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segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27357: Notas de leitura (1856): Escritos de médicos que viveram a guerra colonial (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Fevereiro de 2025:

Queridos amigos,
Feliz a hora em que o médico Adélio Martins convocou a malta do seu curso para pôr por escrito recordações da experiência de alferes miliciano médico, e num punhado de páginas ficamos a saber que um feiticeiro ganhou a um médico por saber pôr um elefante a defecar, houve alguém que soube da história de como se fazia uma armadilha em cruz, ouvido o estrondo estalou a alegria no aquartelamento e foram todos ver um espetáculo devastador naquela confusão de pedaços humanos, com tanta gente em regozijo por ter funcionado bem aquela arma mortífera; há quem venha contar o que era ser médico em Mueda e conviver com camaradas médicos já em estado de transtorno, um deles afeiçoado a um cágado; houve quem desertou e venha agora agradecer ao Antigo Regime ter um casamento que dura há cerca de 50 anos... Há quem esteve na região dos Dembos, quem vivesse no centro de Luanda e tenha sido confrontado com os tiroteios da guerra civil, e ouviremos de novo histórias do escritor Rui Sérgio, o médico Rui Vieira Coelho que tem aparecido regularmente no nosso blogue, são belos testemunhos, um enriquecimento nestas intervenções que nos põem sempre a pensar nas dívidas com que deles ficámos.

Um abraço do
Mário



Escritos de médicos que viveram a guerra colonial

Mário Beja Santos

O escritor Rui Sérgio tem tido a gentileza de me fazer chegar através da editora 5Livros.pt todos os seus escritos relacionados com as memórias como médico do BCAÇ 3872, sediado em Galomaro, leste da Guiné, que conheci nos bons tempos em que se ia de Unimog por toda esta região, é certo que armados, mas cientes de que a região estava pacificada, graças a um régulo destemido, o Tenente de 2.ª linha Mamadu Sanhá.

Acabo de receber um livro editado em 2020, também pela 5Livros.pt, foi um desafio que o médico Adélio Martins lançou a colegas de curso para escreverem um conto relacionado com as suas experiências em terras de África. O resultado é tocante, mas talvez valha a pena refletirmos que possuímos um legado de testemunhos de profissionais de saúde. Não vale a pena acrescentar mais ao muito que aqui se tem publicado sobre as nossas enfermeiras, o escritor João de Melo foi enfermeiro em São Salvador, daí resultou um notável romance Autópsia de um Mar de Ruínas (recomendo a 1.ª edição), os primeiros romances de António Lobo Antunes estão profundamente marcados pela sua vivência em território angolano, e é também bem merecedor de leitura a correspondência que travou com a sua mulher em tal período; na mesma época em que António Lobo Antunes se lançava na escrita, outro médico, Abílio Teixeira Mendes, publicou um escrito magnífico, deploravelmente esquecido; e continuo a pensar, ao nível de escritos de médicos, que as memórias de José Pratas, Senhor médico, nosso alferes, está no pódio de narrativas de médicos quanto à Guiné.

Quanto a estes contos de guerra coordenados por Adélio Martins, há quem chegue na noite de 24 de dezembro inesperadamente a casa, tocou campainha e “no ar havia o cheiro a doces e o vapor da água das panelas que em breve se encheriam para a ceia, noite de Natal inesquecível!” Há aquele cego na enfermaria que recalcitra por um camarada não o ter levado ao futebol, o outro responde que não o levou porque ele está cego, “estou cego mas podia ouvir”, isto passou-se na cidade da Beira; havia um enfermeiro que fazia desaparecer medicamentos para levar para a FRELIMO, mais concretamente ampolas de estreptomicina que faziam falta aos guerrilheiros; há aquela história de um médico chamado à pressa lá no Fingue, no norte de Moçambique, para fazer defecar um elefante, caso tal não acontecesse, seria mau presságio, o médico falhou, quem entrou em ação foi o feiticeiro.

Há um médico que reflete dolorosamente sobre a alegria que alguns sentiam quando as armadilhas desfaziam em pedaços os guerrilheiros da região. Houvera quem inventasse a armadilha em cruz. “Consistia num dispositivo que continha cargas explosivas ao longo do percurso da picada, e noutra linha, cruzando a picada, nova fila de explosivos, de maneira a formar uma cruz imensa, onde no centro era montado o sistema de detonação, ativado por um fio de metal que atravessava de um lado ao outro a picada, uns bons metros. Assim, em qualquer direção que se caminhasse, de norte para sul, pelo lado direito ou pelo lado esquerdo da picada, todos eram apanhados, mesmo que se viessem a caminhar mais na retaguarda. Era uma cruz imensa de explosivos, uma obra de arte, como dizia o meu camarada especialista em minas e armadilhas.”

A armadilha resultou, ao amanhecer, ouviu-se um estrondo, uma súbita alegria e gritos de contentamento encheram o aquartelamento, seguiu prontamente uma patrulha, o espetáculo era devastador, numa extensão de metros e metros inúmeros corpos jaziam espalhados e dispersos pelo chão, a alegria dos soldados é exuberante. “E eu olhava-me por fora de mim, ator e espetador da cena, cobarde por não sentir a alegria pela morte dos outros e por não sentir tristeza com a alegria deles. Amarrado neste paradoxo de ter de viver em simultâneo o agrado por dever e o desagrado por sentimento, sentia-me também preso nesta armadilha em cruz.”

Há quem descreva Mueda como uma fortaleza rodeada de arame farpado, com uma Base Aérea, Companhias de Engenharia, Serviço Jurídico, tropa fandanga, grupos especiais e um hospital de campanha com cinco médicos. O estado de espírito destes profissionais de saúde era pouco abonatório. “Um havia, que nos lia as cartas da mulher, em que ela pedia para tomarmos conta daquela alma frágil. Não era caso para menos. Cirurgião com medo de ir ao bloco, adotou um cágado, do tamanho de um palmo, por quem se afeiçoou.” Não esqueceu as suas deslocações a Ibo, Mocímboa da Praia e Mocímboa do Rovuma. O Natal de 1974 foi diferente, a ceia do bacalhau foi disputada com os guerrilheiros.

Há quem conte a sua deserção, um casamento que caminha para meio século com uma alemã. “Tenho de agradecer ao Antigo Regime a oportunidade que me deu ao obrigar-me a sair de Portugal por motivos de consciência. Não digo motivos políticos pois eu era nessa altura pouco maduro, fazia mais barulho que trabalho. O meu pai teve em Angola dois filhos, meus meios-irmãos, cerca de 20 anos mais velhos do que eu, ambos estavam no MPLA. O meu irmão Gino estava nas Forças Armadas e a possibilidade de ter pela frente um irmão inimigo era real.”

Há quem acordou com as balas a entrar pela janela do quarto, médico que apanhou a guerra civil ao rubro, há aquele médico a viver em Nambuangongo que conhecia por cópia datilografada aquele que eu considero o mais belo poema da guerra colonial, Nambuangongo, meu amor, viveu as peripécias de um parto inesperado, conta o que era viajar num Auster ou num DO, houve um episódio inesquecível, uma evacuação por fratura do úmero, o médico explica que o jovem soldado tinha o braço muito bem imobilizado com múltiplas ligaduras que o mantinha solidário com um triângulo de tábuas. A tábua vertical estava enfaixada ao tronco e a oblíqua obrigada o braço a estar esticado, como mandava a figurinha do manual de primeiros socorros da Segunda Guerra Mundial. Terá havido um alvoroço e uma precipitação por parte do piloto, o pobre soldado andou aos repelões, tudo se desconjuntou, o ferido bem penou até chegar ao hospital.

E chegou a vez de entrar em cena Rui Sérgio, lembra com muita saudade a Companhia Dulombi, jamais esqueceu as colunas de 18 km até Galomaro, ou vice-versa. Ele fazia a sua consulta militar num posto de saúde acompanhado por um furriel enfermeiro e havia um encarregado civil pela limpeza, o Jamba, homem de porte atlético, com uma face de quase riso permanente. Pois o Jamba em certa altura passou a andar acabrunhado, o médico ouviu confidencialmente, tinha havido um feitiço, já não era um homem, perdera a ereção, o médico deu-lhe uma mezinha, foi ao quarto e trouxe um comprimido efervescente de vitamina C. “Bebe Jamba, tudo de uma vez e daqui a cerca de uma hora vais à tabanca ver a mulher.”

Voltou duas horas depois, sorridente, voltara-lhe a força, tudo graças à eficácia psicológica de um comprimido efervescente de vitamina C.

Recordações magníficas, ficamos com estes médicos no coração.

Médico Rui Vieira Coelho, escritor Rui Sérgio
O Alferes-médico Defensor Moura quando se candidatou às presidenciais, tinha programa para os antigos combatentes
Alferes miliciano médico Manuel Vieira da Costa Neto, da CCAV 680/BCAV 682, Cruz de Guerra de 4.ª classe
Alferes-médico Abílio Teixeira Mendes
Alferes-médico António Lobo Antunes
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Nota do editor

Último post da série de 24 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27348: Notas de leitura (1855): "Ecos Coloniais", coordenação de Ana Guardião, Miguel Bandeira Jerónimo e Paulo Peixoto; edição Tinta-da-China 2022 (3) (Mário Beja Santos)

sábado, 25 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27352: Os nossos seres, saberes e lazeres (706): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (227): Do Alto Tâmega até Pedrógão Grande, acabou-se a semana de férias – 6 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Setembro de 2025:

Queridos amigos,
Não escondo que saímos da Galiza de monco caído, aquela sensação que mais uns dias de vadiagem na região nos poria o astral em cima, mas levantou-nos o ânimo saber que havia uma paragem numa belíssima cidade no Alto Tâmega, Chaves, falei da presença romana e de uma ponte chamada de Trajano, como não há outra igual em Portugal, e das fortificações, porque os flavienses tiveram muito que penar, logo o Rei de Leão que quis abocanhar este território; pelas minhas contas, não vinha a Chaves há quase meio século, com que prazer fiz a sua famosa Rua Direita, toda ela cheia de história, os vestígios medievais, barrocos, as prosperidades oitocentistas e novecentistas - e o resultado da gestão autárquica em democracia. Foi tudo a correr, pretende-se chegar a Pedrógão Grande, um estirão, ainda com luz do dia. Férias magníficas, temperaturas mais do que amenas, a canícula veio na semana seguinte. E, moral da história, vimos a Lousã, o sul da Galiza e Pedrógão Grande antes da devastação dos fogos. Amarga coincidência, findámos o roteiro desta viagem junto ao monumento das vítimas do grande incêndio do Pedrógão Grande de 2017. Nem nos passava pela cabeça que outros fogos vinham a caminho, poucas semanas depois.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (227):
Do Alto Tâmega até Pedrógão Grande, acabou-se a semana de férias – 6


Mário Beja Santos

Era ponto assente que quando regressássemos do sul da Galiza havia uma paragem na cidade de Chaves, mais do que aqui amesendar os concelebrados pastéis e bom fumeiro que a região oferece tinha saudades de regressar a Aquae Flaviae, se a memória não me falha andei por aqui nos tempos em que fiz programas de televisão, isto entre as décadas de 1970 e 1980, estava mortinho de curiosidade de ver a diferença de quase meio século. E ganhei muito com a surpresa. Arrumado o carro, seguimos para a ponte romana, concluída no tempo do Imperador Trajano, entre o fim do século I e o princípio do século II d.C. Nos preparativos da viagem, folheei umas resmas de papel sobre Chaves, recordar a história faz sempre bem. Até porque há vestígios da Pré-História, a presença romana foi muito significativa, seguiram-se suevos e godos, muçulmanos, veio a Reconquista Cristã, foi um não mais parar de acontecimentos desde que a Póvoa de Chaves surgiu por iniciativa de D. Afonso III. Num livro de Paulo Dordio intitulado Chaves e as suas Fortificações andei a ver desenhos dos tempos medievais, da vila renascentista, das estruturas de fortificação e baluartes, tudo fruto da posição de Chaves, que foi muito apetecida por Leão, que se preparou para os embates da Guerra da Restauração.

Também pedi ajuda ao Google, para saber o que havia de mais significativo para admirar: a Torre de Menagem e o que resta do Castelo, há uns panos de muralha dispersos; a Igreja Matriz; não perdera a ocasião de mirar a meio da ponte os dois documentos epigráficos que falam do tributo das gentes flavienses e dos dez povos que ajudaram na sua construção; no meio daquela informação recordei as minas de volfrâmio, as águas minerais Campilho e Vidago, lembro-me perfeitamente de as ver em cafés e restaurantes; quer no Google quer na papelada lida recordava-se os Paços do Duque de Bragança, que aqui morrera e tem túmulo o primeiro Duque, D. Afonso, no Convento de S. Francisco; recordava-se também que se deveria visitar a Igreja da Misericórdia em estilo barroco, revestida de azulejos. Ponto final, começamos a atravessar a ponte de Trajano, à cautela, numa tentativa de dar a dimensão da ponte sobre o Tâmega, tirei a imagem à distância.

É uma obra notável de engenharia com cerca de 150 metros de cumprimento. Os doze arcos visíveis são de volta perfeita e formados por enormes e robustas aduelas de granito. Há pelo menos mais seis arcos soterrados pelas construções, de um lado e do outro do rio.
Um dos dois belos exemplares epigráficos vindos de outras proveniências. Recorde-se que por aqui passava a Via de Augusto.
Igreja Matriz, de raiz medieval, desse período conservou a imponente torre, rasgada por duas sineiras; tem portal românico. As transformações que ocorreram no século XVI são particularmente visíveis nos portais. O templo estava fechado, não pude contemplar os belos painéis de azulejos, ficará para a próxima.
Igreja da Misericórdia, construída no século XVII, portanto barroca. A fachada do templo granítica, antecedida de uma escadaria também de pedra, está pormenorizada e cuidadosamente decorada por pilastras e janelas. Pelo que me foi a ler, tem o interior de uma só nave, paredes inteiramente revestidas de azulejos. A fachada posterior do edifício tem a particularidade de assentar e aproveitar o paramento externo da cerca urbana medieval.
Câmara Municipal, começou por ser palacete para residência de António de Souza Pereira Coutinho, morgado de Vilar de Perdizes. Foi adquirido pela Câmara. Do seu corpo central sobressai o portal principal, ladeado por dois óculos ovalados, e no topo o frontão triangular com brasão no tímpano, encimado por relógio. Ainda fui espreitar a entrada da Câmara, a sua imponente escadaria em granito e os azulejos azuis com cenas campestres.
Há reminiscências da Chaves medieval. Reza um dos documentos que consultei que nesse tempo a população alojava-se em edifícios estreitos com dois ou três andares, onde predominavam varandas estreitas no primeiro andar e no segundo e terceiro andar varandas suspensas. As varandas avançadas para a rua eram a forma de rentabilizar o espaço intramuros. Hoje, as ruas conservam o velho aspeto medieval, exibindo da tipologia das suas casas elementos da construção dessa época. As varandas coloridas, em madeira de castanho ou pinheiro subsistem, ainda, por toda a cidade velha.
Esta é a Torre de Menagem. Mostro-vos a informação que encontrei ali perto, achei-a bem esclarecedora, é, sem margem para dúvida, de uma grande beleza este ponto de referência do que foi o Castelo de S. Estevão.
Condicionado pelo tempo, ainda calcorreámos a Rua Direita, era inevitável ver a fachada dos Paços do Duque de Bragança e o belo pelourinho. Porquê o Duque de Bragança em Chaves? Pela simples razão de que o senhorio foi doado a Nuno Álvares Pereira que o cedeu ao genro, o Conde de Barcelos, entrando assim na Casa de Bragança.
Tenho de voltar, e com alguma presteza. Esta sede de concelho, com uma área total de cerca de 591Km2, esta cidade de Chaves que é cidade desde 1929, tem monumentos nacionais relevantes, bem me apeteceu entrar na magnificente biblioteca, mas não me podia esquecer que íamos pernoitar a Pedrógão Grande, para uma outra romagem de saudade. Logo que possa, manda a curiosidade, hei de ler qualquer coisa sobre Chaves na Guerra de Restauração e como foram os combates de Chaves entre as forças de Paiva Couceiro e as do Governo Republicano.
Agora vamos amesendar e segue-se um estirão de viagem, ala morena que se faz tarde, fechei provisoriamente o livro flaviense e já começo a recordar os anos que passei em Pedrógão Grande e Pedrógão Pequeno, temos passado férias com um tempo magnífico, a canícula vem para a semana, e era impensável imaginarmos, quando fomos contemplar o monumento desenhado por Souto Moura em homenagem aos mortos do incêndio devastador de 2017 que estava para breve uma nova tempestade de fumo em 2025.

Não vou causticar o leitor repisando imagens desta região chamada Pinhal Interior, já mostrei as belezas do Cabril, uma região que fascinou o pintor Alfredo Keil, dizem que tirou elementos para a coreografia da sua ópera A Serrana, vinha acompanhado por Giuseppe Cinatti, cenógrafo do Teatro de São Carlos, por pudor não mostro as paredes incendiadas de uma casa recuperada no meio da floresta, mas não escondo o júbilo de mostrar a praia fluvial de Mosteiro, aprazível, na memória de familiares e amigos que fizerem vilegiatura em Pedrógão Grande ou Pedrógão Pequeno, a região tem belíssimas praias fluviais, esta está na memória de todos.
Antes de partirmos para Lisboa, viemos recordar os mortos daquele abominável incêndio de 2017, perto da estrada onde tanta gente morreu ergue-se uma fonte de vida, obra traçada pelo arquiteto Souto Moura, ao fundo, como se fossem lápides, estão esculpidos os nomes dos falecidos. Ensimesmados com tal tão dolorosa recordação, entramos no carro, é o regresso a Lisboa. E na conversa começamos a idealizar a próxima viagem, fala-se muito no Planalto Mirandês, há quem alvitre o início da primavera, há para ali um parque natural, de nome Montesinho, que se cobre de tapetes de flores. Porque a viagem nunca acaba, e aqui dentro do carro estão viajantes impenitentes. Até à próxima!
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Nota do editor

Último post da série de 18 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27331: Os nossos seres, saberes e lazeres (705): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (226): Em S. Estevão de Ribas de Sil, no passeio termal de Ourense – 5 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27348: Notas de leitura (1855): "Ecos Coloniais", coordenação de Ana Guardião, Miguel Bandeira Jerónimo e Paulo Peixoto; edição Tinta-da-China 2022 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Outubro de 2025:

Queridos amigos,
Ecos Coloniais não é nem um guia de viagem nem um almanaque de curiosidades histórico-culturais onde as memórias coloniais e imperiais se interpenetram. Juntaram-se académicos, ativistas, museólogos e jornalistas e fazem uma apreciação desses espaços, lugares, monumentos, instituições onde pulsam as tais reverberações que dão ensejo a encarar a História de Portugal na faceta que as marcas do Império nos arrastam à compreensão da nossa identidade, na dimensão do passado. Começámos no Arquivo Histórico Ultramarino, estamos hoje em frente ao monumento a Sá da Bandeira, vamos até ao Forte do Bom Sucesso, o monumento aí é outro, homenageiam-se os combatentes mortos nas guerras do Ultramar, seguimos depois para o Museu Nacional da Etnologia. Dá-se esta obra como relevante, é um exercício original para debates sobre passado e o presente, mostra como o património colonial está obrigatoriamente associado a uma memória inapagável.

Um abraço do
Mário



Império e colonialismo: reverberações na Lisboa atual - 3

Mário Beja Santos

Ecos Coloniais resulta de um exercício coletivo de investigação sobre o património histórico e cultural, aqui se interrogam instituições, entidades, monumentos, obras de arte, palácios onde se interseccionam a história colonial e imperial portuguesa, do passado ao presente, edição ilustrada com fotografias de Pedro Medeiros e o acervo de textos tem a coordenação de Ana Guardião, Miguel Bandeira Jerónimo e Paulo Peixoto, edição Tinta-da-China 2022. Logo na introdução, os organizadores referem que este levantamento é uma obra consciente e que há muito por investigar e por saber, importa evitar generalidades e simplismos mobilizadores para escapar aos engenheiros e empreendedores da “história” e da “memória”.

Encaminhamo-nos agora para o monumento a Sá da Bandeira, sito ali perto do Mercado da Ribeira e da Marconi, tendo a Avenida 24 de julho pela frente. O bravo Marechal, de nome Bernardo de Sá Nogueira de Figueiredo, de bravura incontestável, liberal e irredutível, está ligado à abolição da escravatura em Portugal. Como escrevem os autores deste texto, “Na década de 1850, quando vários decretos vão progressivamente libertando os escravos do Estado e das misericórdias, quando se estabelece o conceito da liberdade do ventre e aqueloutro de ‘libertos’. São estes dois bons exemplos de carácter gradual, feito de concessões e cedências, e hesitações, que marcou não só o abolicionismo português como a própria figura de Sá da Bandeira (…) A estátua de celebração do Marquês Sá da Bandeira não se esgota no movimento abolicionista. No sope, uma outra estátua, de uma mulher africana evoca aquilo que era um tropo na altura: o agradecimento do continente e seus habitantes, ao abolicionismo protagonizado pelas classes esclarecidas dos países ‘civilizados’. O problema da escravatura enquanto injunção moral que os poderes imperiais projetavam sobre si mesmo havia sido transformada num novo instrumento de geopolítica. A escravatura, real, que existia ainda no continente africano, apesar das várias ‘abolições’, era então identificada como problema congénito das sociedades locais a que estavam associados outros: poligamia, canibalismo, uso imoderado de álcool, predisposição para a indolência. A escravatura, alimentada que tinha sido ao ponto de alcançar uma dimensão quase industrial na sua versão transatlântica, era agora apresentada como o resultado do atavismo e violência de grupos socioculturais tidos por atrasados.”

O marechal e aquela mulher africana com a criança ao colo, no significado que a época lhe deu, representa a homenagem do país a quem deu a liberdade aos escravos, mas num quadro ideológico de tornar estes libertos indígenas com possibilidade de aceder à civilização.

Tomámos agora o rumo para Belém, vamos até ao monumento aos Combatentes do Ultramar. Diz a autora do texto: “Numa instrumentalização da dor, os monumentos aos mortos de guerra revelam que a morte não dá igualdade. A abstração do morto aniquila as diferenças dos que lutaram integrando-as num processo hegemónico.” Anteriormente, a autora apresentara assim o monumento inaugurado em 5 de fevereiro de 2000:
“Ao Forte do Bom Sucesso foram adicionadas placas talhadas com os nomes, dispostos cronologicamente, de cerca de 10 mil soldados mortos na Guerra Colonial, incluindo soldados africanos das Forças Armadas Portuguesas. A associação dos mortos procura fortalecer, por um lado, a ideia de uma linearidade histórica, sem as ruturas que momentos de crise como as guerras poderiam causar e, por outro lado, a integração orgânica dos membros do corpo nacional, onde também se encontra o colonial. A 11 de novembro de 2015, no 97.º aniversário do Armistício, foi integrado ao conjunto memorial o Soldado Desconhecido caído na Guiné durante a Guerra Colonial, depositado na Capela do Combatente. Tal como em 1921, o morto anónimo é colocado no centro do palco. O herói não identificado, figura idealizada e transversal, é chamada à função de regenerar a nação e transladado para o Panteão Nacional.”

Um monumento que esteve envolvido em controvérsia, e que tem a estatura de uma ferida histórica, há quem o encare como espelho de memória de uma descolonização acabada. Com o passar dos anos, este espaço público vai gerando o sentimento de uma memória comum, ganha o papel de reconciliador, torna-se numa memória comum, o país ajustou-se à veneração dos seus mortos, já são muito poucos os que, por razões ideológicas, pretendem instrumentalizar a dor.

A última viagem é ao Museu Nacional de Etnologia, a autora do texto revela-se bastante crítica quanto ao teor da exposição permanente e releva o papel do multiculturalismo que em Portugal se agigantou com as sucessivas vagas de imigração, logo a dos “retornados” após a revolução do 25 de abril, o que está patente no Museu oculta o lado violento e racista do colonialismo português, abre espaço para exibir narrativas como a panaria de Cabo Verde e Guiné Bissau, e a autora destaca a importância do Serviço Educativo que valoriza as coleções a partir do presente, contribuindo para a construção de relações recíprocas, tal serviço educativo volta-se hoje para a população afrodescendente, contribuindo de forma crítica para o combate à marginalização de grupos sociais que buscam sentido de cidadania, fora da ética dos Descobrimentos. “Coleções como as do Museu Nacional da Etnologia constituem uma oportunidade única para conhecer uma história profundamente desumana, permitindo-nos ativar práticas reparadoras no campo das temporalidades, das materialidades e da dignidade, e compreender melhor o mundo em que vivemos, para podermos assumir o compromisso de contribuir para a construção de um presente melhor.”

Ecos Coloniais, vale a pena repetir, debruça-se sobre um eco diversificado de espaços, atores, instituições e símbolos, permitem-nos ver ou refletir sobre histórias imperiais e coloniais que podemos ver em Lisboa e arredores. É um trabalho coletivo, envolve uma equipa em que há autores e um fotógrafo. Impondo-se uma súmula ou resenha desses espaços e lugares, falando de um quadro que está no Museu Nacional de Arte Contemporânea, “os Pretos de Serpa Pinto”, iremos depois ao Porto de Lisboa e à Sociedade de Geografia de Lisboa.

Monumento aos combatentes do Ultramar, junto do Forte do Bom Sucesso
Museu Nacional de Etnologia, objetos em exposição
Os Pretos de Serpa Pinto, Catraio e Mariana, por Miguel Ângelo Lupi, 1879, Museu Nacional de Arte Contemporânea

(continua)
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Notas do editor

Vd. post de 17 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27326: Notas de leitura (1852): "Ecos Coloniais", coordenação de Ana Guardião, Miguel Bandeira Jerónimo e Paulo Peixoto; edição Tinta-da-China 2022 (2) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 20 de outubro de 2025 >
Guiné 61/74 - P27336: Notas de leitura (1854): "Um Império de Papel", por Leonor Pires Martins; posfácio de Manuela Ribeiro Sanches; Edições 70, 2.ª edição, 2014 (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27341: Historiografia da presença portuguesa em África (501): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial da Colónia da Guiné Portuguesa, finais de 1945 (58) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Abril de 2025:

Queridos amigos,
Entendi que se deviam publicar as linhas de ação governativa de Sarmento Rodrigues, ele diz que vem por pouco tempo, que pretende acabar obras e deixar muitas outras em andamentos, sente-se que vem bem apoiado pelo ministro Marcello Caetano, ao longo de 1945 observa-se a abertura de créditos, acabara a guerra e havia dinheiro, desanuvia-se a atmosfera de grande austeridade, lançam-se os fundamentos do que o governador idealizava para a Guiné: obras públicas, transportes, portos, pontes, reformulação de toda a política de saúde, investigação cultural. Quando deixar a colónia, em 1949, o seu sucessor, Raimundo Serrão, passará anos a inaugurar obras do seu legado. Legado tão forte que quando Craveiro Lopes visitar a Guiné em 1955, a grande estrela será Sarmento Rodrigues, então ministro das Colónias.

Um abraço do
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Oficial da Colónia da Guiné, finais de 1945 (58)


Mário Beja Santos

Vai começar a era de Sarmento Rodrigues, veremos ao longo de 1945 sucessivas autorizações de abertura de linhas de crédito, todas elas justificadas por dotações insuficientes. O novo governador chega e começa por trocar saudações com o Conselho de Governo.

O Comandante Manuel Maria Sarmento Rodrigues irá proferir na abertura dos trabalhos (mera sessão protocolar) um discurso surpreendente, vale a pena reter alguns parágrafos, pois deixa bem claro ao que vem e o que pretende fazer:
“Vossas Excelências esperariam, talvez, que nesta ocasião lhes fosse apresentado um programa do Governo. Justamente, uma das incumbências que Sua Excelência o Ministro me deu foi de elaborar um plano de Governo. Não serei eu só, mas Vossas Excelências, todas as pessoas esclarecidas e de boa-vontade, que hão de ter parte nele com as suas informações, os seus exemplos e a sua previsão. E, depois disso, mais do que planear, terão de executá-lo. Deposito a maior esperança na colaboração de todos. Não seria possível encontrar aqui homens que negassem o seu esforço par ao engrandecimento da colónia.

Conheço a dureza da vida na Guiné, por um lado causada pelas asperezas do clima, do outro pelas dificuldades económicas de cada um. É indispensável, portanto, fazer o possível por conseguir mais conforto e bem-estar para todos, de modo que esta colónia possa um dia ser, mais do que a região atrativa e prometedora do que já é, uma terra onde a vida possa decorrer sempre com agrado.
Julgo que isso será possível. Habitações higiénicas; higiene nas ruas e em volta das povoações; meios de vida mais fáceis; ambiente social cada vez mais digno; satisfação das necessidades espirituais.
Sua Excelência o Ministro enfrenta um vasto programa de melhoramentos na colónia, para a realização dos quais já começaram a trabalhar os organismos superiores do Ministério.

Muitos deles aqui se movimentam também. Habitações, saneamento, água e hospitais; pontes, portos, obras hidráulicas, aeroportos, farolagem; missões científicas, de geodesia, hidrografia, zoologia, antropologia, botânica, medicina, etc.; desenvolvimento do serviço missionário, na parte religiosa e na parte do ensino indígena; defesa militar na colónia; assistência às atividades económicas, nomeadamente às agrícolas e industriais, direta e indiretamente; ensino dos indígenas em agricultura, pecuária e artes e ofícios; e outros.
Infelizmente, o momento atual não é de molde a permitir a fácil realização deste vasto programa, porque em grande parte rareiam os elementos para a sua execução. Junta-se à falta de técnicos a escassez de materiais e a dificuldade de transportes. Heis porque, mais do que nunca, se impõe a colaboração de todos; levara moralidade administrativa a todos os setores, aos mais pequenos detalhes; intransigência, contudo que possa traduzir corrupção e vício. É nestas bases de moral sem transigências que temos de trabalhar.”


Imediatamente a seguir discursa na primeira sessão do Conselho de Governo, aí sim temos as linhas gerais do que planeou para a ação governativa:
“É premissa basilar não estagnar, não haver uma pausa sequer. O ritmo de trabalho, da atividade, tem de ser acelerado. Figura no primeiro plano das realizações, como mais visível, o trabalho das obras públicas. Temos uma vasta lista de obras projetadas para um período que desejaríamos que fosse bastante curto. Coloco à frente as construções por acabar e que pretendo arrumar. Afigura-se-me como ação de prestígio para nós a conclusão ou aproveitamento imediato de todos os edifícios que estão incompletos: Palácio, Sé, capelas de Catió, Bafatá, Canchungo, Mansoa e Gabu, moradias projetadas para os funcionários em Bissau, o monumento ao Esforço da Raça, edifício da Praça do Império, cuja origem quase se desconhece, e outras tentativas dispersas pela colónia, aguardando que as acabem.”

E passa em revista o que pretende fazer: instalar o Tribunal Administrativo, o Tribunal da Comarca, Escrivães e Conservatória; na Praça do Império instalar um Museu, Arquivo e Biblioteca. “Tenho também intenção de restaurar a Colónia Penal Agrícola, pois é necessário haver um local onde sejam conservados os condenados ao cumprimento de penas, os quais não têm presentemente lugar nas cadeias. Até hoje não descobri as razões que levaram à suspensão da Colónia Penal. Por toda a colónia há imensas obras eu se impõem, como as sedes dos postos administrativas de Prabis, Cacine, Bedanda, Bambadinca, Xitole, Bula, Enxudé, Binar, Enxalé, Piche, Pirada, Ilha Roxa, Caravela e outros; as secretarias das administrações de Bissau e Canchungo; residência dos administradores de S. Domingos e Gabu, do secretário de Farim e dos aspirantes em Bafatá, Catió, Bubaque e Farim.” E seguidamente fará menção da rede de estradas, pontes e reparações de envergadura.

E sinais desta atividade vão aparecer no Boletim Oficial, torna-se claro que o Ministro das Colónias, Marcello Caetano, lhe está a dar um apoio incondicional. Veja-se o suplemento ao n.º 46, Boletim Oficial de 17 de novembro, publica-se o Decreto-lei n.º 43:677, fala-se no levantamento hidrográfico da colónia da Guiné, é necessário um navio adaptado às especiais condições hidrográficas da colónia, o Ministério da Marinha destinará uma canhoneira, fala-se da logística, duração dos trabalhos, etc.

As questões de saúde merecerão do governador a devida atenção, como se pode ver numa portaria publicada no Boletim Oficial n.º 51, com a data de 17 de dezembro. Iniciara os seus trabalhos na colónia a Missão de Estudo e Combate à Doença do Sono, o governador determinava: que todos os indígenas a quem seja feito o diagnóstico de tripanossomíase fossem obrigatoriamente mandados apresentar nos postos de tratamento; e que os doentes indígenas considerados no período nervoso da afeção ficassem isentos de pagamento do imposto palhota e de quaisquer outras contribuições ou impostos a que tivessem sujeitos. Nesse mesmo Boletim Oficial era criado o Centro de Estudos da Guiné Portuguesa que teria como seu órgão o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa.

No último dia do ano, no suplemento n.º 53 do Boletim Oficial n.º 25, publica-se o Decreto-lei n.º 34:478, do Ministério das Colónias, tem a ver com o envio de missões antropológicas e etnológicas, a quem Sarmento Rodrigues dará todo o impulso aos seus trabalhos. Enfim, o plano de ação governativa com o declarado apoio do Governo e com a chegada de dinheiro e meios e técnico ganhava o seu ímpeto.

Sarmento Rodrigues regressava de Lisboa e trazia boas notícias: dinheiro, equipamentos, a vinda de cientistas, apoio governamental para infraestruturas, obras públicas e saúde
Museu e Centro de Estudos da Guiné Portuguesa. Foto Serra, 1955
Tocado de Korá. Imagem retirada deste número de Ronda pelo Ultramar
Duas páginas do mesmo número da revista
(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 15 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27320: Historiografia da presença portuguesa em África (500): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial da Colónia da Guiné Portuguesa, 1945 (57) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27336: Notas de leitura (1854): "Um Império de Papel", por Leonor Pires Martins; posfácio de Manuela Ribeiro Sanches; Edições 70, 2.ª edição, 2014 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Dezembro de 2024:

Queridos amigos,
No posfácio desta importantíssima obra que é um "Império de Papel, Imagens do Colonialismo Português na Imprensa Periódica Ilustrada (1875-1940)", a investigadora Manuela Ribeiro Sanches releva a retórica da missão civilizadora, como a do marquês de Sá da Bandeira, e a sua filantropia anti-esclavagista, desmentidas pelas práticas nas colónias, a noção de cristianização que acompanhou o processo missionário, onde estavam ausentes dois fundamentos essenciais: o da igualdade natural de todos os humanos e o do seu estádio civilizacional inferior para justificar o aproveitamento do progresso, uma forma de puxar para cima as raças e as culturas - era como se o colonialismo exigisse a África entrar na Idade das Luzes, isto no século XIX, porque a seguir, com a industrialização maciça, com a valorização das matérias-primas, a intenção libertadora ou filantrópica ganhou outra dimensão. A resposta política que o Estado Novo encontrou, na efervescência dos movimentos anticoloniais, foi o lusotropicalismo, outra ficção, basta pensar na Guiné onde a população branca era mínima e quase sempre de passagem. Procurou-se dar uma imagem de tolerância, catapultar os quadros africanos para lugares intermédios da Administração Pública, subsidiar as peregrinações a Meca, construir estradas a galope, etc. Claro que estamos a falar de uma ou outra história posteriores à de um Império de Papel. E Manuela Ribeiro Sanches observa que cabe à Europa tentar ver no seu passado menos um repositório de glórias e feitos, mas uma oportunidade para reconhecer os limites e ensaiar um pequeno passo para se reinventar a Europa e as suas relações consigo mesma e com o mundo.

Um abraço do
Mário



Um Império ficcionado em jornais e revistas, livros e álbuns, um Império de e em papel (2)

Mário Beja Santos

Trata-se de uma obra esmerada pelo conteúdo e apresentação, "Um Império de Papel", por Leonor Pires Martins, posfácio de Manuela Ribeiro Sanches, Edições 70, 2.ª edição em 2014. A autora visionou e analisou publicações entre 1875 e 1940 e diz que vem ao mesmo tempo propor uma revisitação crítica da iconografia. “Com esse objetivo, procurei fazer um enquadramento histórico de imagens aqui reproduzidas, assinalando as circunstâncias políticas, culturais, mas também da ordem tecnológica, que marcaram – e possibilitaram – a sua produção e circulação. Considerei os temas mais recorrentes e as motivações dos diversos artistas e fotógrafos. O papel diligente e ideologicamente empenhado da generalidade da imprensa periódica ilustrada na disseminação de ideias e conhecimentos.“

Porquê 1875 e até 1940? Em 1875 é criada a Sociedade de Geografia de Lisboa, a quem caberá o papel catalisador para a construção do Terceiro Império, funcionará como o lobby junto do poder soberano, contribuirá para expedições, congregará intelectuais, diplomatas, agentes dos negócios e da finança, escritores, tem no seu comando uma figura excecional, Luciano Cordeiro- 1940 é a data da maior obra ideológica da construção e mentalização de que o Mundo Português ia do Minho a Timor, o regime de Salazar não poupou esforços para o grandioso espetáculo que ofereceu na Praça do Império.

Jornais e revistas contribuem para que os leitores nutram um sentimento de grandeza pelos cerca de 2 milhões de quilómetros quadrados do Império Colonial Português, é graças a esse Império de Papel que se vai tomando conhecimento da ocupação das regiões africanas, do atrativo em emigrar, refazer a vida numa base de prosperidade, tudo parece abrir campo à riqueza daquelas Áfricas, mais a mais o país continua a ser visceralmente de analfabetos, o que realça o peso da imagem.

Mas, como escreve a autora, tudo era relativamente ilusório. “O país não dispunha de meios para explorar e colonizar os seus domínios ultramarinos. Repare-se que na viragem do século a maior parte dos territórios, sobretudo os maiores, não estavam mapeados, não tinham redes de estradas ou caminhos de ferro, nem um sistema de administração unificado e as comunicações com a metrópole eram esporádicas e dependentes da navegação inglesa. As ferrovias existentes, construídas com capitais ingleses e à custa do trabalho forçado imposto aos indígenas ligava não as regiões das províncias ultramarinas portuguesas, mas Lourenço Marques aos Transval e a Beira à Rodésia. Assim, talvez mais do que a deficiente organização do aparelho administrativo colonial, ou as cíclicas crises financeiras nacionais, foi a dificuldade de atrair colones para a África Portuguesa, para a transformar no novo Brasil.”

As publicações esforçavam-se por mostrar as estações zootécnicas, os touros, os pastores portugueses, a produção de açúcar. Dava-se notícia do transporte gratuito de portugueses para Angola e da entrega de terras a esses novos colonos, preferindo-se aqueles que soubesse ofícios mecânicos ou fossem artistas e lavradores. Mas o Brasil continuava a ser um polo de atração.

A Igreja Católica mobilizava padres, freiras e missionários. E, sem tréguas, surgem imagens de construções, plantações, embarques de cacau, as famílias no planalto de Moçâmedes. Andaram a conviver portugueses e bóeres na Huíla, não se misturaram bem na maneira de viver, os bóeres grandes caçadores, os madeirenses dedicados principalmente a culturas alimentares, os bóeres abandonam o planalto da Huíla, houve depois um ambicioso projeto de colonização com transmontanos, estes só chegaram depois da Segunda Guerra Mundial. Também a autora observa que o imediato envolvimento de Portugal na Primeira Guerra Mundial acarretou a deslocação de tropas expedicionárias para o sul de Angola ou norte de Moçambique, estes atos foram decisivos para que o país mantivesse as suas colónias, contudo não ficou afastado o fantasma da expropriação do Império. Para afastar esse perigo criou-se em 1920 o regime dos Altos-Comissários para Angola e Moçambique, conferindo-lhe vastos poderes e maior autonomia de decisão, Norton de Matos foi Alto-Comissário em Angola, tinha um plano bastante ambicioso que previa, entre outros aspetos, a rápida modernização do território, feita através da reorganização das estruturas administrativas, o fomento da economia, a construção de habitações – mas um regime encapotado de escravatura ainda permanecia na colónia.

Há também uma outra observação pertinente que a autora regista:
“A iconografia alusiva à África colonial mascarava as fragilidades do Império: um Império onde as viagens de exploração não trariam grandes vantagens a Portugal no jogo da diplomacia e política coloniais europeias, mas a que as imagens publicadas na imprensa periódica deram uma expressão notável; um Império cujo efetivo controlo foi tardio, apesar das revistas ilustradas confirmarem a presença de regimentos de tropas portuguesas em várias regiões africanas desde os meados da década de 1890; um Império que, década após década, assistiu à falência dos sucessivos projetos do povoamento ‘branco’, mas que os retratos de grupos de colonos pareciam contraditar; um Império que, em termos globais, não gozava de uma economia próspera, mas do qual chegavam notícias e imagens de grandes fazendas agrícolas, empregando mão de obra nativa que era educada na aprendizagem da música europeia…”
Tudo conjugado, estas imagens tinha o poder de ludibriar, o mesmo não acontecia nos altos círculos da política, aí sabia-se perfeitamente que havia ameaças de expropriação estrangeira, e que os governos eram incompetentes para defender, administrar e desenvolver eficientemente as possessões ultramarinas.

Império de ficção, basta pensar na missão civilizadora advogada por Sá da Bandeira, a abolição da escravatura, que se prolongou à sorrelfa do que a lei prescrevia, mascarada de trabalho forçado. O Estado Novo procurou usar todo este material imagético a partir da Agência Geral das Colónias, teve a preocupação de apoiar ou incentivar a publicações periódicas para preparar os quadros da administração colonial (basta pensar no Boletim Geral das Colónias, a revista "O Mundo Português", a coleção "Pelo Império", os "Cadernos Coloniais", as mostras de produtos, os cortejos, as exposições coloniais, eram imagens em que aparecia o ministro das Colónias, Armino Monteiro, no Parque Eduardo VII, onde se realizava a Grande Exposição Industrial Portuguesa, em 1932, ali apareceram grupos de guineenses, depois a exposição colonial de 1934, apresentada publicamente como uma grande lição de colonialismo, faziam-se excursões no centro e no norte do país para ir ver esta gente exótica e as meninas de peito ao léu.

E assim se chegou ao acontecimento mais espetacular do Estado Novo, a exposição do Mundo Português, momento de grande dinamismo do regime, a par das comemorações, iniciava-se a recuperação de vários castelos medievais, o restauro dos chamados “Primitivos Portugueses” (pinturas dos séculos XV e XVI), a construção do Estádio Nacional, da Fonte Luminosa na Alameda D. Afonso Henriques, dos bairros do Restelo e Alvalade, do aeroporto, das gares marítimas e fluvial, de entre outras obras e infraestruturas públicas que mudariam de forma significativa a toponímia e a vida na cidade.

Não voltou a haver elã para repetir tal desafio de desenvolvimento à sombra do Império, nem mesmo nas comemorações do 40.º aniversário da Revolução Nacional. E a autora assim termina:
“Poder-se-á dizer que o Império de Papel aqui referido foi-o sobretudo de papel de jornal e revista. Não chegou a ser sequer um Império, de capa dura ou emoldurado – e muito menos de película.”

Exposição do Mundo Português, indígena Bijagó
Plano geral da Exposição do Mundo Português, 1940
Exposição do Mundo Português, outra vista panorâmica
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Notas do editor:

Vd. post anterior de 13 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27314: Notas de leitura (1850): " Um Império de Papel", por Leonor Pires Martins; posfácio de Manuela Ribeiro Sanches; Edições 70, 2.ª edição, 2014 (1) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 20 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27333: Notas de leitura (1853): "Os Có Boys (Nos Trilhos da Memória)", de Luís da Cruz Ferreira, ex-1º cabo aux enf, 2ª C/BART 6521/72 (Có,1972/74) - Parte IV: de Figo Maduro a Bissalanca "by air", e depois de LDG até Bolama para a estopada da IAO (Luís Graça)

sábado, 18 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27331: Os nossos seres, saberes e lazeres (705): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (226): Em S. Estevão de Ribas de Sil, no passeio termal de Ourense – 5 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Setembro de 2025:

Queridos amigos,
Ah! Sim, já sinto saudades de Ribeira Sacra, de Nogueira de Ramuin, lamento não ter regressado a Monforte de Lemos, que me levou no anterior passeio até Vigo. Não vou esquecer tão cedo o nome de certas localidades como Ribas de Sil, O Pereiro de Aguiar, A Teixeira, Castro Caldelas, Taboada, estas localidades onde não faltam igrejinhas românicas, belos mosteiros, matas que nos lembram sem dificuldade Sintra, campos frondosos, a ver se posso negociar para o ano as Ribas baixas , Lugo, Santiago de Compostela. Despeço-me da região contrafeito, embora sabendo que tenho outras belezas à minha espera, é o caso de Chaves e depois da romagem de saudade a Pedrógão Grande.

Abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (226):
Em S. Estevão de Ribas de Sil, no passeio termal de Ourense – 5


Mário Beja Santos

Durante a viagem no Canhão de Sil era recordado aos visitantes que todo este território tinha sido ocupado por eremitas a partir do século VI e havia um conjunto de mosteiros de grande significado à volta de Ourense. Não havendo disponibilidade para visitar os três, escolheu-se o Mosteiro e a Igreja de S. Estevão de Ribas de Sil. Começou-se pela Igreja abacial do Mosteiro, começada a construir em 1183, está aqui mesmo à nossa frente na descida, envolta por colinas escarpadas.

A caminho do Mosteiro e da Igreja de S. Estevão de Ribas de Sil
Fachada do Mosteiro e da Igreja de S. Estevão de Ribas de Sil. A Igreja do Mosteiro é de três naves cobertas com abóboda de cruzeiro, dispõe de um Coro Alto construído em finais do século XVII princípios do século XVIII. Houve para aqui uns desmoronamentos na nave central do Coro, recentemente recuperada. Este Mosteiro tinha fama da observância religiosa, nove bispos escolheram-no para última morada, daí o Mosteiro conservar a sua memória no escudo através das nove mitras. Mais adiante falaremos deste claustro. Resta dizer que no século XIII os nove bispos eram venerados como santos e que no século XV os seus restos foram trasladados para o Altar Mor.
Este retábulo em pedra é uma obra única do românico, data do século XIII. Quando se deu a expulsão das ordens religiosas, ocultou-se o retábulo numa parede de uma galeria do claustro grande; este retábulo só foi descoberto em finais dos anos de 1950.
Nesta preciosidade escultórica vemos Jesus no centro, rodeado de S. Pedro e S. Paulo, e está lá também representado o Apóstolo Santiago.
O belíssimo Altar Mor, e não menos assombroso tramo da abóboda que tem um óculo luminoso no centro.
Duas imagens mostram a magnificência da abóboda de cruzeiro.
A Igreja tem um bom acervo de retábulos barrocos, com exceção do retábulo do Altar Mor que é do estilo renascentista. Os outros retábulos são barrocos de diferentes épocas, dedicados a S. Bento e à virgem de Montserrat, há também retábulos dedicados a S. José e a S. Roque, veja-se aqui S. Roque expondo a ferida da perna.
Retábulo da Virgem Imaculada
Fachada do Mosteiro de S. Estevão de Ribas de Sil, estilo barroco, vemos o escudo com as nove mitras pertencente aos bispos santos.
Estamos no Mosteiro, possui uma atmosfera impressionante, foi outrora o mais importante Mosteiro da Ribeira Sacra, entre bosques de carvalhos e castanheiros. S. Estevão de Ribas de Sil é anterior ao século. O claustro grande também chamado dos Cavaleiros, é de estilo renascentista. Há também um claustro pequeno e o claustro dos Bispos, este romano-gótico.
Pormenor do Claustro dos Bispos, é o mais antigo de S. Estevão. Começou a construir-se em cerca de 1220 como espaço para exaltar a memória dos nove bispos santos. Comunica com a Igreja através de uma escadaria na face sul e de um outro acesso no claustro superior. Até há algumas décadas era cenário de procissões que agora se realizam na Igreja. O corpo inferior é românico, o superior gótico. Convém recordar que o Mosteiro entrou numa profunda decadência em finais do século XV e princípios do século XVI. O edifício albergou durante vários séculos uma escola de arte, e ficou ao abandono no século XIX. Foi declarado monumento nacional em 1923 e em 2004 abriu ao público como Parador Nacional de Turismo.
Nunca, nestas itinerâncias, se mostra o autor e quejandos, a única exceção é esta radiosa princesa, a minha neta, hoje com catorze anos, revelou-se muito interessada desde a Lousã onde lhe mostrei onde a mãe e a tia passaram férias, gostou muito de S. Pedro do Sul, rendi-me a este sorriso de quem não desdenha passar férias com o avô.
O passeio termal é a escassos quilómetros da cidade de Ourense, a característica é a sua água quente, espalha-se pelo Rio Minho entre a Ponte do Milénio e a Passarela de Outariz, foi exatamente aqui na Burga de Canedo que entregámos o corpo a água a temperatura tão aprazível. Os nomes destas termas são bem interessantes: Chavasqueira, Tinteiro, Moinho da Veiga, Fonte de Reza. Ficámos convencidos, queremos voltar.
Vamos sair da Galiza, o próximo destino é Chaves, não resisti a fotografar este belo espigueiro, dir-me-ão que há bastante parecidos em Portugal, pode ser, mas assim metido na paisagem e com aqueles tons azuis do céu e acinzentados das nuvens pareceu-me objeto sagrado, que afinal o é, acolhe os cereais da nossa boa alimentação. Até à próxima, adorada Galiza.

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 11 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27308: Os nossos seres, saberes e lazeres (704): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (225): O espetacular passeio na Ribeira Sacra – 4 (Mário Beja Santos)