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sábado, 30 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26217: Os nossos seres, saberes e lazeres (656): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (181): From Southeast to the North of England; and back to London (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Agosto de 2024:

Queridos amigos,
Ainda mal refeito da viagem às ilhas de S. Miguel e de Sta. Maria, tinha combinado com gente muitíssimo amiga uns 12 dias a viajar entre o condado de Oxford, localidades do Norte de Inglaterra e depois uma passeata por Londres, os museus são fabulosos e gratuitos e há galerias onde se podem ver grandes mestres por 10 libras. Sempre com aquela consigna de José Saramago de que o se vê de manhã não é o que se vê à tarde, do que se vê na primavera não é o que se vê no outono, meto-me ao caminho com a curiosidade resguardada, pronto para qualquer surpresa, a bússola é sempre o inesperado, procuro aproximações e as necessárias distâncias entre os nossos usos e costumes e os britânicos, apraz ver a beleza destes jardins, têm eles, como nós, serviços públicos pelas ruas da amargura, desde os correios às operações cirúrgicas, os preços da habitação são devastadores, esta localidade recebe cada vez mais gente da cidade de Oxford; perderam o pequeno comércio, os grandes supermercados abastecem integralmente Faringdon, o pequeno comércio que resiste é pouco mais que o Fish and Chips. Aqui perto, em Swindon, uma cidade que há 20 anos podia ser uma joia e um farol do desenvolvimento, ficou arrasada pelo Brexit, as grandes fábricas multinacionais saltaram para o continente, Swindon parece uma cidade fantasma. Vamos continuar.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (181):
From Southeast to the North of England; and back to London – 1


Mário Beja Santos

Saio de manhã pela fresquinha, bem pequeno-almoçado, atravesso The Pines, depois Canada Lane, encaminho para o centro de Faringdon, condado de Oxford, é o primeiro dia de redescoberta de um lugar de que guardo as melhores recordações, princípio de uma viagem que depois me levará às Midlands, Peak District, depois Ashbourne, depois Wakefield, Leeds, Bath, e depois uma descida a Londres, acomodado em Richmond, a beijar o Tamisa, museus e exposições, daqui o metro até Heathrow, regresso à procedência. A primeira etapa, em nome da curiosidade, sempre sôfrego por um traste especial, entra-se numa charity shop (loja que tem o timbre de uma causa, vende objetos doados para angariar receitas, desde o inumerável bricabraque, passando por roupas e livros, há de tudo como na botica), fareja-se um tesouro, é um belo prato, não há que hesitar, traz-se música espantosa, de Monteverdi a Sibelius. A viagem prossegue até ao centro de informação local, farejo exposições, horário de autocarros, para meu desgosto não há nenhuma carreira que percorra o Cavalo Branco, tem panoramas fabulosos e uma escultura que lembra um cavalo branco, obra da Idade do Bronze, nada feito. Aproveito para visitar o museu local que dá honras a Lord Berners, um excêntrico aristocrata que compadecido com o desemprego entre as guerras mandou fazer uma torre em 1935, para dar trabalho (dela falaremos mais adiante). Berners era amante das artes plásticas, recebeu nas suas propriedades gente como Salvador Dali e apoiou os republicanos espanhóis exilados. Vou percorrendo estas imagens de chapéu na mão, honra a Lord Berners.

É inevitável, paro diante da escultura em pedra do escafandrista, um dos ícones de Faringdon, agora faço uma pausa nos jardins cemiteriais da Igreja de Todos os Santos, estes cemitérios são silenciosos, a despeito do trinado das aves e dos coelhos à solta, li uns tantos parágrafos de Homero e ponho-me a caminho, a bisbilhotar singularidades, deixo aqui algumas imagens, à tarde meto-me ao caminho, há mais Faringdon para referenciar, estou em pulgas para fazer duas milhas até chegar a um histórico celeiro do tempo do rei João sem Terra, Great Coxwell Tithe Barn, de que gosto muito. Até já!

O centenário do edifício da câmara municipal de Faringdon, Oxfordshire
Homenagem a Salvado Dali que convidado por Lord Beners andou vestido de escafandrista por uma exposição em Londres, em 1936
Faringdon, condado de Oxford, no fim da época vitoriana. Imagem retirada do site Faringdon & District Archeological & Historical Society
Mostra de Lord Berners como artista plástico
Chama-se Igreja de Todos os Santos, o corpo principal trata dos séculos XII e XIII
A serenidade de um cemitério inglês, aproveito um banco e fico ali a ler
Honra a um velho combatente
Uma bela casa de Faringdon à espera de comprador. Vim aqui pela primeira vez, há mais de um quarto de século, era uma loja onde se vendiam artigos de vestuário e armas para caça
Edifício da velha Bolsa de Cereais, ali funciona uma loja de caridade, comecei o dia a comprar um prato da fábrica Lille, 1767, e uma carrada de CDs, cada um aí a 30 cêntimos, esta loja de caridade contribui para apoiar as vítimas da violência infantil
Os jardins ingleses não deixam ninguém indiferente, veja-se este caramanchão de hipericão, todo ele luzidio a encher o balcão
Podem ser traseiras, mas a crise da habitação em Inglaterra é tão ou mais aguda que em Portugal, aproveitam-se todas as instalações para fazer casas
Quem tem a mais dá, põe-se à porta de casa, quem precisa leva
Vista aérea de White Horse Hill Uffington, Faringdon

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 23 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26185: Os nossos seres, saberes e lazeres (655): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (180): Regresso aos Açores, às ilhas do grupo oriental (9) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26213: Notas de leitura (1750): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (4) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Outubro de 2024:

Queridos amigos,
Continua a ser mistério insondável o silêncio do Boletim Oficial da Província da Guiné quanto aos acontecimentos, verdadeiramente preocupantes, das dificuldades postas à pacificação e ocupação do território. Nunca se fala da hostilidade do Oio e da sua firme oposição a pagar impostos; não há uma só referência à insubmissões das populações à volta de Cacheu, isto a despeito de haver relatórios mensais do comandante militar de Cacheu, parece que está tudo em paz. Um dia, em conversa com Armando Tavares da Silva, ele contou-me como é que sendo ele um professor catedrático aposentado da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, se lançou neste cometimento de investigação da História Política e Militar nas vésperas de autonomia até ao fim da I República. O seu avô, tenente da Armada Real e administrador colonial, estivera na guerra do Churo, deixara documentação, picado pela curiosidade, lançou-se ao trabalho. Neste texto, em que se fala da guerra do Churo de 1904, invoco com respeito a memória de Armando Tavares da Silva, a quem a historiografia da Guiné muito fica a dever.

Um abraço do
Mário


O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (4)

Mário Beja Santos

O leitor tem vindo a ser informado da parcimónia informativa do Boletim Official da Província da Guiné quanto a este período do virar do século, entrou-se numa rotina burocrática das chegadas e partidas, nomeações e exonerações e questões alfandegárias, não esquecendo as questões militares, mas também de caráter burocrático. Por isso se regressa ao vasto acervo documental da obra de Armando Tavares da Silva, A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926, no caso vertente o período de 1903 a 1905.

Judice Biker partiu, chegou Soveral Martins. Este escreve para Lisboa, elogiando a obra pacificador do seu antecessor, considera a situação que a situação económica da província não correspondia à riqueza e vastidão do território e observa que “fazer a guerra a pretos com pretos só serve e basta quando aqueles sabem que ela pode ser sustentada com outras forças cuja decisiva e irresistível ação já sentiram.” Exprime dúvidas quanto à lealdade de diversas etnias, será o caso do Oio, a campanha de Judice Biker podia ter sido seguida por uma ocupação séria, é de prever nova guerra. Faz ao Governo uma resenha dos diferentes povos, enumera a multiplicidade de artérias fluviais e questiona em voz alta quais os meios que a província dispõe para manterem respeito aos povos inimigos. Alude à ocupação reduzida aos comandos militares – Cacheu, Farim, Bissau, Geba, Buba e Cacine, os postos fiscais de Arame, São Domingos e Contabane; existem duas lanchas canhoneiras, Cacheu e Farim, que não podem sair ao mar. O material de guerra é inapropriado, dúvida do seu bom estado de funcionamento. Elogia a administração francesa em que o sipaio senegalês mantinha o prestígio colonial, a segurança e integridade do território.

Enumera as regiões que, pelo seu estado de revolta, necessitam de uma imediata ocupação: o Oio; a região ocupada pelos Balantas nas duas margens do Mansoa; a ilha de Bissau; o arquipélago de Bijagós e Manjacos. Para que se dê essa ocupação seria indispensável um estabelecimento de um total e seis comandos militares, fala dos efetivos necessários, a presença de um navio de guerra capaz de sair ao mar, forças europeias. Em Lisboa, o novo ministro do Ultramar pede ao ex-governador Judice Biker um relatório confidencial, este elabora-o, considera que o principal problema passa por castigar os Oincas e sujeitá-los ao pagamento imposto, tinha a convicção que se assim não se fizesse, os Fulas e Biafadas passariam a ter relutância ao pagamento; e Biker exprimia também a opinião de que na época seca seguinte se devia avançar para o Oio e depois aproveitar a mesma expedição para castiga o gentio do Churo, que estava constantemente incomodando a praça de Cacheu; Biker termina o seu relatório indicando as forças militares necessárias para manter o gentio em sossego; o desenvolvimento comercial com a paz na província compensaria bem todos os esforços e defesas. Também não deixa de notar quando, a 13 de julho de 1900 assumira o Governo da província “o nosso domínio era pouco mais que nominal, limitando-nos a conservarmo-nos na sede dos comandos militares, mas sem prestígio e influência sobre os gentios para nos fazermos obedecer.”

O ministro não responde às propostas de Soveral Martins, era certamente da opinião que se fazia resolver sem empregar a força. Soveral Martins viaja pelo interior da província, informa o ministro que conseguira com meios suasórios a submissão de agentes do Oio, o que estava muito longe da realidade. É nisto que o comandante militar de Cacheu avisa o governador que foi prevenido pelo gentio de Churo de que no prazo de três dias iria atacar a praça. Seguem uma embarcação para Cacheu e mais tarde a lancha canhoneira Cacheu. Está tudo num impasse, não há nenhuma operação contra o Churo, mas a 7 de dezembro o gentio de Churo avança sobre Cacheu. O governador junta reforços para a defesa da praça. O ministro expede um telegrama para o governador de Angola perguntando-lhe se ele poderia organizar um batalhão disciplinar com uma companhia europeia e outra indígena para destacar em serviço de campanha na Guiné. O ministro não tem dinheiro, não é aceitável qualquer guerra dispendiosa, sugere ao governador que aproveite os Grumetes como elemento essencial e principal nas operações. O governador vê esboroarem-se os seus planos, mas pede apoio naval, 500 armas Snider e 200 mil cartuchos. A custo, fora organizada na metrópole uma pequena força composta quase só de praças que, estando na maioria dos casos a cumprir penas, se tinham voluntariado para servir no Ultramar.

Depois de alguns avanços e recuos organiza-se a coluna de operações composta por um núcleo de forças regulares e por forças irregulares de auxiliares Grumetes, partem a 26 de fevereiro de 1904 para Cacheu, vai chegando mais apoio naval, a coluna põe-se ao caminho, dirigem-se para as tabancas de Churo, as palhotas foram incendiadas, houve algum tiroteio, mas o Churo estava vencido. Restava, para completo castigo dos rebeldes levar a guerra às tabancas da região de Cacheu. Não era possível atravessar o território entre o Churro e o Cacheu, 30 km de mato quase impraticável e o calor era uma fornalha. Regressa-se a Cacheu e a partir por terra castigavam-se os povos que mais incomodavam a praça.

O governador deixou um detalhado relatório, informa o governo em Lisboa dos resultados desta nova expedição, as tabancas arrasadas em torno de Cacheu. O governador viajará a Cacheu para receber a submissão do gentio e impor as suas condições para o perdão, estas foram aceites. Para que houvesse ocupação efetiva, era indispensável a nomeação de um corpo de tropa aguerrida, ou um esquadrão de dragões. O ministro irá arguir à constituição de um esquadrão de dragões indígenas da Guiné, pede que se proceda à reorganização militar, e o esquadrão fica com a sua sede em Farim. Lapa Valente é o governador interino, vê-se confrontado com a decadência progressiva do pequeno comércio nas margens dos rios e no interior. Interessante observação dele sobre o comércio da Guiné, constituiria “um sindicato entregue a três ou quatro companhias estrangeiras, pouco escrupulosas, que num futuro muito próxima explorarão sem consciência europeus e indígenas”. E, mais adiante, referindo-se ao pequeno comércio no interior diz que é “constituído por nacionais clientes dessas companhias, e que se limitavam a casas de venda a grosso e retalho em Bolama e Bissau, os portos servidos pela navegação de longo curso.” Internando-se pelos rios, ali faziam o seu abastecimento, promovendo com o indígena “trocas em dinheiro e em produtos do país (mancarra, cola, borracha, bandas, gado, coros, cera, etc.), que entregues a essas casas, eram depois por elas lançadas nos mercados europeus.” É, pois, manifestamente favorável ao estabelecimento de companhias estrangeiras no interior dos rios.

Decorrem, entretanto, a delimitação de fronteiras, acarretando confrontos com o gentio; tratava-se da delimitação da fronteira norte pela missão conjunta luso-francesa, com o levantamento dos rios Cacheu e Casamansa, para se determinar a linha de separação. Encontrou-se bastante hostilidade. Em 15 de dezembro de 1904 é nomeado novo governador, o capitão Carlos d’Almeida Pessanha, virá tomar posse em 2 de fevereiro de 1905.

Armando Tavares da Silva
Lapa Valente nomeado governador interino na ausência de Carlos d’Almeida Pessanha, 1905
Nomeação de João Augusto d’Oliveira Muzanty como governador da Guiné, 1906
Um prisioneiro. Oferta de Maria Alice Caldeira, viúva do Coronel de Artilharia/Comando Octávio Barbosa Henriques (1938-2007), de um conjunto de materiais do seu espólio. No arquivo da EPHEMERA, encontra-se um número significativo de fotografias da guerra colonial, em particular da sua estadia na Guiné entre 1968-1972, aquartelado no Sul da Guiné junto da fronteira com a Guiné-Conacri.

(continua)
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Notas do editor

Vd. post de 22 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26181: Notas de leitura (1747): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (3) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 25 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26191: Notas de leitura (1749): A Guiné Que Conhecemos: as histórias sobre unidades do BCAV 2867 (1) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26206: (De) Caras (225): Duas fotografias, girândola e fastígio das recordações (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Novembro de 2024:

Queridos amigos,
Há manhãs de sorte, falo por mim, comprei na D. Amélia da Feira da Ladra estas duas fotografias que irão depois para um arquivo. A primeira levou-me à minha chegada à Guiné, o barco da mancarra que me levou a Bambadinca parou exatamente naquele ponto onde está a embarcação que veio recolher esta unidade, bem curioso é o contraste entre o caminhar destes homens e a ondulação dos arrozais; na segunda fotografia quem captou a imagem terá sido um homem com muita sorte, apanhar o rebentamento de uma granada enquanto desfilam militares num curso de água, segundo o que vem no reverso a caminho do Sambuiá, santuário que veio a revelar-se quase inexpugnável, outras lembranças me ocorreram, de leituras e conversas, mas o mais importante é deixar esta imagem no nosso blogue.

Um abraço do
Mário



Duas fotografias, girândola e fastígio das recordações

Mário Beja Santos

Chego à Feira da Ladra ao despertar do dia, o meu fornecedor de livros, quando aparece, é imediatamente procurado por gente que vive da venda de livros em segunda mão, eu apareço ali como um outsider, olhado um tanto de viés. Antes de ele chegar, vou conversar com a D. Amélia, uma senhora que já me vendeu um lote de fotografias que devem ter pertencido ao capitão de uma das duas companhias que estavam na Guiné entre 1959 e 1961 e que mais recentemente me vendeu um lote de correspondência dos irmãos Barbieri Cardoso. Regra geral, só encontro correspondência ou fotografias de Angola e Moçambique, mas naquela manhã havia um lote bem gordinho de fotografias em que se escrevia no reverso Porto Gole, 1971, indiscutivelmente fora pertença de um jovem de bigodaça farta que por ali viveu um bom tempo, posiciona-se à porta de todos os edifícios, em viaturas, no abrigo, no refeitório, são imagens com que ele seguramente contou dar sossego à família, não há para ali nenhum sinal de guerra declarada.

Passei os olhos por todo o monte de imagens e de repente surgiu esta, a mente levou-me até ao princípio da tarde do dia 2 de agosto de 1968, o barco da mancarra que me levou até Bambadinca aqui atracou, lembro-me, como se fosse hoje daquele caminho que se palmilhava até chegar a terra firme, orlado por terrenos cultivados, guardo a lembrança de tudo, mas quem entrava e saía era população civil, com sacos e animais, gente de todas as idades. Imagem esmaecida, o Geba perdeu cor, e lá ao fundo vê-se o Quínara, que sempre sonhei visitar, e que nunca aconteceu. Coisa curiosa, deixara-se de circular por terra entre Jugudul e Porto Gole, as minas anticarro eram muitas, as emboscadas também, morrera a circulação naquela estrada que passava perto do Enxalé, S. Belchior, Mato de Cão, subia até Missirá, e pela ponte do Gambiel podia-se viajar até Bafatá. Enfim, o Geba era a estrada por onde se ia até Porto Gole, Enxalé, Xime e Bambadinca. Tudo mudará em novembro de 1969, com a inauguração do porto do Xime. Mas a circulação pelo Geba era vital para todos estes aquartelamentos, incluindo os do Leste, de Bafatá para cima.

Não mais voltei a Porto Gole, em 1990, 1991 e 2010 fui até Missirá por aquela estrada, com o alcatroamento já muito danificado, regressei a Enxalé e percorri todo o regulado do Cuor. Mas lembro-me que da estrada se via perfeitamente o monumento comemorativo à passagem de Diogo Gomes, em 1456. Deu-me pare recordar Porto Gole, acho que a fotografia tem o seu encanto com aquelas ondulações do arrozal e aqueles grupos de combate que não sabemos se vêm de uma operação ou para ela partem.

Porto Gole, 1971
Monumento alusivo à passagem de Diogo Gomes em 1456

Continuo a remexer nos maços de imagens que a D. Amélia tem na banca. Há mais fotografias da Guiné, são triviais, estou absolutamente convicto que na generalidade dos casos serviram para sossegar famílias, metem gente sorridente com cobras mortas, refeições e exibem-se cervejas, gente a ler aerogramas. É nisto que pego nesta segunda fotografia, diz enigmaticamente a caminho do Sambuiá, posso estar equivocado, mas iniludivelmente uma boa imagem com o rebentamento de uma morteirada, nunca vira até agora nada de parecido, um instantâneo tão violento. Enquanto olho demoradamente a fotografia, lembro as conversas que tenho tido com o Belmiro Tavares, que por ali andou, e que refere mesmo que numa operação a Sambuiá houve um desastre com uma equipa de morteiros, um acidente estúpido. Mais recentemente, numa carta do tenente Barbieri para o irmão ele refere uma operação no Sambuiá em tom perfeitamente crítico. Por ali passou Gérard Chaliand, um historiador das revoluções, em 1964, na companhia de Amílcar Cabral, passaram depois por Dugal e internaram-se no Morés. Acho que esta imagem nos faltava, valeu a pena ter começado a manhã de compras com estas duas imagens e a gratificação das recordações quem em mim as acompanha.
A caminho do Sambuiá, sem data
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Nota do editor

Último post da série de 24 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26074: (De) Caras (224): Maurício Saraiva, cofundador e instrutor dos Comandos do CTIG, cmdt do Gr Cmds Fantasmas - Parte II: Um dos momentos mais dramáticos que vivi, na sequência da terrível emboscada com mina A/C, em 28 de novembro de 1964, na estrada de Madina do Boé para Contabane, perto de Gobije (Antóno Pinto, ex-alf mil, Pirada, Madina do Boé e Béli, 1963/65)

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26202: Historiografia da presença portuguesa em África (454): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, continuamos na companhia de Damasceno Isaac da Costa, 1886 (12) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Setembro de 2024:

Queridos amigos,
Poderá ser entendido como um relato fastidioso, aquele a que se arrogou Damasceno Isaac da Costa que a propósito do estado de saúde da vila de Bissau em 1884 fala praticamente da Guiné por inteiro, o que vemos agora são referências ao estado do cemitério, à higiene da vila, à condição do pessoal de saúde militar e à sua própria alimentação. Recordo que todo este relatório veio a ser publicado pelos vários meses, uns parágrafos aqui outros acolá, apelo à compreensão do leitor quanto à consistência desta síntese, até porque durante a leitura destes textos apareciam dados curiosos, como é o caso que aqui se refere da população do presídio de Geba se manifestar agradecida pelos brilhantes resultados das 3 expedições do tenente Marques Geraldes, primeiro na margem direita do Geba, naquilo que no meu tempo correspondia aos regulados de Jaladu, Ganadu, Mansomini e Cuor, e depois atacando frontalmente as bases de onde saíam os homens de mão de Mussá Moló, Geraldes desbaratou as resistências.

Um abraço do
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, continuamos na companhia de Damasceno Isaac da Costa, 1886 (12)


Mário Beja Santos

Continuamos a dar a palavra a Damasceno Isaac da Costa e ao seu relatório de 1884 que o Boletim Official publicou com intermitências no ano de 1886. Ele refere-se agora aos cuidados higiénicos a ter nos cemitérios, e refere a seguir a saúde pública, elencando as posturas publicadas: proibido ter nas ruas couros podres ou outro qualquer objeto que exale mal cheiro; proibido criar porcos ou leitões dentro da casa de habitação, nos quintais ou pátios e igualmente proibido ter ou conservar porcos ou leitões amarrados ou presos na rua à porta de casa; é proibido deitar qualquer objeto dentro das fontes públicas que suje e estrague a água. Convém recordar que ele agora está focado na vila de Bissau, o que diz dos hospitais tem a ver com a vila. Existes duas enfermarias a funcionar numa casa particular arrendada pelo Governo e comenta:
“Todos os higienistas são unanimemente concordes em que, sendo os hospitais estabelecimentos insalubres de primeira ordem, devem ser situados pelo menos a 200 metros de distância da povoação, mas o de Bissau acha-se situado no centro da povoação. Os soldados da guarda de alfândega apresentam-se repetidas vezes embriagados; passando toda a noite a gritar e a cantar, tem dado lugar a que os doentes não tenham o sossego que o seu estado de saúde reclama. Pelos fundamentos que deixa apontados, julgo conveniente que com urgência seja o hospital removido para um local afastado da população.”

Tece um amargo comentário sobre o quadro de saúde da Província. Permita-me o leitor introduzir aqui uma nota um tanto desajustada e que se prende com a linguagem médica usada no tempo, este caso uso um dado apresentado pelo delegado de saúde em Bissau em julho de 1886 acerca de um tratamento a alguém que fora baleado:
“O acidente foi devido ao tiro de revólver, cujo projéctil, dirigindo-se de cima para baixo e de fora para dentro, depois de atravessar o braço esquerdo, foi afectar o lado correspondente do tórax. Aí, ao nível de uma das costelas, existia uma solução de continuidade que era a boca da entrada, sem se descobrir, em região alguma, a da saída da bala. Desta ferida escapava pouco sangue, porém uma abundante hemorragia tinha lugar por ambas as aberturas da extremidade lesada. Os sintomas manifestados pelo doente inculcavam estar o corpo impelido pela conflagração da pólvora, alojado na cavidade pélvica onde o doente acusava ímpetos de dor que, irradiando-se da ferida do peito, pareciam ir concentrar-se no púbis. Para sondar esta ferida, faltavam os indispensáveis meios, portanto não podia estabelecer-se um diagnóstico pronto e preciso. A consideração, porém, de que o projétil em consequência da diminuição da velocidade e da violência da acção que deveria ter experimentado durante o seu trajeto através do braço do ponto de partida até ao peito, não poderia vencer a resistência e elasticidade do osso, sugeriu a probabilidade de que a bala não teria obrado sobre a costela senão ricochete. E não tardou a ser confirmada estra presunção, pois que o ferido, após breves dias de tratamento, deixou o hospital com o restabelecimento das funções das partes ofendidas.”

Voltando a Damasceno Isaac da Costa, ele dá-nos um quadro de completa penúria do estado do hospital, a começar pela falta de instrumentos cirúrgicos. Passando para o tema das boticas, observa que existe uma do Governo que fornece medicamentos ao público, carece de várias reparações, ele tem apresentado pedidos à delegação de saúde, mas não houve qualquer providência. Analisa o serviço médico-militar e deixa os seguintes comentários:
“O soldado, esse homem, que sacrifica constantemente a sua vida, leva em Bissau uma vida cheia de privações, miséria e fadigas e esses grandes e poderosos inimigos com os quais luta incessantemente, conjuntamente com os que fornece o clima e as más condições higiénicas da vila, e geram as doenças que se manifestam no soldado. Ele anda em Bissau esfarrapado, sujo e descaço, salvo raríssimas exceções e expõe-se constantemente aos abrasadores raios solares e aos rigores da chuva.
Natural de Portugal, Angola ou Cabo Verde, o soldado em Bissau alimenta-se quase sempre de arroz e feijão-vermelho ou branco ordinários, por vezes de má qualidade e raras vezes de grão-de-bico ou de ervilha. As leguminosas, a cujo pertencem estes alimentos, à exceção do arroz, tem por base principal a fécula que se acha associada a variados princípios e as matérias extrativas e corantes em diferentes proporções. Estas leguminosas, pelas suas qualidades feculentas não fermentadas, conservam-se no estômago mais tempo do que qualquer alimento da mesma base e dão lugar nos intestinos à formação de uma grande quantidade de gases. O feijão vermelho produz menos peso no estômago e menos desenvolvimento de gás do que as outras variedades. O soldado europeu faz uso imoderado das frutas ácidas que abundam na ilha, o uso de fruta ácida excita o apetite, facilita a digestão, modera o calor e acalma a agitação. O soldado natural de Angola embriaga-se frequentes vezes, especialmente depois de receber o pré.”


O novo assunto tem a ver com o quadro das doenças. As que se observam constantemente são as febres palustres. “Os meses de junho a outubro são aqueles em que o alimento palustre ativa a sua força e determina a manifestação de febres intermitentes perniciosas, tifoides e biliosas hematúricas, quase sempre revestidas de gravidade.” E deixa a lembrança de que em alguns meses de 1878 e 1879 manifestou-se na vila de Bissau a febre tifoide com grande intensidade. Mais adiante descreve ao pormenor a febre biliosa hematúrica ou melanúrica, o sulfato de quinino, que é a base do tratamento das febres ordinárias, revela-se improfícuo e perigoso na febre biliosa hematúrica quando for administrado no começo da doença. "O importante é empregar agentes farmacodinâmicos destinados a simplificar a natureza primitiva da doença e depois o tratamento específico.”

Como os textos deste relatório andam aos saltos, volto atrás a outubro de 1886 quando se publica o fim da operação de Mussá Moló na região de Geba, é um documento assinado por figuras do presídio de Geba, cujo chefe era então o tenente Francisco António Marques Geraldes. Dirigem-se ao Governador dizendo que Geba fora oprimida sob o jugo de Mussá Moló, pagavam-se impostos onerosos, a população sofria vexames de toda a espécie, Mussá Moló ameaçava as fronteiras de Ganadu, os seus principais guerreiros atacavam com repetidas correrias todo o território à volta de Geba. Até então os chefes do presídio, nomeados uns após outros, não se atreviam a atacar o colosso. É então nomeado o tenente Geraldes que preparou uma expedição de 200 homens e atacou as tabancas do régulo de Mansomini, arrasando-as. De regresso a Geba organizou nova expedição e atacou todas as tabancas da margem direita do rio Geba, pondo em debandada os régulos, obrigando-os a saltar para a outra margem do rio. Era a primeira vez que um oficial levava a cabo tão temerária empresa. O tenente Geraldes arranjou nova expedição composta por Biafadas e atacou Mussá Moló, este perdeu todo o prestígio que dispunha na região. E a carta termina apelando a que o Governador graduasse no posto imediatamente superior o tenente Geraldes pelos serviços distintos que prestara.

Continuamos no ano de 1886 e na companhia do médico Damasceno Isaac da Costa, ele ainda tem muito para nos dizer, é um dos poucos motivos de interesse neste Boletim Official onde estão ausentes os grandes acontecimentos do ano. Por isso, aqui se ilustra com imagens do Boletim Official de 1887, nasceu em março o príncipe da Beira, D. Luís Filipe, haja festa, salvas de 21 tiros, a tropa em grande uniforme, liberdade para as praças que estiverem em pena correcional, dando por cumpridos os castigos.
Nomeação do governador interino, coronel Euzebio Catella do Valle, virá depois o contra-almirante Teixeira da Silva.
Em 24 de setembro de 1887, o Boletim Official da Província da Guiné publica texto que define a Guiné Portuguesa de acordo com a Convenção Luso-Francesa de 12 de maio de 1886.
Em 30 de maio, o Boletim Oficial informa que foi nomeado Governador o contra-almirante da Armada Real, Francisco Teixeira da Silva.
Cais de Bolama, imagem dos anos 1960, retirada do blogue Rumo a Fulacunda, com a devida vénia

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 20 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26172: Historiografia da presença portuguesa em África (453): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, continuamos na companhia de Damasceno Isaac da Costa, 1886 (11) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P26200: In Memoriam (518): Lúcia Bayan († 26 de Novembro de 2024): Doutorada em Estudos Africanos e colaboradora do nosso Blogue em assuntos do Chão Felupe (Mário Beja Santos)

IN MEMORIAM

Doutora Lúcia Bayan (†24 de Novembro de 2024)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Agosto de 2023:

Queridos amigos,

O que me deslumbrava nesta investigadora era o entusiasmo que punha nas histórias que tinha vivido em território Felupe, onde fez tarimba para o seu doutoramento, que se realizou em 2023. Terá deixado um acervo impressionante de imagens, bom seria que um dia viessem a ser publicadas, algumas delas são verdadeiramente esplendentes, o que mais me impressiona é o entusiasmo que está por detrás da sua captação. 

Algumas das imagens que estão publicadas no blogue têm a ver com o sentido festivo do povo Felupe, e a Lúcia enriqueceu o nosso reportório com os marcos de fronteira, oxalá que a sua tese de doutoramento mereça o melhor acolhimento das instâncias universitárias guineenses e da comunicação social.

Um abraço do
Mário



Morreu Lúcia Bayan, nossa colaboradora, os Felupes estão de luto

Mário Beja Santos

Conheci a Lúcia quando, através do meu amigo Eduardo Costa Dias, ela pediu para falarmos sobre documentação do General Arnaldo Schulz, que estava em poder de uma sobrinha dele. Examinei a documentação, nada era desconhecido, salvo um conjunto de fotografias, para as quais sugeri destino, havendo uma delas pedido de autorização para ser publicada no nosso blogue, como aconteceu.

 Palavra puxa palavra, e íamos falando regularmente sobre o seu doutoramento, a sua paixão, temas da cultura Felupe. Doutorou-se, parecia ter a vida num trilho esplendente, e ontem o Eduardo Costa Dias deu-me a infausta notícia da sua partida. 

A Lúcia colaborou no nosso blogue, como hoje se relembra, um texto primoroso, imagens belíssimas de um povo que ela estudou in loco, há para ali imagens de grande significado, e não são só os marcos de fronteira. Levava os estudos africanos muito a sério, numa abrangência de etnologia, etnografia, antropologia, conhecimento histórico (e aqui estudava afincadamente os Djolas, ramo étnico onde avultam os Felupes).

Esta etnia, digo-o cheio de comoção, perdeu uma investigadora de grande mérito, a cultura luso-guineense fica mais pobre. E não voltaremos a ter o colorido das imagens que a Lúcia nos ofereceu, que tristeza. 

Junta-se a sua colaboração em texto e imagens um apontamento radiofónico sobre histórias que ela investigou e deu a conhecer tanto na Guiné-Bissau como em Portugal.

 Curvo-me respeitosamente perante a sua memória.

Ver colaboração no Blogue em:

15 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20560: Antropologia (35): Djobel, uma tabanca vítima das alterações climáticas, por Lúcia Bayan (Mário Beja Santos / Lúcia Bayan)
e
22 de Janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20584: Antropologia (36): As insígnias de autoridade dos Felupe e Marcos no Chão Felupe, por Lúcia Bayan (Mário Beja Santos / Lúcia Bayan)
Belíssimas fotos do Chão Felupe da autoria de Lúcia Bayan, publicadas no nosso Blogue

Link que contém a sua entrevista sobre a narrativa oral Felupe (Fumaça.pt) :

Foto com a devida vénia

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CV de Lúcia Bayan - Resumo

Doutorada em Estudos Africanos pelo ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa, mestre em Estudos Africanos pelo ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa e licenciada em Estudos Africanos pela Universidade de Lisboa.

- Entre 2011 e 2013 foi bolseira de investigação no Centro de Estudos Africanos do ISCTE-IUL no âmbito do projecto "Sociedades africanas face a dinâmicas globais: turbulências entre intervenções externas, migrações e insegurança alimentar" (PTDC/AFR/104597/2008).

- Entre 2013 e 2017 foi bolseira de Doutoramento FCT em Estudos Africanos (SFRH/BD/88278/2012) no Centro de Estudos Internacionais (CEI-IUL), onde desenvolveu uma tese intitulada Linguagens de poder, cadeias iniciáticas, identidade e coesão na sociedade Felupe (Guiné-Bissau).

- Em 2017, participou no projecto de recolha e edição de música tradicional infantil "I NO BALUR", fazendo pesquisa e recolha de música tradicional infantil na Guiné-Bissau.

- Desde 2009, tem desenvolvido trabalho de terreno continuado na Guiné-Bissau, centrado nas estruturas políticas da sociedade Felupe.

Principais áreas de interesse: as estruturas políticas tradicionais e organização social das sociedades rurais africanas.

Qualificações Académicas:

- ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa - Doutoramento Estudos Africanos - 2023

- ICS - Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa - Curso Livre O Estudo da Política em África: métodos, objectos e temas de investigação - 2017

- ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa - Curso Livre Documentário Etnográfico Interactivo - 2014

- ISCTE - Istituto Universitário de Lisboa - Portugal - Lisboa - Mestrado Estudos Africanos - 2010

- Universidade de Lisboa - Faculdade de Letras - Portugal - Lisboa - Licenciatura Estudos Africanos - 2007

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Nota do editor

Último post da série de 15 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26156: In Memoriam (517): José Manuel Amaral Soares (1945-2024), ex-fur mil sapador MA, CCS/BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70); morava em Caneças, Odivelas

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26191: Notas de leitura (1749): A Guiné Que Conhecemos: as histórias sobre unidades do BCAV 2867 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Agosto de 2023:

Queridos amigos,
As Histórias dos "Boinas Negras" terão criado nas outras unidades do BCAV 2867 uma grande vontade de intervir, e de novo Jorge Martins Barbosa foi nomeado comandante-chefe de operação, arregimentou um bom punhado de autores, voltou a fazer uma súmula da história da Guiné e da presença portuguesa, não esqueceu a viagem no paquete Uíge, retomou a informação sobre a quadrícula do setor 1, no Quínara, entramos na matéria com os "Falcões" da CCS, esclarece-se a questão Buscardini e estamos já em 6 de maio de 1968, está a nascer o quartel de Nova Sintra, os "Cavaleiros" não têm mãos a medir, e minas antipessoal irão constituir um dos infernos das colunas. O leitor que se prepare, temos muito caminho para percorrer.

Um abraço do
Mário



A Guiné Que Conhecemos: as histórias sobre unidades do BCAV 2867 (1)

Mário Beja Santos

O livro Histórias dos “Boinas Negras”, referente à comissão da CCAV 2482 foi o rastilho de pólvora para que as restantes unidades do BCAV 2867 se pusessem em movimento. Conforme refere o coordenador, Jorge Martins Barbosa, antigos combatentes dos “Falcões” da CCS, dos “Cavaleiros de Nova Sintra” da CCAV 2483 e dos “Dragões de Jabadá”, da CCAV 2484 aderiram com os seus testemunhos, assim surgiu este extenso documento que é um misto de história e de literatura memorial. O coordenador começa por enunciar os diferentes colaboradores que se prestaram a depor com textos e imagens, e dá conta das fontes consultadas. Abre um excelente precedente, põe em paralelo um conjunto de relatórios de operações a que junta documentação do PAIGC constante nos Arquivos Casa Comum (biblioteca digital da Fundação Mário Soares).

Uma vez mais, o coordenador expende um relato histórico sobre os Descobrimentos, para se focar naquele ponto da África Ocidental onde se terá chegado ainda na primeira metade do séc. XV, descreve etnias, vicissitudes da presença portuguesa, mostra-nos o chão de cada uma das principais etnias e recorda que no início do séc. XX havia no norte da Guiné portuguesa uma importante comunidade de cabo-verdianos, na sua maioria descendentes dos que, em meados dos séc. XIX, se tinha fixado na zona de Farim, e que subsistiram com a produção de cana do açúcar e aguardente (tinham fugido da grande seca do arquipélago). Mais tarde, nos anos 1940, uma nova e intensa seca em Cabo Verde obrigou a mais uma emigração para a Guiné. Isto para notar, já em termos ideológicos, que o PAIGC contava com estas levas de cabo-verdianos para desencadear a guerra de libertação.

Retoma o posicionamento do BCAV 2867 na região do Quínara, era o setor 1, atuante nas zonas de Tite, Jabadá, Nova Sintra e Fulacunda. Havia outros povoados do Quínara, como Buba ou Empada que estavam fora do setor. O comando ficou sediado em Tite, bem como a CCS (“Falcões”). A distribuição das companhias operacionais: a CCAV 2482 (“Boinas Negras”) ficou em Tite; a CCAV 2483 (“Cavaleiros de Nova Sintra”) ficou sediada em Nova Sintra; e a CCAV 2484 (“Dragões de Jabadá”) em Jabadá. Observa o coordenador que durante o ano de 1969 o BCAV 2867 pôde contar com a colaboração da CCAÇ 2314, “Os Brutos”. Em agosto de 1968, foram colocados em Fulacunda, onde estiveram até serem substituídos pela nossa CCAV 2482. Duas outras unidades colaboraram em Tite, a CCAV 2443 e a CCAV 2765, houve operações conjuntas que o autor mostra claramente nos gráficos sobre as unidades militares de cavalaria que combateram nesta região.

Começando pelos “Falcões”, chamo a atenção para o seu diversificado papel que abarca a manutenção e conservação das partes comuns, a receção e a conferência de armamento, transportes, aprovisionamentos, secretariado, transmissões, manutenção auto, médicos e enfermeiros e capelania. Seguem-se depoimentos. O furriel miliciano Pinto Guimarães dá o seu testemunho, não esqueceu fases de sofrimentos como as minas antipessoal e minas anticarro, lembrou que fazia parte do contingente o furriel António Buscardini que, anos depois, e já na metrópole, julgou ser o chefe da polícia política do PAIGC e que fora assassinado no golpe de Estado de 14 de novembro de 1980 (ver-se-á que não foi este, mas sim um irmão). O furriel Sousa Cortez dá nota de que a CCS tinha a seu cargo o cais do Enxudé, recorda que houve uma flagelação a este aquartelamento. “A estrada Tite-Enxudé todos os dias era picada e instalados grupos de três homens. Ao longo do percurso, no entanto, por ordem do comandante do batalhão, essa rotina foi substituída por uma patrulha de autometralhadora e um jipe com militares. Um dia, num intervalo entre passagens, o IN colocou uma mina, provocando a explosão da auto e a morte de dois militares.”

Norberto Tavares de Carvalho, autor de um livro intitulado De Campo em Campo – Conversas com o comandante Bobo Keita, 2.ª edição do autor, novembro de 2020, testemunhou sobre António Alcântara Buscardini, nascido em Bolama em 1947. Foi chefe de posto em Bolama, antes de abraçar os ideários do PAIGC, prosseguiu os seus estudos na ex-Checoslováquia. Na noite do assassinato de Amílcar Cabral, teria sido violentamente espancado em Conacri. Depois da independência, dedicou-se à informação, e com sucesso. Foi mais tarde nomeado Secretário de Estado da Segurança e Ordem Pública. Assassinado em 14 de novembro de 1980. E Norberto Tavares de Carvalho observa: “A história dos fuzilamentos está muito mal contada. A começar pelas estatísticas alinhavadas e isentas de sustentos documentais… Quem pode acreditar que Nino, chefe absoluto das Forças Armadas, não tivesse conhecimento dos fuzilamentos? Justificar um golpe de Estado com tais argumentos e deixando à solta nas ruas, por exemplo, os comandantes militares como Irénio Nascimento Lopes, Iafai Camará e Quemo Mané, é faltar ao respeito dos guineenses, um autêntico escárnio à justiça e um opróbrio ao próprio partido de Cabral.” E esclarece qual dos Buscardinis era do PAIGC: “A foto do então furriel Buscardini que me foi enviada é do irmão mais novo de António Alcântara e chama-se José Manuel Buscardini, engenheiro agrónomo, depois da independência foi para a Guiné e trabalhou no Ministério da Agricultura.”

Entram agora em cena os “Cavaleiros de Nova Sintra”. Este quartel não existia antes de 6 de maio de 1968. “Nova Sintra era apenas, até então, uma zona de cerrada vegetação, sob o controlo do quartel de Tite. Estava a ocorrer uma restruturação das regiões operacionais, dentro de dias entram em funções Spínola, decidiu-se que Empada iria deixar de pertencer ao setor 1 para integrar o recém-criado COP 4, ficando Nova Sintra a constituir o aquartelamento mais estratégico a sul do setor 1.”

Nesse dia 6 de maio, um conjunto de forças militares, vindas de Tite e do destacamento de S. João, transportadas em dezenas de veículos com armamento e matéria de construção, começara a implantação do quartel, um esgotante trabalho de desmatação, de abertura de valas, de construção de abrigos, de latrinas e de uma pista de aterragem com 500 metros. O IN reagiu uma semana depois, causou a morte de um militar da cozinha do BART 1914. Nova Sintra situava-se no entroncamento de estradas provenientes de Tite, de Fulacunda e S. João, passou a ser uma zona bastante castigada pelo IN que, instalado junto ao tarrafo e nas matas de Brandão, Buduco e Bissássema, minavam todos os percursos e derrubavam frequentemente todos os pontões, visando dificultar o trânsito naquelas vias. Foi na estrada S. João-Fulacunda que explodiu em 2 de julho de 1963 a primeira mina anticarro da guerra da Guiné. E foi com minas que lamentavelmente, os “Cavaleiros de Nova Sintra” sofreram 5 mortos, todos no segundo semestre de 1969. O primeiro comandante da CCAV 2483 foi o capitão Joaquim Manuel Correia Bernardo, ferido gravemente por uma mina antipessoal em 11 de julho de 1969l. Iremos seguidamente ouvir o depoimento do furriel Soares da Silva que foi o vagomestre desta CCAV 2483.

Um detalhe da região do Quínara
Fonte de Tite, imagem do blogue Rumo a Fulacunda, com a devida vénia
Comandos portugueses em ação na Guiné, imagem retirada do jornal Correio da Manhã, com a devida vénia
Imagem de Nova Sintra, coleção do coronel Pais Trabulo, com a devida vénia
Aquartelamento de Nova Sintra, imagem retirada do blogue Lugar do Real, com a devida vénia

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 23 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26184: Notas de leitura (1748): "A pesca à baleia na ilha de Santa Maria e Açores", do nosso camarada e amigo Arsénio Puim: "rendido e comovido" (Luís Graça) - Parte II

sábado, 23 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26185: Os nossos seres, saberes e lazeres (655): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (180): Regresso aos Açores, às ilhas do grupo oriental (9) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Agosto de 2024:

Queridos amigos,
Graças à amizade com mais de meio século, pude cirandar pelo essencial da ilha de Sta. Maria, tirar partido dos pontos altos que propiciam panoramas em escadaria, ver os terraços dos vinhedos, as baías lá ao fundo, sentir a heterogeneidade dos lugares saindo de Vila do Porto, passando por Almagreira, ver o encanto da baía da Praia Formosa, e tudo mais que Sta. Maria oferece, ilha com uma coreografia que a orografia oferece e nos assombra; porque há uma ilha relevada e depois um espaço que lembra uma planície, um tanto estéril, aqui se construiu um aeroporto que foi militar e depois civil, aqui termina o prazer de uma viagem decorrente de um prémio imprevisto ganho no início de março, era um domingo soturno, na Bolsa de Turismo de Lisboa.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (180):
Regresso aos Açores, às ilhas do grupo oriental – 9


Mário Beja Santos

O dia de hoje promete, o meu querido amigo José Braga Chaves leva-me até ao aeroporto de Santa Maria, quero saber um pouco mais sobre essa pista que foi uma das maiores do seu tempo, por aqui foram evacuados os contingentes que regressaram do Japão, finda a guerra desmantelaram-se velhos barracões e ergueram-se edifícios novos, o aeroporto tornou-se português, e durante anos foi de grande importância. Na véspera adormeci a acabar a leitura do livro Ilha de Gonçalo Velho, de Jaime de Figueiredo, é uma 2.ª edição de 1990. Pergunto-me de quando terá sido a primeira, tem para aqui parágrafos de indiscutível potência crítica:
“A vida na pequena ilha açoriana era difícil e custosa até meados do século passado. Não havia empregos e, portanto, as soldadas não chegavam para o sustento mais elementar. Meia dúzia de ricaços possuía as terras de pão e de mato, as vinhas e as quintas, os gados e as alfaias: arados, carros, moinhos e lagares. Um deles punha dez carros de boi ao caminho e vinte trilhos na eira da debulha.
Os trigos, moios e moios, iam por sua conta, em navios próprios, vender-se no mercado de Lisboa.
O pobre, sem eira nem beira, vivia no seu casebre, mal vestido a alimentado. Em anos ruins comia bolos de fetos e papas de carrilhos, vestindo um longo saio de estopa. Como refrigério, só tinha a missa do domingo; no mais, era lidar do berço à cova, em terras foreiras, para entregar o fruto do seu trabalho, no fim da colheita, aos donos dos campos lavradios – a enfiteuse tornou-se quase uma escravidão!
Por essa altura começou a corrente de emigração para os Estados Unidos. Os poucos dos rapazes, na viagem de regresso vinham recheados de pesos e de águias, metidos em grandes cinturões. Daqui nasceu um vaivém de gente moça, por fim o êxodo de famílias inteiras, quando se acharam as minhas de ouro do Pacífico. Quase todos os que voltaram, enriquecidos e opulentos, remiram as terras foreiras, embora à custa de onerosos laudémios, acabando por emprestar o seu dinheiro aos velhos morgados, cheios de dívidas e hipotecas. Então, deu-se a inversão na riqueza: a grande lavora, o latifúndio, começou a dividir-se, a retalhar-se, a entrar na posse do emigrante – o ‘calafona’. Este, poupado e industrioso, de braço afeito ao trabalho, lavou as courelas, tratou dos pomares, virou as fajãs, criou gados e plantou vinhas.”
Resta saber a sequência deste ciclo histórico.
Lá vamos para o aeroporto, não se ouvem nos ares os quadrimotores Skymasters, nem os bimotores Dakota nem os aviões de caça Aircobras, o movimento na área do aeroporto é dado pela movimentação dos carros e algumas pessoas pelas ruas, o Zé vai-me mostrando sinais do passado, vejo um daqueles armazéns que ainda se podem encontrar nos campos de Inglaterra, também construídos durante a Segunda Guerra, e gostei muito daquela quase instalação de peças que vieram dos EUA para acelerar a construção do aeroporto. Aqui houve um quartel-general. Jaime Figueiredo escreve:
“A parte central do campo de aviação ocupa uma área de cerca de 6 km2, sendo 2 de largura e 3 de comprimento. Nem sempre todo o perímetro estava defendido por alta vedação de arame farpado, o que obrigava a ser vigiado, nas proximidades, por polícia norte-americana e portuguesa, servindo-se de velozes motocicletas.”

O Zé faz questão de me levar a um conjunto de pequenas empresas, o pretexto fora dado por mim, quero comprar biscoitos de orelha, ele leva-me então a uma pequena fábrica, quem ali trabalha acedeu alegremente como se põem as mãos à obra.

Almoçamos num espaço em Vila do Porto, logo a seguir vou cumprimentar a presidente da edilidade, Bárbara Chaves, trocamos lembranças, agradeço-lhe as gentilezas. E haverá novo périplo, paragens em miradouros inesquecíveis, já começou a larvar a nostalgia da partida, foi uma viagem singular, um encontro irrepetível, não me passara pela cabeça tão graciosos panoramas.

Parto no dia seguinte. Antes, porém, o Zé faz-se uma surpresa de trazer um outro recruta dos Arrifes, volto a outubro de 1967, um abraço mais do que amistoso, temos aquela tendência um pouco lúgubre de começar a conversa pelos muitos que já partiram, seja para as estrelinhas ou para a emigração, é inevitável a promessa de voltar. Por mim estou pronto, fixei os nomes de Santo Espírito, Santa Bárbara, a Baía dos Anjos, S. Pedro, as Baías da Maia e de S. Lourenço. E aqui termina o resultado de um prémio que ocorreu na Bolsa de Turismo de Lisboa e que me levou à Ribeira Grande e Vila Franca do Campo, em S. Miguel, e a conhecer tão bem a ilha de Sta. Maria, é sempre bom aterrar em terras arquipelágicas, está imensamente justificado como guardo os Açores no meu coração.

Recordação de uma infraestrutura do tempo da guerra, junto do aeroporto de Santa Maria
Quatro imagens que recordam a chegada de maquinaria vinda dos EUA, contribuíram para construir o aeroporto em tempo recorde
A preparar biscoitos de orelha, uma das especialidades genuínas de Santa Maria
Claustro do Convento de S. Francisco, instalações que pertencem à Câmara Municipal de Vila do Porto
Uma escultura no pátio do claustro
Uma janela antiquíssima que nos faz pensar nos primeiros povoadores, capitães donatários, janela Quinhentista num prédio da Rua Gonçalo Velho
Um pormenor do Forte de S. Brás
O Forte de S. Brás, uma outra perspetiva, a da sua Porta de Armas
Padrão de cantaria em homenagem aos tripulantes do Caça-Minas Augusto de Castilho, obra de Raul Lino, Forte de S. Brás, Vila do Porto acolheu-os depois de terem feito uma longa viagem, destruído o caça-minas pelos alemães
Uma imagem de rua de Vila do Porto antes da obra de Real Bordalo, naquela parede ao fundo
Um dos mais belos ilhéus de Santa Maria, o do Romeiro
Imagem tirada do miradouro do Pico Alto
Miradouro dos Picos
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Nota do editor

Último post da série de 16 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26160: Os nossos seres, saberes e lazeres (654): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (179): Regresso aos Açores, às ilhas do grupo oriental (8) (Mário Beja Santos)