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segunda-feira, 24 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26611: Notas de leitura (1783): "Futuros Criativos"; edição da Associação para a Cooperação Entre os Povos, Fundação Portugal-África e Instituto Camões, 2019 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Dezembro de 2023:

Queridos amigos,
Aconteceu andar a passear pelo Campo dos Mártires da Pátria e resolvi entrar no Goethe-Institut, aqui se promove a língua e cultura alemãs, tem permanentemente livros em saldo, dirigi-me em primeiro lugar à biblioteca, se tinha vindo alguma coisa sobre a Guiné-Bissau, que não, mas lembrava-se que havia ali uns expositores de livros em segunda-mão qualquer coisa que falava da Guiné-Bissau. Matei a barriga de misérias, encontrei um cd com os concertos de flauta de Georg Philipp Telemann, interpretações prodigiosas, livros de fotografia e, cá está, este Futuros Criativos que me encheram a alma, naquele dia em que vinham notícias tão sombrias de uma terra que tanto amo, e aqui fica esta minha homenagem àquele povo que não desfalece com sucessivos piratas em lideranças políticas, são a estes futuros criativos que mando o meu abraço e votos de resiliência, haverá um dia em que este povo amável encontrará lideranças justas.

Um abraço do
Mário



Futuros Criativos da Guiné-Bissau (1)

Mário Beja Santos

Futuros Criativos tem a ver com economia e criatividade em Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, S. Tomé e Príncipe, e Timor-Leste, acolhe um conjunto de atividades desenvolvidas pela ACEP – Associação para a Cooperação Entre os Povos, edição da ACEP, Fundação Portugal-África e Instituto Camões, 2019. Aqui são repertoriadas atividades em parceria com organizações e pessoas destes países de língua portuguesa ao longo dos últimos quatro anos, com o objetivo de conhecer e valorizar a inovação e a criatividade como fatores de desenvolvimento.

A criatividade e inovação estão cada vez mais na base da valorização de recursos endógenos e até identitários, de descoberta de novas soluções para uma multiplicidade de desafios, assistimos à criação de oportunidades para jovens, uma maior igualdade na inserção das mulheres no trabalho e nas comunidades, inclusão de populações rurais envelhecidas, uma gestão de recursos de forma sustentada, valorização de culturas nacionais, com o recurso a inovações da ciência e da técnica. A economia criativa é um conceito baseado nos recursos criativos que potencialmente geram crescimento e desenvolvimento económico. Aqui se passam em revista experiências em território da Guiné-Bissau que abarcam diferentes áreas, mas que certificam que a economia criativa permite o desenvolvimento de atividades económicas suportadas pelo capital cultural, criativo e artístico, transversal aos contextos culturais, artísticos, sociais e económicos e que conferem um caráter único aos bens e serviços gerados.

Escrevo este texto numa ocasião uma vez mais tão dolorosa para o povo da Guiné-Bissau, o que aqui mostro, retirado deste esplêndido livro, é a minha rendida homenagem a um povo que tanto amo, tem a sorte madrasta de ser dirigido por classes políticas cúpidas, dominadas pela agiotagem, expedientes de corrupção, tenebrosos compadrios de negócios, incluindo os da droga. Um povo que nos deslumbra pela capacidade de superara adversidade e de usar a inovação e o criativo como recursos ilimitados.


Os Netos de Bandim: amigos das crianças e das artes

São crianças e jovens entre os 4 a 30 anos de idade e todos têm uma paixão pelas artes culturais e tradicionais dos diferentes grupos étnicos que representam a cultura guineense. Surgem da iniciativa da organização não-governamental guineense Amigos das Crianças, em 2000, com o objetivo de sensibilizar para a maior promoção da cultura guineense, recolhendo e divulgando elementos de expressão dos diversos grupos étnicos do país. Rapidamente se transformou também em instrumento de sensibilização através da dança, música e teatro, reunindo cerca de 120 associados jovens, do bairro de Bandim, em Bissau. As receitas provenientes das atuações revertem para a educação dos seus associados e para o apoio em despesas de saúde. Os Netos de Bandim são uma presença assídua no Carnaval e já representaram o país na maior manifestação de Carnaval do mundo – o Carnaval do Brasil.
Imagens dos Netos de Bandim

Irmão Unidos, pelo sangue e pelas artes plásticas

Começaram por pintar cabaças, no início dos anos 2000. Criaram então o grupo “Irmãos Unidos”. A pintura foi-se tornando uma forma de contribuir para a dinamização da cultura guineense. Neste sentido envolveram-se na Associação de Artistas Plásticos, onde Lemos Djata tem exercido funções como presidente. Já apresentaram o seu trabalho em exposições individuais e coletivas na Guiné-Bissau, Cabo Verde, Senegal e Egipto, Portugal, França, Bélgica e Espanha. Foram galardoados como os melhores pintores do ano em Bissau, em 2005, tendo recebido prémios e distinções por organizações da Polónia, de Portugal e da diáspora guineense. Sentido que as artes plásticas têm ainda pouco espaço na Guiné-Bissau, procuram divulgar o seu trabalho num espaço de exposição coletiva em Bissau, onde apresentam o seu trabalho, com outros artistas plásticos nacionais.
Os Irmãos Unidos, Ismael e Lemos Djata
Imagem de um dos seus trabalhos

A deslumbrante panaria que sai dos panos de pente

Fundada em 2004, a Artissal é uma associação guineense que trabalha na recuperação e valorização da panaria guineense. Os panos de pinti (de pente, o tipo de tear utilizado) são tradicionalmente utilizados nas mais importantes cerimónias das pessoas e comunidades, principalmente das etnias Papel e Manjaca, e a sua produção é habitualmente realizada por homens, a partir de conhecimentos e técnicas ancestrais, transmitidos entre gerações. A associação tem desenvolvido um trabalho de pesquisa e recuperação de materiais e padrões antigos, de práticas de tecelagem e de modelos de teares, introduzindo elementos de melhoria, quer na qualidade das matérias-primas quer na qualidade dos processos de trabalho. Tem igualmente dinamizado grupos de mulheres tecelãs, de etnia Papel, que participam de grupos de formação com artesãos, abrindo assim esta atividade às mulheres. Com o propósito de melhorar a dinâmica de produção e a geração de rendimento para os artesãos e artesãs, estes estão organizados em cooperativas e numa federação: a Cooperativa Bontche, em São Paulo, Bissau, a Cooperativa Djaguimobilar, em S. Domingos, e a Federação Sitna Bissif, em Cacheu. A Artissal procura integrar estes grupos em redes nacionais e internacionais de comercialização solidária, contribuindo para a divulgação da panaria tradicional guineense e para a comercialização dos produtos por um preço justo. A qualidade desta panaria tem sido alvo de reconhecimento que permite a continuidade do projeto, pelos apoios que estimulam a continuidade.
Artissal, os maravilhosos panos de pente

B&F, a engenheira que se dedica à moda

Nérida Fonseca é uma jovem engenheira informática que trabalha para uma grande empresa internacional de telecomunicações. Em 2014, decide criar a sua própria empresa, a Batista & Fonseca, que se dedica à produção e comercialização de acessórios de moda e decoração a partir de elementos tradicionais da cultura guineense – o pano de pinti. Este artigo, tradicionalmente associado às cerimónias fúnebres e matrimoniais das etnias Papel e Manjaca, adquire novas formas e funções nas criações de Nérida. O que é que faz correr esta engenheira informática? A paixão pela moda e pelo seu país, a que se aduz a sua capacidade enquanto autodidata, o que lhe permitiu aliar o design contemporâneo ao saber tradicional pano de pinti. Inicialmente, tudo o que confecionava era ou para uso exclusivo na própria casa ou para dar presentes aos amigos e conhecidos. A receção que as diferentes peças tiveram no mercado foi determinante para a formação da dimensão comercial. E o aeroporto de Bissau tem sido a sua rampa de lançamento.
B&F, acessórios de moda e decoração a partir de elementos da cultura guineense

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 21 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26603: Notas de leitura (1782): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Negros e brancos na Guiné Portuguesa (1915-1935) (4) – 3 (Mário Beja Santos)

sábado, 22 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26605: Os nossos seres, saberes e lazeres (674): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (197): Bruscamente, no Natal passado, uma viagem relâmpago a Ponta Delgada – 1 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Deembro de 2024:

Queridos amigos,
Nem me passava pela cabeça, já numa certa efervescência da quadra de Natal, aterrar em Ponta Delgada para me integrar nas comemorações de uma associação de consumidores que ajudei a impulsionar e tenho acompanhado a florescência, com a ternura de ver tal filhote já na maioridade, e tratado com respeito pelo trabalho desenvolvido; pois assim aconteceu, tinha que vir lesto e pronto a perorar, o que para mim não tem problema, reformado vai para 12 anos continuo a estudar o que se passa na política de consumidores um pouco por toda a parte, o que me facilitou a vida quando a Fundação Francisco Manuel dos Santos me convidou para escrever um livro sobre a sociedade de consumo e os consumidores em Portugal. Foram 48 horas, mas deu para o deslumbramento, tudo acabou em apoteose quando, era a última etapa da minha intervenção, fui à RDP Açores, quem me entrevistou foi o jornalista Sidónio Bettencourt que conheci nos estúdios da antiga Emissora Nacional (na rua de São Marçal, não muito longe do Palácio de S. Bento), era ele estagiário, gravou um programa da minha responsabilidade, trabalho que eu gabei, vim a sugerir que ficasse como funcionário naquela estação emissora, ele quis voltar à sua terra, e passadas estas décadas foi a grande alegria do reencontro.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (197):
Bruscamente, no Natal passado, uma viagem relâmpago a Ponta Delgada – 1


Mário Beja Santos

Recebo um telefonema do meu amigo Mário Reis, secretário-geral da ACRA – Associação dos Consumidores da Região dos Açores, invoca a nossa estima recíproca de longa data para vir a S. Miguel às comemorações dos 35 anos desta associação que ajudei a fundar, e que com tanto carinho acompanho. Por razões orçamentais, alega, tem de ser quase já, marca-me datas, sinto-me compelido a não poder recusar, enquanto falamos lembro-me daquela tarde em que estive na conferência inaugural, corria o ano de 1989, para minha surpresa, o então Presidente do Governo Regional, Dr. Mota Amaral, proferiu uma alocução de impressionante abrangência, qualidade e sentido premonitório. Outro motivo que me impelia a não recusar é que finalmente entrara em funcionamento o Centro de Arbitragem de Mediação de Conflitos de Consumo dos Açores, a ACRA via-se agora na obrigação de mudar os azimutes, queria ouvir opiniões. Fiz a mala, onde meti umas dezenas de livros de consumidores e pus-me ao caminho. Entrara-se na quadra de Natal. O Mário vai-me buscar ao aeroporto, despeja-me à porta de um hotel, tenho o anoitecer e o resto do dia por minha conta. É um espaço que me é muito familiar aquele que vou agora percorrer pelos meus próprios pés, rever tudo, estou certo e seguro, é uma lavagem para a alma. E assim vai começar a primeira deambulação, o anoitecer está mesmo próximo.
Quando aqui cheguei, em outubro de 1967, este espaço da avenida já existia, o panorama ao fundo nas colinas verdejantes é quase o mesmo, salvo o crescimento do casario. O molhe do porto era um semicírculo, ainda estou a avistar a sua ponta em direção àquele cruzeiro gigante, dizia-se que este porto era obra dos alemães, 1937, talvez na previsão de que esta região atlântica ficaria sob custódia germânica. Indo por aqui fora, aí quilómetro e meio à frente, é uma zona de recreio, chamemos-lhe as docas, em 1967 esta Avenida Infante D. Henrique parava perto da Igreja de S. Roque, havia uma piscina e nada mais. Aqui me detenho a rememorar o encantamento que este passeio marítimo me ofereceu e continua a oferecer.
Ao som da música alusiva à quadra de Natal, avanço em direção ao largo da Câmara Municipal onde descubro este presépio iluminado, onde não faltam as Portas da Cidade, o ex-libris de Ponta Delgada.
Aqui estão as Portas da Cidade, o mar chegava mais próximo como se pode ver num quadro célebre de Domingos Rebelo alusivo aos emigrantes, ali no fim do lado esquerdo desembarcou a família real na sua visita oficial em 1901.
Chama-se Jardim Sena de Freitas, nasceu em Ponta Delgada este historiador e polemista considerado uma das figuras mais importantes do catolicismo na monarquia constitucional. É um espaço frondoso e florido que tem ao fundo o Palácio da Conceição, já foi convento, residência do governador civil e é hoje a residência do Presidente do Governo Regional dos Açores (mantém o seu escritório no Palácio de Santana), aqui se realizam as reuniões do Governo.
Pus-me defronte do Palácio da Conceição, tinha entrada aberta àquela hora tardia, entrei e disseram-me que podia visitar a exposição alusiva à autonomia açoriana, fazer uma visita guiada ao interior do palácio e visitar ainda na sala do coro baixo uma exposição dedicada a Mota Amaral. A curiosidade foi mais forte, entrei todo pimpão, dei por muito bem passado o tempo que aqui estive e o que pude conhecer. Não conhecia este cartaz dedicado aos expedicionários para aqui enviados durante um bom período da Segunda Guerra Mundial, o quartel onde dei duas recrutas, nos Arrifes, a cerca de 7 km de Ponta Delgada, foi inicialmente previsto para ser hospital de guerra, felizmente nunca chegou a funcionar nessa vertente, transformou-se no Batalhão Independente de Infantaria n.º 18.
A bandeira que é o símbolo da região
Uma das surpresas da visita guiada foi constatar que nas obras mais recentes ao palácio descobriu-se a existência de dois grandes tanques no que terão sido os jardins do claustro conventual, há mesmo um fontanário e sinais da existência de canais, havia água que vinha das terras e que inclusivamente contribuía para o abastecimento da população local. Está tudo desentulhado, bem iluminado, é um espaço surpreendente
Não vos vou falar da exposição dedicada a Mota Amaral, tocou-me este elemento expositivo, o recorte de uma fotografia que tem na sua base um aglomerado de lava com nove porções, o conjunto arquipelágico, ele foi o primeiro Presidente do Governo Regional (1976-1995), foi deputado da Assembleia Constituinte, deputado da Assembleia Nacional e Presidente da Assembleia da República. Acho esta simbologia do aglomerado de lava sob os olhos do político uma marca de talento artístico.
É uma das portas laterais da igreja matriz, um belo tardo-gótico, fui surpreendido pela iluminação, viera até aqui para ficar a olhar para um primeiro andar onde o meu saudoso amigo, o médico oftalmologista José Luís Bettencourt Botelho de Melo, tinha consultório, não foram poucas as vezes que ali combinámos o nosso encontro para depois ir jantar e matar saudades da Guiné.
Estou agora no largo de S. Francisco, o mesmo onde há um convento onde se guarda a imagem do Senhor Santo Cristo dos Milagres, num dos bancos ali Antero de Quental pôs termo à vida. Muitas vezes descia a rua de Lisboa, onde tinha o meu quarto e passava diante deste lugar que era o hospital, o hospital mudou de lugar (antes fora convento), está agora transformado num belo hotel.
Neste banco pôs termo à vida um dos mais influentes poetas românticos portugueses, Antero de Quental, é desse tempo aquela âncora com a palavra esperança, que torna esse tremendo desfecho tão mais chocante.
Aproxima-se o Natal, vê-se à direita outra porta lateral em estilo tardo-gótico da igreja matriz, é impressionante o bulício, as diversões para os mais jovens, a atmosfera musical, caí agora no tropel das compras ou dos passeios dos curiosos, sinto agora uma fraqueza de quem andou a comer sandes e precisa de uma sopa quente. Até já!

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 15 de Março de 1971 > Guiné 61/74 - P26587: Os nossos seres, saberes e lazeres (673): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (196): From Southeast to the North of England; and back to London (14) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 21 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26603: Notas de leitura (1782): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Negros e brancos na Guiné Portuguesa (1915-1935) (4) – 3 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Março de 2025:

Queridos amigos,
Deixo-vos o terceiro e último apontamento acerca do ensaio em que Philip Havik mostra o tratamento da imagem do homem e da mulher antes e após o período da ocupação efetiva. Ele não deixa de observar a mudança fundamental que se operou quando a vida do colono se transferiu das Praças e Presídios para o interior, apareceram as administrações e os postos, os governadores passaram a exigir relatórios anuais a estes funcionários, o modelo mais saliente destes anos 1930 foi o inquérito elaborado por um sobrinho do governador Velez Caroço, uma matriz que permite observar o que era a imagem da mulher. Neste tempo ainda imperavam teses raciais que proibiam categoricamente a mistura de raças, o que entra em contradição com a presença do colono neste interior onde os administradores e chefes de posto não levavam, em regra geral, a mulher branca, daí o mulato ter um desenvolvimento notório na Guiné. E há a preponderância de sinharas, como Nhá Bijagó e até perto da nossa presença colonial Nha Carlota. Este ensaio de Philip Havik é um estupendo ponto de partida para a continuação de estudos sobre as relações luso-africanas a partir de finais do século XIX e até ao fim do império.

Um abraço do
Mário



Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné:
Negros e brancos na Guiné Portuguesa (1915-1935) (4) – 3


Mário Beja Santos


Data de meados de 1930 a primeira monografia etnográfica que faz o inventário das tradições orais das principais “raças ou tribos”. O seu autor deixa claro que a sua contribuição quebra o silêncio, haverá uma meia dúzia de trabalhos de grande interesse para alguns, mas destinado aos arquivos. Evidentemente que se produziram relatos pelos primeiros navegadores, somente publicados nos séculos XIX e XX, em que o registo in loco das tradições locais ocupa um lugar central. A monografia em apreço, "Babel Negra", tem uma lógica étnica e não administrativa, fornecendo dados sobre o parentesco, o casamento, a organização social, a agricultura e as línguas, obtidas essencialmente, mas não exclusivamente, pelos administradores e os seus intérpretes.

Os resultados eram em parte baseados sobre um novo questionário preparado pelo chefe dos assuntos indígenas do tempo do governador Vellez Caroço. As justificações dadas para este novo inquérito eram associadas ao projeto do novo Código Civil e Penal que se destinava a substituir as leis portuguesas então em vigor, considerando que não correspondiam à “mentalidade primitiva da população indígena”. O seu quadro e conteúdo são particularmente reveladores das doutrinas subjacentes ao pensamento colonial da época. O documento versa uma grande variedade de questões incluindo a família, refere por exemplo a divisão do trabalho entre sexos e nota-se uma boa dose de ignorância quando fazem perguntas como “Quem trabalha, os homens ou as mulheres?”. As questões referentes à autoridade paternal e maternal fazem-se acompanhar de perguntas postas do ponto de vista do marido: “Na vida do casal, quais são os papeis a que a mulher é obrigada a cumprir?”.

No livro "Babel Negra" identificam-se doze “tribos”, cada uma será objeto de um capítulo sob a forma de curtas vinhetas, isto ao mesmo nível do questionário atrás referido, tratando depois as características físicas e até as atividades de lazer. Cada capítulo inclui a fotografia de um homem e de uma mulher, bem como um glossário elementar do dialeto “étnico”. Dá-se mais importância aos grupos patrilineares, tais como os Mandingas e os Fulas, mas também aos Balantas “animistas” que aos grupos matrilineares. As relações entre homens e mulheres são sempre apresentadas como desiguais e demonstram a segregação existente entre os sexos que constituem um fio condutor no contexto destas sociedades dominadas pelos homens.

As liberdades sexuais das mulheres Baiotes são objeto de uma menção especial enquanto as suas proezas como remadoras ou lutadoras só são marginalmente referidas. O capítulo sobre os Felupes ou Djolas, caracterizados como “guerreiros” e “produtores de arroz” se releva o peso da autoridade da primeira mulher sobre o marido, situação que influencia a vida política da tribo, mas sem indicar especificamente em quê. Se bem que se vivesse num regime dito patriarcal, as sacerdotisas nesta gerontocracia masculina eram responsáveis pela manutenção dos lugares sagrados aos quais os homens não tinham acesso.

Philip Havik refere devidamente a teoria linguística sobre o género, e observa que os estudos etnológicos foram produzidos por administradores e não por antropólogos; os dados etnológicos extraídos dos relatórios coloniais sobre as populações da Guiné por mais que identifiquem modelos de discurso centrados sobre a imagem pejorativa das mulheres, fornecem nuances que obrigam a um exame semântico. Importa não esquecer que nas dinâmicas entre géneros nos setores do comércio e da intermediação aparecem mulheres grandes – as Nharas – impuseram-se nos pontos do comércio do litoral com poder e autoridade equivalentes aos que vemos associados aos homens da mesma região.

Depois da conquista militar, o poder político ficou doravante concentrado nas mãos de uma administração europeia e assistiu-se a uma mudança de paradigmas nas estruturas das relações entre os géneros. O centro de interesse colonial passou dos portos do comércio afro-atlântico para o interior, as chefaturas foram consideradas como aliados políticos potenciais e cooptados na administração local. O branco passou a viver com a negra, surgiram os mulatos. O questionário etnográfico de 1934 sobre o qual se baseou a maior parte dos trabalhos dessa década traziam já uma questão reveladora sobre a aparência das mulheres, se estas quanto tinham um tom de pele mais claro não tinham uma fisionomia mais perfeita e mais escultural. E passou-se a escrever muito sobre a poliandria e o matriarcado Bijagó, o que se vem a demonstrar mais tarde ter pouco ou nenhum fundamento, fazendo-se o contraponto entre a mulher Bijagó primitiva e a beleza das mulheres Fulas, dizendo-se mesmo que a mulher Futa-Forro era inteligente e entre todas as mulheres indígenas da Guiné a mais civilizada.

Dentro destas observações de categorização, destacam-se os manjacos por uma atitude positiva, por falarem mais o crioulo cabo-verdiano, por serem grandes trabalhadores, considerados pois como um dos elementos étnicos mais úteis no desenvolvimento e valorização da colónia, e tecem-se considerações elogiosas sobre a beleza das mulheres, não deixando de se escrever que o seu comportamento sexual libertário podia levar à extinção da “tribo”. Não se pode esquecer que os contactos entre os funcionários coloniais e as mulheres africanas não se limitava ao domínio público, estendia-se ao espaço doméstico onde elas muitas vezes partilhavam a cama com os seus senhores. Os administradores e os chefes de posto viviam e trabalhavam muitas vezes no mesmo edifício. As mulheres foram impulsionadas para a cena como geradoras, mas há que referir as teorias raciais que dominaram os anos de 1920 e 1930 em que a mestiçagem era fortemente criticada e desencorajadas as relações legítimas ou ilegítimas entre indivíduos de raças diferentes, havia inquietação de que se formasse um estrato de mestiços, a etnologia oficial a ela se opunha veementemente, acusando-a de degenerescência da raça. E com a finalidade de reduzir as ocasiões de relações sexuais entre os colonizadores e os indígenas procurou-se recrutar pessoal civil e militar casado, julgava-se assim que se ia impedir a procriação de mestiços.

Nos espaços urbanos a organização era de criar linhas que separavam os europeus dos africanos e também as etnias. Aumentou-se o número de enfermarias e da assistência indígena. Mas há um aspeto interessante e bastante ignorado da etnografia colonial que é a prostituição. A migração dos insulares Bijagós para o continente como de camadas urbanas para o arquipélago é mencionada em certos relatórios como a causa principal das doenças venéreas entre os habitantes das ilhas. Daí a tentativa de os governadores procurarem reter os Bijagós nas suas ilhas, protegendo-os da má influência dos cristãos.

Em suma, assiste-se em meados dos anos 1930 à consolidação do esquema que apresentava as mulheres no discurso oficial como criadores de filhos e trabalhadoras, excetuando sempre as mulheres Bijagós, tratando-as como dominadoras. Entretanto, e apesar dos dados etnográficos, a figuras da mulher continuou, no discurso colonial, a aparecer como um simples apêndice dependente da autoridade e do domínio do homem, uma sombra sem rosto. Mas, entretanto, deu-se uma mudança com implicações no estatuto da mulher. Essa mudança resultou da crescente atenção dos etnógrafos portugueses atribuindo à família o conceito de unidade sólida em vez daquela visão holística até então dominante das sociedades indígenas. Em meados dos anos 1930 era evidente a mutação das prioridades coloniais, mesmo pálida projetou-se a imagem da mulher africana, ela vai aparecer como a mulher indígena entendida como um poderoso agente de civilização e não como uma simples guardiã da espécie e uma besta de carga.

Leopoldina Ferreira Pontes (a primeira, da segunda fila, do lado esquerdo) nasceu em Bissau em 4 de Novembro de 1871. Era filha de João Ferreira Crato (natural do Crato, Alto Alentejo, comerciante na Guiné) e de Gertrudes da Cruz (de etnia Bijagó, natural de Bissau).
"Mulheres combatentes do PAIGC com as suas armas”, exposição “Revoluções – Guiné-Bissau, Angola e Portugal (1969-1974) Fotografias de Uliano Lucas”
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Notas do editor:

Vd. post anterior de 14 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26584: Notas de leitura (1780): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Negros e brancos na Guiné Portuguesa (1915-1935) (4) – 2 (Mário Beja Santos)

Último post da série de 17 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26593: Notas de leitura (1781): "Guiné - Antes, Durante e Depois", por Clemente Florêncio; edição de autor, 2023 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 19 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26598: Historiografia da presença portuguesa em África (470): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1908 (27) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Novembro de 2024:

Queridos amigos,
Saímos da pasmaceira da nomeação de terras em concessão, aforadas ou em enfiteuse, com nomeações e boletins sobre o estado de saúde, o governador Oliveira Muzanty parece não tolerar insubmissões e de 1907 para 1908 ajustou contas com Infali Soncó, no Cuor, brandiu armas na circunscrição de Geba, afrontou o régulo rebelde do Xime, mandou uma expedição a Varela e pôs em sobressalto toda a ilha de Bissau; farto do videirinho Graça Falcão, determinou o seu despacho para S. Tomé e Príncipe; é cuidadoso no levantamento da moral das suas tropas; louva todos e mais algum. Isto naquele ano extraordinariamente difícil em que a monarquia parece oscilar depois do regicídio de 1 de fevereiro. Estamos num ano que ainda não acabou e que promete mais acontecimentos.

Um abraço do
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1908 (27)


Mário Beja Santos

Se os anos mais recentes se revelam marcadamente taciturnos, espelho de uma burocracia entediante e de estranhíssimas omissões sobre o que realmente se passa na Guiné, o Boletim Official de 1908 revela-se totalmente diferente, há razões de sobra, Oliveira Muzanty é um governador que aposta em expedições, procurará resolver o corte à navegação no Geba, perpetrado pelo régulo do Cuor, e com alianças espúrias, e uma nova situação de indisciplina na ilha de Bissau. E chegam-nos referências elucidativas na página oficial dos resultados obtidos.

Logo no Boletim n.º 7, de 2 de fevereiro, portarias com um conjunto de louvores: “Tendo sido dissolvida em 31 do mês findo a coluna de operações no rio Geba e em vista dos relatórios apresentados; hei por conveniente louvar por todas as forças que fizeram parte da referida coluna pela muita subordinação, coragem e sangue-frio de que deram provas no combate de Campampe em 1 de dezembro do ano findo e bem assim nas marchas de 29 de novembro a 2 de dezembro e em especial pela maneira como dirigiram as suas forças e serviços, por vezes com risco do própria vida".
E enumeram-se os oficiais, tenentes da Armada, e tenentes do Exército; e, mais adiante:
“Tendo sido dissolvida em 31 do mês findo a coluna de operações no rio Geba e em vista dos relatórios apresentados; hei por conveniente louvar a guarnição da lancha canhoneira Cacheu pela muita coragem e sangue-frio que deu provas nos combates travados entre aquele navio e o gentio insubmisso do Cuor em especial pela maneira como cumpriram os seus serviços, por vezes com o risco da própria vida.”
E enumera-se os oficiais e as praças.

No Boletim Official n.º 10, de 14 de março, o Governador manda publicar a seguinte portaria: “Considerando o estado de rebelião em que se encontra a região de Varela e a forma como se portou o gentio, com o Residente de Cacheu, na ocasião em que esta autoridade procedia à receção do imposto nas povoações próximas, vindo junto ao acampamento em que se achava, dirigir-lhe os maiores insultos: “Hei por bem organizar um destacamento misto do comando do capitão de Infantaria José Carlos Botelho Moniz, sendo apoiado pela canhoneira D. Luís, do comando do capitão-tenente Alberto António da Silveira Moreno, para castigar o gentio em revolta.”
E enumera-se o efetivo em oficiais, sargentos e praças, incluindo uma companhia de atiradores indígenas, corpo de auxiliares indígenas, serviços de saúde e administrativo.

No Boletim n.º 19, de 16 de maio, uma nova informação de Oliveira Muzanty, desta feita sobre os acontecimentos da ilha de Bissau:
“Considerando que durante os sucessivos combates, em que foi derrotado o gentio de Intim, Bandim e Cuntumbo, se reconheceu a manifesta rebelião de todos os regulados da ilha; considerando mais que a aproximação da época das chuvas inibe a coluna de prosseguir com as alterações em terra, hei por conveniente determinar o seguinte:
1 – É mantido para todos os efeitos o estado de guerra em toda a ilha de Bissau, continuando suspensas as garantias dos seus habitantes;
2 – A suspensão de garantias será proclamada por bandos, em todas as residências em que se acha dividida a província;
3 – Fica proibido todo o género de comunicação da ilha de Bissau, com exceção da Praça, ficando os contraventores sujeitos às consequências da perseguição dos navios de guerra, sendo as embarcações contraventoras consideradas como presas e os seus tripulantes deportados para outras colónias;
4 – Em todas as residências fica proibida a administração do gentio de Bissau, como trabalhadores, quer do Estado, quer de particulares, à exceção dos que tiverem permissão especial do Governo da Província.”


Vale a pena vir um pouco atrás e voltar à campanha do Cuor. No Boletim Official n.º 8, de 10 de julho, o governador que comandou a campanha mandará publicar um conjunto impressionante de louvores, atendamos ao início desta ordem especial de serviço:
“Tendo sido batido e repelido o régulo Infali Soncó, e ocupada a região do Cuor, há muito em rebelião, operações estas levadas ao fim com um bom êxito e honra para a nossa bandeira, que o soldado português tanto ama e respeita, o que mais uma vez veio aumentar o nunca desmentido lustre das armas portuguesas; e que tiveram consequência o livre trânsito da navegação no rio Geba, que se achava fechado desde outubro do ano findo, e durante as quais a coluna suportou não só o embate do inimigo, como também as fadigas de campanha sempre com energia, boa vontade e disciplina, Sua Excelência o Governador manda louvar os oficiais e praças que fizeram parte da coluna de combate, durante as operações no rio Geba…”

E já cá faltava mais uma travessura dos ex-alferes Graça Falcão. No Boletim Official n.º 27, de 11 de julho, o governador não está para os ajustes:
“Tendo chegado ao meu conhecimento que o negociante Jaime Augusto da Graça Falcão, residente em Bissau, reincide na prática de actos para os quais já fora punido, tendo-lhe sido interditado habitar nas circunscrições de Cacheu e Farim;
Tendo sido mandado levantar auto desta reincidência pela competente autoridade da acima citada circunscrição, e averiguando-se, por ele, que o referido Graça Falcão tem feito aleivosas e injuriosas referências ao pessoal da coluna de operações, bem como as vários funcionários, com a agravante de os provocar constante e persistentemente a discussões irritantes e perturbadoras da pública tranquilidade, quer nas ruas quer nos estabelecimentos mais frequentados por estrangeiros e indígenas, prejudicando assim o bom conceito da nação e o brio nacional, perante aqueles, e o nosso prestígio perante estes últimos;
Considerando que lhe não serviu de corretivo o castigo já sofrido;
Considerando que, nessa portaria, não lhe foi aplicado todo o rigor que a lei impõe aos delinquentes dessa sua espécie, em atenção a ter sido oficial do Exército e condecorado, mas deixando de merecer qualquer ato de benevolência por parte dos poderes públicos;
Em virtude dos recentes conflitos, por ele provocados; e
Com o fim de evitar a continuação de factos que podem trazer consequências graves e pôr em risco não só o sossego como a segurança pública:
Hei por conveniente determinar que o mesmo siga, no primeiro transporte, para a província de S. Tomé e Príncipe.”


Temos de agradecer ao governador Oliveira Muzanty ter vindo animar a vida do Boletim Official, tão pardacenta nos últimos tempos.

Notícia do regicídio no Boletim Oficial de 8 de fevereiro
Telegrama alusivo à campanha do Cuor e fuga do régulo Infali Soncó
Estátua de Oliveira Muzanty, Governador da Guiné entre 1906 e 1909, de autoria do escultor António Duarte, erguida em 1950 na cidade de Bafatá, permaneceu intacta após a independência, embora tombada no chão.
Nota de 10 mil réis do BNU, 1909, pagável na sua agência em Bolama
Moeda de 2 tostões de prata com a efígie de D. Manuel II, 1909

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 12 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26577: Historiografia da presença portuguesa em África (469): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, até 1907 (26) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 17 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26593: Notas de leitura (1781): "Guiné - Antes, Durante e Depois", por Clemente Florêncio; edição de autor, 2023 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Novembro de 2023:

Queridos amigos,
Poderia dizer que quanto à pesquisa de livros escritos por camaradas nossos, apelo insistentemente que me emprestem o que sai, não encontro praticamente nada nas livrarias, trata-se de edições de autor, não posso adivinhar como se distribuem tais obras. Podia resignar-me a dizer que a mais não sou obrigado, mas não me conformo, faço telefonemas a Beltrano e Sicrano, tenho sorte com o apoio que recebo da Biblioteca da Liga dos Combatentes, mas aproveito esta oportunidade para renovar o meu pedido de que me indiquem obras sobre a nossa guerra da Guiné publicadas pelos nossos camaradas, mantenho a intenção de deixar referência a tudo o que se publica, mas não tenho condições de adivinho. Quem me puder ajudar, não hesite.

Um abraço do
Mário



A Guiné de Clemente Fidalgo Florêncio, BCAÇ 600, 1963/1965, Bissau e Buba

Mário Beja Santos

Confesso ao leitor que me desunho para ter acesso a obras que falem da Guiné, relacionadas com a guerra e seus protagonistas. Tenho feito aqui sucessivos apelos para que me emprestem obras, a generalidade delas são edições de autor, não detetáveis nos escaparates das livrarias. 

A resposta é modestíssima. Tenho tido uma imensa ajuda da Biblioteca da Liga dos Combatentes, assim que o Dr. João Horta, o bibliotecário, me badala que chegou matéria-prima fresca marcho para o Bairro Alto, devolvo o que ele me emprestou e consulto o que lhe chegou. 

Desta vez a safra foi muito minguada, havia uma edição de autor, datada de fevereiro de 2023, obra produzida na Gráfica Central de Almeirim, intitulada "Guiné – Antes, Durante e Depois", por Clemente Florêncio. 

Como não havia dados, no conteúdo da obra sobe o autor, liguei para o cartão que o camarada Clemente deixou na Liga, O Treino, café-cervejaria em Fazendas de Almeirim. Liguei e passaram ao camarada Florêncio. Expliquei ao que vinha, disse-me que pertencera à CCS/BCAÇ 600, desde outubro de 1963, fora colocado no Quartel-General, nas transmissões, os últimos meses passaram-se em Buba e assim nos despedimos.

É uma obra sóbria, diz quando chegou à Guiné, reporta um conjunto de dados históricos, dá ênfase aos acontecimentos que antecedem a eclosão da guerra, diz que manteve sempre interesse sobre o que se passava na Guiné, mesmo a partir da independência, a Guiné e a sua história são lembrança permanente. Intervém agora, não quer que aquela guerra seja esquecida, e dá-nos um poema que escreveu em Buba, em setembro de 1965, intitulado "Obrigado Guiné":

“Por tudo o que me deste/Pela liberdade que me deste/De te conhecer/De conhecer tuas gentes/E seus costumes e sentimentos/Obrigado Guiné/Por não me roubares a memória/E assim recordar/O dia em que parti/Ao teu encontro Guiné/Pelo mar imenso/Sete dias e noites navegando/Olhando o céu azul/Os peixes voadores voando/Os navios que se cruzavam/Levando-me a pensar/Para onde me levas ó mar/Sinto um enorme horror/Ó tempestade amansa/Não me leves a saudade e a esperança/Que belo conhecer/Tanto tipo de humanos/A beleza crioula das mulheres finais e airadas/Em batuques sem par/Maravilhosos, deslumbrantes/Com o ritmo infantil e envolvente/Com a sua linguagem terna e doce/Na quietude dos velhos/Engelhados e solenes/Na viveza dos rapazes negros e sadios/Na cadência do angustiado sofrer/Nas canções e danças africanas/Na imprevidência de viver o dia de hoje/Ao sabor fatalista/Do que há de vir a acontecer/Obrigado Guiné/Foi belo conhecer/As tuas bolanhas, os teus rios/As tuas matas/Escuras de tão alto capim/Sacudidas pelo vento/Que causa ruídos/Cala-te vento/Não me distraias/Deixa-me pensar/O que hei de fazer/Para um dia voltar/Já poucas horas me restam/Para outro caminho seguir/Já tenho vontade de voltar/Mesmo antes de partir/Se algo aqui sofri/Nunca te culpei… Não/O que eu quero é levar-te/Dentro do meu coração.”

Rememora acontecimentos posteriores à independência, algo misturados com recordações, mantém-se atento às transformações positivas, e recua até às suas lembranças, os pombos verdes de cor, as onças, os jagudis, a vida dura dos guineenses, a exuberância das festas, e deixa para o fim uma recordação futebolística:

“Em 1965, o Benfica de Bissau foi campeão de futebol da Guiné, e por isso, nós jogadores, tivemos direito a um jantar-convívio na sede do clube, alguns elementos usaram da palavra, discursaram durante o jantar. 

‘Recordo perfeitamente que o último a discursar, foi o nosso capitão de equipa, de seu nome Orlando Camará. Começou por agradecer ao clube o reconhecimento do trabalho de grupo, agradeceu depois a todos os colegas de equipa o bom trabalho, e voltando-se para mim disse:

 - E tu, Clemente, obrigado por tudo o que nos deste. Sei que brevemente vais partir para a tua terra, mas eu nunca mais me vou esquecer de ti. Sei que um dia, quando fores velhinho, te recordarás de tanto que correste e saltaste para ser campeão. Ficas no meu coração.’ 

Tal como previas, estou velhinho e mal posso andar, e recordo tudo isso como se tivesse sido ontem. Saudades imensas de ti e de tudo. Até breve, Clemente”.

E depois adiciona duzentos provérbios e conta uma história contada numa taberna para nos falar do fandango, do tocador de gaita de beiços, ou do harmónio ou concertina. É um livro compósito, como se vê, despede-se desejando-nos muita saúde, que Deus nos proteja da fome e do frio e tudo mais é vaidade em excesso. 

Aqui fica o essencial da sua mensagem, tanta saudade da Guiné como das memórias que nele permanecem daquele início da guerra, terá feito esta edição de autor porque elas ainda lhe mexem com o sangue. E nada mais há a dizer.

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Nota do editor

Último post da série de 14 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26584: Notas de leitura (1780): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Negros e brancos na Guiné Portuguesa (1915-1935) (4) – 2 (Mário Beja Santos)

sábado, 15 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26587: Os nossos seres, saberes e lazeres (673): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (196): From Southeast to the North of England; and back to London (14) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Outubro de 2024:

Queridos amigos,
Havia que acompanhar à última morada uma grande amiga, residente na fímbria de Frankfurt, filho e nora acolheram-me numa localidade a dezenas de quilómetros, Idstein, uma muito agradável surpresa, um impressionante património de séculos idos, cidade próspera onde pontificaram os condes de Nassau-Idstein até chegarem os senhores da Prússia. Procurei reter imagens dessa arquitetura esplêndida, sempre alvo de restauros, tem um belo jardim que data do século XVI, tudo cuidado desde o velho celeiro, à antiga caserna dos bombeiros, à praça do mercado, até a presença romana. Deslumbrou-me a igreja protestante onde se preza a união das igrejas, tem um teto coberto de 38 quadros da Escola de Rubens representando cenas bíblicas do Novo Testamento, é a necrópole dos condes e príncipes de Nassau. Amanhã começo a rever Frankfurt, tive sorte com o tempo, temperaturas quase sempre negativas mas sem neve.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (196):
From Southeast to the North of England; and back to London – 14


Mário Beja Santos


A fabulosa escadaria da Courtauld Gallery
Retrato de Margaret Gainsborough, por Thomas Gainsborough, cerca de 1778.
O retrato pode ter sido pintado para celebrar os 50 anos de Margaret, a mulher de Gainsborough, a sua mulher foi frequentemente sua modelo e este quadro revela o imenso talento como retratista

Retrato de um santo, pelo Mestre do Altar de S. Bartolomeu, cerca de 1494-1500.
É impressionante como o pintor italiano obtém tanto a expressão num quadro quase miniatural. O equilíbrio da face, a cabeleira ondulada, a capa recamada e a simplicidade do fundo paisagístico, é de ficar de boca aberta, só falta ao santo falar e sair da miniatura.

S. Francisco a pregar aos pássaros, Escola Alemã, fim do século XIV, cerca de 1374.
Este quadro faz parte de um tríptico chamado da Crucificação, é um primor de candura, faz parte da representação do santo com um entusiasta dialogante com o mundo natural

Ao visitar a exposição dos desenhos de Henry Moore, veio-me à memória alguns dos aspetos essenciais da batalha da Grã-Bretanha. Em 7 de setembro de 1940, 400 bombardeiros alemães atacaram Londres, durante a tarde; à noite, outra vaga de 250 aparelhos realizaram um novo ataque, centenas de mortos e 1600 feridos graves. Durante 57 noites consecutivas sucederam-se os ataques aéreos. Ao princípio Londres viveu um quase ponto de rutura. Espalhou-se o mito de que toda a população de Londres encontrara abrigo no metropolitano durante o Blitz. Não foi verdade, não terá chegado a 5% da população que procurou abrigo no metro. Os esboços a lápis de Henry Moore mostram as pessoas a dormir nos corredores e escadas rolantes. Nenhuma destas imagens é falsa, mas omitem a realidade do desespero de condições sanitárias inadequadas e consequentemente do cheiro que vinha dos túneis usados como substitutos as casas de banho. Ratazanas, pulgas e piolhos tiveram o seu momento de prosperidade. Um desenho que nos dá calafrios.
Belos tapetes à venda na loja de Courtauld Gallery
Agora sim, já se saiu da Somerset House, sai-se do Strand para o Embankment, é um passeio na margem do Tamisa, houvesse tempo e derivava-se em direção ao Victoria Embankment, para a ponte do Waterloo, resta-me a consolação de se poder ver ao fundo o Big Bem e a Casa do Parlamento à direita e à esquerda a famosa roda gigante, The London Eye.
The London Eye
Impossível captar o esplendor que um dos míticos hotéis de Londres, o Savoy, fico-me com estes pormenores da fachada em arte deco.
Cleopatra’s Needle. Este obelisco de 18 metros pertencia a um par de obeliscos do Palácio de Cleópatra fora de Alexandria e tem mais de 3500 anos. Foi oferecido à Grã-Bretanha pelo Governo do Egito em 1819, mas só 60 anos mais tarde foi finalmente colocado e nessa altura as esfinges que o ladeiam foram fixadas de costas para o obelisco. Havia uma piada da época em que aqui foi montado que circulava na opinião pública: “Este monumento, pensam alguns, foi visto por Moisés. Ao longo da História passou dos gregos para os turcos e foi colocado pelas Obras Públicas.”
Chegou a hora de apanhar o metro e ir até Richmond amesendar, agradecer todo o acolhimento oferecido, pegar nos trastes, tomar o metro até Heathrow. E acabou esta inolvidável viagem em que se mataram algumas saudades de uma Grã-Bretanha que tanto se ama.
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Notas do editor:

Vd. post de 1 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26540: Os nossos seres, saberes e lazeres (671): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (194): From Southeast to the North of England; and back to London (13) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 8 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26564: Os nossos seres, saberes e lazeres (672): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (195): Ia passear ao Jardim Botânico, acabei numa exposição sobre fotografia colonial (Mário Beja Santos)