar a atenção de Vossa Excelência, certos da sua plena concordância achando-o de toda a justiça é o da formação do capital da empresa e seu modo de distribuição:
Diz o Despacho reservar-se 30% do capital aos ‘produtores ultramarinos de açúcar de cana’ e, muito naturalmente, como ao presente nenhum existe na Guiné Portuguesa, esta comparticipação é destinada exclusivamente aos atuais produtores de Angola e Moçambique o que significa pura e simples exclusão de comparticipação de capital ou economias da Guiné – o que não é justo nem pode satisfazer quer aos que por estas mourejam há muitos anos vindos de longe quer aos naturais evoluídos que do assunto se apercebem e dele tirem as suas conclusões.”


É um teor de carta dilacerante em que se apela a disposições como a indemnização, a reserva de participação do capital da futura empresa açucareira ao capital ou economias particulares da Guiné, pedindo-se mesmo que a sede da empresa tenha de ser obrigatoriamente na Guiné.

A campanha do coconote, como se tem visto, é tema recorrente. Pede-se a atualização do valor fiscal do coconote, fazendo-o corresponder à cotação efetiva e em prática na Província: 1$90 por kilo nos portos de embarque; caso contrário, voltarão por certo a repetir-se as imobilizações dos armazéns de consideráveis quantidades do produto. Mas os comerciantes também chamam a atenção do governador para outras duas consequências: aviltamento de preço de compra aos naturais; retraimento muito sensível nas aquisições àqueles.

Na prática apresentar textos divulgativos, num desses números vem um artigo sobre a borracha, uma riqueza inaproveitada. Faz-se um apelo ao Diretor da Fazenda para que os técnicos encarem a borracha como um elemento primordial de fomento da Guiné, a pessoa que assina o artigo recorda as verbas avultadíssimas para as obras de regularização do Geba, tudo a cargo da Brigada de Estudos Hidráulicos da Guiné, há que potenciar riqueza, para além das cabeças de gado há que fomentar de novo os negócios da borracha.

Finalmente volta-se a falar da mancarra, dizendo-se num texto que no limiar da campanha de 1962-63 estamos com todos e contra todos na essência da orientação preconizada. Enviou-se uma exposição ao encarregado do Governo focando um conjunto de seis pontos: a conveniência de antecipar por uns dias a data da abertura da campanha, para eliminar a possibilidade de especulação no referente às compras aos agricultores nativos; a fixação dos contingentes exportáveis convém ser feita e ser conhecida pelos interessados antes da data da abertura oficial da campanha; é indispensável saber-se antes da abertura os preços fob-Bissau e cif-Lisboa para a mancarra e para a ginguba (nome dado em Moçambique ao amendoim) estabelecidos pela Metrópole; fixação dos contingentes de exportação com interferência da Comissão Reguladora das Oleaginosas; pede-se o estabelecimento de dispositivos militares de proteção aos locais de recolha e armazenagem do produto no interior; entende a Associação Comercial que é inadiável a introdução dos nossos produtos agrícolas nos mercados internacionais, de forma a que a correspondente obtenção de divisas equilibre as despendidas pela Guiné nas aquisições do estrangeiro e ocasione também uma maior segurança económica para todas as vezes que a Metrópole não se disponha a absorver pela totalidade das produções locais – facto, infelizmente, muito repetido.

Pastor Mancanha
Tocadores de tambor
Resolução da divergência matrimonial
Homem Nalú

Estas quatro últimas imagens foram retiradas do Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, anos de 1960 e 1961

(continua)

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Notas do editor:

Post anterior de 5 de dezembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27498: Notas de leitura (1871): Uma publicação guineense de consulta obrigatória: O Boletim da Associação Comercial, Industrial e Agrícola da Guiné (3) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 8 de dezembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27506: Notas de leitura (1872): "Os Descobrimentos no Imaginário Juvenil (1850-1950)"; edição da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses; 2000 (3) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

Guiné 61/74 - P27515: Historiografia da presença portuguesa em África (507): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial da Colónia da Guiné Portuguesa, 1951 (65) (Mário Beja Santos)

Mário Beja Santos, ex-Alf Mil Inf
CMDT Pel Caç Nat 52

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Maio de 2025:

Queridos amigos,
Já não há colónias, há províncias ultramarinas, o fenómeno descolonizador está em marcha, começou na Ásia, encaminha-se para o Norte de África, dele se fala amiúde nas Nações Unidas. Daí a operação de maquilhagem, logo com a revisão constitucional e a abolição completa da palavra colónia. É claro que a mentalidade não se muda de um dia para o outro, basta ver este estatuto do ensino rudimentar e tudo quanto ele prescreve. É curioso como a figura de Raimundo Serrão tem um lugar apagado na vida da Guiné. Ele encomendou a Fausto Duarte uma obra de autoelogio, intitulada "Guiné, Alvorada do Império", ricamente ilustrada. Devo o facto de procurar tal obra ter chegado ao então Arquivo Histórico do BNU, onde havia um exemplar, mal sabia eu no dia em que cheguei a este ponto de Sapadores que vinha passar quase 1 ano para preparar o livro "Os Cronistas Desconhecidos do Canal de Geba". O panorama económico está em mutação, vai nascer a ideia de que a Guiné será um grande fornecedor de arroz, com pleno autoabastecimento, o governador é metódico, transpõe para a província a legislação conveniente e dedica-se a sério ao sistema educativo. Mas não deixou mais história, bem procurei literatura atinente, nada encontrei.

Um abraço do
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Oficial da Guiné, 1951 (65)


Mário Beja Santos

O Capitão de Engenharia Raimundo Serrão será Governador da Guiné de 1951 a 1953, irão inaugurar um conjunto de empreendimentos encetados pelo seu antecessor, terá preocupações com a área educativa, verá um crescimento da administração, a Guiné está prestes a sair do ciclo da mancarra, coconote e óleo de palma, os anos 1950 assistiram a uma produção impressionante de arroz.

E o arroz poderá dar litígios, como se pode ver no Boletim Oficial n.º 8, de 22 de fevereiro, há um acórdão do conselho do império colonial que envolve duas empresas rivais, a Sociedade Comercial Ultramarina e a Barbosas & Comanditas, apresenta-se nos seguintes termos:
“A Sociedade Comercial Ultramarina interpôs diretamente recurso por despacho do governador da Guiné, de 20 de julho de 1948, que concedeu a Barbosas & Comandita autorização para instalar em Bissau uma fábrica de descasque de arroz, com o fundamento que tal autorização viola a legislação atualmente em vigor, acarretando-lhes prejuízos provenientes de concorrência desregrada.
Na sua resposta diz o governador que a autorização concedida a Barbosas & Comandita já foi considerada caduca, esclarecendo, porém, que o objetivo era o aproveitamento das vantagens de ordem económica que adviriam para a colónia da instalação de mais uma fábrica, tanto mais que, como recente inquérito prova, a capacidade atual das fábricas está longe de satisfazer as necessidades.
Interposto o recurso, o conselho do império colonial conclui que a concorrente carece de legitimidade, não mostra ter sido usada no despacho recorrido.”


Neste mesmo Boletim Oficial n.º 10 o Governador Raimundo Serrão anui ao pedido feito pela firma António Silva Gouveia para instalar no Olossato, área da Circunscrição de Farim, uma indústria mecânica destinada à extração do óleo de palma e à quebra de coconote.

Em 19 de abril, o Boletim Oficial n.º 16, anuncia que se irá proceder à abertura de propostas para a execução de empreitada de terraplanagem, drenagem e pavimentação do aeroporto de Bissau – 1.ª fase.


No Boletim Oficial n.º 20, de 17 de maio, alude-se à Portaria que no ano anterior criou um conselho administrativo para o Colégio-Liceu de Bissau. O Governador determina que o Colégio-Liceu de Bissau funcionará como instituto de ensino particular, subsidiado pelo Estado, pelos corpos administrativos e pelos concelhos e circunscrições da colónia, e será administrado por um conselho administrativo.

Crescendo o funcionalismo, torna-se imperioso ir resolvendo os problemas da habitação, como se pode constatar da Portaria n.º 307, publicada no Boletim Oficial n.º 21, de 25 de maio:
“Acabam de se construir nesta cidade quatro edifícios que se destinam a moradias de funcionários superiores, circunstância esta que permite ao Governo da colónia atribuir a certos servidores do Estado residências privativas, já que tanto não pode fazer em relação a todas as categorias.” E determina que irão ser atribuídas residências privativas aos seguintes funcionários: magistrados judicial e do Ministério Público, Conservador do Registo Predial e Comercial, Chefes de Serviço, Chefe do Gabinete e Ajudante do Governador, podendo o Governador reservar casas para habitação de outros funcionários tendo em consideração os cargos que exerce.


E logo a seguir, na Portaria n.º 308, vai falar-se da lepra:
“Verificando-se ser elevado o número de leprosos existentes em toda a colónia, torna-se urgente e inadiável proceder à sua sequestração em estabelecimento adequado ao fim em vista; Tendo sido escolhido há muito o local designado por Cumura, na ilha de Bissau, para a instalação de uma leprosaria central:
Considerando que não é possível, por enquanto, a construção de um estabelecimento de tão grande projeção, resolveu o Governo, num intento de se iniciar imediatamente uma campanha de combate a esta terrível doença, fazer executar naquele local instalações onde se possam receber alguns doentes e que se denominará ‘Aldeia dos Leprosos’; A Aldeia dos Leprosos será provisoriamente entregue aos serviços de saúde da colónia.”


Em 26 de julho, o Boletim Oficial publica o louvor de António Carreira, nos seguintes termos:
“Pelas suas inigualáveis faculdades de trabalho servidas por uma inteligência viva toda posta ao melhor exercício da sua profissão. Considerado de há muito um ótimo funcionário do quadro administrativo, tem, no entanto, nos últimos dois anos dedicado à sua função nas vastas atribuições que lhe competem, uma enorme soma de trabalho e conhecimentos. Tem neste período feito estudos interessantes e importantes da sua circunscrição, nos seus variados aspectos, dos quais destaco os referentes ao fomento económico. O seu relatório relativo a 1950 é um documento bastante elucidativo e há pontos nele focados com projeção em toda a província. No campo das realizações materiais, construiu nestes dois anos o posto sanitário e a secretaria do posto administrativo de Bula onde acabou a residência do chefe de posto; construiu em Teixeira Pinto uma residência para missionários e duas amplas enfermarias para doentes no centro de saúde; ao presente tem em construção na sede da circunscrição nada menos de quatro bons edifícios: secretaria da administração, estação e residência dos CTT, residência para o secretário e outra para o enfermeiro. Por sua iniciativa montaram-se na sua circunscrição britadeiras para o caroço do coconote e prensas para o óleo de palma, que permitiram no corrente ano um aumento e melhoria da produção local. Tudo isto demonstra que o administrador Carreira é também um homem de ação.”


E na sequência desses louvores deixa-se menção à criação no ano anterior do Aero-Clube da Guiné. E tecem-se louvores a quem de direito.

No Suplemento ao n.º 46, Boletim Oficial n.º 23, de 19 de novembro, temos novos estatutos da Associação Comercial, Industrial e Agrícola da Guiné, esmiúça-se a natureza da organização, a sua sede, os sócios em geral, etc.

Mais adiante, no Suplemento ao n.º 51, Boletim Oficial n.º 26, de 21 de dezembro, publica-se o regulamento do ensino rudimentar e do magistério rudimentar. O ensino rudimentar constitui o primeiro grau do ensino indígena, é ministrado exclusivamente em língua portuguesa, conforme consta do Acordo Missionário. Este ensino será essencialmente nacionalista e dirigido à preparação do indígena para poder vir a auferir meios para o seu sustento e a sua família; ensino exclusivamente reservado às crianças indígenas dos dois sexos, dos 7 aos 15 anos completos, ministrado em estabelecimentos denominados Escolas do Ensino Rudimentar. Explica-se o que se visa com a classe preparatória, logo a aquisição de vocabulário de uso mais corrente, depois pôr os alunos a falar, ler, escrever e calcular em português, e a incutir-lhes hábitos e aptidões de trabalho conducentes ao abandono da ociosidade e à preparação de futuros trabalhadores rurais e dos artífices, também se informa com as autoridades administrativas devem dar às Missões Católicas Portuguesas todo o auxílio por elas solicitado.

O regulamento cuidadosamente elaborado onde se fala dos ensinos, dos alunos, das turmas e horários, da disciplina, do aproveitamento escolar, das escolas (serão localizadas onde as autoridades eclesiásticas por melhor houverem), os livros escolares (cabe a sua aprovação ao Governo da Província, ouvido o Prelado, não podendo conter nada em desmerecimento da Nação e da civilização portuguesa, da sua história e ação colonizadora, do seu Governo e autoridade, da Igreja Católica e sua atuação missionária); estende-se até aos trabalhos agrícolas e agrícola-pecuários e enquadra a preparação do pessoal docente.

Ver-se-á adiante que Raimundo Serrão não se ficou por aqui quanto ao sistema educativo.

Notícia do falecimento do Marechal Carmona
Instalações do aeroporto de Bissalanca, em fase de conclusão das obras, fotografia de Mário Dias, já no nosso blogue
Ponte de Ensalmá, inaugurada no tempo do governador Raimundo Serrão, fotografia de Mário Dias, já no nosso blogue
Fortaleza da Amura, nos tempos da presença portuguesa
Efeitos da guerra civil no INEP, fotografia da Casa Comum/Fundação Mário Soares

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 3 de dezembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27489: Historiografia da presença portuguesa em África (506): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial da Colónia da Guiné Portuguesa, 1950 (64) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

Guiné 61/74 - P27506: Notas de leitura (1872): "Os Descobrimentos no Imaginário Juvenil (1850-1950)"; edição da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses; 2000 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Março de 2025:

Queridos amigos,
Esta digressão sobre o tema Os Descobrimentos no Imaginário Juvenil, entre a Regeneração e a década de 1950, num ensaio de Fernando Costa analisa o papel da História de Portugal e dos Descobrimentos portugueses na ideologia e na conduta das associações e organizações de juventude. Passam-se em revista as organizações de juventude católicas, os escuteiros, as organizações académicas republicanas, a Cruzada Nacional D. Nuno Álvares Pereira, a Ação Escolar de Vanguarda e daqui se partiu para a Mocidade Portuguesa, a organização mais duradoura e que aparece na Guiné no tempo do governador Carvalho Viegas, aqui se mostra uma imagem de um desfile em Mansoa, em 1961, era governador da Guiné Peixoto Correia. O período áureo desta Mocidade Portuguesa coincide com os tempos da guerra civil de Espanha e a Segunda Guerra Mundial, faz-se a saudação romana, comemora-se a Batalha de Aljubarrota e sempre o 1º de Dezembro, na Praça dos Restauradores, local por excelência que servia de recordatória de como tínhamos sacudido o jugo espanhol, e mostra-se como os heróis dos Descobrimentos eram patronos de todos os eventos desta mocidade. E importa não esquecer o papel marcadamente ideológico que teve Marcello Caetano à frente da Mocidade Portuguesa, exaltando todos os valores da Nação Imperial.

Um abraço do
Mário



Não fomos combater na Guiné pela integridade de Portugal de Minho a Timor?
(Uma abordagem dos valores educativos entre o liberalismo e o Estado Novo) – 3


Mário Beja Santos

O
terceiro e último ensaio desta obra dedicada ao entrosamento ideológico d’Os Descobrimentos no Imaginário Juvenil (1850-1950), tem a ver com o trabalho de Fernando Costa quanto ao papel da História de Portugal e dos Descobrimentos na conduta das associações e organizações de juventude. Não se pode atribuir grande significado a estas organizações, no que toca à religião católica, até ao aparecimento do Centro Académico de Democracia Cristã, caber-lhe-á um papel propulsor na promoção do culto de D. Nuno Álvares Pereira. A Ação Católica Portuguesa dividia-se em setores (agrário, escolar, universitário, independente e operário). A sua atividade encontrou pontos de convergência com a Mocidade Portuguesa, a partir de 1936. Os Centenário de 1940 foram considerados pela imprensa juvenil católica como o ponto alto da História de Portugal, reacendeu-se o culto de Nuno Álvares Pereira e escusado é dizer que o advento do Estado Novo estabelecerá uma relação muito próxima entre o nacionalismo e os valores da moral cristã, isto nas organizações de juventude, mas também na escola.


Os escuteiros não ficarão indiferentes ao culto de o Santo Contestável, a figura de Nuno Álvares e da “Ala dos Namorados” irão aparecer associadas às bandeiras das associações de escuteiros. Aparecerão como patronos dos grupos além do Contestável, Gago Coutinho e Sacadura Cabral, Afonso d’Albuquerque, Vasco da Gama; e ler Camões é dado como um imperativo. Indo um pouco atrás, o autor trata as organizações de juventude republicanas e direita radical em Portugal, recorde-se o papel dos centros republicanos, os grupos republicanos de Coimbra; e com o 5 de Outubro o novo regime vai contrapor a República à Igreja, a Pátria a Deus e o patriotismo ao cristianismo. “A Pátria assume as características de uma mulher forte, decidida e lutadora, mas ao mesmo tempo consensual, capaz de aglutinar no seu seio a humanidade, a família e o indivíduo.” Nos bancos escolares dá-se grande importância aos grandes feitos da História de Portugal e emergem figuras de referência: Afonso Henriques, Nuno Álvares Pereira, D. João I, o Marquês de Pombal, Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco, entre outros.

Em julho de 1918, em pleno consulado de Sidónio Pais, é fundada a Cruzada Nacional D. Nuno Álvares Pereira: “acordar as energias dos portugueses, radicando neles, o amor da sua terra e o culto dos seus heróis, pugnar pela formação de caráter, reconstituir a família, base de toda a sociedade organizada, nacionalizar o espírito científico, preconizar a disciplina social, a ordem nas ruas, nos espíritos, na casa…” A Cruzada irá diluir-se com a ascensão do salazarismo e da sua União Nacional. Quando se está a dar o apagamento ideológico da Cruzada, surge a Ação Escolar de Vanguarda, constituído por estudantes nacionalistas das Universidades de Lisboa e Coimbra. Salazar não apreciou o seu radicalismo, este grupo desaparecerá com a constituição da Mocidade Portuguesa, em 1937 assiste-se à unificação do associativismo juvenil nacionalista, há aproximações inequívocas com as juventudes franquista, fascista italiana e até nazi.

A Mocidade Portuguesa rege-se pelos grandes princípios do Portugal Salazarista: a escola, a família, Deus e a Pátria, pretende-se a recuperação das virtudes do Portugal de outrora; busca-se a formação integral do jovem, a escola passa a ser a “sagrada oficina de almas”; haverá fricções graves entre os condutores da Mocidade Portuguesa e a Igreja Católica, o Cardeal Cerejeira não quer que se ocupe o lugar que cabe à igreja na formação do indivíduo, teme o que se estava a passar em Itália e na Alemanha. Os ideais desta juventude da Mocidade Portuguesa prendem-se com os grandes princípios do nacionalismo: D. João I e Nuno Álvares Pereira, a salvaguarda da independência portuguesa face à ameaça castelhana, os heróis do patriotismo passam a ser patronos dos cursos anuais da Escola Central de Graduados da Mocidade Portuguesa.

E voltam a entrar em cenas os heróis dos Descobrimentos, logo o Infante D. Henrique, regressa-se à mítica escola de Sagres, aos conhecimentos geográficos, às descobertas da botânica e da zoologia; é a gesta dos Descobrimentos, não são esquecidos os navegadores Bartolomeu Dias, Vasco da Gama, Diogo Cão e Pedro Álvares Cabral.

Importa recordar que Marcello Caetano foi comissário da Mocidade Portuguesa, e recordou aos graduados as responsabilidades de Portugal como nação imperial, como disse em 1944: “A independência portuguesa permitiu que a Nação prestasse à Humanidade serviços tão grandiosos que a Eternidade os registará. E essa missão não acabou: oito colónias formam o Império de Portugal, onde à sombra da nossa bandeira se prossegue a obra tradicional de desbravamento e civilização. Destino magnífico, o destino português! Somos criadores e educares de povos!”

Coube indiscutivelmente à Mocidade Portuguesa um papel formativo, comprovado em livros, canções nacionalistas e teatro radiofónico, basta atender à lista dos livros recomendados para as bibliotecas, estão presentes autores como João Ameal, Henrique Galvão ou Manuel Múrias. Quando lemos o cancioneiro para a Mocidade vemos como se exaltava o Portugal marinheiro, como Portugal tinha vencido antigos medos, como de Sagres e do Restelo partiam caravelas levando a Cruz de Cristo: “Diu e Malaca, Azamor, Marracuene/ São, para nós, a garantia solene/ Que Portugal, uno e valente,/ Viverá eternamente!”

E temos os compêndios escolares, Maria Cândida Proença deles falou abundantemente.

O autor conclui observando que o projeto da Mocidade Portuguesa estiolou por ter ficado datado no tempo. A Mocidade nasce com a inquietação do que se passa em Espanha e com o advento do comunismo. “O fim da guerra em Espanha, a vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial e o consequente advento dos Estados Democráticos na Europa Ocidental esvaziaram ideologicamente este projeto que, para ser implementado na prática, necessitava de um longo período de gestação educacional e geracional. Provavelmente, só numa segunda ou terceira gerações é que começaria a poder avaliar os resultados da sua implementação. Isto não invalida o facto da organização nacional Mocidade Portuguesa ter constituído a primeira e única tentativa de integração global da juventude portuguesa numa grande organização patriótica, ao serviço do regime de Salazar.”
Barreiro, festival organizado pela Juventude Operária Católica, no âmbito das comemorações do Dia Internacional da Juventude Operária Católica, 1965, RTP Arquivos
O Presidente Carmona recebe a Cruzada Nun’Álvares, Marcello Caetano é o primeiro à esquerda
O Movimento Escutista chegou a Portugal 1923
Desfile da Mocidade Portuguesa, em Mansoa, 1961, RTP Arquivos
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Notas do editor:

Post anterior de 1 de dezembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27483: Notas de leitura (1870): "Os Descobrimentos no Imaginário Juvenil (1850-1950)"; edição da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses; 2000 (2) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 5 de dezembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27498: Notas de leitura (1871): Uma publicação guineense de consulta obrigatória: O Boletim da Associação Comercial, Industrial e Agrícola da Guiné (3) (Mário Beja Santos)

sábado, 6 de dezembro de 2025

Guiné 61/74 - P27500: Os nossos seres, saberes e lazeres (712): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (233): Por casualidade, o fotógrafo interessou-se por tal momento, por ele considerado esplendente - 5 (Mário Beja Santos)

Mário Beja Santos, ex-Alf Mil Inf
CMDT Pel Caç Nat 52

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Outubro de 2025:

Queridos amigos,
Verdade verdadinha, andei com amigos alemães a matar-lhes saudades de Lisboa, não vinham cá há dez anos. Foi a seu pedido que fui mostrar o novo Museu Nacional dos Coches, lembravam-se do picadeiro, implantado no Palácio de Belém, estavam cheios de curiosidade por ver todas aquelas viaturas em espaço mais desafogado. Foi essa a viagem que fizemos, achei por bem reter uma série de imagens de peças de altíssimo valor no nosso Património Cultural.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (233):
Por casualidade, o fotógrafo interessou-se por tal momento, por ele considerado esplendente – 5


Mário Beja Santos

Prossegue a viagem, recebi a visita de queridos amigos alemães, não visitavam Portugal há dez anos, resolvi mostrar-lhes o perene e o que está em mudança. Por exemplo, numa viagem anterior, levara-os às instalações do antigo Museu Nacional dos Coches, sito no antigo picadeiro de Rainha D. Amélia, agora foram visitar as novas instalações, bem espaçosas. Sabendo do seu fervor pelos jardins, levei-os em primeiro lugar aos jardins do Torel, não conheciam esta panorâmica, conheciam o jardim em frente, o de São Pedro de Alcântara, que também visitaram, agora magnificamente recuperado e conservado. Na travessa da Cruz do Torel, já perto do jardim, encontrei esta lápide da casa em que nasceu e morreu Venceslau de Morais (1854-1929) marinheiro, diplomata e torrencial escritor, porventura o escritor português que mais amou Japão, houve o cuidado de pôr nesta lápide tudo escrito nos dois idiomas. Pena é que a inscrição não esteja devidamente conservada.
Lápide à memória de Venceslau de Morais, na Travessa da Cruz do Torel, pertinho do jardim com o mesmo nome
A remexer nas fotografias da nossa visita aos jardins de Monserrate encontrei esta que fora injustamente esquecida, a flor chama-se cosmos, tem uma coloração intensa, sobressaía naquela paisagem quase outonal, dominada pela natureza verde que só irá despontar na primavera.
Já estamos no Museu Nacional dos Coches. Como se impunha, começámos por este coche raríssimo, o mais antigo da coleção do Museu. Integrou a comitiva régia de Filipe III de Espanha e II de Portugal, na viagem entre Madrid e Lisboa em 1619. A sua arca, na parte da frente, servia para guardar utensílios de viagem. É um trabalho espanhol.
Este coche é um exemplar raro da “Carrosse Moderne” - caixa fechada com oito janelas. Pertenceu à Rainha D. Maria Francisca de Sabóia-Nemours, prima de Luís XIV. Foi trazido para Portugal no dote do seu casamento com D. Afonso VI, em 1666. Nas portas, duas figuras femininas ladeiam um medalhão com o monograma da rainha.
Este coche foi mandado construir em 1708 pelo Imperador José I de Áustria para o casamento da sua irmã, Maria Ana com o Rei de Portugal, D. João V. A caixa é revestida a talha dourada e decorada com leões coroados, monogramas da rainha e um escudo com as armas de Portugal. Os doze raios das rodas têm formas de cetros. É um trabalho holandês.
Este coche foi mandado construir por D. João V, a caixa anuncia o estilo rococó. A decoração apresenta bustos, em madeira de bronze cinzelado. Nas rodas traseiras estão representados os doze signos do Zodíaco. É trabalho português.
Este coche tem como tema a ligação dos Oceanos e representa um importante episódio da história marítima de Portugal. A composição escultórica do alçado traseiro apresenta, ao centro, Apolo que canta os feitos dos portugueses e está ladeado por duas figuras femininas, a Primavera com flores e o Verão com espigas. Em frente ao globo terrestre, dois velhos, o Oceano Atlântico e o Oceano Indico dão um aperto de mão simbolizando a passagem do Cabo da Boa Esperança. Trabalho italiano.
A 8 de julho de 1716 realizou-se em Roma o cortejo da Embaixada enviada por D. João V ao Papa Clemente XI. Os exemplares únicos de carros triunfais foram idealizados pelo Embaixador de Portugal, Marquês de Fontes. Destacam-se pelas dimensões, pelo modelo de caixa aberta “à romana” e são revestidos de ricos tecidos bordados a ouro e prata. Na sequência desta cerimónia Portugal obteve o estatuto de Patriarcal para a Capela Real. Em 1718, a pedido do Rei, estas viaturas foram enviadas por mar até Lisboa.
Este coche pertenceu a D. José I e é considerado um dos melhores exemplares do barroco português – estilo artístico que se caracteriza pela decoração com excesso de detalhes. A talha, apresenta grinaldas de flores e frutos e cabeças de índio, simbolizando os primeiros contactos com o Brasil. No alçado traseiro destaca-se uma águia imperial, representando o poder absoluto do Rei. É trabalho português.
Os carrinhos de passeio em estilo italiano, decorados com motivos vegetalistas sobre fundo dourado, foram encomendados pela Rainha D. Maria I. a família real utilizava-os para passear nas quintas e nos jardins dos palácios. Eram viaturas de dois lugares, com duas ou quatro rodas, conduzidas pelo próprio ocupante ou por um boleeiro. A caixa aberta tem na parte dianteira um painel de couro que serve de porta e o acesso é feito por estribos suspensos. Na parte traseira tem um banco para o pajem. Há quem lhe dê o nome de cabriolé.
Liteira à francesa
Pormenor de Liteira à romana. São viaturas sem rodas, utilizadas na Europa desde o tempo dos romanos até ao século XIX. Eram veículos de caixa aberta ou fechada, com dois lugares frente a frente, carregados por duas mulas ou cavalos que se atrelavam aos varais fixos nas ilhargas laterais. Por serem fáceis de manobrar, permitiam deslocações cómodas e rápidas nas ruas estreitas da cidade e em caminhos de difícil acesso.
Landau de D. Pedro V, modelo de viatura que teve origem na cidade de Landau, na Alemanha. A caixa, com acesso por estribo desdobrável tem duas capotas de couro rebatíveis, o que permite que a viatura possa ser utilizada aberta ou fechada. Na decoração destaca-se o brasão de armas do Rei D. Pedro V ladeado por manto de arminho e encimado por coroa real. Trabalho inglês.

Na viagem de regresso procurei satisfazer a curiosidade destes meus amigos alemães que pretendiam esclarecimento de como é que Portugal possuía esta tão impressionante coleção de coches. De forma muito simplificada, expliquei-lhes que tínhamos o clima a nosso favor, tivemos muito menos guerras do que os outros povos europeus, estas viaturas não eram implicadas em conflitos e quando perderam o uso não foram destruídas. E contei-lhes uma história aparentada sobre os nossos instrumentos científicos da Universidade de Coimbra, todas as universidades europeias já os tinham deitado fora, nós guardá-mo-los, deram brado na Europália portuguesa de 1991, vieram excursões de toda a parte para ver tais instrumentos científicos que só eram conhecidos por gravuras e desenhos. É assim a vida. Que o leitor se prepare, um dia destes vou-me pôr ao caminho e fazer três cidades de Andaluzia, rever Sevilha, Granada e Córdova. É claro que darei notícia de tudo quanto vi e senti.

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 29 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27476: Os nossos seres, saberes e lazeres (711): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (232): Por casualidade, o fotógrafo interessou-se por tal momento, por ele considerado esplendente - 4 (Mário Beja Santos)