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quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25086: Casos: a verdade sobre... (42): Rescaldo da Op Gema Opalina, Caboiana, 25 de setembro de 1973: lembro-me de termos resgatado vários militares da 3ª CCmds Africanos do tarrafo e do Cacheu (Zeca Macedo, ex-2º tenente fuzileiro especial, DFE 21, Cacheu e Bolama, 1973/74)


1. Comentário  (*) do nosso amigo e camarada José Macedo (ou Zeca Macedo), um cabo-verdiano da diáspora, que foi FZE [Fuzileiro Especial] no DFE 21 na Guiné em 1973/74, e que hoje é advogado nos States, para onde emigrou em 1977: tem dupla nacionalidade, cabo-verdiana e americana; é membro da nossa Tabanca Grande desde 13 de Fevereiro de 2008:

Lembro-me da presença no campo de aviação de vila Caheu de vários helis, oficiais,  comandos e enfermeiras, entre as quais a Eugénia (Cabo-verdeana). 

As 3 companhias de Comandos foram transportadas até à Mata da Coboiana / Caboiana. Na mata, destruiram varios celeiros de arroz e outros mantimentos pertencentes ao PAIGC. 

Os comandos retiraram, depois de pequenos confrontos, ficou no terreno a 3ª Companhia, sob o comando do tenente Jalibá. Passado pouco tempo, cairam numa forte emboscada em que a força do PAIGC era de mais de uma centena. (versão que me foi contada por um dos membros da 3ª Companhia).

Os Comandos sofreram vária baixas,  entre mortos e feridos,  e tiveram  vários elementos, entre eles o tenente Jalib "apanhados a mão.  Com o PAIGC em perseguição, a 3ª Companhia, sem comandante, correu em direção ao Rio Cacheu, fortemente pressionada pelo PAIGC.  

O DFE 21 recebeu uma comunicação da base dessa operação, pedindo-nos para ir a uma determinada área do tarrafo no Rio Cacheu para retirar os elementos dos comandos em retirada (debandada?). Assim fizemos com 5 zebros, retirando do rio e do tarrafo os Comandos da 3ª Companhia. Eu, pessoalmente, retirei do rio vários soldados, entre eles um furriel, cujo nome não recordo, que me ofereceu meses mais tarde uma foto dele fardado.

O DFE 21, estacionado em vila Cacheu, tinha por missão patrulhar o Rio Cacheu de modo a impedir "cambanças" do Senegal para o interior da Guiné, principalmente na zona da Coboiana/Caboiana. Várias canoas foram destruidas, contudo, era extemamente dificil apanhar uma "cambança". 

Para esclarecimento, o DFE 21 não era um Destacamento de Fuzileiros Navais. Era um Destacamento de Fuzileiros ESPECIAIS, como eram (são) os Comandos e os Paraquedistas. 

Sobre a existencia (ou não) da Marinha do PAIGC, para além da provas citadas por um dos comentadores, é bom lembrar que um dos principais objectivos de Operação Mar Verde era a destruicao das vedetas do PAIGC.

Um abraco amigo
José / "Zeca" Macedo
DFE 21-Cacheu-Bolama-Guine Bissau-1973-74
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(**) Último poste da série > 17 de janeiro de  2024 > Guiné 61/74 - P25079: Casos: a verdade sobre... (41): "Canquelifá era o seu nome" - Uma batalha de há 50 anos (José Peixoto, ex-1º cabo radiotelegrafista, CCAÇ 3545 / BCAÇ 3883, 1972/74) - IV (e última) Parte: O nosso batismo de fogo, na bolanha do Macaco-Cão, em 29 de agosto de 1973

segunda-feira, 11 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24641: Notas de leitura (1615): "Guiné-Bissau: Um Caso de Democratização Difícil (1998-2008)", por Álvaro Nóbrega; Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Universidade de Lisboa, 2015 (1) (Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,
É um estudo rigoroso, bem datado, uma observação que cuida do mosaico étnico, das condições da luta pela independência, toma em consideração as sucessivas práticas do poder, visita a transição democrática em África para aquilatar o processo democrático formalmente encetado em 1991 mas que foi sujeito a inúmeros escolhos, interpreta o que há de completamente diáfano no chamado sentido do Estado, como se organiza o poder soberano do mando, e como permanece longínqua a distância entre as leis que se fabricam em Bissau e o quotidiano de quem vive agarrado à subsistência. Um estudo de leitura obrigatória, com bom trabalho de campo, oferece uma reflexão sobre os diferentes fatores que têm induzido a disfuncionalidade do Estado e do processo democrático na Guiné-Bissau, nada de moralização, factos são factos, os guineenses que ponderem sobre a revitalização da sociedade civil, a participação nas decisões de quem está longe dos jogos de Bissau, o tal caminho longe que deve ser feito para erradicar o narcotráfico, o fantasma tribal, as mil e uma manifestações da corrupção.

Um abraço do
Mário



Uma soberba investigação sobre uma Guiné-Bissau que viveu a guerra civil, dilacerante (1)

Mário Beja Santos


Álvaro Nóbrega, Doutor em Ciências Sociais e professor universitário, é autor de uma obra de referência "A Luta pelo Poder na Guiné-Bissau" (2003), e na sequência desse primoroso trabalho produziu "Guiné-Bissau: Um caso de democratização difícil (1998-2008)", Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Universidade de Lisboa, 2015. Este ensaio, de leitura obrigatória, desvela o itinerário ziguezagueante das instituições democráticas e pluralistas na Guiné-Bissau; o investigador reflete a fundo sobre as condições do nascimento do Estado, após uma prolongada luta armada de libertação nacional, elenca sobre as fragilidades, os erros, a vertigem dos cargos, o nepotismo, a tentação tribal, a Nação firme, mas o Estado volátil; enfim, importa esclarecer se faz vencimento aludirmos a um Estado frágil ou falhado ou supor que haverá outros itinerários, que seguramente requerem imensa coragem, a trilhar para consolidar a democracia e o respeito pelas instituições.

O autor privilegia, no início do seu trabalho, a análise do processo de liberalização política encetado nos anos 1990, vai forçosamente a décadas atrás e enquadra com a evolução que ocorreu noutros países, regimes autocráticos que simularam ou com um certo grau de sinceridade aprovaram as instituições pluralistas, o respeito pela liberdade de expressão, a independência da justiça e a primazia do trabalho parlamentar. Quando Nino Vieira abriu caminho para as instituições pluralistas, fê-lo com uma pedra no sapato e com enormes resistências no seio do PAIGC. Quando este chegou ao poder em Bissau, em outubro de 1974, parece ter esquecido as advertências de Cabral para as armadilhas que potencialmente Bissau reservava; com a gula do poder, esqueceram-se questões medulares do mosaico étnico-cultural, que o autor elenca, vale a pena uma referência:
“No litoral registam-se as maiores densidades populacionais e congregam-se os povos de cultura animista que resistiram ao processo de islamização que vingou em toda a sub-região. Manjacos, Mancanhas, Felupes, Papéis ou Pepel, Baiotes, Bijagós e Balantas foram o grosso desta população de cultura animista. No litoral sul e no interior do país predominam, por ordem decrescente de importância populacional, Fulas, Mandingas, Beafadas e Nalus/Sossos, Jacancas e Saracolés. Há quem defenda hoje, como no tempo colonial, que o processo de islamização será rápido entre a população que ainda resiste animista. Pode ser que assim aconteça face a um proselitismo islâmico muito ativo, e é uma igreja católica que, pese a sua ação social valiosa, não parece em condições de travar o processo. Mas não se pode esquecer a ação das seitas evangélicas, especialmente as brasileiras, as da torna-viagem, intensamente prosélitas e com rituais e práticas que vão ao encontro do esoterismo das populações africanas”.

Não esquece as etnias transnacionais, são as que demograficamente mais pesam, que têm estreitas ligações com o Senegal, a Gâmbia e a Guiné-Conacri, e daí também um quadro de descentralização política, um verdadeiro tampão contra o Estado coeso. O PAIGC tentou infiltrar-se nas estruturas locais e perdeu, foram as estruturas locais que esvaziaram os comités e os representantes nomeados por Bissau foram desde muito cedo ostracizados. Igualmente a tentativa de modernização imposta não vingou. “A desorganização crescente do Estado, o processo de abertura política, que levou os políticos de volta às tabancas para disputarem intensamente o voto das zonas rurais, conduziu a uma reafirmação do poder tradicional que está bem consciente da importância que tem em tempos eleitorais. Assim se compreende a posição das autoridades administrativas que tanto escrevem documentos de reconhecimento ao poder tradicional, como aconteceu na investidura do novo régulo do Forreá, ou que, chamadas a intervir em chão Papel num conflito de direitos sucessórios, entregaram a sua resolução ao poder regular contra quem tinham sido chamados. Nestes momentos em que o Estado visita a tabanca não é raro que não consiga falar diretamente com o seu povo, nem ouvir o que ele diz, sem recorrer a um intérprete que domine a língua étnica e o crioulo”.


Assim se põe a questão da identidade nacional, ela existe ou não, é possível falar-se ou não de uma identidade guineense? O autor recorda que Amílcar Cabral contornou a questão adotando o princípio de que a nação se forjou na luta de libertação. Mas cedo surgiram clivagens e antagonismos internos, e o autor recorda aspetos nevrálgicos: “entre as etnias não abertas à modernização; entre as classes sociais em vias de formação”. Quando encaramos o conflito armado, era admissível tentar-se uma leitura de que havia uma resposta da Nação coesa contra invasores e opressores internos. O autor observa: “Vencido o opositor, as divergências emergem e começam a minar a unidade firmada nas trincheiras. Além disso a luta, porque é violenta, não é inclusiva e a vitória de uns sempre significou a derrota para outros. E essas são as etnias magoadas da Guiné: os Fulas no tempo colonial, os Balantas nos anos 1980 e os Mandingas nos anos mais recentes”. Como estamos a falar de Ciências Sociais, é apropriado que o autor também lance olhar sobre os escolhos à identidade nacional: “O guineense depara-se quotidianamente com a questão de múltiplas pertenças (comunitária, religiosa, étnica e política), o que, por um lado, coloca em questão a coesão nacional e, por outro, dificulta a governação e a gestão dos interesses nacionais, predominando a identificação, a autonomia e lógica étnica”.

E chegamos a um novo elemento do Estado: o “Tchon”. Nova dissertação histórica nos é apresentada pelo autor, o “Tchon” é o local de nascimento, onde vive a família, a etnia, tem um poder soberano. Do “Tchon” passamos para a fragilidade do Estado, e vem uma recordação datada de 10 de outubro de 2003 em que um jornal de Bissau alerta para as ruínas da Casa da Independência em Lugadjole: “A placa comemorativa da proclamação da independência já desapareceu. Onde foi parar? Ninguém sabe. É provável que o metal deste símbolo da liberdade já tenha sido fundido para fabricar algum objeto fútil, de uso vulgar. Triste reciclagem dos valores da independência!”. É brandido o espetro do narcotráfico e passamos para a sede real do poder que é pertença de militares e civis ligados por interesses patrimoniais e por outros níveis de solidariedade. “É este núcleo informal que detém, em última instância, a capacidade de terminar o exercício da força e da violência do Estado. Tudo tem de ser negociado. Nenhum ato de força do Governo é possível sem a sua concordância e não há poder interno capaz de se lhe impor”.

Nesta teia de constrangimentos, todas as instituições são abertamente frágeis, logo o desempenho e a eficácia da Justiça, o quadro da anormalidade é patente:
“Todos os dias são estabelecidas inúmeras relações jurídicas na Guiné, não se pode dizer que não recorram com normalidade e satisfação para os seus intervenientes. A maioria destas decorre, contudo, ao abrigo da personalização das relações, de contratos ritualizados que comprometem pelo nível de sanções de índole social e espiritual que decorrem do seu incumprimento. A desonra, a vergonha do indivíduo perante as suas relações sociais e o medo dos castigos provindos do mundo espiritual coagem, a quem a honra não obriga, ao cumprimento. Mas no mundo da ambivalência cultural que é a cidade de Bissau, onde as práticas e os povos se misturam, os conflitos são mais frequentes e as instâncias tradicionais, que auxiliariam à sua resolução de uma qualquer comunidade rural, não têm a máxima força. Assim sendo, tende a vigorar a lei do mais forte”.

Tudo é ténue, precário, dominado pelo princípio da anulação ou revogação. Acresce que tudo se promete para melhorar o bem-estar e tudo fica na mesma ou pior por causa das coligações precárias inter e intrapartidárias, é um poder de sátrapas, em que se multiplicam os ministros, secretários de Estado e secretários-gerais, lugares que dão acesso aos benefícios de função com o longo cortejo de chefes de gabinete, assessores e colaboradores, tudo inevitavelmente transformado em mecanismos de corrupção, onde o fantasma tribal não está ausente.

E temos por último a instabilidade política e militar, os ajustes de contas entre Nino Vieira com Carlos Gomes Júnior é um bom exemplo, o assassinato de Veríssimo Seabra só porque houve atraso no pagamento das Nações Unidas ao contingente de manutenção de paz na Libéria, tem-se permanentemente a sensação de que não há avanços seguros, que rapidamente se pode recuar até práticas selváticas ou cavernícolas.

E o autor seguidamente vai-nos dar uma poderosa reflexão sobre a elite política da Guiné-Bissau.


(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24633: Notas de leitura (1614): "Uma História do Mundo em 100 Objetos", por Neil MacGregor; Temas e Debates e Círculo de Leitores, 2014 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 21 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24494: Notas de leitura (1599): A propósito de dois relevantes trabalhos do historiador guineense Carlos Lopes (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Junho de 2021:

Queridos amigos,
Aqui se retomam as teses do historiador Carlos Lopes quanto à necessidade de ter sempre em conta, quando se estuda a história da Guiné-Bissau e a definição das fronteiras de 1886 o que era o Kaabu do século XIII ao século XVIII, como não se pode iludir a historicidade e os dados vitais do Kaabunké, a despeito das divisões criadas pelas potências coloniais. O Kaabú, herdeiro do Império Mali, desintegrou-se no século XIX mas a sua herança é um dado permanente que ultrapassa as fronteiras criadas por fatores exógenos, daí as manifestações independentistas no Casamansa, tentativas de golpes de Estado, circulação de produtos agrícolas em toda a região, resistências camponesas ao pagamento de impostos, as importantes correntes migratórias e a explosão cultural com origem na cultura Kaabunké. Como diz o historiador, há que encontrar uma fórmula para que nesta região de África se consiga integrar os espaços em harmonia com a sua história.

Um abraço do
Mário



A propósito de dois relevantes trabalhos do historiador guineense Carlos Lopes

Mário Beja Santos

Numa pesquisa recente na revista Soronda, n.º 10, de julho de 1990, na revista Lusotopie, n.º 1-2, L’Harmattan, 1994, encontrei dois importantes artigos de Carlos Lopes, o primeiro referente ao Kaabú do século XIII ao século XVIII e quais as suas relações de poder, o segundo alusivo aos limites históricos de uma fronteira territorial – o que aproxima ou demarca a Guiné Portuguesa da Guiné-Bissau.

Para Carlos Lopes é indubitável que o estudo da estrutura do estado da Guiné-Bissau leva a constatar que existe um cruzamento de várias conceções de poder: uma tradicional, da qual os Malinké ou Mandingas seriam talvez a principal raiz, uma outra ligada ao desenvolvimento de certos aspetos sociopolíticos durante a luta de libertação nacional, e ainda uma outra que obedece ao modelo clássico exógeno de Estado. Portanto o estudo de relações entre o poder antigo e o moderno. A estrutura do Estado Malinké situa-se na Gâmbia, no Casamansa e na Guiné-Bissau atuais, contribuíram de uma forma decisiva para que se possa fazer um estudo pormenorizado do que foram as estruturas políticas Kaabunké. Este espraiava-se entre a Gâmbia, o Casamansa, Cacheu, Geba, Corubal, Nunez e Pongo. Os navegadores dos séculos XV e XVI registaram esta região do Norte da Gâmbia e os cursos de água que ofereceram boas condições para a navegação, até aparecerem os obstáculos do Futa-Djalon. Era um território onde o eixo económico andava à volta da orizicultura de mangal, havia uma pequena indústria de extração do sal; o ouro de Bambuk também desempenhou um papel importante no desenvolvimento da região. Os rápidos existentes nos rios Gâmbia e Corubal garantiam fronteiras naturais que protegiam as rotas comerciais.

Observa o autor:
“Muitos historiadores consideram, no entanto, que esta região constituía uma espécie de beco sem saída do mundo Malinké, pois ela era apenas o ponto ocidental mais extremo do Império do Mali. Quando, no século XVII, o Mali desaparece completamente da cena, o Kaabú encontra-se no seu apogeu. A influência Malinké torna-se também cultural, e o grande processo de malinkização vai ser uma das grandes originalidades do Kaabú. Os viajantes que visitaram a região descrevem uma forte dominação Malinké, sem, no entanto, muitas vezes fazerem referência ao centro político deste poder – o Kaabú era o provável herdeiro da riqueza comercial que estava na origem do poder maliano”. E um tanto à semelhança do seu trabalho para tese de doutoramento, Carlos Lopes enumera a decadência do Kaabú no século XIX, a estrutura social existente no Kaabunké, as razões da decadência. Assim chegamos a um argumento muito caro a Carlos Lopes, a herança política Kaabunké, uma conceção original da relação espaço e poder.

E escreve:
“É possível constatar que as estruturas atuais dos estados atrás citados (Gâmbia, Senegal, Guiné Conacri e Guiné-Bissau) continuam impregnadas das inter-relações construídas pelo Kaabú ou (a partir do século XIX) em oposição à existência deste. Embora a ideologia da construção nacional na Guiné-Bissau seja sobretudo obra dos crioulos, isso não devia impedir o estabelecimento de certas alianças étnicas em função da história antiga dos povos da região. A memória contemporânea esquece-se que os sistemas políticos tradicionais outorgavam pouca importância ao controlo territorial centralizado. No sistema de gestão do Kaabú a regra de ouro era a descentralização. A territorialidade ganha uma dimensão política com a reestruturação do espaço imposta pelas novas formas de troca introduzidas pelos europeus, nos fins do século XVIII. É nesse momento que o Kaabú perde o seu controlo político, mas a sua influência histórica não será apagada facilmente”.

No que toca aos limites históricos da fronteira territorial, o historiador lembra que defende uma hipótese que não é muito popular: a de que a existência das delimitações territoriais atuais tem contribuído para historicidades cruzadas entre o que é hoje a Guiné-Bissau, Casamansa e Gâmbia. Neste seu trabalho, o autor argumenta que o território da Guiné-Bissau é uma realidade ainda mais artificial do que a Guiné Portuguesa. Existem fundamentalmente duas formas de ler a realidade guineense: uma privilegia a componente exógena baseada na presença e historiografia europeias, outra concentra-se na historiografia endógena, obviamente que esta colide com a anterior. Quanto à tese exógena, tem a ver com a presença europeia cinco séculos num território chamado Rios da Guiné, presença europeia de Portugal, França, Inglaterra e Holanda, isolados ou associados do comércio transatlântico. Logo os navegadores portugueses fizeram distinções na região entre o norte da Gâmbia e os chamados rios do Sul.

O modelo exógeno leva os líderes africanos a pugnarem por uma conjugação de progresso, modernidade e desenvolvimento de acordo com o modelo ocidental. Foi o tratado luso-francês de 1886 que dividiu o espaço Kaabunké e procurou uma identidade para a Guiné Portuguesa. O Movimento de Libertação Nacional jamais utilizou argumentos de extensão territorial, só reivindicava a unidade política com as ilhas de Cabo Verde que obviamente nada têm a ver com o espaço Kaabunké. A defesa que a direção do PAIGC fazia baseava-se numa historicidade limitada a referências coloniais, enfatizando que os dois territórios foram geridos por uma mesma administração cuja sede se encontrava na ilha de Santiago. Ora, jamais existiu em terra firme continental um qualquer controlo territorial português. “A base ideológica justificou a construção teórica do movimento nacionalista, tal como todos os exemplos africanos deste tipo, era uma base que não podia ser articulada à existência de uma nação. A nação, tal como concebida pelo movimento nacionalista, não só se baseava no território de 1886 mas também nas estruturas que o justificam”. Tal tese assentava no credo propugnado pelo modelo ocidental e dava muito jeito às elites crioulas oriundas de Cabo Verde e da Guiné.

Passando para a tese endógena, esta é naturalmente inovadora mas muito polémica. “Trata-se de demonstrar a necessidade de perceber os fenómenos sociopolíticos da Guiné-Bissau e da região onde está inserida, a partir de uma historicidade endógena, que minimiza a relação com o exterior. É possível constatar aquilo que a tradição oral Mandinga tem vindo a martelar desde sempre: que do século XII até meados do século XIX, o território entre os rios Gâmbia e Nuno foi dominado por estruturas políticas Mandingas, primeiro criadas, depois herdeiros dos Estados do Alto Níger, nomeadamente do Império do Mali”.

O autor dá como provado que os povos desta região resistem à estruturação do seu espaço e às atuais fronteiras que o dividem, e dá exemplos que vão desde a manifestação independentista no Casamansa, aos golpes de Estado, ao recurso das línguas francas da região, à tensão militar constante nas fronteiras, às correntes migratórias, à explosão cultural, nomeadamente musical com origem na cultura Kaabunké – exemplos que demonstram que os Estados e os seus espaços estruturados não estão a ser respeitados. Segundo o autor, cabe aos intelectuais africanos o papel de conceber os argumentos que permitirão uma solução para estas irracionalidades, de modo a existir em África a integração de espaços em harmonia com a sua história. Reconheça-se como é bastante interessante esta argumentação de Carlos Lopes de o endógeno ser muito mais forte e permanente que o exógeno.

Mapa histórico da Senegâmbia em 1707
Mapa da sociedade Mandinga, 1906
O korá
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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24484: Notas de leitura (1598): "Memórias Duma Vivência em Ambiente de Guerra", por José Inácio Sobrinho; Edição de Autor, 2019 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 2 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24362: Notas de leitura (1587): Entre o melhor da literatura de viagens do século XV (2): As viagens na África Negra de Luís de Cadamosto (1455-1456) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Outubro de 2020:

Queridos amigos,
Continuamos na companhia de Luís de Cadamosto, chegou-se até ao rio de Gâmbia e regressa-se a Portugal. Esperem agora pela segunda viagem, desta vez vai até à região do Batimansa, rei Mandinga, continuará a viagem para Sul até alcançar o rio Casamansa, depois Cabo Roxo, rio de S. Domingos ou Cacheu, chegará ao rio Grande, o outro nome dado ao rio Geba. A etnologia mas sobretudo a literatura de viagens ficarão com uma dívida enorme com este jovem mercador veneziano sempre atento aos usos e costumes, ao funcionamento dos mercados, às culturas, à postura do comer, à prática religiosa, vimos aspetos muito saborosos da sua digressão pelo país de Budomel, como Cadamosto discute sem acrimónia aspetos religiosos com um muçulmano, a sua curiosidade sempre desperta pelos animais e pelas aves, revelou-se o narrador que seguramente irá influenciar os continuadores das viagens que se seguirão à sua, tome-se a narrativa destas duas navegações como um dos mais espantosos guias de viagens de todos os tempos.

Um abraço do
Mário



Entre o melhor da literatura de viagens do século XV (2):
As viagens na África Negra de Luís de Cadamosto (1455-1456)


Mário Beja Santos

O jovem veneziano Luís de Cadamosto, por acaso do destino, veio parar a um porto algarvio, o Infante D. Henrique soube da sua existência, conversaram e pouco depois partiu uma caravela a caminho do Cabo Branco, Cadamosto era mercador e soou-lhe bem a expetativa de fazer bons negócios na África Negra que já aqui se descreveu como viu os arquipélagos da Madeira e das Canárias, passou por Arguim e neste exato momento, depois de nos contar como vivem os azenegues, os pardos, chegou ao país de Budomel, segundo os especialistas estão aqui algumas das descrições fulgurantes de alguém que não era cronista mas que tinha um olhar apurado para ver os locais e as pessoas. Começa assim:
“Passei o dito rio de Senegal com a minha caravela, e navegando cheguei ao país de Budomel, lugar distante do dito rio cerca de 800 milhas pela costa, a qual é toda terra baixa e sem montes. Este nome Budomel é título de senhor, e não nome próprio do lugar. Neste lugar me detive com a minha caravela para tirar língua deste senhor, embora tivesse recebido informação de certos portugueses que tinham tido trato com ele, de que era pessoa e senhor de bem, e em quem se podia ter confiança, e realmente pagava o que tomava”.

Cadamosto não vai desprovido, leva cavalos, pano de lã, trabalhos de seda mouriscos e algo mais. Budomel veio ao seu encontro, convidou-o para sua casa, o veneziano deu-lhe sete cavalos com os seus arneses. “Antes de partirmos, presenteou-me logo com uma rapariga de doze para treze anos, muito linda, por ser muito negra, e disse que ma dava para serviço da minha câmara; aceitei-a e enviei-a para o meu navio”. Budomel pôs ao serviço de Cadamosto um seu neto, chamado Bisboror, acolheu-o quase todo o mês de novembro. E aproveita a oportunidade para descrever usos e costumes. “O rei deste reino só tem aldeias de casas de palha, e Budomel era senhor de uma parte deste reino, que é coisa pequena. Não são senhores porque sejam ricos de tesouros ou de dinheiro, porque nada disso têm; mas podem-se chamar verdadeiramente senhores de cerimónias e de séquitos de gentes, pois sempre estão acompanhados e reverenciados por muitos, e são muito mais temidos pelos seus súbditos que os nossos senhores daqui”.

Descreve a casa de Budomel, as mulheres, as gentes que o servem, as cerimónias de que usa o rei ao dar audiências, oram em conjunto na mesquita, discutem a fé sem qualquer ponta de fanatismo, veja-se o que se passou depois de algumas orações na mesquita: “Quando tinha acabado, perguntava-me o que me parecia; e por ter muito prazer em ouvir falar das coisas da nossa fé, dizia amiúde que lhe narrasse algumas, de forma que eu lhe dizia que a dele era falsa, e que os que lhes mostravam tais coisas ignoravam a verdade; e estando presentes aqueles seus árabes, reprovava a lei de mafoma, e mostrava ser a nossa fé verdadeira e santa, enquanto eu fazia desgostar aqueles seus mestres da lei. Do que este senhor se ria, e dizia que julgava fosse boa a nossa fé e não podia ser diversamente, porque Deus que nos tinha dado tantas coisas boas e ricas, tanto engenho e sabedoria, não teria deixado de nos dar também boa lei”.

Descreve o modo de comer, fala das produções do reino, de como se lavra, fala-nos dos animais que ali existem e deslumbra-se com os elefantes: “É animal que não ataca o homem se este o não ataca; e o modo de o elefante atacar o homem é dar-lhe com a trompa comprida uma pancada tão forte de baixo para cima que atira com ele às vezes quase como um tiro de seta”. Deslumbra-se igualmente com as aves e dá-nos um quadro como funciona o mercado dos negros e das coisas que aí negoceiam:
“Aqui vinham homens e mulheres do país, de quatro ou cinco milhas ao redor, porque os de mais longe iam a outros mercados; e nestes mercados compreendi muito bem que esta gente é pobríssima pelas coisas que levavam ao mercado a vender, que eram algodões, mas não em grande quantidade, fiados também de algodão, panos de algodão, legumes, azeite, milho, gamelas de madeira, esteiras de palma e um pouco de todas as outras coisas que usam para viver (…) Estes negros, quer os homens quer as mulheres, vinham ver-me por maravilha; parecia grande coisa ver cristãos e não menos se admiravam da minha brancura que do meu traje, que era ao uso da península hispânica um jubão de damasco preto e uma capa por cima; olhavam para o pano de lã que eles não têm e para o jubão, e muito se admiravam; alguns me tocavam as mãos e os braços e com saliva me esfregavam para ver se a minha brancura era tinta ou carne e vendo que efetivamente era carne ficavam maravilhados”.

São olhares alargados que passam pelos cavalos, os costumes das mulheres, os instrumentos musicais. Depois encontra Antonieto Usodomar, um genovês que vinha com duas caravelas, já saiu do país do senhor Budomel, resolveu ir mais adiante, passou Cabo Verde (em território africano), encontrou no alto mar o genovês, justifica porque é que Cabo Verde é assim chamado e entra em nova descrição, a dos Barbacinos e dos Serreres, estamos na África Negra, mas estes dois povos não estão sujeitos ao rei do Senegal. “São homens muito negros e bem encorpados, a terra é bastante rica de bosques e abundante de lagos e de águas, e por isso se consideram muito seguros, não sendo possível entrar nela senão por passos estreitos; por isso não temem nenhum senhor circunvizinho, e aconteceu muitas vezes, em tempos passados, que alguns reis de Senegal quiseram fazer-lhes guerra para os subjugar e sempre foram derrotados pelas duas nações, quer pelas frechas ervadas (flechas envenenadas), quer pelo país ser muito áspero".

Assiste à crueldade de ver trucidar alguém que manda a terra, resolve não mexer e prossegue viagem, a próxima etapa é o país de Gâmbia. Há encontro com gente que vem em canoas, mas não comunicam. Entra finalmente no rio Gâmbia, chega gente, desta feita há cumprimentos, e o comentário de Cadamosto é precioso:
“Suspenderam eles a remada e levantaram os remos para o ar, ficando a olhar para nós, como para coisa maravilhosa; e examinando-os também, julgámos que poderiam estar, quando muito, 130 a 150 negros, que nos pareceram homens belíssimos de corpo, muito pretos, todos vestidos de camisas brancas de algodão, com chapelinhos brancos na cabeça, quase à moda dos tudescos, salvo que de cada lado tinham uma espécie de asa branca, com uma pena no meio do dito chapelinho, quase como querendo dar a entender que eram homens de guerra. À proa de cada uma das almadias estava um negro, em pé, com uma adarga redonda no braço, que nos parecia ser de couro; e, assim, nem eles atirando nem nós fazendo movimento algum contra eles, foram-se aproximando, e chegados a eles, sem outra saudação, largaram os remos e começaram todos a atirar com os arcos. Os nossos navios, à vista do assalto, descarregaram da primeira vez quatro bombardas. Ao ouvi-las, pasmados e atónitos pelo grande estrondo, os negros largaram os arcos, e olhando uns para um lado, outros para o outro, estavam admirados de verem as pedras das bombardas ferirem a água junto deles; e ficaram muito tempo a olhar para elas, mas, não vendo outra coisa, perderam o medo ao estrondo e, depois de termos atirado muitos tiros, pegaram nos seus arcos e começaram novamente a atirar com grande ardor, aproximando-se dos navios um tiro de pedra. Os marinheiros começaram a alvejá-los com as suas bestas e o primeiro que descarregou foi um filho bastardo daquele gentil homem genovês, que feriu um negro no peito, que logo caiu morto na almadia. Ao ver isto, tomaram os seus aquela frecha e consideraram-na muito, quase maravilhados daquela arma; mas nem por isso deixaram de a atirar aos navios vigorosamente, e as das caravelas a eles, de forma que em pouco tempo foram mortos muitos negros, e dos cristãos, graças a Deus, nenhum foi ferido”.

Os atacantes recuam e depois procuraram chegar à fala com eles por meio de intérpretes, dizem quem são e de onde vêm, desejavam ter amizade e boa paz com eles. Responderam os da terra que tinham notícia como nós tratavam os negros do Senegal, tinham por certo que os cristãos comiam carne humana e que compravam os negros só para os comer, e que por isso não queriam de forma alguma a amizade de quem vinha e que nos queriam matar a todos, e depois de toda esta conversa fugiram para terra e assim acabou a guerra. Cadamosto e o genovês saem dali, vão na direção de Cabo Verde para voltar para Portugal. Ainda faz uma descrição primorosa da astronomia e aqui acaba a primeira navegação. Vamos agora falar da viagem seguinte, aquela em que chegaram a algumas ilhas de Cabo Verde, isto já em 1456.

(continua)

Carta da África Ocidental (pormenor), Paris, 1667
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Nota do editor

Último poste da série de 29 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24350: Notas de leitura (1586): Entre o melhor da literatura de viagens do século XV (1): As viagens na África Negra de Luís de Cadamosto (1455-1456) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 29 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24350: Notas de leitura (1586): Entre o melhor da literatura de viagens do século XV (1): As viagens na África Negra de Luís de Cadamosto (1455-1456) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Outubro de 2020:

Queridos amigos,
São duas belas traduções, acrescendo que a edição francesa, da categorizada Chandeigne, que tanto prestigia a cultura portuguesa vem acompanhada de comentários e notas de grande mérito, tornam ainda mais esclarecedoras as narrativas deste jovem veneziano que foi seduzido pela proposta do infante D. Henrique de ir até ao Senegal e à Gâmbia, acabará por fazer duas expedições, e sendo ainda assunto de grande polémica acabou por descobrir algumas das ilhas de Cabo Verde. Importa insistir que ele não era cronista, daí o colorido do seu estilo e a completa liberdade de expressão, que iremos depois ver nos seus diálogos com o rei Budomel e o seu neto. Poucas obras do século XV podem ombrear com Cadamosto, ele viajará até ao Casamansa e ao Rio Grande, irá mesmo descrever o fenómeno do macaréu. É um autor inesquecível, tenho grande satisfação em trazê-lo aqui numa revisitação.

Um abraço do
Mário



Entre o melhor da literatura de viagens do século XV (1):
As viagens na África Negra de Luís de Cadamosto (1455-1456)


Mário Beja Santos

Não é a primeira vez que o nome de Luís de Cadamosto é aqui referenciado, mas o facto de se ter encontrado uma tradução de 1944, do Instituto para a Alta Cultura e edição francesa de 1994, Edições UNESCO e Edições Chandeigne, obviamente com a riqueza de um tradutor italiano, por um lado e edição francesa cheia de pormenores, por outro, tudo concorre para voltarmos à fala com este jovem patrício veneziano que em 1455, no decurso de uma escala involuntária no Sul de Portugal, se deixou convencer pelo Infante D. Henrique para uma viagem a África. O que mais nos toca nestas narrativas é que o olhar de Cadamosto não é de um cronista oficial, ele era um mercador sem preconceitos, um jovem homem cheio de curiosidades a quem repugnava a efabulação, revela-se dotado de uma surpreendente abertura de espírito. A prova disso são os seus testemunhos: a descrição de paisagens e peripécias da navegação alterna com as da vida quotidiana dos berberes azenegues e os negros da Guiné, o que vai conferir à narrativa um grande interesse etnológico. Os seus diálogos com o rei Budomel e o seu neto Bisboror ficaram célebres do seu bom humor e da sua vivacidade. E importa não esquecer que as viagens de Cadamosto estão na primeira linha dos testemunhos ocidentais da África Negra.

Abre a descrição da primeira viagem com uma certa eloquência: “Fui eu, Luís de Cadamosto, o primeiro que saí da mui nobre cidade de Veneza para navegar o mar Oceano, fora do estreito de Gibraltar para as partes do meio-dia, nas terras dos negros da baixa da Etiópia”. Assume que vai falar de um outro mundo. Apresenta-nos o Infante D. Henrique e as explorações náuticas a que se dedicava, elogia as caravelas, não esconde que queria trabalhar para adquirir meios e situa o encontro com o Infante: “Embarquei nas nossas galés de Flandres, saímos de Veneza em 1454, navegámos por nossas jornadas até que nos encontrámos na Península Hispânica. E encontrando-me, pelo tempo contrário, no Cabo de S. Vicente, deu-se o caso de não muito longe dele estar o referido senhor Infante D. Henrique numa povoação vizinha chamada Raposeira”.

O Infante convoca-o, quem o procura leva amostras de açúcares da ilha da Madeira e de sangue de drago. Ocorre o encontro, o infante faz-lhe a proposta de partir à procura de novos mundos, apraza-se um contrato, arma-se uma caravela nova, era patrão um Vicente Dias, natural de Lagos, em 22 de março de 1455 rumam para a Madeira, passam por Porto Santo pois a ilha da Madeira onde ele descreve as coisas que aqui se produzem. Partem da Madeira para as ilhas Canárias, outra descrição preciosa e depois navegam para o Sul, como ele escreve na direção da Etiópia, chegam a Arguim, fala no deserto do Sara e diz: “É muito grande, a travessia demora 50 a 60 dias a cavalo. Este deserto vem beber no mar Oceano, na costa, que é toda arenosa, branca e seca; é terra baixa, toda igual e não mostra ser mais alta num lugar que no outro, até ao Cabo Branco”. Aproveita para falar dos peixes e de povoações por onde passam as caravanas que vêm de Tombuctu, quanto a quem ali vive eram maometanos que vagueiam pelos desertos e são homens que vão às terras dos negros. “São em grande número e têm grande abundância de camelos, nos quais levam o cobre e a prata da Berberia e outras coisas para Tombuctu e para as terras dos negros, e daí trazem oiro e malagueta que trazem para cá. São homens pardos, e vestem umas túnicas brancas sobre o corpo. Os homens trazem um lenço à mourisca na cabeça e andam sempre descalços”.

Cadamosto refere as operações da feitoria de Arguim, fala nos Azenegues que trata como homens mulatos e que habitam em alguns lugares da costa que fica para além do Cabo Branco. Ele refere o império Melli, seguramente o império Mali, dizendo que há muito calor, que não há no dito país animais quadrúpedes e que os Árabes e Azenegues adoecem e morrem devido ao grande calor. O sal era a mercadoria mais apreciada e descreve com enorme vivacidade os termos de um comércio mudo, os mercadores não se viam uns aos outros. “Visto o sal, põem uma quantidade de oiro na frente de cada monte e voltam para trás, deixando o oiro e o sal, e retiram-se. Voltam os negros do sal, e se a quantidade de oiro lhes não agrada, deixam o dito oiro com o sal, e voltam para trás, após o que vêm os outros negros do oiro, e levam o monte que encontram sem oiro; e aos outros montes de sal tornam a pôr mais oiro, se lhes parece, ou deixam o sal. E deste modo fazem o seu comércio sem se verem uns aos outros, nem falar-se, por um longo e antigo costume”.

Cadamosto quer saber mais sobre as gentes do império do Mali, outra descrição curiosa. Voltando aos Azenegues (pardos ou mauritanos), dá pormenores: “Nesta terra dos pardos não se bate moeda alguma, todo o comércio deles é trocar coisa por coisa, e duas por uma, e desta maneira vivem”. E assim chegamos à descrição do rio de Senegal, pensa-se que era o Níger, já tinham passado o Cabo Branco e assim chegaram à terra dos negros: “Cinco anos antes que eu fizesse esta viagem, este rio foi descoberto por três caravelas do dito Infante que entraram dentro dele, e fizeram paz com estes negros, de maneira que começaram a fazer comércio”. E prova da muita ignorância que ainda havia quanto à cartografia, veja-se o que ele escreve sobre o rio de Senegal: “Este rio, segundo dizem os sábios, é um ramo do rio Gion que vem do Paraíso Terreal, ramo que foi pelos antigos chamado Níger, e vai banhando toda a Etiópia e a aproximando-se ao mar Oceano, onde desagua e faz muitos outros braços e rios, além deste de Senegal. Outro ramo do dito Gion é o Nilo, que passa pelo Egito e desemboca no nosso mar Mediterrâneo. Esta é a opinião daqueles que têm dado a volta ao mundo”.

Chegou à terra dos Jalofos, conta como se elegem os reis do Senegal e como se vive:
“Este rei é semelhante ao dos Cristãos, porque o seu reino é de gente selvagem e pobríssima, e não há cidade alguma murada, senão aldeias com casas de palha, pois não as sabem fazer de paredes, por não terem cal nem pedras para as construir. O rei não tem rendimento certo de tributos, mas todos os anos os senhores da terra, para que se dê bem com eles, lhe fazem presentes de alguns cavalos, que são muito apreciados por haver falta deles, e fornecimentos de cavalos, e outros animais, como vacas e cabras, legumes, milho e coisas semelhantes. Mantém-se este rei também de roubos, que manda fazer a muitos escravos, quer no país, quer no dos vizinhos. Desses escravos se vale por muitos modos, sobretudo em cultivar certas possessões que lhe são reservadas e também vende muitos deles aos azenegues e mercadores árabes que aí chegam com cavalos e mais coisas; e vende outros também aos cristãos, depois que eles começaram a negociar mercadorias naqueles países”.

Diz que a religião destes negros é a maumetana, mas não estão muito firmes na fé. E dá-nos um texto vivacíssimo quanto a trajes e costumes dos negros: “Esta gente quase toda anda sempre nua, exceto um coiro de cabra posto em forma de braga, com que cobrem as suas vergonhas. Mas os senhores e os que podem um pouco vestem camisas de algodão, porque naqueles países nascem algodoeiros. As mulheres fiam e fazem panos de um palmo de largura, e não sabem fazê-los mais largos porque não sabem fazer os pentes para os tecer, de forma que cozem juntos quatro ou cinco daqueles panos de algodão, quando querem fazer algum trabalho largo”. Observa a natureza das guerras e do armamento usado, guerra entre vizinhos, não trazem couraças, só têm escudos redondos e largos, usam azagaias que são dardos ligeiros, dardos que têm um palmo de ferro lavrado com barbas miúdas e usam também alfanges mouriscos que fazem com o ferro da Gâmbia. “As guerras deles são muitíssimo mortíferas, por estarem desarmados; os seus golpes não falham, e matam-se tanto como feras, e são muito atrevidos e bestiais, pois que em qualquer perigo antes se deixam matar do que fugir, ainda que possam fazê-lo”.

E passa o rio Senegal e chega ao país do Budomel.

(continua)
Guerreiro guineense, gravura de Balthazar Springer, 1509
Mulher guineense e filhos, também gravura de Balthazar Springer, 1509
Guinéus, também gravura de Balthazar Springer, 1509
Carta da África Ocidental (pormenor), Paris, 1667
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Nota do editor

Último poste da série de 26 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24343: Notas de leitura (1585): "Os Manuscritos de R.", por Jaime Froufe Andrade, segunda edição de Novembro de 2019, um monumento literário aos antigos combatentes que Portugal esqueceu (Mário Beja Santos)

sábado, 13 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24311: Homenagem a dois 'guineenses' de adoção e paixão, o algarvio António Camilo e o nortenho Xico Allen (1950-2022): "Diário da Viagem até à Guiné-Bissau por terra e por ela", em 20 dias (Herculano Prado). Parte I: De Portimão a Bambadina, em 7 dias, de 18 a 24 de setembro de 2017


Xico Allen (1950-2022)


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > Núcleo Museológico Memória de Guiledje > Capela > 2010 > O Luís Branquinho Crespo  (advogado, Leiria) e o António Camilo (empresário, Lagoa) colocando a imagem de N. Sra. de Fátima, na sua base. Foi oferecida por ambos,
 
Foto (e legenda):  © António Camilo (2010). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Saltinho > 1 de Março de 2008 > O António Camilo, empresário, algarvio, natural de Lagoa, na morança que construiu, no Clube de Caça do Saltinho, na margem direita do mítico e sempre deslumbrante Rio Corubal. Ei-lo aqui à porta de casa, e com seu/nosso amigo Carlos Silva (em primeiro plano). O Camilo voltaria, em 2009, à Guiné-Bissu, na sua 8ª expedição. Em 2008 estuvemos aqui com ele por ocasião do Simpósio Internacional de Guiledje (1-7 de Março de 2008). 

Foto: © Luís Graça (2008). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Tenho, na minha caixa de correio, desde 07/09/2018, 18:21, um texto, longo, com  o diário da viagem à Guiné-Bissau, feita "por terra e por ela" (sic), de 18 de setembro a 6 de outubro de 2017, por 4 portugueses, em dois jipes, o António Camilo, o Xico Allen, o Herculano Prado e a esposa, Luzinha, prima do António Camilo (que foi fur mil da CCAÇ 1565, Bissau, Jumbembém, Canjambari, Bissau, 1966/68).

O diário, da autoria de Herculano Prado, chegou-me, reencaminhado pelo Xico Allen, juntamente com o teor do mail em que ele agradecia ao autor e â esposa, companheiros de viagem:

 (...) 28 de janeiro de 2018 às 14:58
 
Boa tarde,  amigos.

Agora mesmo acabo de ver que me foi transmitida a história de nossa viagem á Guiné. Foi muito gratificante ler o que o dr. Herculano Prado escreveu, me fazendo relembrar em pormenor a deslocação até Bissau.

Muito obrigados por tudo e por vos ter conhecido também. São pessoas que ficam no coração. Espero vos encontrar em breve.

Beijos e abraços, Xico.


2. O Herculano Prado, hoje advogado, foi fur mil, CAÇ 3550 / BCAÇ 3885 (Zambué, Tete, Moçambique,  1972/74). Não é membro da nossa Tabanca Grande, mas fica desde já convidado para a integrar, não só por esta viagem e a publicação deste texto (em duas partes), como pela ligação (profissional e afetiva) à Guiné (desde pelo menos 2010), e a amizade que criou e manteve com dois dos nossos tabanqueiros, o António Camilo e o Xico Allen (1952-2023).  

Agora que o Xico nos deixou (a nós e à Terra da Alegria), julgo que será oportuna  a publicação desde "diário" no nosso blogue, partindo do pressuposto que era vontade do Xico que o texto fosse publicado no nosso blogue, com a anuência (pelo menos tácita) do Herculano Prado.  Por outro lado, esta é a viagem que alguns de nós já fizeram, e que a maioria gostaria de ter feito em vida, e que por uma razão ou outra (a começar pelos problemas de saúde e segurança) nunca fez ou nunca chegará a fazer.

Tinha na altura pedido ao Xico Allen para nos enviar fotos da expedição. Por esta ou aquela razão, as fotos nunca chegaram. Vamos ter que recorrer, por isso, a  fotos de outras expedições.  Deixamos aqui a manifestação da nossa gratidão ao Herculano Prado. E damos-lhe os parabéns pela excelència do texto, que ganha em vivacidade, fluência e objetividade (e que por isso seria uma pena ficar na "gaveta"...). Enviamos, entretanto,  um alfabravo fratermo ao Camilo (de quem não temos tido notícias) desejando-lhe saúde e longa vida para poder continuar a fazer as suas expedições à Guiné-Bissau onde tem casa (em 2017 era a sua 22ª viagem).


DIÁRIO DA VIAGEM À GUINÉ BISSAU 
POR TERRA E POR ELA

  © Herculano Prado (2017)

Preâmbulo

O António Joaquim Sousa Camilo, primo da Luzinha, foi um dos primeiros a fazer uma viagem por terra à Guiné Bissau, se não o primeiro, dado não termos conhecimento de viagens anteriores, depois do 25 de Abril, onde tinha cumprido serviço militar.

Na primeira viagem que fez à Guiné, em 1998, o Camilo conheceu o Xico Allen de quem ficou amigo, começando aqui uma amizade que perdura e que os levou a congeminarem uma viagem por terra. 

Quando regressaram a Portugal começaram a fazer os preparativos para fazerem a viagem, tendo procurado alguns patrocínios para a custear, com publicidade no jeep, e aceitando donativos para apoio à população, em especial às crianças. Esta iniciativa começou a ganhar projeção, tendo aparecido um novo interessado em os acompanhar, que era um repórter fotográfico, chamado Artur. As pessoas ao tomarem conhecimento ofereceram donativos, os meios de comunicação pegaram no assunto e foram transmitindo informações sobre o decorrer da viagem, que começou em Lagoa, em frente à Fatacil. 

À partida estiveram presentes dois canais de televisão, a RDP e as rádios locais, com relevância para Rádio Lagoa, que ia acompanhando a viagem, com uma ligação ao Camilo, por volta das 10 horas, todos os dias. Fizeram-se transportar no jeep do Camilo, que ia a abarrotar, inclusive, levavam malas e sacos no tejadilho. Segundo o Camilo, nem mais uma garrafa de água cabia. A viagem demorou dez dias e foi uma aventura e descoberta constante, como normalmente acontece aquando da primeira vez.

O amor àquela terra e às suas gentes levou-o a, posteriormente, organizar algumas caravanas humanitárias, das quais a Luzinha ia tendo conhecimento, através do Facebook. Entusiasmada com as viagens, referiu-me que, por ela, se eu quisesse, poderíamos um dia acompanhar o Camilo. O Camilo, sabendo o nosso interesse, quando teve uma oportunidade convidou-nos, mas, por impedimentos da nossa parte, só agora podemos aceitar.

A viagem, a nossa primeira, a vigésima segunda do Camilo e a décima segunda do Xico Allen, foi iniciada com dois jeeps, marca Mercedes, sendo um ocupado pelo António Joaquim Sousa Camilo e pelo Francisco Jorge Allen (Xico Allen) e outro por mim, Herculano Afonso Lourenço do Prado e pela Luzinha, Maria da Luz Reis Braz Silva Lourenço do Prado, minha mulher.

O itinerário da viagem seria: Espanha, Marrocos, Sara Ocidental, Mauritânia, Senegal e Guiné Bissau. Na Guiné Bissau ficámos em Bambadinca e não em Saltinho como pensávamos.

O jeep que nos foi destinado ficaria por nossa conta, quer para a condução, quer para todo tipo de despesas com ele relacionadas: combustível, barco, seguros etc.

A ideia do diário surgiu ao fim do primeiro dia de viagem quando, ao estarmos a pernoitar em Marraquexe, enviei um e-mail a alguns amigos, tendo alguns sugerido que fizesse um diário e que lhes fosse dando conhecimento do que se ia passando. Achei a ideia interessante e, por isso, no fim do segundo dia, relatei os factos mais importantes e enviei-os convencido de que teriam chegado aos destinatários. Como não obtive os comentários que seriam expectáveis, enviei o e-mail para o remetente, não tendo chegado, o que me levou a concluir que o mesmo teria acontecido em relação aos outros destinatários e que o mesmo aconteceria com os e-mails seguintes. 

Em face desta situação, continuei a fazer o diário, deixando, contudo, de o tentar enviar para os meus amigos, que estavam à espera de noticias. Assim, os e-mails foram transformados neste diário, que, se outro interesse não tiver, servirá para mais tarde os meus filhos e netos recordarem, que um dia os avós, já no crepúsculo da vida, se abalançaram a uma viagem, que, se já não era perigosa, como aconteceu no passado, era e foi muito emocionante e cansativa.

Aproveitámos a viagem para levarmos os jeeps cheios com donativos para as crianças de Bambadinca, que aguardavam transporte.


Infografia: o percuros habitual das expedições terrestres de antigos combatantes, como o António Camilo, desde o Algarve até à Guiné Bissau, atravessano o sul deEspanha e depois ,a partir de Tanger, fazendo a costa atlântica de Marrocos, Mauritània e Senegal .

Infografia: Visão (3 de fevereiro de 2011) (com a devida vénia...)


1º dia, domingo/segunda-feira, 17/18 de setembro de 2017

A viagem começou em Portimão, às nove e meia de domingo, passando pelo porto de Tarifa, onde apanhámos o barco até Tanger. A passagem, por carro e ocupantes, custou € 200,00. Chegámos ao porto de Tarifa por volta das 5,30 horas, aguardando até entrarmos para o barco às oito horas. As burocracias alfandegárias foram fáceis, porque não precisámos de vistos.

Ao sairmos do Porto, não fomos ao centro da cidade de Tânger, contornando-a em direção ao Sul, mas a vista que dela se tem do barco dá para ver a sua grandiosidade.

Para nós,  portugueses, quando passamos por sítios, que fazem parte da nossa história e olhamos para o passado, não podemos deixar de nos sentir orgulhosos pelos feitos dos nossos antepassados (esquecendo as atrocidades que cometeram e que eram comuns a todos os beligerantes da época). 

A necessidade, porque eramos um pais pobre, com menos de dois milhões de pessoas, o aventureirismo, ambição e visão de alguns, especialmente do Infante D. Henrique e, posteriormente, de D. João II, levaram-nos, inicialmente, para o Norte de Africa, onde ocupámos Tânger, Ceuta e outras praças e, posteriormente, a contornar o continente africano e a chegar à India. O declínio do império começou ali, nos campos de Alcácer-Kibir, quando um rei imaturo e militarmente incompetente não soube comandar um grande exercito, que, com outro comandante, provavelmente, teria vencido.

A viagem até Marraquexe foi feita sempre em autoestrada, não se notando grandes diferenças em relação ao sul de Portugal.

A meio da viagem apanhámos um grande susto, porque entrámos na reserva de combustível e nunca mais aparecia uma bomba para abastecermos. Foi um alívio quando o conseguimos fazer.

Fizemos o nosso primeiro almoço de piquenique, dos abastecimentos de que estávamos providos, até ao fim da viagem e para os dias na Guiné.

No momento em que enviei o primeiro e-mail, estávamos a passar a noite em Marraquexe e na amanhã seguinte continuámos em direção ao Sul, passando por Agadir.

Ao entrarmos em Marrocos perguntaram-nos se trazíamos armas ou drones.


2º dia, terça-feira, 19 de setembro de 2017

No Segundo dia da viagem, saímos de Marraquexe às sete da manha rumo ao Sul, passando por Agadir, Tiznit e outros locais de menor importância.

Atravessámos a cordilheira do Atlas na sua parte mais ocidental e menos elevada, com paisagens agrestes, grandiosas e de grande beleza.

Passámos por Agadir, cidade costeira e moderna, depois de ser reconstruída em consequência do terramoto que a destruiu, em 26 de fevereiro de 1960.

“A intensidade do abalo foi apenas de 5,7 na escala de Richter, mas, por a cidade se situar precisamente sobre a falha geológica e o epicentro do sismo, e por a maioria dos seus edifícios serem velhos e frágeis, a destruição foi quase total. Na Kasbah e nos bairros centrais de Yachech e Founti não ficou nada de pé. Mais de 15 mil pessoas morreram e muitas ficaram feridas e desalojadas. Foi o mais mortífero terramoto da história de Marrocos.”

O porto é muito bonito, como pudemos apreciar de uma das elevações que o rodeiam. Ali, a Luzinha, pela primeira vez, passeou montada num camelo, conjuntamente comigo.

Nesse miradouro, comprámos umas rochas de cristais coloridos.

A viagem até ao meio do dia foi feita por autoestrada, com inúmeras portagens pagas. Porque € 1,00 vale 10,50 dirames, acaba por não ser muito caro. Nestes dois dias já fizemos cerca de 1500 km, sendo mais de mil por autoestrada.

Como fica documentado por fotos, vamos fazendo piqueniques, estando provisionados com o essencial.

Ficámos a pernoitar em Tantan Praia, com a praia ali ao lado, que, tal como em Portugal, já estava em fim da época balnear.

Pernoitamos num hotel baratucho, onde fizemos uma refeição na varanda de um dos nossos quartos. O quarto não tinha água quente, mas estava limpo e nós só pretendíamos dormir, para além de termos acesso à Internet.

A partir de agora as estradas já não são tão boas, mas estão razoáveis, tendo sido mais fácil do que seria expectável. Mais para Sul será mais difícil.

São horas de dormir porque o recomeço da viagem está marcado para as sete e no programa está uma visita ao Bojador.


3º dia, quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Iniciámos o terceiro dia saindo de Tantan, às 6,30, ainda de noite,

Fomos visitar o Bojador, que ficou a fazer parte da nossa história, para as descobertas, a partir do momento em que foi dobrado pelo Gil Eanes, em 1434, acabando com o medo que dominava os marinheiros, que acreditavam que o mundo acabava ali.

Aqui, num restaurante que a ASAE fecharia sem remissão, aproveitámos para comer um pargo frito que estava divinal, acompanhado com pão local e vinho tinto de Pias. Quando entramos ouvimos vozes que nos pareceu serem portuguesas. De facto, eram dois portugueses que estavam a trabalhar para uma firma irlandesa, que está a montar grandes pás eólicas, para a produção de energia elétrica.

A partir daqui, durante muitos quilómetros, fizemos a viagem próximo do mar, já dentro do verdadeiro deserto, não ainda como nos é mostrado nos filmes e postais : grandes dunas de areia fina, mas terra árida, com vegetação dispersa e rasteira

Percorremos cerca de setecentos quilómetros e fomos pernoitar no Barbas, que, no geral, tinha boa aparência para o deserto, mas que considero ter sido o pior quarto de hotel aonde já dormi, que fica a oitenta quilómetros da fronteira da Mauritânia.

Aqui o Hi- Fi não tem capacidade para permitir contactos normais.

Assisti à derrota do Real Madrid com o Bétis, golo marcado na última jogada, e conclui que a maioria dos assistente torcia pelo Barcelona, tendo em atenção o regozijo manifestado com o golo marcado.

Aqui, o Xico deu comprimidos ao empregado da bomba de gasolina, que estava com dores de cabeça.

Como o dia seguinte iria começa cedo, cedo tivemos de ir descansar.


4º dia, quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Saímos, por volta das sete horas, para chegarmos cedo à fronteira, aonde nos esperava o Arturo, um marroquino, que fala português, que nos tratou da burocracia nas duas fronteiras.

Estas ajudas acabam sempre por sair caras e por vezes parecem ainda complicar mais: o seguro por cada viatura, que custou € 40,00, ficou em € 80,00.

Apesar desta ajuda, só nos despachámos depois das duas da tarde.

Aqui deu para sentir o clima do deserto, quente e ventoso. Tínhamos que tapar os olhos porque a areia andava por todo o lado. Na viagem íamos vendo camelos e, infelizmente, vimos alguns esqueletos devido a acidentes. Durante este dia percorremos parte do Sara a que estamos habituados a ver nos filmes e fotografias.

Entre as duas fronteiras existe uma zona de ninguém, aonde vimos um carro das UN, que ainda se encontra nesta zona, tendo em atenção o conflito existente entre Marrocos e a Frente Polisário, que mantem a luta contra a anexação do Sara Ocidental. Nesta zona, encontrámos muitos carros abandonados, em consequência da falta de documentação e por outros motivos.

Ao longo da viagem vimos inúmeros quarteis, havendo vários em Layunne, pequena cidade, que seria a capital oficial do Sara Ocidental, se fosse independente.

Quando estávamos na fronteira para sair da Mauritânia encontramos um vizinho do nosso casal, em Vale da Laranja, o Sr. Jorge, que também ia a caminho da Guiné, aonde tem negócios.

Durante a viagem fomos mandados parar por dezenas de barragens que controlam a passagem. Para evitar demoras levamos dezenas de impressos preenchidos com os nossos elementos identificativos, que entregamos no ato da abordagem. Muitas vezes são levantadas complicações com o objetivo de nos sacarem dinheiro.

Por volta das oito horas chegamos a Nouakchott, capital da Mauritânia, onde ficámos num ótimo hotel, o Royal Suites Hotels, muito melhor do que os anteriores, onde encontrámos tudo o que tem um quatro estrelas da Europa. Antes de jantarmos no nosso quarto, utilizando o que trazíamos, tomámos um grande banho para nos aliviarmos da grande quantidade de areia que se espalhava pelo cabelo e pelo resto do corpo.

Fizemos uma refeição no quarto com os produtos que levávamos.


Expedição Porto-Bissau, organizada por Xico Allen e A. Marque Lopes... 9 de abril de 2006...Dia 5, De Roc Chico a  Nouakchott, capital da Mauritânia... Um encontro amigável com sarauis e camelos... Fabulosa foto oesta, de um  grande fotógrafo, o nosso Hugo Costa, filho do Albano Costa que, juntamente com a Inês Allen, integrou esta viagem à Guiné, por terra, pelo deserto do Sara...   
 

Porto-Bissau... 9 de abril de 2016...Dia 5, Roc Chico a 
Nouakchott,
capital da Mauritânia... 

























Fotos (e legendas): © Hugo Costa (2006). Todos os direitos reservados.    [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


5º dia, sexta-feira, 22 de setembro

Saímos de Nouakchott, às seis da manha, para chegarmos o mais cedo possível à fronteira com o Senegal, aonde o Camilo, primo da Luzinha, tinha contactos anteriores, para tratar dos seguros das viaturas e das burocracias da passagem entre fronteiras.

Quando estávamos a fazer o controlo na saída da Mauritânia, ao ser necessário entregar os passaportes, passámos por um grande susto, porque o Francisco Allen, não encontrava o seu passaporte. Durante mais de uma hora vimos em todos os sítios possíveis sem sucesso, inclusive, telefonámos para o hotel onde pernoitámos. Depois de uma última busca no jeep, iniciada pelo comandante do posto da Alfandega da Mauritânia, que se mostrou de uma grande simpatia e disponibilidade, muito diferente da maioria dos anteriores, encontrámos o passaporte metido entre uma ranhura do tablier. 

Foi um alívio para todos, o que nos permitiu passar para a fronteira do Senegal, onde surgiram mais complicações e gastos, tendo que pagar gratificações e taxas de viaturas que importaram em cerca de duzentos euros por cada, nos quais se incluiu a comissão do mediador. 

Quando, finalmente, reiniciámos a viagem, continuámos a entregar as fichas identificativas que tínhamos preparadas, até que encontrámos um controlo que nos pediu o passaportes e começou a colocar vários entraves com o objetivo claro de nos extorquir dinheiro, o que me irritou, não sendo muito inteligente da minha parte, porque trazíamos garrafas de vinho escondido, que, se fosse encontrado, nos poderia levar à prisão, atendendo a que os países de religião muçulmana são muito intransigentes, no que diz respeito ao álcool. 

Depois de muita discussão entreguei-lhe três pacotes de leite, tendo sido questionado se aquilo era bom. Em face das dúvidas, pedi-lhos de volta, o que ele não fez. Depois de nos entregar os passaportes arrancámos, quando se preparavam par nos fazerem novas exigências.

Durante o trajeto, o deserto foi-se amenizando até próximo do Senegal, não sendo surpresa encontrarmos a barragem de Diama e um parque protegido, que percorremos por cerca de quarenta quilómetros, por picada, no fim do qual nos foi exigida o pagamento de trinta euros, por viatura, acabando por pagarmos o total de dez euros.

A partir da entrada no Senegal, tendo em atenção o que já acontecia no Sul da Mauritânia, deixamos o deserto e passámos a encontrar a vegetação própria da região subsariana: pequenas árvores e muita vegetação de várias espécies.

Finalmente, já com muitas horas de viagem e de atraso, em relação ao previsto chegámos a Saint Louis, cidade costeira, que, no tempo da colonização francesa chegou a ser a capital do Senegal. Quando atravessamos a cidade para nos dirigirmos ao hotel onde pretendíamos pernoitar, ficámos impressionados com a pobreza e sujidade que encontrávamos, imaginando como seria o Hotel para onde o Camilo e o Francisco nos levavam. Durante o trajeto, ao longo de um grande estaleiro de barcos abandonados coabitavam o lixo, as cabras, os burros e as pessoas.

Depois de o hotel inicialmente escolhido se encontrar fechado para férias, fomos ficar no Diamarek, que lhe fica continuo, acabando por ficarmos num bangaló bastante espaçoso e com dois quartos, ao lado da praia, com um piscina espaçosa e com água morna. Podemos considerar que encontrámos um oásis depois do deserto! Porque gostámos das condições do hotel, porque tinha Hi-Fi de banda larga e porque o preço negociado ficou em 60,00, marcámos mais um dia para disfrutarmos das ótimas condições.


6º dia, sábado, 23 de setembro

Estando em Saint Louis, aproveitámos para visitar a parte antiga da cidade, da época colonial, aonde se encontram dois bons hotéis dessa época e um bom restaurante, bem próximo da sujidade que referenciámos.

Comprámos alguns artigos locais, nomeadamente uma máscara da tradição africana. Depois do almoço disfrutámos da piscina e, eu a Luzinha, demos um passeio pela praia, que é a perder de vista e de areia fina, que se encontrava cheia de lixo

Ao fim do dia, graças à capacidade do sinal Hi-Fi, consegui, através de um site de desporto, o Events Guide, ver o Sporting 1 – Moreirense 1, com pouca atenção, à espera para ver o Benfica 2 – Paços de Ferreira 0. Foram dois bons resultados!

Como eu não abdiquei de ver o jogo do Benfica – Paços de Ferreira, preparámos o jantar com produtos que trazíamos e jantamos à fresca, em frente do Bangaló.

Devo ter um problema no envio de e-mails, porque, apesar da boa capacidade da rede Hi-Fi, não tenho conseguido enviar e-mails, apesar de os receber.

Consegui aceder ao Citius e fiquei aliviado por não ter nenhuma notificação. Uff!!

Deitámo-nos cedo, porque era necessário levantar cedo.


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Outubro de 2015 > Restaurante "Ponte de Encontro", do casal Célia e João Dinis (1941-2021).  

Foto (e legenda): © Patrício Ribeiro (2016) Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.]


7º dia, domingo, 24 de setembro

Quando me levantei, por volta das cinco horas locais, seis horas em Portugal, estava sem equilíbrio, o que me deixou preocupado. Contudo, pouco tempo depois, recuperei permitindo-nos sair por volta das 5,30 horas. 

Depois de atestarmos os depósitos, pela sétima vez, seguimos em direção ao Sul com o objetivo de irmos pernoitar a Bambadinca, já na Guiné, onde o Camilo tem uma casa. 

A estrada ao longo do Senegal não está má, o que nos permitiu avançar dentro do previsto, fazendo alternância na condução em função do cansaço de cada um. Apesar de tanto eu como a Luzinha também conduzirmos, a maior parte da condução tem sido feita pelo Camilo e pelo Francisco.

Para evitar as muitas complicações e controlos levantados na Gâmbia, fizemos um desvio para a contornar. Seguimos o trajeto de Saint Louis, Kebemer, Touba, Kaffrine, Tambacounda, descendo depois para Velingara, KounKané, Wassadou, chegando, por fim, a Pirada,  fronteira da Guiné, onde se passou com facilidade, porque o Camilo, com a sua capacidade de persuasão, conseguiu passar sem pagar a escolta que nos acompanharia a Gabu. Isto é mais uma forma de extorquir dinheiro aos viajantes, já que não existia escolta para nos acompanhar. O Camilo começou logo ali a distribuir pelo chefe do posto algumas das roupas que trazemos, também como forma de agradecimento.

A estrada de Pirada a Gabu, ou melhor a picada, está num estado inimaginável para quem nunca esteve em Africa. São sessenta quilómetros de buracos uns a seguir aos outros e ainda com água porque a época das chuvas só agora terminou. 

Demorámos mais de duas horas para fazer esta distância. Viemos a saber mais tarde, quando encontrámos o Sr. Jorge, que um dos jeeps que um seu empregado trazia, partiu ali o cárter.

Ao chegarmos a Gabu, o Camilo não parou na alfàndega, o que deveria ter feito, vendo-se obrigado a regressar, porque a nossa passagem foi barrada. Aqui perdemos muito tempo e tivemos que pagar o que não tinha sido pago em Pirada. Penso que, mesmo assim, as coisas podem ter sido facilitadas depois de ter falado com o Tenente Coronel Sado, que é um amigo do meu primo Fernando Mota, Eng.º Silvicultor, que esteve com ele na tropa, aqui, na zona de Saltinho. 

Não telefonei para este amigo do Fernando, até porque perdi o telemóvel, mas a oportunidade surgiu quando veio meter conversa comigo um graduado da Guarda Fiscal, que não é daquele posto e que fez formação na Guarda Fiscal, em Lisboa, juntamente com o Tenente Coronel Sado e com o graduado daquele posto. Ao referir-lhe que trazia cumprimentos para o amigo, de imediato ligou para ele com o qual conversei algum tempo. Após a nossa conversa eles voltaram a falar e o telefone foi passado ao comandante da Alfandega. As coisa resolveram-se e no final, o comandante do posto, deu os seus contactos ao Camilo, o que deixa pressupor que as próximas passagens, se as fizer, já serão mais fáceis.

Reiniciámos a viagem com destino a Bambadinca, pretendendo passar por Bafatá para jantarmos no restaurante da D. Célia, aonde chegámos por volta das nove e meia, à mesma hora em que partimos no domingo anterior. Comemos um estufado de vitela, acompanhado de arroz e batatas fritas e de umas Sagres geladas. Recusámos a salada para evitar problemas de saúde. A comida estava ótima e o restaurante é muito frequentado pela qualidade da comida. As instalações, mesmo aquela hora, estavam limpas, mas os anexos e a casa de banho são uns barracões decrépitos. Se lá voltar, porque os achei simpáticos, vou sugerir que façam umas melhorias nas instalações. 

O marido da D. Célia, o Sr. Dinis, é natural de A. dos Cunhados. Fez cá a guerra, uns anos antes do 25 de abril e por cá ficou. Quando comentei a qualidade das instalações com o Camilo ele deu-me uma justificação que se aplica a este caso: “branco quando está muito tempo a viver entre os nativos fica pior do que eles”. Não direi pior, mas igual.

A parte final da viagem até Bambadinca foi aquela em que tive mais medo de um acidente, atendendo a que nos cruzávamos com outras viaturas com os máximo ligados e o Francisco, mesmo podendo fazê-lo não os ligava, o que só fez mais tarde, o que diminuía o nosso campo de visão, agravado por as bermas serem baixas ou inexistentes e por circularem na estrada bicicletas e pessoas sem qualquer sinalização. 

Finalmente acabámos por chegar bem, tendo percorrido 4 250 quilómetros, mais os que gastámos na travessia do Mediterrâneo até Tanger.

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bambadinca > Março de 2007 > As antigas instalações para sargentos, que faziam parte do edifício (integrado) onde estava instalado o comando do Batalhão do Sector L1 (no meu tempo, BCAÇ 2852, 1968/70, e BART 2917, 1970/71)... 

O fotógrafo foi o Carlos Silva, hoje advogado... Segundo ele, "o caramelo que está com o télélé, é o nosso camarada António Camilo, de Lagoa, da CCAÇ 1565 (Jumbembem), que vai à Guiné anualmente, 2 e 3 vezes, integrando expedições humanitárias. O tipo é mais apanhado do clima do que eu"... 

Na altura escrevemos: "Segundo me disse o Xico Allen, em 27 de Dezembro de 2007, quando estive com ele e o resto da minitertúlia de Matosinhos, o Camilo será um dos elementos integrantes da caravana (sete jipes e carrinha, num total de vinte e tal pessoas) que, em princípio, partirá de Portugal para a Guiné-Bissau, por via terrestre. e,m 2008.. O Carlos Silva sei que também vai... Espero que o cancelamento do Rali Lisboa-Dacar, devido à alegada insegurança ma Mauritânia, não venham resfriar o entusiasmo e afectar os planos dos n0ssos camaradas que querem também assistir ao Simpósio Internacional de Guileje".

Foto (e legenda): © Carlos Silva (2007). 
Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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