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sábado, 20 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27234: Os nossos seres, saberes e lazeres (701): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (222): Primeiro a Lousã, segue-se São Pedro do Sul - 1 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Agosto de 2025:

Queridos amigos,
Uma semana de férias em julho, ainda com temperaturas amenas, o grupo chegou a acordo de que se voltava a Lousã, região muito amada, ali se passaram férias quase no fim do século, casa alugada a um casal que já partiu para as estrelinhas, gente afetuosa, Dona Deolinda com largo pendor para a arte dos bordados, não resisti a comprar lençóis; as estradas ao tempo eram excelentes para danificar os carros, a patinar na lama e na gravilha, tanto na subida para os ermos como na descida para o vale. O centro histórico da Lousã conhece melhorias, é impressionante a quantidade de pedras de armas, teve aristocracia e fábrica de papel há mais de 300 anos. O grupo visitou religiosamente A Túlipa Negra, quando chegávamos das aldeias era aqui que se fazia o fornecimento de pão e confeitaria, com todo o respeito aqui se bebeu e comeu. Passei pelo cinema, está todo aprumado por restauro recente, veio-me à memória que em grupo viemos ver o filme O Alfaiate do Panamá, baseado num romance de John Le Carré, com interpretações sugestivas de Pierce Brosnan e Geoffrey Rush. Há mudanças apreciáveis em Talasnal. Quando se arrumou o carro à entrada da aldeia, vi alguém com um saco às costas a entrar numa casa, e lembrei-me de um episódio de ver, no final do ano de 1995, entrar naquela casa um rapaz gadelhudo com quem depois fui conversar, tinha comprado a pequena casa com as suas economias, ia agora fazer obras. Fiquei a observar a casa, o senhor saiu e veio até um bar, com uma bela esplanada. Entrei e pedi uma imperial, quem me serviu foi o dito senhor a quem contei a história do tal miúdo gadelhudo, este senhor sorriu e disse-me que o miúdo gadelhudo era ele, sem tirar nem pôr, afeiçoara-se a Talasnal, comprara inclusivamente outras casas, inevitavelmente falámos de pessoas do tempo, caso do Jorge que também tinha um bar, e do Fabrice e da Maria do Céu, um bizarro e inesquecível casal alternativo. Assim se mataram saudades. Preferi não tirar imagens a Catarredor, continua muito degradada, estava impaciente por chegar ao miradouro e ver desde o Castelo até às aldeias, tive sorte com a hora dourada. Amanhã vou mostrar-vos o Casal da Lagartixa e falar-vos da relação de Carlos Reis com a Lousã. Ala morena, que se faz tarde, vamos depois a caminho de São Pedro do Sul.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (222):
Primeiro a Lousã, segue-se São Pedro do Sul - 1


Mário Beja Santos

Aí pelo início dos anos 1990, adquiri um livro intitulado Terra que já foi Terra, uma dissertação de mestrado, o autor, Paulo Monteiro, estudava o habitat populacional das aldeias serranas da Lousã, uma vida duríssima lá naqueles pontos ermos, viver em casas de xisto, com poucos meios de subsistência, vendia-se carvão na vila, população bisonha, arredada da civilização, vivendo em lugares como Casal Novo, Talasnal, Catarredor, Chiqueiro, Vaqueirinho, isto lá nos ermos, cá em baixo outras, como Cerdeira e Candal. Paulo Monteiro analisara a correspondência de um casal, ela numa aldeia serrana, ele emigrante nos Estados Unidos, relato impressionante. A míngua levou toda aquela gente a fugir, o último habitante das aldeias serranas suicidou-se no dia 25 de abril de 1974, nesse dia chegava a eletricidade à serra, se é uma curiosidade, é uma curiosidade mórbida.
Pelos finais do ano 1995, fui passear até à Lousã, vi a referência às aldeias serranas, passei por um lugar chamado Cacilhas, começou uma subida a resvalar na gravilha, a fugir dos buracos, num extenso serpenteio que permitia admirar o esplendor do arvoredo. Ainda hoje me pergunto como se chegou a Casal Novo, então fiquei boquiaberto, havia muitas casas de xisto reconstruídas, saberei mais tarde que pelos anos 1980 gente de Coimbra e arredores se rendeu às belezas paisagísticas e montou aqui casa secundária. Volto trinta anos depois, as diferenças são muitas, a estrada está alcatroada, Casal Novo parece intocável, o Talasnal floresce, é sem dúvida a aldeia que mais deslumbra, descemos para Catarredor, parece haver projetos imobiliários tentadores, mas por enquanto reina a mais pura das decadências. É este o primeiro quadro de referência de uma viagem em que fomos de Lisboa à Lousã, daqui a São Pedro do Sul, depois o sul da Galiza (região de Ourense), descida por Chaves e permanência em Pedrógão Grande.

Um pormenor de Casal Novo em 1997, aluguei duas casinhas, aqui juntei mais de uma dúzia de amigos
Cheio de emoção, aqui estou em Casal Novo, há modificações, mas mantém-se o respeito pelas construções que vêm do tempo da vida áspera das gentes do agropastoril, escusado é dizer que as comodidades impressionam, o forno, a casa dos cereais, o chiqueiro e galinheiro desapareceram
Talasnal vista da estrada que vem de Casal Novo
Outros pormenores de Talasnal
Esta paragem era inevitável. Não me recordo se em 1996, se em 1997, a Casa das Alminhas, era por esta designação conhecida, estava à venda por uma ucharia, houve debate se se comprava ou não, a lucidez veio à tona de água, na época aqui se chegara vindo de Lisboa eram mais de três horas, havia que contar com as estradas em estado deplorável, fim-de-semana curto, assim se desistiu do projeto. Verifiquei com agrado que quem adquiriu esta bela casa com uma vista espetacular sobre o vale da Lousã, a adornou com cuidado extremo, que seja muito feliz, o lugar tem o seu quê de misticismo, então quando a bruma toma conta de todo aquele coberto vegetal. Sim, José Saramago, tens toda a razão, a viagem nunca acaba, só os viajantes é que acabam.
Regressa-se à Lousã, vindo de Catarredol e Candal, não há miradouro como este para avistar o Castelo da Lousã, mesmo que só a sua torre de menagem e a vegetação, na chamada hora dourada, que precede o lusco-fusco. Trouxera comigo a Miscelânea de Miguel Leitão de Andrade, nascido em Pedrógão em 1555 e falecido em Lisboa em 1630, comandante da Ordem de Cristo, ainda hoje obra de referência para conhecer estas regiões ao tempo. Escreve ele:
“Está situada a vila da Lousã no distrito e a vinte quilómetros SE de Coimbra, em formosíssimo vale de cinco quilómetros de largura sobre oito ou dez de extensão, e rodeada pela serra que tem o mesmo nome, e é um dos mais admiráveis ramos da gigantesca cordilheira da Estrela.
A vila de Lousã, sob o nome da Arouce, data de tempos imemoriais, porque se esta povoação existiu em volta do Castelo, mas vizinha das abas da serra, como parecem indicar os vestígios de antigas edificações da montanha onde assenta o dito Castelo, não há documento algum pelo qual se possa determinar a data precisa do seu estabelecimento. Todavia, a situação da fortaleza em uma espécie de promontório cercado de fragas e penedias, na raiz, das quais serpenteia caprichosamente o rio Arouce, que vem do alto da serra, e que devia por força estar apartada de qualquer lugar importante.”

Voltaremos à história lendária quando se for visitar o belo quadro de Carlos Reis na Câmara Municipal da Lousã, sugiro ao leitor que quando visitar a Lousã venha até aqui, conhecer esta obra de D. Sesnando Davides, alguém que foi da confiança do rei da Taifa de Sevilha, no século XI, e que, por razões não esclarecidas, se pôs ao serviço do rei Fernando Magno, que lhe entregou o governo de Coimbra. Ponto curioso desta construção é verificar-se que o dito Castelo deve ter tido a função de ponto de atalaia, é notória a influência muçulmana na sua construção, e dispõe de alambor, tal como o Castelo de Tomar. É hoje monumento nacional, há quem critique as discutíveis soluções para o seu restauro, que ocorreu entre os anos 1920 e 1960.

Chegámos à vila da Lousã em hora de amesendar, perguntou-se a um passante onde se podia comer uma boa chanfana, o passante sugeriu a Churrasqueira Borges, foi chegar, ver e vencer, um indiscutível ambiente familiar, conversa para lá, conversa para cá, nisto o olhar ficou preso a uma estranha fotografia pendurada no alto de uma parede, e foi explicado que se tratava da árvore genealógica deste empreendimento churrasqueiro. Autorizada a foto, ela aqui fica. Ainda se dá um passeio pelo centro histórico, todos alegam ter o corpo moído, vamos à deita, a manhã será dedicada à Lousã, com viagem até São Pedro do Sul.
Carlos Reis passou temporadas largas na casa que mandou fazer em Lousã, e que iremos visitar, ter-se-á rendido à lenda do rei Arunce e da princesa Peralta, tempos remotos, rei riquíssimo com uma formosíssima princesa sua filha, veio um poderoso conde, cobiçoso, que produziu estragos colossais na metrópole daquele reino, o rei e a sua filha única, bem como a corte, esconderam-se num Castelo edificado no coração de umas serras, havia uma ribeira muito fresca a quem o rei pôs o nome de ribeira de Arunce, no Castelo ficou a filha e os tesouros, o rei fez encantar o dito Castelo, claro que tinha que aparecer alguém tentado pela mão da princesa, seria Sertório, consta na fábula que não deu pelo Castelo encantado, o que interessa é que ele fi conquistado por D. Afonso Henriques e Miguel Leitão de Andrade refere-o na sua Miscelânea, bem como as ermidas envolventes, destaca-se a Nossa Senhora da Piedade, por quem os lousanenses têm a maior devoção e veneração.

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 13 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27215: Os nossos seres, saberes e lazeres (700): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (221): Um jardim Zen no Planalto das Cezaredas - 2 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27231: Notas de leitura (1839): A Festa do Outono de 1956 no Campo Grande, eu estive lá (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Setembro de 2025:

Queridos amigos,
Começa-se a remexer numa banca de livros e entre um romance de Pearl Buck e um catálogo de uma exposição de Bela Silva encontrei uma publicação sobre a Festa do Outono no Campo Grande, em outubro de 1956. Era uma organização da União do Grémio dos Lojistas de Lisboa e o Governo Civil, iniciativa de beneficência para os pobres de Lisboa. Comecei por folhear a publicidade da época, a pasta dentífrica Binaca, os eletrodomésticos Westinghouse, a Agência Mundial de Viagens, a Aguardente Macieira, a Farinha Fubá, a Casa Hipólito, o Gazcidla, a Sapataria Hélio... e muito mais. Já tinha esquecido a Casa Leonel, na Rua do Carmo 71, uma loja chiquérrima, com cristais importados, lustres, faqueiros, entrava para mirar. Mas o que me tocou nestas Festas do Outono foi recordar o Campo Grande da minha infância e juventude e a batalha de flores a que assisti, a 28 de outubro. Um Campo Grande com farta história, por ali se passearam exércitos, passaram manadas de touros e gado destinado ao matadouro; terá sido o espaço da mais opulenta feira de Lisboa do século XIX. Matei saudades e lembrei-me daquele Campo Grande florido que atravessei todos os dias úteis no período escolar, quando estudei no Colégio Moderno. Muito mais tarde apareceu a Biblioteca Nacional, onde beneficiei de leituras e continuo a beneficiar de exposições. Felizmente ainda tenho pernas para o percorrer em duas direções e, não é incomum, meter o nariz no Museu Rafael Bordalo Pinheiro ou no Museu da Cidade.

Abraço do
Mário



A Festa do Outono de 1956 no Campo Grande, eu estive lá

Mário Beja Santos

Dia de sorte na Feira da Ladra, encontro uma publicação com a programação das Festas do Outono promovida pelo Governo Civil de Lisboa e a União de Grémios de Lojistas da Cidade, ocasião para lembrar aos munícipes que o Campo Grande tinha arreigadas tradições, a Festa do Cavalo, por aqui se passeou o exército que D. Sebastião levou para a tragédia de Alcácer Quibir, igualmente por aqui cavalgou a Rainha D. Amélia, depois aqui se prantou enorme jardim arborizado e florido, aqui houve feira e mercado que fez história, vale a pena recordar.

No final do século XV, o Campo Grande e o Campo Pequeno denominavam-se, respetivamente, Alvalade-o-Grande ou Alvalade-o-Longo, e Alvalade-o-Pequeno. De um Campo Grande inculto criou-se um passeio público no princípio do século XIX, no tempo do Príncipe Regente D. João, futuro D. João VI. Plantou-se arvoredo em 1802 e 1803, abriu-se uma casa de pasto no fim do novo passeio. Quem adiantou dinheiro para o ajardinamento e plantações foi o 1º Barão de Porto Covo de Bandeira, aquele mesmo senhor que montou palacete na Rua de S. Domingos à Lapa, onde este a Embaixada da Grã-Bretanha e está hoje a Companhia de Seguros Lusitânia. Assim começou a vida turbulenta do passeio público por onde andaram tropas francesas e o exército inglês. E apareceu a Feira com as suas rixas e desordens, barraqueiros que vendiam comida em dias de jejum. Em 1830, o Campo Grande possuía terras de semeadura, fazendo-se uma eira defronte do Palácio Pimenta, onde está hoje o Museu da Cidade. Em meados do século por aqui se efetuavam corridas de cavalos e em 1869 principiaram os trabalhos de embelezamento com as escavações do grande lago.

A atual igreja construída com a receita da venda de bilhetes da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e com o produto de uma feira livre no Campo Grande, autorizada por um alvará de 1778.

O sítio era a redondeza de Lisboa, tornou-se agradável andar por aqui aos domingos e dias santificados, vinha-se para passear às “hortas”. Os alfacinhas vinham ver as esperas de touros, apareceram as casas de petiscos e os chamados “retiros”, de que resta o “Quebra-bilhas”. O Campo Grande estava rodeado de muros baixos e as famílias que para ali iam veranear juntavam-se regularmente no jardim. Não faltava o fado nas casas de comes e bebes. Foi assim que apareceu a feira, tinha lugar em outubro de cada ano, chegou a prolongar-se até dois meses. Efetuava-se perto da Igreja dos Santos Reis Magos e do chafariz. Uma feira com uma certa opulência: transações em ourivesaria e relojoaria; aqui se podiam comprar linhos, algodões, louça de ferro, ferramentas, cutelarias. A par de tudo isto, encontravam-se os negociantes de castanhas, passas, nozes e frutas verdes, não faltavam galináceos nem queijaria. Completavam a feira as barracas de quinquilharias, figuras de cera, vendedores ambulantes de bolos, pão de milho, capilé e copo com água. Não havia circo, mas havia ursos que faziam habilidades ao toque do pandeiro e as ciganas liam a sina. Quando, em 1932, se transferiu a feira para o Lumiar, morreu o movimento, a transferência foi um golpe de misericórdia. Claro está que ganharam outra dimensão feiras existentes em Lisboa.

Cheguei ao Bairro de Alvalade em 8 de maio de 1952, vinha de Algés e frequentava a primeira classe no Colégio Portugal, no fim da Avenida das Descobertas, perto daquela enorme rotunda onde pontificava uma praça de touros, cercada de ervas daninhas. Nunca tinha visto uma fila de prédios, com uma rua alcatroada à frente, e esta encostada a uma quinta com muros antiquíssimos, a quinta do Visconde de Alvalade, enorme, vinha lá muito de cima, onde está hoje a Avenida dos EUA e estendia-se até ao monumento dedicado aos heróis da Guerra Peninsular, um extenso olival já muito mal tratado, onde anos depois se levantaram prédios de cor verde, havia barracões que confinavam com a moradia onde funcionava a esquadra da polícia do Campo Grande, foi tudo demolido para dar lugar à Clínica de S. João de Deus.

Frequentei a Escola Primária n.º 151, ela ainda lá está de pé, toda retocada, o principal lazer da pequenada era brincar nos logradouros ou percorrer a estruturas ainda em cimento dos prédios da Avenida dos EUA, que foram sendo construídos até à estação da CP Roma-Areeiro. Passeios no Campo Grande só na companhia da minha mãe ou da minha avó ou com os meus irmãos; ou nas idas à catequese na Igreja dos Santos Reis Magos.

Tenho, pois, onze anos quando vamos em magote, pequenada e pais, ao fundo do Campo Grande ouvir as bandas de música, os cortejos e no derradeiro dia da festa, a 28 de outubro, ver a “Batalha das Flores”. O Campo Grande tinha belos jardins, dois lagos, como hoje, foi aparecendo estatuária, havia o ringue de patinagem, apareceu um café junto do lago maior, onde há barcos, o café tinha uma bela peça de cerâmica assinada por Júlio Pomar, junto do lago pequeno apareceu mais tarde uma biblioteca ao ar livre, o jardim era muito mais amplo do que hoje, do lado esquerdo de quem desce em direção ao Museu da Cidade havia muita habitação e até uma fábrica de massas, a continuidade de edifícios era interrompida por um vasto campo onde está hoje a Biblioteca Nacional de Portugal, novamente mais prédios, depois a Estrada de Malpique, tendo já ao fundo o Colégio Moderno, depois um largo caminho, ainda não tinha nascido a Cidade Universitária, mais moradias, a Fábrica Nally, que produzia cosméticos, ia-se por ali fora passando por moradias até ao Palácio Pimenta. No fundo do Campo Grande, surgia uma soberba alameda com palmeiras, espaço de grandes passeios.

Mantive (e ainda mantenho) uma excelente relação com o Campo Grande. Muitos dos meus passeios pedestres orientam-se para ali. O jardim mingou, estreitou, em benefício do rei automóvel. O jardim são manchas de verde, compactas, com muitas patas de cavalo e arborização que deve custar pouco em termos de jardinagem. O Caleidoscópio, que tinha uma bela livraria, perto do lago do Campo Grande, deu lugar a um espaço de estudo e uma loja McDonald’s; a Avenida das Palmeiras continua de pé e sente-se a muita animação da gente que vem jogar ténis e padel; por razões de pudor, fujo de olhar para o ringue de patinagem, tal é a carga de saudades dos tempos festivos que ali passei. E sempre que posso visito quer o Museu Rafael Bordalo Pinheiro ou o Museu da Cidade, dois espaços culturais magnificentes. Mas nunca mais houve a Feira do Outono e o jardim não tem coreto de música. Soube-me muito bem recordar aquele dia de outubro de 1956, que aqui partilho convosco.

Lisboa de antigamente, o Campo Grande em frente à Igreja dos Santos Reis Magos, senhoras de chapéu, criada a tomar conta da menina, meninos embarretados e descalços, fachadas de prédios do início do século XX, ao fundo, o chafariz era presença obrigatória
Quando a feira do Campo Grande era a mais importante de Lisboa
Um jardim do Campo Grande em que o elétrico era o transporte rei
Era assim a primitiva ponte sobre o lago do Campo Grande
A igreja dos Santos Reis Magos, à esquerda ainda com muro, à direita com um conjunto de anexos que depois desapareceram; só conheci a igreja sem muro e sem anexos
O bairro onde vivi de 1952 a 1968 e de 1982 a 1994. A grande superfície ajardinada desapareceu, na rotunda está a estátua de S. António, toda a praça tem edifícios, lá ao fundo nasceu o centro comercial de Alvalade e encostado àquele prédio da Avenida de Roma nasceu outro prédio onde está hoje a ADSE. Vê-se ao fundo no ponto alto a torre do relógio da Escola Primária, a n.º 33, a minha escola era a nº 151, a uma escassa distância de centenas de metros
Lembro-me perfeitamente deste Campo Grande da década de 1950, tinha a faixa para autocarros e automóveis e nas margens a linha do elétrico. Vemos dois prédios do fim da Avenida da Igreja, a nova arborização a ladear a faixa rodoviária e aquele prédio de 1.º andar tinha sido ocupado por operários que trabalhavam na fábrica onde hoje se localiza a Universidade Lusófona, desapareceu há poucos anos, deu lugar a mais um hotel
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Nota do editor

Último post da série de 15 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27221: Notas de leitura (1838): "Uma Outra Perspectiva", por Rui Sérgio; 5livros.pt, 2023 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27226: Historiografia da presença portuguesa em África (497): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial da Colónia da Guiné Portuguesa, 1941 (53) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Abril de 2025:

Queridos amigos,
1941 é o ano da chegada do Capitão Ricardo Vaz Monteiro e no final do ano dá-se a visita do Ministro das Colónias, Francisco Vieira Machado. Folheados todos os números destes boletins de 1941 há um indisfarçável e discreto silêncio sobre as dificuldades em que se vive na colónia, já se referiu que há legislação do Governo Central, foram tomadas medidas impeditivas ou dissuasoras de andar a vender alimentos a todo e qualquer país. Se acaso o leitor se recorda do que aqui se escreveu nos relatórios do chefe da delegação do BNU da Guiné por esta época, as dificuldades foram múltiplas, indiferentes a quem fazia guerra (a África Ocidental Francesa ficou até muito tarde na órbita do Governo de Vichy, e seguramente Salazar dera ordens para não haver qualquer tipo de afrontamento), contrabandeava-se de um lado para o outro; O que julgo mais interessante nesta documentação é o processo disciplinar ao engenheiro Afonso Castilho, tão sinuoso e prestável a tão diversas inspeções que até me parece que há clamorosas semelhanças com as práticas da justiça no nosso tempo. É por isso que peço ao leitor que leia com a devida atenção as acusações, as respostas e a sentença.

Um abraço do
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Oficial da Colónia da Guiné, 1941 (53)


Mário Beja Santos

O ano vê partir o Governador Carvalho Viegas, fica como encarregado do Governo Armando Augusto de Gonçalves Morais e Castro e, logo no Boletim Oficial n.º 8, de 24 de fevereiro é criado o Parque Dr. Vieira Machado, no mesmo Boletim Oficial cria-se a Biblioteca Pública da Guiné, estipula-se que todas as publicações de caráter oficial irão dar entrada nesta biblioteca, bem como todos os documentos manuscritos de peculiar interesse político, histórico, topográfico, militar, missionário, etnográfico, náutico, administrativo, económico, existentes nos arquivos oficiais da colónia.

Mas é bem interessante, até porque se trata de uma novidade referir este Parque Dr. Vieira Machado, o assunto é apresentado no suplemento n.º 10 ao Boletim Oficial n.º 6, em que 15 de março:
”Há, na Colónia, espécies zoológicas e até botânicas cuja conservação e propagação muito interessam, sob o ponto de vista comercial, científico e turístico. Ao governo da Colónia cumpre defendê-las e evitar a sua extinção.
Sendo a Guiné zona essencialmente agrícola, costumado o indígena a incendiar, por comodidade própria, o capim; estando habituado a mudar-se frequentemente e, sobretudo, sendo-lhe necessário alargar, de ano para ano, a zona de cultivo, mercê da pobreza de terreno, sucede vir desaparecer as florestas e, com elas, espécies de flora e fauna que interessam à riqueza da colónia;
É criado o Parque Dr. Vieira Machado na área da circunscrição civil de Buba, que fica sobre a superintendência da Repartição Técnica dos Serviços Agrícolas, Florestais e Pecuários. A área do parque é de 16.700 hectares.
É expressamente proibida qualquer atividade humana dentro do parque, o traçado de estradas, cortes de árvores ou arbustos, caça, pesca e construção de habitações, mesmo de carater provisório, exceto os destinados à guarda do parque.”


No suplemento ao n.º 24, do Boletim Oficial n.º 12, de 21 de junho, vemos publicada a relação dos 40 maiores contribuintes das áreas fiscais dos concelhos de Bolama e Bissau. O destaque vai para António Silva Gouveia, Lda, Sociedade Comercial Ultramarina, Comapnhia Agrícola e Fabril da Guiné, Societé Commerciale de l’Ouest Africaine, Banco Nacional Ultramarino, Nouvelle Societé Commerciale Africaine, Compagnie Française de l’Afrique Occsidentale. Mas também encontraremos António Gomes Brandão e Manuel Pinho Brandão, a Sociedade Agrícola do Gambiel e a Sociedade Arrozeira da Guiné.

Voltamos agora aos processos disciplinares, este tem muito que se diga. Consta do suplemente ao n.º 37 do Boletim Oficial n.º 20, de 15 de setembro. Prende-se com o acórdão referido no processo disciplinar mandado instaurar ao chefe da Repartição Técnica dos Serviços de Obras Públicas, Agrimensura e Cadastro, da Colónia da Guiné, engenheiro Afonso de Castilho.
O Governador Carvalho Viegas enviara ao ministro das Colónias, em março de 1939, um ofício confidencial a que juntara documentos e cópias que lhe foram remetidas não se sabe por quem, nem quando nem de onde, neles se faziam graves acusações ao diretor das Obras Públicas. O ministro mandou instaurar um processo e suspendeu imediatamente do exercício das suas funções o dito senhor.

Foi nomeado instrutor que deduziu a seguinte acusação a Afonso de Castilho:
a) Não fiscalizou a construção de um pontão em betão armado, designado Cascunda-Jabadá, que por suas indicações escritas em maio de 1938 fora construído por um condutor sem habilitações profissionais suficientes, resultando o desmoronamento parcial, logo após a inauguração;
b) Não procedeu à reparação de um pilar avariado da ponte General Carmona, apesar de ter verba inscrita para esse fim na distribuição de fundos para o ano de 1938;
c) Descurou a fiscalização da empreitada para a construção do Observatório Meteorológico do Aeroporto de Bolama, apesar de repetidas participações dos agentes da fiscalização contra o empreiteiro, intervindo só raras vezes e sem energia, apresentando-se no fim o edifício concluído com grandes defeitos de construção;
d) Não procurou impedir com o seu conselho e autoridade especial que fosse alterado o projeto da obra anteriormente citada, quando já a meio do mais de andamento da construção, o que motivou o aumento de despesas;
e) Promoveu e impôs a subordinados seus a receção provisória da obra anteriormente citada, sem de facto estar concluída, obtendo que fosse paga ao empreiteiro sem o despacho devido do sr. governador…
E deduz ainda mais acusações.

Na resposta a estas acusações, Afonso de Castilho começa por descrever o ambiente técnico e psicológico que caracterizava os Serviços das Obras Públicas da Colónia da Guiné, quando chegou à colónia, em março de 1938, logo adiantando que o Quadro Técnico das Obras Públicas era constituído naquele tempo por dois condutores; fez várias diligências para melhorar a situação relativa à falta de pessoal e apõe um dado surpreendente: entre 1924 e 1936 houve 19 diretores das Obras Públicas, dos quais só 7 eram engenheiros. A pouca permanência – só 5 excederam um ano de exercício – dos chefes de direção dos serviços, a falta de competência técnica oficial da maioria, a ausência de uma orientação permanente e eficaz, tudo contribuiu para a pouca eficiência dos serviços e fraca fiscalização das obras. O arguido defendeu-se dizendo que tinha de lutar com péssimos hábitos de trabalho, com deficiências de aquisição e falta de pessoal.

Posto este preâmbulo respondeu concretamente aos assuntos. Não vou molestar o leitor com o corrupio das respostas, mas vale a pena ouvir o que ele declarou.
Quanto à alínea a), as reparações dos pontões de Cascunda-Jabadá, encarregou o chefe de secção, o condutor Francisco Cardoso da Silva Pimenta, que não cumpriu as ordens e instruções do seu chefe, foi desleal para com ele e profissionalmente incompetente; argumentou que dentro das possibilidades fiscalizou a obra e se mais eficaz não foi deveu-se a ter de elaborar naquele espaço de tempo cinco importantes trabalhos de gabinete, não podendo por isso deslocar-se;
quanto à alínea b), não havia verba alguma para a reparação da ponte General Carmona, não teve qualquer responsabilidade no que é acusado, a ruína do pilar e a sua defeituosa construção é anterior à data que entrou em funções;
quanto à alínea c) declarou que durante o segundo trimestre de 1938 houve um conjunto de circunstâncias que impediram a sua saída frequente de Bissau, etc., etc.

Instruído o processo e inquiridas as testemunhas, o instrutor concluiu que o engenheiro Afonso Castilho cometera as seguintes faltas disciplinares:
a) Mandara construir um pontão em betão armado sem observação das prescrições regulamentares;
b) Descorou a fiscalização de uma empreitada de construção de um edifício num valor de 492 contos, que foi terminada com grandes defeitos e erros de administração;
c) Não verificou com cuidado o caderno de encargos de uma empreitada para a colocação de janelas e persianas no edifício, aceitando como bom um oferecimento em importância quase dupla do real valor da obra, etc., etc.

O instrutor, depois de averiguar estas faltas disciplinares, entendeu que faltava apurar da incompetência profissional de Afonso de Castilho e submeteu o assunto à apreciação do ministro das Colónias. Foi então nomeado um outro engenheiro, Abílio Adriano Aires, para ir inspecionar sobre o aspeto técnico a Repartição das Obras Públicas da Colónia da Guiné. Elaborou relatório, demonstrou que as afirmações feitas pelo Governador Carvalho Viegas, acerca de pontes, pontões e coisas de engenharia não estavam certas e eram contrárias ao que ensina a ciência da especialidade. Que quanto ao pontão de Cascunda-Jabadá a responsabilidade era do condutor Pimenta, que o que se passou na construção do farol da Ponta de Barel fora semelhante ao que se sucedera na reparação do pontão Cascunda-Jabadá, a responsabilidade era do condutor Pimenta; que quanto à reparação de um pilar arruinado da ponte sobre o rio Corubal, a ponte General Carmona, era seu entendimento que o engenheiro Castilho fizera muito bem em não gastar dinheiro na reparação daquele pilar porque toda a ponte estava em ruína. E, em jeito de conclusão, entende que deve ser aplicada a pena de aposentação compulsiva a Castilho.

Agora o mais interessante desta história é que foi elaborado novo relatório pelo inspetor Carlos Henrique Jones da Silveira veio propor que o arguido fizesse a pena no máximo de 120 dias de suspensão. Consumadas as inspeções, e propostas de pena, o processo transitou para o Conselho Superior de Disciplina que propôs o máximo de 120 dias de suspensão. Se tudo isto não é matéria kafkiana dentro dos labirintos da justiça, prefiro não me pronunciar não só sobre os termos da acusação, tudo com base em boatos e rumores e porventura cartas anónimas, às justificações dadas pelo arguido que, no fim de contas revelam que diferentes serviços da administração eram pura ficção, e que o calibre das decisões quanto às penas é suficientemente elástico, vai desde a reforma compulsiva até à amenidade de suspensão de 120 dias. São assim ínvios os caminhos da justiça…

Anúncio da chegada do ministro das Colónia, Francisco Vieira Machado, à Guiné, dezembro de 1941
O adeus à capital de Bolama, no Natal Bissau já será capital
O ministro chega a Bolama
O ministro junto do monumento à pacificação de Canhabaque
Receção ao ministro das Colónias, Guiné, 1941
Jovens Papéis em tempos de fanado, Safim, imagem retirada da revista Império, 1951
Mapa de povos da região dos rios Gâmbia e Grande, cerca do século XVII

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 10 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27205: Historiografia da presença portuguesa em África (496): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial da Colónia da Guiné Portuguesa, finais de 1940, princípios de 1941 (52) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27221: Notas de leitura (1838): "Uma Outra Perspectiva", por Rui Sérgio; 5livros.pt, 2023 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Agosto de 2024:

Queridos amigos,
Quando leio as narrativas do escritor Rui Sérgio, que foi alferes-médico num batalhão sediado em Galomaro, interrogo-me sobre o que aconteceu no Leste da Guiné desde agosto de 1970, altura em que regressei a casa, e os acontecimentos que ele descreve vividos predominantemente em 1973 e 1974. A partir de novembro de 1969, passei à intervenção em Bambadinca exclusivamente com um pelotão de caçadores nativos. Íamos corriqueiramente cumprir missões através de cimento, transporte de doentes a locais como Galomaro (então sede de companhia), Madina Bonco, Afiá, Madina Xaquili e outros pontos que Rui Sérgio aqui refere como autênticas operações, isto enquanto nós percorríamos estas regiões com num Unimog 411, ao nível de secção, impensável recorrer à picagem da estrada. Cumpríamos a coordenação das colunas que se organizavam a partir de Bambadinca até ao Saltinho, exatamente nos mesmos termos que Rui Sérgio descreve, só com a distinção que não parávamos em Mansambo, embora a tropa local picasse a estrada e ficasse em vigilância até à nossa passagem no regresso a Bambadinca. Muito provavelmente, o desaparecimento dos destacamentos de Béli e Madina de Boé deixaram o Boé mais permeável às investidas das forças do PAIGC. O régulo do Cossé, Mamadu Sanhá, tenente de 2.ª linha, dizia a quem o queria ouvir que ninguém do PAIGC se atrevia a molestar a vida dos habitantes do Cossé, isto até agosto de 1970. Vemos agora o batalhão em Galomaro, escusam de me dizer que a guerra não se tinha acentuadamente agravado no Leste.

Um abraço do
Mário



Há lembranças que aquele alferes médico não quer deixar apagar

Mário Beja Santos

É o mais recente livro de Rui Sérgio, intitula-se Uma Outra Perspetiva, 5Livros, 2023. São lembranças avulsas, por vezes releva o olho clínico, há queixumes e não menos azedumes, mas aquela natureza, as solidariedades, a sua atividade como alferes-médico colaram-se-lhe à pele, escreve como ninguém sobre a Guiné, mesmo quando aqui e ali se repete ou regressa à mesma história com outro pormenor. E momentos há em que narrador e leitor coincidem no olhar.

Logo as pragas, lembra uma praga de sapinhos, as viaturas a esborrachá-los, os gafanhotos, predadores terríveis, nuvens que quase encobrem o Sol; e os morcegos, a sair dos telhados do quartel, aos milhares, à noite era vê-los a comer os insetos, ótimo, eram menos picadas sobre nós. E recorda o Santos, maqueiro, que o chamou para ver o centro de saúde militar em Galomaro, centenas senão milhares de morcegos dependurados de cabeça para baixo nas traves do telhado, à procura de alimento, talvez insetos ou gafanhotos ou aranhas voadoras.

Não esquece as expedições ao Saltinho, de Galomaro a Bafatá, daqui a Bambadinca, aqui organizava-se uma grande coluna, pelo trajeto, que incluía Mansambo, a Ponte dos Fulas, Xitole e depois Saltinho, com inversão de marcha para evitar emboscadas e minas, ao longo do trajeto gente dos diferentes aquartelamentos ficavam e guardavam a passagem da coluna.

E vem o testemunho do profissional, a assistência médica no mato, ele fala na evacuação Yank (nós conhecíamo-la por Y), o alferes-médico e o cabo-enfermeiro seguiam no helicóptero como soros e mala de medicamentos. Rende uma homenagem aos anjos do céu, as enfermeiras paraquedistas. Volta a recordar Bacar, dava-lhe apoio no centro de saúde civil, ficara sinistrado numa mina antipessoal, era um intérprete de um médico, transmitia a sintomatologia do doente, filtrava a lista de doentes de acordo com as etnias. De igual modo, volta a lembrar o comandante Braima, um Futa-Fula alto e esguio, muito respeitado pelos seus pares (pisteiros e milícias).

O alferes-médico tinha em Galomaro a seu cargo a missão do sono e no pequeno hospital tratava tuberculosos e leprosos. Enuncia o tratamento dos leprosos, as dosagens, as manifestações, o que tomavam os tuberculosos, quais os seus sintomas e fala da vacinação das crianças.

Há também a lembrança do Sr. Regalla, proprietário do restaurante Pescaria em Galomaro. Um dia o alferes-médico perguntou-lhe se era do PAIGC, o Sr. Regalla contestou, era cabo-verdiano, o alferes-médico ripostou: “Sr. Regalla, disseram-me que tem um filho que se chama Agnello que se encontra na Suécia, em Upsalla, na produção de livros escolares do PAIGC.” O Sr. Regalla disse que era tudo mentira, o alferes-médico confirmou posteriormente ser tudo verdade.

As recordações não param, a onda do macaréu a subir o rio Geba, os ataques de abelhas, o fanado, os acontecimentos de Guidaje e Guileje, as suas recordações chegam à Marinha e aos Fuzileiros, manifesta-lhes gratidão, alude à importância dos botes pneumáticos utilizados pelos Fuzileiros, os zebros, retorna aos agradecimentos à Marinha, pelo seu papel fundamental na logística no transporte através dos rios em lanchas de diverso porte, recorda um acontecimento que envolveu um parente seu:
“O patrulhamento do Cacheu através das lanchas de fiscalização grandes como a Hidra, comandada em 1973 por um meu primo direito, o 1.º Tenente Jaime Luís Vieira Coelho eram fiscalizações com certo risco, como aconteceu em 20 de maio de 1973, em que houve um ataque à lancha com rebentamentos e incêndio no convés do navio, imediatamente apagado. Ataque na curva de Jugali. Houve feridos provocados pelos rebentamentos com RPG 2 e 7 e que atingiram os cunhetes de munições da peça de artilharia Bofors do Levante.”
As suas recordações retornam às colunas de abastecimento ao Saltinho, local que ele considera paradisíaco, a água revolta dos rápidos centros rochedos, o marulhar das águas e o seu espelhado refletindo o Sol, sentiam-se acobertados de paz e sensação do repouso do guerreiro.

Uma boa parte da sua narrativa prende-se com a crítica que faz à descolonização, aos fuzilamentos da tropa africana, mostra-se favorável à criação de um exército europeu e à exploração que os chineses fazem das riquezas florestais, mais propriamente as madeiras exóticas da Guiné-Bissau.

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Nota do editor

Último post da série de 12 de Setambro de 2025 > Guiné 61/74 - P27212: Notas de leitura (1837): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 11 (Mário Beja Santos)

sábado, 13 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27215: Os nossos seres, saberes e lazeres (700): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (221): Um jardim Zen no Planalto das Cezaredas - 2 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Julho 2025:

Queridos amigos,
Dá-se continuação à humilde história de como um matagal se metamorfoseou em jardim Zen, não é para deixar o leitor embevecido, mas poder-se-á dar o caso desse mesmo leitor ter uns pedregulhos à volta de casa e pretenda esverdear a paisagem, é o que aqui está a acontecer, dentro daquele processo de ensaio, tentativa, erro, até chegar a uma vegetação adequada a este oceano de pedra, já se viu que aqui podem crescer árvores de fruto, catos, vão se descobrindo plantas resistentes, sempre diante de uma perspetiva de evitar a monotonia dos loendros, sardinheiras e afins. O papel que gosto de representar, quando acordo com genica, é lançar-me num combate com as ervas daninhas, combate interminável, aí não há ilusões. Confesso que me dou por feliz quando, nos fins de tarde com temperatura amena, por aqui deambulo, à procura de novos trabalhos, sabendo de antemão que a natureza é tendencialmente vitoriosa. Mas ser obstinado no combate que lhe reservo é um saboroso sal da terra.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (221):
Um jardim Zen no Planalto das Cezaredas - 2


Mário Beja Santos

Já contei na semana anterior como aqui se chegou e como se foi desvendando os segredos de um matagal que se vai ajardinando como se pode. Os trabalhos de arrancar ervas à volta das casas, nos terraços dão-me imenso descanso à cabeça, não tanto aos vizinhos, tenho um potente gira-discos, posso começar a manhã com o Ouro do Reno, a primeira ópera da Tetralogia, um soberbo Wagner, ou mesmo com a Norma, de Bellini, os vizinhos não se queixam com as altas sonoridades, resta dizer que o trabalho é insano, quando aqui volto é para recomeçar, a natureza não adormece, muito menos as ervas daninhas. Mostro agora ao leitor outros aspetos do jardim Zen, momentos há em que ganha a utopia de que um dia todos estes pedregulhos ficarão esverdeados, mas como em todas as utopias a realidade obriga-nos a descer à terra, o mais importante de tudo é o diálogo entre a pedra a possível flora. Basta de conversa, vamos ver o que ainda falta ver do jardim.


O limite deste jardim Zen é pouco lá mais abaixo, mas gosto muito de me posicionar aqui, primeiro por todo aquele tapete lavrado, terra fecunda, onde a Susana e o Henrique este ano colheram a batata, os feijões foram comidos pelos coelhos, só ficou aquela correnteza à direita, a explicação que me deram é que é um tipo de feijão que os coelhos não gostam, nada percebo do assunto, confio na explicação. Mas o meu jubilo vai para esta vara de ferro onde se prende a macieira que lá vai medrando, as árvores de fruto têm sido cuidadas, na minha ausência a Susana anda por aqui com a extensa mangueira e o verde sai das pedras. Não sei quantos anos serão necessários para eu vir comer algumas maçãs desta árvore
Interstícios à primeira vista impraticáveis para fazer brotar espécies possíveis de flora obrigam a escolhas irredutíveis de catos, e o que se julgava impraticável faz arrebitar esta matéria verde e quando passeio por aqui questiono como irão todos estes catos resistir ao espartilho da pedra
Que grande surpresa! Junto ao caminho vicinal vai medrando a buganvília, parece-me temerosa no seu crescimento, só lhe desejo longa vida, gosto muito deste pintalgado cor de sangue a confrontar-se com o loendreiro e aquele espantoso cato que já o vi tão pequenino e que vai inchando e escondendo a pedra
Pareceu-me interessante mostrar a temerosa buganvília num plano que mostra uma das casinhas, esta tem à entrada um guarda-loiça gigantesco, que chegou aqui às peças, sr. José António montou-o e envernizou-o, à entrada fica-se com a ilusão de que estamos em casa de grandes proprietários rurais, há mesa para comer, sofá para ler e dormir, segue-se o espaço da cozinha e há portas que ligam à casa de banho e há um quarto que tem a vista mais espetacular sobre o vale e a correnteza de moinhos, lá no alto, onde a Junta de Freguesia de Reguengo Grande mandou fazer um miradouro
Vista de moinhos e miradouro, a vegetação envolvente é a mesma que encontramos nos quatro concelhos por onde se estende o Planalto das Cezaredas
Guardo um certo pendor neorromântico, havia que aproveitar este banco que estava numa casa em Tomar, o sr. José António fez-lhe uns calços em pedra, pode imaginar-se uma tarde acalorada, vem-se para aqui com um livro e goza-se a sombra da figueira, guardo-lhe um certo rancor, dá uns figos pequeninos e imprestáveis; ora, num dos terraços das duas casas tive a sombra da figueira do sr. Raul, era uma fragância que dava gosto, não há bem que sempre dure, veio uma noite de tempestade que matou a figueira, tenho agora este refúgio e faço questão de dizer que o banco é regularmente limpo e tratado, como em breve vai acontecer
Temos aqui uma fronteira entre o jardim Zen e os arvoredos que pertencem à Susana e ao Henrique, lá no alto dá para ver habitação e até moinho. Na época dos figos, estou autorizado a apanhar o que esta figueira oferece.
Um outro ângulo da lavoura da Susana e do Henrique, lá ao fundo algum casario do Reguengo Grande
Quem diria, temos aqui o mais inesperado dos lírios, quem passeia pelo Planalto sente as alegrias de encontrar plantas silvestres e de grande beleza, a começar pelos lírios bravos
Despeço-me com outra vista do miradouro, às vezes adormeço a recordar a formosura agreste da região, pródiga em vinhas e fruta, mas aqui o que conta é este vale úbere e o esplendor da cercania. Até à próxima.
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Nota do editor

Último post da série de 6 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27190: Os nossos seres, saberes e lazeres (699): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (220): Um jardim Zen no Planalto das Cezaredas - 1 (Mário Beja Santos)