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quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24649: Manuscrito(s) (Luís Graça) (229): Zé do Telhado (Penafiel, 1816 - Angola, Malanje, 1875): um caso de "banditismo social"? Entre o mito e a realidade - Parte I: a lenda que eu ouvi contar ainda em 1976, em Candoz


Capa do livro de Eduardo Noronha - José 
 do Telhado: romance baseado sobre
factos históricos.
4ª ed. Porto: Editorial Domingos Barreiros, 1983, 399 pp.
 (1ª ed., Porto, 1923)



1. Ouvi a “lenda” do Zé do Telhado já tarde, cem anos depois da sua morte, quando pelo casamento comecei a vir ao Norte e a frequentar a Casa de Candoz.

A minha mulher é vizinha do lugar, Carrapatelo, onde ocorreu o assalto planeado e executado pelo Zé do Telhado e o seu bando, porventura o mais tristemente famoso (e o mais rendoso) do seu historial: o assalto, em 8/1/1852, à Casa do Carrapatelo, situada na atual freguesia de Penha Longa, concelho do Marco de Canaveses.

Candoz e Carrapatelo, embora pertencentes a freguesias diferentes, são dois lugares muito próximos, ficam a escassos quilómetros um do outro. De Candoz vê-se grande parte da albufeira da barragem do Carrapatelo, a Pala (que pertence ao concelho de  Baião), a ponte que liga as duas margens, bem como o Porto Antigo e a serra de Montemuro (já na margem esquerda, concelho de Cinfães), mas não a Casa do Carrapatelo, que fica na margem direita do rio Douro, um pouco mais a  sudoeste de Candoz, a jusante, nas faldas da serra de Montedeiras. Em suma, temos a serra a separar-nos. De Fandinhães, aldeia serrana de origem visigótica,  é a mãe da Alice. Fica entre o Carrapatelo  e Candoz.

Recordo-me do meu sogro, José Carneiro (1911-1996), me ter falado da figura lendária do Zé do Telhado e desse famigerado assalto (que acabou por ser a perdição do seu autor, anos mais tarde, em 1859, altura em que finalmente foi preso, ). A casa, um solar, que ainda hoje existe, remonta, o seu corpo mais antigo, ao início do séc. XVIII, é um belo exemplar da arquitetura barroca duriense. (Infelizmente muitas destas antigas casas fidalgas na região estão em decadência ou à venda ou foram transformadas em alojamento local: já não há serviçais, criados e rendeiros para as sustentarem como no tempo da outra senhora.)

 Pertencia então a Dona Ana Vitória de Abreu e Vasconcelos, viúva, de 39 anos, que acabara de perder, no início desse ano de 1852, o seu pai, o velho fidalgo José Joaquim de Abreu e Lemos, sargento-mor das milícias do julgado de Bem Viver (um antigo concelho, com sede em Feira Nova, a que pertencia Candoz e Fandinhães  e que deu lugar, entre outros, ao concelho do Marco de Canaveses, no início dos anos de 1850).

E retive a explicação que o meu sogro me deu, socorrendo-se da tradição popular: “Telhado era alcunha”, ele punha-se à escuta das conversas dos pobres, no “telhado de colmo” dos casebres… para nos dias seguintes vir-lhes acudir com algum socorro em géneros ou dinheiro… 

E assim se criou a lenda do “Robin dos Bosques português que roubava aos ricos para dar aos pobres”… numa época em que Portugal estava bem longe de ser "o país de brandos costumes". e que teve, de resto, em Camilo Castelo Branco um dos seus grandes exorcistas.

Devo acrescentar que o meu sogro, proprietário agrícola, ramadeiro (construtor de ramadas) e agente de alguns casas vitivinícolas da região (como o Borges & Irmão,  de Amarante, por exemplo) nunca leu na vida o Camilo Castelo Branco (nem muito menos viu nenhum filme sobre o célebre salteador) mas era um homem com algum capital de relações sociais, e um dos primeiros a ter rádio em casa, a par do telefone.

Há pouca evidência histórica (isto é, devidamente documentada) que permita sustentar a tese do “banditismo social”: é verdade que o Zé do Telhado roubava aos ricos, mas não há provas suficientes que permitam caracterizá-lo como um “repartidor público” (como alegadamente ele dizia frente às suas vítimas e aos seus cúmplices) (Castro, 1980, pp. 30-33).

Muito do mito do “Robin dos Bosques português” é uma construção social do romantismo ou ultrarromantismo, com destaque para o papel do novelista Camilo Castelo Branco (que o “eternizou” nas páginas do seu livro “Memórias do Cárcere” , Porto,  1862, 1a. ed.).

A imprensa da época, nomeadamente nortenha, e depois o cinema, já no século XX, fizeram o resto (há pelo menos dois filmes, baseados na vida, romanceada, do Zé do Telhado; um, de Rino Lupo, de 1929, ainda no tempo do cinema mudo; e outro, de 1945, realizado por Armando de Miranda, com exteriores filmados aqui perto de Candoz, na Serra de Montedeiras, e protagonizado pelo ator Virgílio Teixeira, no papel principal: disponível no You Tube, em versão integral, aqui, com a duração de cerca 86 minutos).

De qualquer modo, não podemos menosprezar a “vox populi”: a tradição popular, nomeadamente no Norte do país, acabou por frazer chegar até nós o registo (oral e depois passado a escrito) de muitas  das suas "façanhas", onde se misturam a realidade e a ficção, e que alimentaram não sí a imprensa como alguma literatura posterior ao Camilo (Noronha, 1983, 1ª ed., 1923; Castro, 1980, por  exemplo).

Comecemos por um resumo da “história de vida” daquele que é considerado o maior salteador do séc. XIX, à frente de uma lista onde estão outros homens que, atuando à margem da lei, chefiaram grupos de guerrilha e depois bandos de salteadores, e causaram alarme e terror no seu tempo. 

Talvez o Remexido (1796-1838), algarvio, guerrilheiro miguelista, lhe tenha levado a palma em ferocidade, seguramente em crimes de sangue (pelos quais foi julgado, condenado à morte e fuzilado em 1838). Ou João Brandão (1825-1880), outro “Torre e Espada”, como o Zé do Telhado, que espalhou o terror pelas Beiras, e foi igualmente deportado para Angola, região do Bié. 

Aliás,  nesta época a justiça portuguesa já não desterrava os proscritos sociais para o interior das Beiras como na idade Média mas para as colónias de África. Camilo Castelo Branco,  em 1860/61, conheceu muitos homens ( e algumas mulheres) que aguardavam nas "enxovias" da cadeia da Relação do Porto a sua partida para Lisboa para depois aí embarcarem  para o desterro em África: homocidas,  parricidas, infanticídio,  ladrões, moedeiros falsos, etc.

No sítio do Museu Judiciári0o do Tribunal da Relação do Porto pode ler-se sobre Zé do Telhado e o seu processo judicial (3 volumes) o seguinte:

(…) “José Teixeira da Silva nasceu a 22 de junho de 1818 no lugar de Telhado, Castelões – Penafiel. Aos 14 anos vai viver com um tio em Caíde de Rei, Lousada, vindo a casar aos 27 anos com a prima Ana Lentina de Campos, com quem teve 5 filhos.”

E sem entrar em grandes pormenores, acrescenta-se:

(…) “Seguiu carreira militar onde se evidenciou, chegando mesmo a obter a mais alta condecoração portuguesa: a “Ordem de Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito”. Contudo, o seu envolvimento no lado derrotado da revolta da “Maria da Fonte” (1846) levou a que fosse expulso do exército.

”Desempregado, acaba por se envolver com foras-da-lei, chefiando uma quadrilha responsável por vários assaltos na região de Baião, Celorico de Basto, Fafe, Felgueiras, Lousada, Marco de Canaveses, Santa Cruz de Riba Tâmega...

“Preso na Cadeia da Relação do Porto em 1859, é julgado no Tribunal Judicial de Marco de Canavezes (julgamento iniciado a 25 de abril de 1859) e condenado a degredo na costa ocidental de África para toda a vida, pena esta que foi comutada pelo Tribunal da Relação do Porto para 15 anos de degredo.

“Partindo para o degredo em África, veio a instalar-se em Malange, onde viveu até à sua morte, aos 57 anos, como reconhecido negociante e estimado pela população local. Aí casou novamente, tendo 3 filhos desse casamento.

“Na aldeia de Xissa, município de Mucari, onde foi sepultado, foi erguido um mausoléu em sua homenagem que, até hoje, é objeto de interesse.” (…)



De "Lanceiro da Rainha" (1835)  a "Torre e Espada" (1846)

Camilo é o primeiro (ou um dos primeiros) a escrever-lhe uma curta biografia (ou melhor, "hagiografia"), de 3 dezenas de páginas, a partir das suas confidências na prisão  (Castelo-Branco, 1996a, pp. 83-117).

Camilo põe o seu companheiro de prisão (e depois guarda-costas) a nascer em 1816, o que faz mais sentido. Aos 14 anos, ou seja, em 1830, em plena guerra civil, vai para , a Sobreira, freguesia de São Pedro de Caíde de Rei, concelho da Lousada, para junto do seu tio, aprender o ofício de castrador. Ao fim de cinco anos, alista-se na tropa e faz o juramento de bandeira numa unidade de cavalaria, o regimento de Lanceiros 2, conhecidos como os “Lanceiros da Rainha”, na calçada da Ajuda, em Lisboa.

Esta decisão pode ter sido motivada por um desgosto amoroso: pretendia-se casar com a sua prima materna Ana Leontina, de Lousada, mas o pai recusa-lhe a mão da filha, alegadamente por o rapaz não ser um bom partido (impedimento esse, entretanto, levantado por altura da “convenção de Chaves”, diz o Camilo, op. cit, pág. 88).

Zé do Telhada casa-se, portanto, já depois da “revolta dos marechais” (julho de 1837), mas antes da “revolta da Maria da Fonte” (primavera de 1846), acontecimentos em que participa como militar.

 Tudo indica que se tenha casado  no 2º semestre de 1837, aos 21 anos ( e não aos 27) aureolado pela fama de bravo “lanceiro da Rainha”.

A Convenção de Chaves, celebrada a 20 de Setembro de 1837 e assinada a 7 de Outubro de 1837, selou oficialmente o fim da chamada Revolta dos Marechais, a revolta de 1837 que opôs cartistas (mais à direita, diríamos hoje) aos setembristas (ala esquerda do liberalismo de 1820). Os primeiros pretendiam restaurar a Carta Constitucional de 1826. Os segundos defendiam a Constituição de 1822.

Os cartistas não tiveram a sorte das armas pelo seu lado. Após vários episódios bélicos em Chaves, são definitivamente derrotados no combate de Ruivães, a 18 de setembro, obrigando muitos dos seus homens a refugiarem-se na Galiza. Os Lanceiros da Rainha eram cartistas. O lanceiro José Teixeira da Silva seguia na comitiva do duque de Saldanha, e mostrou a sua bravura nos combates de Chão da Feira e Ruivães (Castelo-Branco, pp. 87/88; Noronha, 1983., pp. 53 e ss.).

Na retirada, o barão de Setúbal, general Schwalbach, de origem alemã,   levou, como seu ordenança, o Zé do Telhado. E foi nessa altura que este obteve uma licença para ir à terra casar-se (licença passada pelo barão de Turpin, chefe da 3ª divisão militar,  no Porto). 

A Convenção de Chaves, no dia 20, põe fim à guerra civil: as tropas sublevadas rendem-se e ficam à disposição do governo setembrista. Há uma amnistia mas os chefes da revolta (marechal Saldanha, duque da Terceira, duque de Palmela, José da Silva Carvalho e Mouzinho de Albuquerque) são forçados a abandonar o país.

Não é, contudo, na “revolta dos marechais” que o Zé do Telhado ganha a sua "Torre e Espada", mas sim nove  anos depois, a 15 de novembro de 1846, por ter salvo a vida do general Sá da Bandeira (como veremos num próximo poste).

Recorde-se que  a Maria da Fonte, também conhecida por Revolta do Minho, foi uma sublevação popular ocorrida na primavera de 1846 contra o governo cartista, presidido por António Bernardo da Costa Cabral, e que reuniu forças dos extremos do espectro politico-ideológico da epoca: setembristas e legitimistase ou migué listas, além do Zé Povinho, sem partido, mas arregimentado mas  sobretudo revoltado contra as leis da saúde,  a reforma fiscal e a nova lei do serviço militar dos Cabrais  (que tinham o respaldo da rainha dona Maria II).

Seguiu-se mais um cruel período de guerra civil, a Patuleia, de oito meses, a partir de outubro de 1846,  até que a Convenção de Gramido, em junho de 1847, põe termo a mais este  período negro do nossa história. 

Zé do Telhado, agora "sargento patuleia" (alinhou desta vez com os chefes militares setembristas),   ficou do lado dos vencidos. E é a sua desgraça. A família cai na pobreza. Perseguido pelos inimigos políticos e os credores, acaba por se tornar "o chefe de uma associação de malfeitores", conforme consta do seu libelo acusatório, a par de "diversos crimes cometidos com violência: tentativa de roubo; tentativa de roubo com principio de execução, com arrombamento; roubo com homicídio; roubo com espancamento e ferimentos, a par de (...) tentativa de evasão do reino sem passaporte e com violação dos Regulamentos Policiais." 

Muito do que se tem publicado sobre ele é "hagiográfico". Falta-nos uma  biografia séria do homem, do militar, do herói,   do guerrilheiro , do cidadão, do bandido e do desterrado.

(Continua)


Capa  do livro de José Manuel de Castro - José do Telhado-  Vida e aventura, a realidade. a tradição popular. Ed. autor, 1980, 193 pp., il.  (Tipografia Guerra, 
Viseu)

segunda-feira, 1 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19938: Efemérides (306): 75º aniversário do nascimento de Salgueiro Maia (1944-1992): homenagem da sua terra natal, Castelo de Vide


Foi hoje inaugurado, em Castelo de Vide, sua terra natal, o monumento de homenagem a Salgueiro Maia (1944-1992), justamente no dia em que faria 75 anos se fosse vivo (*).  O monumento consiste na museologização de um símbolo do 25 de Abril, a Chaimite V200, oferecida pelo Exército. (Fonte: CM de Castelo de Vide, com a devida vénia).

Também arrancaram, no passado dia 25 de abril, as obras para a construção da Casa da Cidadania Salgueiro Maia, que vai ficar localizada no castelo desta vila raiana do Alto Alentejo. Trata-se de  investimento superior a três milhões de euros e vai ser um espaço museológico e de educação cívica. O espólio de Salgueiro Maia, conforme a vontade expressa em testamento pelo capitão de abril, ficou na sua terra. Por outro lado, sabemos que este nosso camarada, que foi comandante da  CCAV 3420, Bula, 1971/73, fez questão, em vida, de ser inumado na sua terra natal, em campa rasa.

Por outro lado, a RTP passa hoje o documentário "Salgueiro Maia: rumo à eternidade". Ficha técnica > realização: Francisco Manso | produção: Cristina Mascarenhas | autoria: guião e texto: Francisco Manso | música: Luís Cília | intérpretes: locução de Rui Portulez | ano: 2019 | duração: 35 minutos. Depoimentos: Adelino Gomes, Alfredo da Cunha, Carlos Beato, Carlos Matos Gomes, Hermínio Martinho,  José Alves da Costa,  entre outros.

Vd. também a página no Facebook da Associação Salgueiro Maia. Tem página na Net aqui.

Fernando José Salgueiro Maia, tenenente coronel de cavalaria, foi agraciado, com as seguntes ordens honoríficas:  

(i) ainda em vida, em 1983, Ordem da Liberdade, Grau Cavaleiro;

(ii) a título póstumo, em  1992, com a Ordem da  Torre e Espada,  Valor, Lealdade e Mérito, no grau Grande Oficial:

(iii) a título póstumo, em 2016, Ordem do Infante D. Henrique, Grau Cavaleiro.


Lisboa > Av Berna > Muro da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa (FCSH / NOVA)> Destaque para a figura do cap cav Salgueiro Maia (comandante da CCAV 3420, Bula, 1971/73), nosso camarada da Guiné,  e que eu conheci pessoalmente no ano letivo de 1975/76 no então ISCPS - Instituto Superior de Ciências Políticas e Sociais, na Rua da Junqueira, onde fomos colegas, por um ano, no curso de licenciatura em Ciências Sociais e Políticas, embora sem qualquer relacionamento pessoal.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2014). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Como já escrevi em tempos: 

Na altura, quando andávamos no ISCSP, estupidamente (!), nem sequer me ocorreu falarmos da Guiné onde estivemos na guerra, embora em alturas e sítios diferentes, eu, de 1969/71, em Bambadinca, ele de 1971/73, em Bula ... 

Nessa época, eu só queria esquecer a Guiné!... E das vezes que nos cruzámos, recordo-o como um típico militar do QP, de cavalaria, distante, reservado, e equidistante dos diferentes grupos estudantis de esquerda e extrema-esquerda que então imperavam no ISCSP.  No tenho ideia de alguma vez o ver fardado. 

Alguns dos colegas de curso não lhe perdoavam a sua participação no 25 de novembro, e quase ninguém tinha distância 'afetiva e efetiva' para antever o seu lugar na história de Portugal, enquanto operacional do 25 de abril (e do 25 de novembro). 

A crispação político-ideológica era então muito grande em 1975 e ainda em 1976... Por outro lado, os portugueses, têm, de há muito, uma 'relação bipolar', de amor-ódio,  com os seus heróis... (mas também com os seus deuses, santos, diabos e diabretes; possivelmente, essa relação 'bipolar', senão mesmo 'esquizofrénica', é universal, está longe de ser exclusiva dos tugas)... (**).

E em comentário ao poste P16275, acrescentei:

(...) "Salgueiro Maia teve a felicidade (ou a infelicidade, para os que o amavam, a esposa, os filhos, os amigos...) de 'morrer cedo de mais' (desgraçadamente, foi traído, aos 47 anos, por um cancro, que hoje poderia ter tido cura).

Nunca mais esqueceremos a cena dramática, épica, que foi o seu 'duelo' com os carros de combate que vieram da Ajuda e que lhe queriam barrar o caminho para a liberdade... É uma página extraordinária da nossa história!... 


Como cruel, e mesquinha foi a 'vingança' da hierarquia político-militar corporativa e conservadora que retomou as rédeas do poder e fez tudo para o amesquinhar e até destruir... A última parte da sua carreira militar (, 'desterrado' para os Açores e depois colocado à frente do 'presídio militar' de Santareém, afastada da sua casa, a EPC...) é  das coisas mais vergonhosas que lhe fizeram: autêntico 'bullying' castrense,  do mais mesquinho!...

Não somos bons a julgar os nossos contemporâneos, e sobretudo os melhores de todos nós. Temos uma problema de 'ejaculação precoce' nos juízos históricos do presnente ... Somos incapazes de raciocionar de maneira sinóptica, de ver,  num só relance, os que são geniais, que são mais do que homens, menos do que deuses, os nossos heróis... Só somos bons, a fazer consensos 'post mortem'... Mesmo assim é preciso, muitas vezes,  que os de fora, os 'estrangeiros',  nos deem uma dica... Temos, em suma, um grave problema de autiavaliação, de autoestima e de autoconfiança...

Não sei se é cinismo, se é fatalismo, se é morbidez, se é mesquinhez, se é inveja.... Direi apenas que é 'alma 
 pequena'... Levamos tempo e temos dificuldade em perceber de imediato a genialidade, a generosidade, a heroicidade, a santidade... dos nossos melhores: Camões, padre António Vieira, Sanches Ribeiro, Bocage, Camilo Castelo Branco, Eça de Queiroz, Amadeo Sousa Cardoso, Fernando Pessoa, Aristides Sousa Mendes, Veira da Silva, Humberto Delgado, António Damásio, Eduardo Lourenço, Jose Saramago, António Lobo Antunes, Sofia de Melo Breyner Andresen, Herberto Hélder, Salgueiro Maia, Vhils... são apenas alguns exemplos que me ocorrem, assim de repente, no campo das letras, da ciência, das artes, da ação cívica e política...

Estranho povo este... Mas não temos volta a dar: afinal somos nós, no nosso melhor e no nosso pior"...

2. Este mural [, inagem acima,] resulta de um desafio lançado pelo Instituto de História Contemporânea (IHC), unidade de investigação da FCSH/NOVA, a minha Universidade,   a que respondeu Vhils, co-fundador da plataforma Underdogs... o qual convidou mais quatro artistas (Miguel Januário, Frederico Draw, Diogo Machado e Gonçalo Ribeiro) para, em conjunto, pintarem o muro da Faculdade. 

 É uma visão (artística) do passado, do presente e do futuro do 25 de Abril de 1974. O objectivo foi “mostrar como esta nova geração de artistas interpreta o 25 de Abril e como esta data influenciou as suas vidas”, afirmou na altura, em 2014, Vhils, também conhecido por Alexandre Farto (n. Lisboa, 1987), e hoje já mundialmente famoso como artista da chamada "street art" ou arte urbana  (Fonte: FCSH/UNL).

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Notas do editor:


quinta-feira, 18 de abril de 2019

Guiné 61/74 - P19694: Consultório militar do José Martins (43): As Últimas Campanhas na África Portuguesa (1961-1974): De Dados Oficiais a Dados Oficiosos (Parte III)

  1. Conclusão da publicação do trabalho do nosso camarada e "consultor militar", José Martins (ex-Fur Mil TRMS, CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), sobre os dados oficiais e oficiosos das Últimas Campanhas na África Portuguesa, enviado ao nosso blogue em mensagem do dia 3 de Abril passado.






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Em tempo:

Corrigenda enviada ao Blogue, em 22 de Abril de 2019, pelo autor do trabalho, José Marcelino Martins:

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Nota do editor

Postes anteriores de:

16 de Abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19686: Consultório militar do José Martins (41): As Últimas Campanhas na África Portuguesa (1961-1974): De Dados Oficiais a Dados Oficiosos (Parte I)
e
17 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19689: Consultório militar do José Martins (42): As Últimas Campanhas na África Portuguesa (1961-1974): De Dados Oficiais a Dados Oficiosos (Parte II)

quarta-feira, 20 de março de 2019

Guiné 61/74 - P19604: Álbum fotográfico de João Sacôto, ex-alf mil, CCAÇ 617 / BCAÇ 619 (Catió, Ilha do Como, Cachil, 1964/66) e cmdt da TAP, reformado - Parte VI: Em Príame, a tabanca do João Bacar Jaló (1929 - 1971)


Lisboa > 1970 > O cap graduado 'comando'.  cmdt da 1ª CCmds Africanos João Bacar Jaló como o nosso veteraníssimo João Sacôto (ex-alf mil, CCAÇ 617/BCAÇ 619, Catió, Ilha do Como e Cachil, 1964/66), hoje comandante da TAP reformado, membro da nossa Tabanca Grande desde 20/12/2011. 
O João Bacar Jaló veio a Lisboa, nessa altura, no 10 de Junho, receber a Torre e Espada. Nasceu em Cacine, em 1929, e morreu em 1971, em combate, no sector de Tite. Era alferes de 2ª linha em 6 de junho de 1965. (*)



Guiné > Região de Tombali > Catió > CCAÇ 617 (1964/66) > Tabanca de Príame: da esquerda para a direita, eu, o cap Alexandre e o João Bacar Jaló.


Guiné > Região de Tombali > Catió > CCAÇ 617 (1964/66) > Tabanca de Príame: numa Daimler, da esquerda para a direita, eu, o cap Alexandre e o João Bacar Jaló.


Guiné > Região de Tombali > Catió > CCAÇ 617 (1964/66) > Tabanca de Príame: lavadeiras


Guiné > Região de Tombali > Catió > CCAÇ 617 (1964/66) > Tabanca de Príame: eu, à porta de uma morança com um fabuloso mural de motivos geométricos. "Era  a casa de João Bacar Jaló", confirma o seu amigo João Sacôto. "Estive lá várias vezes".


Guiné > Região de Tombali > Catió > CCAÇ 617 (1964/66) > Tabanca de Príame: eu, à porta da morança do João Bacar Jaló, na altura alferes de 2ª linha (será promovido a tenente de 2ª linha, em novembro de 1964).

Fotos (e legendas): © João Sacôto (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. João Gabriel Sacôto Martins Fernandes, de seu nome completo... Foi alf mil da CCAÇ 617 / BCAÇ 619 (Catió, Ilha do Como e Cachil, 1964/66). Trabalhou depois como Oficial de Circulação Aérea (OCA) na DGAC [Direção Geral de Aeronáutica Civil]. Foi piloto e comandante na TAP, tendo-se reformado em 1998.

Estudou no Instituto Superior de Ciencias Económicas e Financeiras (ISCEF, hoje, ISEG) . Andou no Liceu Camões em 1948 e antes no Liceu Gil Vicente. É natural de Lisboa. É casado. Tem página no Facebook (a que aderiu em julho de 2009, sendo seguido por mais de 8 dezenas de pessoas). É membro da nossa Tabanca Grande desde 20/12/2011.


2. Continuação da publicação do seu álbum fotográfico, desta vez com imagens de Príame, a tabanca do João Bacar Jaló. (**)


A  CCAÇ 617 esteve em Catió de 1 março de 1964 até 22 de setembro de 1965, altura em que assume a responsabilidade do subsector do Cachil, por troca com a CCAÇ 728. Será rendida pela CCAÇ 1424, em 16 de janeiro de 1966, preparando.se depois para regressar à metrópole.

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Notas do editor:

(*)  Vd. poste de 2 de maio de 2009 > Guiné 63/74 – P4275: Tugas - Quem é quem (4): João Bacar Jaló (1929-1971) (Magalhães Ribeiro)

(**) Último poste da série >  3 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19546: Álbum fotográfico de João Sacôto, ex-alf mil, CCAÇ 617 / BCAÇ 619 (Catió, Ilha do Como, Cachil, 1964/66) e cmdt da TAP, reformado - Parte V: Catió, o quartel e a vida da tropa

domingo, 4 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6672: Para o livro de ouro do Capitão Garcez, um inédito de Mário Cláudio


Guiné > Zona Leste >  Sector L1   > Bambadinca > CCS/ BART 2917 (1970/72) > Jovem mãe fula, com o seu filho. Não há qualquer relação, espácio-temporal,  entre a foto, do Benjamim Durães, e o texto (que é de ficção literária) a seguir reproduzido, da autoria de um dos grandes escritores portugueses da actualidade, Mário Cláudio, Prémio Pessoa 2004, e um dos recentes membros do nosso blogue. 
Foto:  ©  Benjamim Durães (2010). Direitos reservados


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > CCAÇ 12 (1969/71) > Em bicha-de-pirilau... A solidão dos combatentes, na hora mortal da madrugada... Um imagem, recuperada de um "slide" do meu amigo e camarada Arlindo Roda, editada (e reeditada) por mim (com a devida vénia...).
 

 
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > CCAÇ 12 (1969/71) > ... E a solidariedade dos combatentes... Dois soldados do 3º Grupo de Combate, do Alf Mil Abel Rodrigues, aparam o 1º Cabo Carlos Alberto Alves Galvão, metropolitano (vive hoje na Covilhã: Um Alfa Bravo, Camarada!), comandante da 1ª secção, o homem que cometeu a proeza de ser ferido duas vezes o decurso da mesma operação (Op Boga Destemida, Fevereiro de 1970). Estes dois camaradas guineneenses podem ser alguns dos seguintes que compunham a 1ª secção: Soldado Arvorado 82108769 Totala Baldé (Fula); Sold 82108569 Sambel Baldé (F); Sold 82108969 Mauro Baldé (Ap LGFog 8,9) (F); Sold 82110369 Jamalu Baldé (Mun LGFog 8,9) (F); Sold 82109169 Malan Baldé (F); Sold 82109569 Iéro Jau (Ap Dilagrama) (F); Sold 82110969 Samba Baldé (Ap Metr Lig HK 21) (F); Sold 82109969 Malan Nanqui (Mandinga). "Slide" do Fur Mil Arlindo T. Roda, comandante da 2ª secção.  Imagem editada por L.G.

Fotos: © Arlindo T. Roda  (2010). Direitos reservados



Para o Livro de Ouro do Capitão Garcez

 por  Mário Cláudio [, foto à direita] (*)

Convoco o banalíssimo rosto do Capitão Garcez, emergido da noite em que se me deparou. Um esfregão parece ter passado por ele, reduzindo-o à suprema inexpressão, despido do fulgor da violência que lhe imputam. Ali está, solitariamente sentado a uma mesa do Clube Militar, atento ao zumbido das ventoinhas do tecto, e ao súbito remexer dos ramos das bananeiras que anuncia um desses tornados da estação das chuvas. À sua frente a minha presunção de virtual escritor implanta uma grande bandeja, repleta de cabeças de guerrilheiros, cortadas numa tarde de assalto a um aldeamento por entre a aguardente emborcada, e o suor empapante dos camuflados. E um outro texto descerra-se diante de mim, já não o que o tenebroso oficial pressupõe, mas o que se estampa na cara dos degolados, contemplando num último lampejo do medo, ou do ódio, o embondeiro distante, a cuja sombra as mulheres se abrigam na amamentação dos filhos.

O bancário aposentado tira os óculos que ficam pendentes de um cordão, e confronta-me como se não quisesse ver-me com demasiada nitidez. “Não creio que tenha muito para lhe contar”, declara ele, e justifica-se, “já lá vão bastantes anos, e aquilo que nesse tempo nos parecia interessantíssimo acabou por não valer um caracol.” Encontramo-nos na salinha sobreaquecida, e a luz do candeeiro de pé reflecte-se no vidro da janela, compensando pelo halo de intimidade que desenha o desolado cinzento do Inverno lá de fora. “Afinal vivíamos praticamente em família”, discorre ele, e eu lanço uma mirada às prateleiras à minha direita, atafulhadas de edições do Círculo de Leitores, inseridas por detrás de uma tralha de lembranças de viagem, dominadas pelas três estatuetas africanas que ocupam o plano mais de cima. O meu informador abre uma gaveta na parte de baixo da estante, retira uma caixa de cartão arrombada, destapa-a com delicadeza, e vasculha na desordem de fotografias de várias dimensões. Descobre a que procura, e entrega-ma com um “aqui tem” apressado. Lá se distingue ele, facilmente identificável pelas orelhas de abano, de calções de caqui, entre dois camaradas, também de barba por fazer, e formando um grupo ligeiramente apartado do indígena bronco, de ombros descaídos, que espeta o olhar na câmara com a vigilância de um cão fiel. “O que está à minha esquerda”, explica num sussurro, “é o Garcez.” Solta uma risadinha como se lhe tivesse sobrevindo a recordação de um episódio pícaro, e remata, “O Garcez era um ponto, não havia outro igual.”


O percurso do Capitão Garcez a custo se acha nesses dilapidados calhamaços, inventariadores dos sucessos dos que serviram nas forças armadas, e que terminaram os seus dias a pedir esmola, a desempenhar o cargo de porteiro de algum condomínio fechado, ou a projectar o futuro na base da jantarada que anualmente reúne o pessoal decrépito da sua unidade. E os jornais do seu tempo, tanta vez apodrecendo no bolor de um sótão de província, permanecem inatingíveis pela falta de paciência de quem pretende estudar os passos dos bravos em desgraça. Terão porventura circulado aerogramas, a descrever-lhe as impetuosas proezas, subscritas pela admiração inescondível, e não raro pela calada repugnância, mas bem sabemos que destino levariam esses documentos, ora despachados para o contentor com o lixo reunido antes de se mudar para a casa nova, ora incinerados por um antigo soldado que nas vésperas do casamento resolveu com a noiva desfazer-se da correspondência de namoro. O Capitão Garcez vai assim perdendo o tal rosto, aquele mesmo que se esparrinhou com o sangue da jugular no instante da catanada, imobilizando-se a seguir na massa fosca das noitadas de whisky do remoto destacamento no mato.

Continuo a observar a foto dos idos da campanha, não tanto porque dela espere obter mais do que aquilo que deduzi já, o apagado facies do Capitão Garcez, alferes na altura, debaixo do cabelo liso e ruço claro, e na palidez que o distingue dos companheiros. Vou meditando no que o meu informador depreende do jogo fisionómico que lhe proponho, tão relevante para ele como o dele para mim, e de idêntica forma à mercê de suspeitas e traições. Apercebe-se da curiosidade com que lhe persigo o desvio da vista, e da minúcia com que lhe inventario os bibelots expostos na biblioteca, babushkas alinhadas em progressão aritmética, e miniaturas de teares e caldeiras, óbvios mementos das peregrinações a Leste, promovidas pelo partido da esquerda bem-comportada de que foi militante. E não deixará de reparar ainda no modo como lhe espio o gesto de selecção dos clichés da caixinha, futurando que será meu objectivo, e a mais do que a simples escrita de uma história, comprometê-lo por desmandos que, não transcendendo todavia a sua inicial responsabilidade, lhe pesam hoje como infames nas madrugadas de insónia. Ao devolver-lhe o retrato amachucado do quarteto com uma palhota atrás, terá porventura entendido o meu sorriso, não como aceno cortês de gratidão, mas como cínica ameaça, resultante do facto de conhecer eu muita, muita coisa que ele preferiria manter em silêncio. Desce a escuridão para além da vidraça, e o clarão da lâmpada denuncia com acrescida clareza quanto guardamos, ele e eu, nas algibeiras mais secretas das intenções que nos movem.

A peça televisiva, sobrevivente num preto e branco que as décadas foram zurzindo, oferece a deslocação lenta, um pouco rígida, do Capitão Garcez, subindo os degraus da tribuna no Terreiro do Paço, erguida para as comemorações do 10 de Junho. Transporta o rosto anódino de sempre, indeciso entre a melancolia e a austeridade, o que redunda na absoluta ausência de emoções. Avança para o Presidente do Conselho que lhe impõe a Torre e Espada, e que o abraça com a finura sinuosa de quem restringiu a paixão a um cálice, um cálice apenas, de porto tawny. Soletra-se entretanto o que se adivinha, a dor das duas viúvas que irão arrecadar a condecoração a título póstumo, o espanto do menino órfão no seu fatinho de piqué, tudo o que a comissão dos festejos imperativamente recomendou. O choro ostensivo que se proibiu, e que se crispa em engolidos soluços, esvai-se na brisa que sopra do Tejo, e que faz esvoaçar o véu de luto do duo das inconsoláveis esposas, e o vestido estampado das senhoras que assistem à cerimónia, e que ficarão lindamente no banquete que fecha o ritual. O nosso Capitão Garcez, e leia-se isto com um misto de pudor e asco, regressa à fileira donde saiu, cravando no vazio do céu azul a vista com que abarcou páginas e páginas de uma crónica heróica, as cabeças em espeques que lhe engalanavam o jeep, os ventres das grávidas rasgados à baioneta, e donde desliza no capim o feto banhado em sangue borbulhante, e o crânio do petiz que, ao esborrachar-se num poste, produziu o ruído das carochas esmagadas pela bota.

No rosto do Capitão Garcez aprendo a alvura que se situa para além da morte, a dos dentes das nativas que vertem a cólera das lágrimas no corpo estraçalhado das crias, a do leite que dolorosamente se retém nas suas mamas, a da esclerótica dos cadáveres que não baixam por completo as pálpebras, a da cal com que se pinta a parede para que não dure na morança o espírito do executado, a do pânico do régulo que cospe em Portugal a cegueira a que o reduziram com o sol a pino, a do esperma do terrorista enforcado que não se veda no meio minuto do estertor, a do manto da Senhora de Fátima a que se abrigam as virgens cristianizadas, a do lenço embainhado do menino de sua mãe que não encarna a coragem de cortar a garganta da impúbere, a dos cornos do boi que alui para alimentar com a sua carne os homens do pelotão, a da manhã de canícula que enrola os defuntos num sudário tão delicado como o linho, a do sabugo das unhas arrancadas ao capturado que se recusa a falar, a do cogumelo de espuma nos beiços do rapaz manietado que se puxa do poço, a do bando de garças que levanta voo a cada rebentamento da granada inserida nas calças de um pobre diabo, a da máscara do feiticeiro que conclui a pantomima, a dos lírios calcados pela sola do Capitão Garcez.
Se o oficial agraciado, tendo volvido ao seu lugar, me avistasse então, conforme me posiciono agora, acomodado defronte do televisor, talvez traduzisse em mim o nojo que lhe suscitaria o seguinte, “E que tem o marmanjo com os actos que pratiquei, ou não pratiquei, estávamos em guerra, na guerra mata-se, e quem poderá acusar-me de celebrar a morte, a fim de a assumir em pleno, com insígnias que eu escolhia, um colar de orelhas enfiadas num arame, postas à volta do pescoço, como se desembarcasse para umas férias no Havai, um bracelete de dedos calejados, colhidos ainda em vida dos anjinhos que despachara, e que me dera na moina enviar à última puta que fodera em Lisboa? Nenhuma destas alegrias curava a tristeza que me assediava, e que provinha de compreender que não existe no Mundo festarola que não seja a que inventamos, e em que ninguém acredita, e deitava-me a dormir, e antes de tombar no sono contava os dentes que se tinham soltado, apegados a lascas de gengiva, do maxilar que eu estourara com a coronha da G-3, ou procurava reproduzir em surdina, muito em surdina, os berros da gaja agarrada ao miúdo, o que tem você mesmo com isso, seu cobardola de merda?”

Na alma do Capitão Garcez colho o vermelho que explode no paroxismo da agonia, o do fio que escorre do buraco da bala na nuca, o do globo ocular que o sabre extirpa como uma ostra, o da papa em que se converte o detido que se ata a uma mina, o dos restos na bocarra do morteiro a que o chefe de posto é amarrado, o da diarreia do velhote que arrastam pelo chão, o da massa dos pulmões à mostra pelo lanho que rasga o peito do comandante deles, o do inchaço das partes que se penduram numa cana, o do vómito do recém-nascido que se arremessa contra o tronco da acácia, o do vinho acre que se bebe na volta à camarata, o da bandeira que se iça para presidir à farra, o da glória dos heróis que sepultam a honra debaixo do lodo, debaixo da lama, e debaixo da trampa.

Chega-me a mensagem de um que andou com o Capitão Garcez nas lutas africanas, e transcrevo dele este bocado, “Há muitíssima confusão, o que favoreceu o mito. Vamos pensar. Mas eu não pretendo branquear-lhe a memória, muita atenção, o tipo era um homicida que descobriu, na guerra colonial, a sua coutada, e que se realizou na tortura, no massacre e na matança. A prova está em que nenhum de nós confraternizava com ele, e havia um como que acordo tácito, entre a malta, nesse sentido. Estou a avistá-lo, ainda, sempre isolado, absorvido nas bolinhas de fumo, que atirava para o ar, com aquele rosto de querubim, mas que, se analisado à lupa, apresentava-se destituído de qualquer sentimento. Por que haveria eu de o desculpar? Mas o que ninguém negará é que as cabeçorras dos pretos, espetadas nos paus, a bordejar a picada, funcionavam como um truque da psico, para demonstrar aos rebeldes, convencidos, pelas igrejas evangélicas, de que Deus os conservava invulneráveis às balas, que não beneficiavam do dom da imortalidade e que não eram menos mortais do que nós. Se isto não escusa as atrocidades, é natural que lhes dê, no entanto, uma certa razão, e uma razão patriótica, que constituia aquilo que, na circunstância, se desejava do sujeito. Quem se adiantaria, se não o Garcez, para executar o trabalho sujo, desempenhado sem luvas, e a que não se furtava, por o considerar imprescindível, talvez, e não tanto porque lhe apetecesse?”

Este rosto que se fixa no meu, devolvido pelo espelho quadrangular que veio da casa dos avós, foi sendo devastado ao longo das quase cinco décadas. Junto a mim pousa a grande jarra de gerberas, arauta da Primavera que desponta, a projectar aquele macerado amarelo, tão característico dos que retornam dos trópicos. A verdade é que, há muito, muito tempo, me não assalta o organismo de pretérito miliciano essa coloração dos surtos palúdicos, precipitando-me em convulsos pesadelos, atrelados a outros experimentados já. Serenamente afastaram-se de mim aqueles transes inexplicáveis, vividos por um soldado sonâmbulo que devagar conduz o Unimog através da povoação em labaredas, cruzada pelo balido das cabras espavoridas, e pelo guincho das fêmeas e crianças que ardem numa habitação esbarrondada. Apagado pela ventania que espanta o incêndio, o rosto do Capitão cristaliza em mim numa neutralidade de cera, de órbitas vazadas, tão frágil e tão efémero como a paisagem que o circunda. E só a minha cara permanece, e nela a intrigada movimentação dos lábios magnetizados pela figura no espelho suspenso perante mim, balbuciando no extremo desespero, “Como te chamas? Como te chamas? Maltez? Calapez? Montez? Garcez! É isso, é isso, Garcez!”

O homem continua acolá, de pés virados para o lume da lareira. Amenizou-se-lhe o clima, respirado pelos netos traquinas que gosta de instalar sobre os joelhos, e pelo gato angorá que langorosamente curva o dorso sob as carícias do dono. E o noticiário da TV relata uma toada de guerras exóticas, empreendidas por mercenários que ganham o bastante para edificar a vivenda dos seus sonhos, descrita à namorada em cartas onde se alude ao cio arrasante, devorador das entranhas. O vetusto Capitão Garcez, admiravelmente robusto para os seus quase setenta, levanta-se da poltrona, e as imensas asas negras, rompendo-lhe das espáduas, batem numa vibração, desplumam-se na treva, e desfazem-se em pó.

Texto: © Mário Cláudio (2010). Direitos reservados

[Foto de Mário Claúdio. Autor: Gaspar de Jesus. Digitalização: Carlos Nery. Fonte:  livro de contos, autografado, oferta do autor, "Itinerários", 1993... Com a devida vénia ao autor e editor...]
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Notas de L.G.:

(*) Mário Cláudio é o pseudónimo literário de Rui Manuel Pinto Barbot Costa, natural do Porto, que esteve na Guiné, como Alferes Miliciano, colocado na Secção de Justiça do Quartel General (1968/70), juntamente o hoje conhecido constitucionalista Gomes Canotilho. Foi nessa altura que conheceu o Carlos Nery (**) e o João Bagre, com quem fez a peça de teatro A Cantora Careca, de Ionesco.

(**) Foi o Carlos Nery que nos enviou, em 18 de Junho, este texto (que se presume seja inédito), remetido pelo escritor Mário Cláudio, na sequência da sua entrada para a nossa Tabanca Grande (onde está registado como Mário Cláudio / Rui Barbot:

Amigos, enviei-vos ontem o primeiro texto que o Barbot me remeteu para ser colocado no blogue. Quando vos remeti o meu "Noite Longa" tive o cuidado de o converter da reprodução do papel impresso para a forma digitalizada. Não sei como isso se chama... Mas fiquei surpreendido com a facilidade como meu filho fez essa conversão. O que vocês receberam parecia ter sido "batido" aqui no teclado mas fora um programa informático quem tinha efectuado o equivalente a esse trabalho a partir de um texto impresso em papel. Confesso que nem sabia que isso já era possível... Trabalhei na Organização e Métodos do Banco de Portugal e lembro-me de, aqui há já alguns anos, ter feito uma consulta ao mercado para saber se havia algum dispositivo que fizesse tal coisa. Não havia. O meu espanto foi ver que, agora, num computador pessoal, isso se faz em minutos...

Mas tanta conversa para quê? Para dizer que, se vocês quiserem, eu me posso encarregar dessa tarefa relativamente ao "Livro de Ouro"...

Uma coisa: o Barbot, não obstante a minha insistência, não me remeteu foto sua actual (***). O homem tem mil afazeres, obrigações e prazos a cumprir, não o quero chatear muito... Temos que entendê-lo... Penso que, se isso for muito importante, é sempre possível encontrar uma foto actual.

Enviei uma foto dele na "Cantora Careca" (juntei-a eu ao material enviado). É uma foto que tenciono usar quando estiver pronto o Poste sobre essa realização teatral. Pode ser ou não usada agora. Mas como falei da sua performance teatral, na altura, pareceu-me não ser descabido essa divulgação, agora, até pelo seu ineditismo...

Abraços CNery

(***) Mail de 17 de Junho do Mário Cláudio / Rui Barbot

Meu Caro Carlos Nery, aqui segue o que lhe prometi. O que não constar dos anexos seguirá depois, ou irá ter-lhe às mãos por via postal. Grande abraço amigo do Rui Barbot.

Vd. poste de 23 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6630: Tabanca Grande (227): Rui Barbot / Mário Cláudio, ex-Alf Mil, Secção de Justiça do QG, Bissau (1968/70).

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2569: Tugas - Quem é quem (3): João Bacar Djaló (1929/71) (Virgínio Briote)

Guiné-Bissau > Bissau > Cemitério (colonial) > Abril de 2006 > Restos de lápides funerárias de soldados portugueses cujos corpos por aqui ficaram. Como o guineense Capitão Comando João Bacar Jaló, natural da Guiné, morto em combate em 16 de Abril de 1971.

Foto: © A. Marques Lopes (2006). Direitos reservados


João Bacar Djaló (ou Jaló), ou só João Bacar, foi um dos nomes que passou à história da Guerra na Guiné. De quem, todos ou quase todos de nós, ouviram falar.

João Bacar Djaló

Até ser graduado em capitão, João Bacar participou em cerca de 350 operações. De Quinara a Cacine (Tite, Cufar, Cachaque, Caiora, Darsalame, S. João, Como) não havia trilho nem aldeia que não conhecesse.-

Da sua folha de serviços constam numerosos louvores, realçando não só a actividade militar mas também os esforços que fez para subtrair e proteger as populações do aliciamento da guerrilha.

De Comandantes de Batalhão com quem trabalhou até ao Comando-Chefe, de todos recebeu elogios pela capacidade operacional de que foi dando provas ao longo da Guerra que travou, desde o início do conflito até à sua morte em combate, em Abril de 1971.

A cumular as duas Cruzes de Guerra com que já tinha sido agraciado, foi-lhe atribuído em 10 de Junho de 1970, na Praça do Comércio em Lisboa, o grau de Oficial da Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito.

E na cerimónia do 10 de Junho do ano seguinte, o Governador e Comandante-Chefe, General António de Spínola, condecorou-o a título póstumo, na pessoa do irmão, Saído Jaló, com a Medalha dos Serviços Distintos com Palma.

Em 16 de Abril de 1971, segundo o relatório da operação Nilo, (…)João Bacar ao correr abnegadamente em socorro de um soldado que fora ferido, indiferente ao fogo cerrado, foi vítima de uma explosão que lhe causou a morte (…).

Guiné-Bissau > BIssau > Campa de João Bacar Djaló. As minhas desculpas e os agradecimentos devidos ao autor da foto que ainda não consegui identificar. Julgo que não seja do nosso camarada A. Marques Lopes que esteve no antigo cemitério de Bissau, aquando da sua viagem à Guiné-Bissau, em Abril de 2006 (O co-editor vb).

Notícias da época dão conta das circunstâncias em que decorreu o funeral. Um autêntico choro colectivo de milhares de pessoas, militares e civis, um acontecimento nunca visto até então na Guiné.

Nasceu em Cacine (Catió) em 2 de Outubro de 1929, filho de Sajo Jaló e Fatuma Só.

Alistado no Exército, voluntariamente aos vinte anos, prestou serviço de 1 de Março até Junho de 1951 (2ª CCAÇ, Bolama).

Nesse mesmo ano ingressou na Administração Civil de Bissau. Primeiro, durante 1952, como funcionário no Palácio do Governo, depois, até 1958, na Administração Civil, em Bissalanca, Antula, Prábis e Safim.

Entre 1958 e 1961 foi fiscal de fronteira no Sul, e em 1961 foi nomeado Comandante de ronda na vila de Catió, onde desempenhou também as funções de oficial de diligências do Julgado Municipal.

Com o início das acções armadas, João Bacar, então com 33 anos, alistou-se de novo, passando a ser o Comandante de Caçadores Naturais da Província.

Muito depressa ganhou fama. Em 8 de Junho de 1965 foi graduado em Alferes de 2ª linha, numa cerimónia em Catió, onde há pouco tempo tinha ascendido a régulo.

Várias vezes aliciado por Comissários Políticos do PAIGC, sempre disse não, apesar das ameaças e represálias de que ele e os familiares foram alvo.

João Bacar foi depois nomeado Comandante da Companhia de Milícias nº 13, onde continuou a revelar-se, segundo os documentos militares e os testemunhos da época, um combatente de excepção.

Um ano depois era Tenente de 2ª linha e, nessa altura, foi convidado, juntamente com alguns naturais do território, a frequentar um Curso de Oficiais.

Catió, 1967. Tenente João Bacar Jaló.

Foto e legenda: © Benito Neves, ex-Fur Mil da CCAV 1484 (Nhacra e Catió, 1965/67). Direitos reservados.

Em 4 de Junho de 1970, já como Capitão do Exército Português, foi-lhe confiado o comando da 1ª Companhia de Comandos Africana.

Com anos e anos de experiência de acções armadas, João Bacar tornou-se conhecido em toda a Guiné e, segundo relatos de antigos guerrilheiros do PAIGC, o seu nome metia respeito.

Terminou a sua vida como um ídolo, odiado e amado.

Virgínio Briote,
Ex-Alf Mil Comando, Brá, 1965/66
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Nota de vb:

Ver artigos de:

10 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2340: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (5) - Parte IV: Pami e Malan são feitos prisioneiros (Mário Fitas)

4 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2239: Tugas - Quem é quem (2): António de Spínola, Governador e Comandante-Chefe (1968/73)

23 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2207: Tugas - Quem é quem (1): Vasco Lourenço, comandante da CCAÇ 2549 (1969/71) e capitão de Abril

Ver também:

20 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1769: Estórias do Gabu (4): O Capitão Comando João Bacar Jaló pondo em sentido um major de operações (Tino Neves)

8 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1502: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (8): Com Bacar Jaló, no Cantanhez, a apanhar com o fogo da Marinha

30 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXIX: Do Porto a Bissau (23): Os restos mais dolorosos do resto do Império (A. Marques Lopes)

31 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXXVII: A 'legenda' do capitão comando Bacar Jaló (João Tunes)

11 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri (Luís Graça)