1. O nosso Camarada Tomás Carneiro, ex-1.º Cabo Condutor da CCAÇ 4745/73 - Águias de Binta (Binta, Cumeré e Farim – 1973/74), enviou-nos dos Açores onde vive, uma mensagem com data de 27 de Abril:
Olá camaradas e amigos,
Hoje envio-vos a última parte da minha história da guerra.
Como já havia dito noutro texto anterior, tinha que dormir em Jugudul para fazer o transporte do pessoal, para os trabalhos na frente da estrada Jugudul/Bambadinca.
Debaixo de fogo INNo dia 9 de Maio de 1974, em Jugudul formamos a coluna como de costume e arrancamos estrada fora. Ele chegou-se para mais perto de mim
e disse-me: “Isso não é nada!”
Entretanto apareceram os enfermeiros que começaram a tratar-me. Não tenho mais estórias, nem histórias, para escrever. Fotos: © Tomás Carneiro (2009). Direitos reservados.____________
O IN havia preparado bem esta emboscada, porque, ao mesmo tempo, atacaram também o quartel no intuito de não deixar sair socorros à nossa coluna.
Atacaram em toda a zona da frente do quartel e conseguiram colocar uma morteirada certeira no espaldão do morteiro de 81 mm, onde morreu um furriel miliciano e feriu com gravidade um 1º cabo.
Quando o combate acalmou puseram-me na caixa de um Unimog 404 e transportaram-me para Mansoa.
Ali chegado e a bater os dentes de frio (sinal evidente de febre), deitaram-me numa ambulância, que logo de seguida partiu para o Hospital Militar de Bissau.
No HMB, fui directo para o bloco, onde fui visto por dois médicos e um 1º sargento enfermeiro (creio que o seu nome era Santos), tendo-me preparado para uma cirurgia, com anestesia de meio corpo.
Disseram-me que não era grave, mas quando estavam a operar, alertaram-me para a necessidade de me extrair o testículo direito.
Meus amigos, aqui é que começou o meu maior drama, eu, um puto de 21 anos cheio de vida, estava a ver-me privado de uma coisa tão importante do meu corpo.
Chorei silenciosamente a pensar no que seria meu futuro assim mutilado.
Finda a intervenção fui para a enfermaria, permanecendo aí em estado de recuperação. Uma semana depois alguém me disse que tinha um colega numa outra enfermaria e fui vê-lo.
Era o 1º cabo que tinha sido ferido no espaldão e estava crivado de estilhaços, mas consciente. Falamos sobre o sucedido e então é que soube que o furriel tinha morrido no ataque, que acima acabei de descrever.
Entretanto tiram-me a algália e quando fui urinar verifiquei, com enorme espanto, que estava a urinar para trás e para a frente. Conclusão, tinha a uretra “partida”.
Fui então evacuado para o HMP à Estrela, em Lisboa, por avião, no dia 13 de Junho à noite.
Chegado ao aeroporto, meteram-me numa Morris com capota e segui para as urgências, após o que me mandaram numa ambulância, para um quartel na Graça tendo aí passado a noite.
De manhã, falei com o oficial-de-dia, contei-lhe a minha situação e ele mandou-me de volta para o hospital, ficando lá internado na enfermaria de urologia.
Um dia ou dois depois, estava eu encovado na cama e chegou junto de mim um médico, que começou a consultar-me.
Como entretanto comecei a chorar, ele perguntou-me o que se passava e eu contei-lhe as minhas preocupações quanto ao futuro, dizendo-lhe que me tinha sido retirado um testículo.
Ele começou a sorrir e explicou-me: “A partir de agora, você tem que fazer com um, o que os outros fazem com dois… mais nada!”
Senti-me mais aliviado a partir daí.
Fui submetido a muitos exames e a 4 operações, duas delas duplas, pelo que fiquei no hospital 23 meses.
Sofri muito nesse tempo sem ter a família perto, que me prestasse algum apoio e carinho.
Fui sempre bem tratado pelo pessoal que ali trabalhava e familiares de outros doentes, que lá se encontravam hospitalizados, tendo ganho algumas boas amizades.
Quero aqui agradecer, justa e sentidamente, a um Homem - o Doutor Barcelos Vaz -, que me ajudou muito, física e psicologicamente, e deixar-lhe aqui, caso ele tenha conhecimento desta mensagem, um grande abraço Amigo e um Muito Obrigado por tudo.
Outro grande abraço meu, vai para o 1º Sargento Lopes que sempre bem-disposto e brincalhão, comigo e com os outros Camaradas que com ele trabalhavam, me transmitiram ânimo e disposição, que muito me ajudaram a ultrapassar os piores e mais dolorosos momentos da minha vida.
Foi assim que terminou a guerra para mim.
Daqui para afrente, continuarei a ler este grande blogue, enquanto a saúde e o discernimento mo permitirem.
A partir deste momento passo novamente à condição de silêncio, sobre esta fase da minha vida, porque eu não gosto de falar muitas vezes sobre o que passei então.
As fotos foram tiradas no HM de Bissau.
Um abraço daqui do meio do atlântico com muita amizade para todos vós e até breve no nosso V Encontro, em Monte Real.
Tomás Carneiro
1º Cabo Cond CCAÇ 4745
Decorria tudo bem, com uma Daimler à frente, um Unimog 411 logo atrás (penso que nesta segunda viatura viajava o Cap. Contreiras, que vinha a comandar o pessoal) e depois vinha eu, numa Berliet repleta de trabalhadores, uns apeados e outros sentados.
Quando nos faltava cerca de 600/800 metros para chegar ao quartel, eis que rebentou um “fogachal” tremendo que não consigo descrever por palavras.
De imediato travei a viatura, que se colou de imediato ao piso da estrada e, como é de prever, o pessoal que eu transportava projecta-se para a frente, caindo uns por cima dos outros, tocando-me uma parte deles em cima.
Livrei-me rapidamente deles e lancei-me para o chão, rastejando para debaixo/frente do carro e fiquei, agora eu, ali colado ao asfalto da estrada.
Como a estrada tinha uma pequena inclinação, reparei que a Berliet começou a deslizar na minha direcção e como eu estava deitado entre os rodados, levantei-me de repente e desatei a correr para o mato, em busca de alguma protecção.
Corria agachado, como mandam as regras, quando senti uma queimadura na nádega esquerda. Lancei-me para o mato que estava num plano mais baixo que a estrada, para me tentar abrigar do fogo do IN e senti uma nova dor, na parte frontal (zona inguinal direita), onde coloquei a mão e senti qualquer coisa quente e viscosa.
Olhei para a mão e vi sangue. Fiquei aterrado e pensei: “Estou ferido!”
A meu lado estava um trabalhador que olhou para a minha mão e perguntou se eu estava ferido. Disse-lhe que sim.
Tirou o seu quico e pô-lo em cima da ferida para estancar o sangue.
Depois continuou a falar comigo, continuadamente, a transmitir-me confiança e “força”.
Este Guineense dava-se muito bem comigo e, habitualmente, andava sentado ao meu lado nas viaturas.
Não sei quanto tempo demorou o tiroteio, mas, para mim, foi muito tempo e, ainda por cima, no estado em que eu me encontrava.