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terça-feira, 23 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25772: Casos: a verdade sobre... (45): O "incidente" de 1/12/1973 que levou à morte de 7 civis no Xime, por "fogo amigo": nessa data não havia obuses em Mansambo e Gampará já tinha o obus 14 (António Duarte,ex-fur mil, CART 3493, Mansambo, e CCAÇ 12, Bambadinca e Xime, dez 71 - jan de 74)

1. Mensagem de António Duarte, um histórico do nosso blogue para o qual entrou em 18/2/2006


Data - terça, 9/07/2024, 22:06
Assunto - Fogo amigo

Boa noite, Luís

Se me permites,  gostava de clarificar e acrescentar alguns pontos, sobre o relatado pelo Sousa Castro e outras observações feitas (*).


(i)  tenho a certeza que,  no dia 1 de dezembro de 1973, em Gampará estavam obuses 14 cm e, portanto,  se refizeres as contas, à distância entre as duas localidades, vais constatar que as granadas podem cair dentro do quartel/tabanca do Xime;

(ii)  não havia obuses em Mansambo, em 1 de dezembro de 1973;

(iii) no Xime estavam obuses de 10.5 cm, nessa data;

(iv) os comandantes de companhia no Xime (Ccaç 12) e da companhia de Gampará, cuja identificação não me recordo, articulavam-se para bater a  zona a partir de Gampará, para a zona de atuação da nossa Ccaç 12; penso que era para ensaiar alguma necessidade, em caso de ataque ao Xime,

(v)  não foi a primeira vez que tal sucedeu, nunca tendo havido incidentes;

(vi) foram perfeitamente audíveis as saídas aquando dos disparos do 14 em Gampará; de seguida ouviram-se os rebentamentos, um na tabanca, com o resultado já conhecido, e um segundo junto à escola do Xime, relativamente perto do local onde rebentou a primeira, a qual ficou, pelo menos com um buraco grande na parede;

(vii) o nosso tabanqueiro, José Carlos Mussá Biai, menino à época, viveu esta tragédia de perto e sei que se recorda (**).


Um abraço a todos os camaradas,
António Duarte
Cart 3493 (Mansamno) 
e Ccaç 12 (Bambadinca e Xime) 
(dez 71 a jan de 74)

2. Comentário do editor LG:

Sabemos que nessa data o comandante da CCAÇ 12 era o cap mil inf José António de Campos Simão (médico ortopedista do SNS, em Évora, hoje seguranente reformado), e o comandante da CCAÇ 4142/72 (Ganjauará, set 72/ ago 74) era o cap mil cav Fernando da Costa Duarte.

O Sucena Rodrigues, infelizmente já falecido, deu uma informação errada: o nº de mortos foi de 7 e todos civis, de uma mesma família (segundo me confirmou, ao telefone, o António Duarte) (e já o sabíamos do depoimento do J. C. Mussá Biai) (**) . 

Por outro lado, uma das granadas de obus 14 caiu na bolanha.

A informação fornecida pela CECA está errada: já havia de facto obus 14 em Gampará / Ganjauará (27º Pel Art), e Mansambo não tinha nenhuma artilharia nessa data  (!) (*)

___________


(**) Vd. poste de 20 de fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - P554: Sete mortos civis no ataque ao Xime (Dezembro de 1973) (J.C. Mussa Biai)

(...) Acabo de ler o relato do António Duarte sobre o trágico acontecimento que ocorreu em Xime (...)

Devo dizer que, apesar de ser criança à época, ainda me lembro porque afinal morreram sete pessoas nesse ataque, para além das mortes serem a menos de cinco metros da casa onde eu dormia.

Ainda por cima morreram lá duas pessoas (João Jorge e o irmão mais novo) com os quais eu e mais outras crianças à época estavamos a brincar. Só que a avó deles foi buscá-los para irem dormir e passados mais ou menos 30 minutos eu também fui dormir.

Antes de adormecer ouviu-se um estondo enorme de uma granada de canhão em cima da casa deles e eles começaram a gritar, passados talvez 2 ou 3 minutos caiu um segunda granada de  canhão e foi o silêncio total. Passados mais uns 2 ou 3 minutos caiu uma terceira granada a talvez 50 - 100 metros para a frente.

Depois disso não se ouviu mais nada e mais ninguém dormiu. Daquela família, dos que estavam em Xime, só se salvaram três pessoas. O chefe de família que tinha pernoitado no mar (na pesca) e a filha mais velha e a filha desta, porque estavam de zanga e tinham-se mudado para a casa duma outra família.

Esse acontecimento foi dos que mais mais me marcaram pela negativa. Nessa altura já tinha consciência que havia uma gerra, as razões desconhecia-as.Talvez seja próprio da infância, o certo é que pereceram amigos de brincadeira e vizinhos...

As datas não sei, mas os factos ocorridos são esses (...)

quinta-feira, 4 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25714: Facebook...ando (59): Joaquim Martins, nosso grão-tabanqueiro desde 2015, ex-fur mil at inf, CCAÇ 4142/72, "Herdeiros de Gampará (Ganjauará, 1972/74) - II (e última) Parte



Foto nº 11 >  Joaquim Martins: tem página no Facebook


Foto nº 12 > Guiné > Região de Quínara > Península de Gampará > CCAÇ 4142/72 (Ganjauará, 1972/74 > O fur mil at inf, Joaquim Martins


Foto nº 13 > Guiné > Região de Quínara > Península de Gampará > CCAÇ 4142/72 (Ganjauará, 1972/74 > "Eu à porta da minha morança"


Foto nº 14 > Guiné > Região de Quínara > Península de Gampará > CCAÇ 4142/72 (Ganjauará, 1972/74 > O obus 10.5 (29º Pel Art)


Foto nº 15 > Guiné > Região de Quínara > Península de Gampará > CCAÇ 4142/72 (Ganjauará, 1972/74 >Uma ida, em grupo, a uma tabanca próxima


Foto nº 16 > Guiné > Região de Quínara > Península de Gampará > CCAÇ 4142/72 (Ganjauará, 1972/74 > "A nossa lavandaria": as tinhas eram feitas com pipas (de vinho) cortadas ao meio.


Foto nº 17 > Guiné > Região de Quínara > Península de Gampará > CCAÇ 4142/72 (Ganjauará, 1972/74 > Dois militares (um deles será o Joaquim Martins) junto a uma das instalações do quartel (inserido no reordenamento de Gampará), protegidas por bidões com terra calcada.



Foto nº 18 > Guiné > Região de Quínara > Península de Gampará > CCAÇ 4142/72 (Ganjauará, 1972/74 > Um posto de sentinela




Foto nº 19 > Guiné > Região de Quínara > Península de Gampará > CCAÇ 4142/72 (Ganjauará, 1972/74 >  "Memórias. Agosto de 74. Percorri pela última vez esta estrada com 3 km, que nos levava de Ganjauará até ao cais de abicagem de Ganquecuta no rio Geba, onde nos esperava uma LDM que levaria a CCAÇ 4142 para Bissau, com destino ao Cumeré. Para trás ficava uma permanência de 23 meses no 'buraco' onde tombaram três companheiros. Para eles, Paz ás suas Almas, e ara os que regressaram um Abraço".


Foto nº 20 > Guiné > Região de Quínara > Península de Gampará > CCAÇ 4142/72 (Ganjauará, 1972/74 > "Esta relíquia tem mais de 50 anos, fez parte do meu equipamento, agora está na prateleira dos recuerdos."


Foto nº 21 > Guiné > Região de Quínara > Península de Gampará > CCAÇ 4142/72 (Ganjauará, 1972/74 > Guoião dos "Herdeiros de Gampará".



Foto nº 22 > Guiné > Região de Quínara > Península de Gampará > CCAÇ 4142/72 (Ganjauará, 1972/74 > "A minha última foto como militar, em Agosto de 1974, aquando do regresso da Guiné, a bordo do Uíge. Dos elementos da CCAÇ 4142, da esquerda para a direita, eu sou o último, à minha direita o Salgueiro, o primeiro da esquerda é o Rocha. Grande Abraço para todos os ex-combatentes".



Foto nº 23 > Guiné > Região de Quínara > Península de Gampará > CCAÇ 4142/72 (Ganjauará, 1972/74 > "Momentos que não se esquecem. Fiz parte do 3º Pelotão da CCAÇ 4142, que esteve em Gampará em 72/74. No fim do Convívio que levamos a efeito em Odivelas, estava eu junto do parque de estacionamento para o regresso a casa, chegou junto a mim um dos dos elementos que na altura fazia parte do 1º Pelotão. Despediu-se com as lágrimas nos olhos e, dando um abraço, disse-me que ele e eu sabíamos que faltava ali alguém... De momento fiquei sem palavras, sim eu sabia a quem se queria referir, em fevereio de 74, ambos vivemos momentos dramáticos, ele perdera um dos seus comandantes e um amigo, meu amigo também. O Silva não estava fisicamente, mas estava e estará sempre nas presente nas nossas memórias. Faltava também o Soares que perdeu a vida na mesma altura. E o Garrincha. Paz às suas Almas. Forte Abraço para todos os companheiros da CCAÇ 4142 e também para todos os combatentes".



Foto nº 24 > Açores > Ponta Delgada > 2024 > "Ao leme da nossa Sagres"..."A Pátria Honrae Que a Pátria Vos Contempla".

Fotos (e legendas): © Joaquim Martins (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Segunda (e última) parte de uma seleção de fotos do álbum do  Joaquim Martins:

(i) membro da nossa Tabanca Grande, desde 5 de junho de 2015;

(ii) foi fur mil at inf, CCAÇ 4142/72, "Herdeiros de Gampará", Ganjauará, 1972/74;

(iii)  tem 74 anos, nasceu em Gondomar, em 19 de maio de 1950; 

(iv) vive em Ermesinde (até em 2017, em Águas Santas, Maia); 

(v) trabalhou no Gabinete de Planeamento da Sociedade de Transportes Colectivos do Porto (STCP); está reformado.

A CCAÇ 4142/72  partiu para o CTIG em 16set72.  Fez a IAO no Cumeré. Um mês depois, a 18out 72, foi colocada em Gampará, rendendo a CART 3417, os "Magalas de Gampará".Regressou em agosto de 1974. Teve 3 baixas mortais.

Camaradas da CCAÇ 4142/72 que integram o nosso blogue (entre parênteses, o seu atual local de residência):


(Seleção, numeração, legendagem e edição de fotos,  revisão / fixação de texto: LG) 
(Com a devida vénia...)
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Nota do editor:

(*) Poste anterior da série > 2 de julho de 2024 > Guiné 61/74 - P25707: Facebook...ando (59): Joaquim Martins, nosso grão-tabanqueiro desde 2015, ex-fur mil at inf, CCAÇ 4142/72, "Herdeiros de Gampará (Ganjauará, 1972/74) - Parte I

segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24719: Notas de leitura (1621): "Tertúlias da Guerra Colonial"; edição da Associação dos Pupilos do Exército, 2021 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Janeiro de 2022:

Queridos amigos,
Fica aqui um histórico dado por um elemento da Marinha acerca do Destacamento de Fuzileiros Especiais 8 entre 1971 e 1973, um caso de Marinha no mato, pois estavam instalados num aquartelamento em Ganturé, com missões de patrulhamento no rio Cacheu, seguiram para Gampará, aí em instalações muito precárias, atividade operacional intensa e alimentação mais deficiente, conheceram o castigo, percorreram o rio Corubal e caminharam até Buba, voltaram para Ganturé, a comissão terminou em abril de 1973, assistiram ainda a intensidade da vida operacional do PAIGC e à chegada dos mísseis. Foi esta intervenção e a de Carlos de Matos Gomes que respigámos num conjunto de tertúlias promovidas pela Associação dos Pupilos do Exército.

Um abraço do
Mário.



O modo dos portugueses fazerem a guerra no mato (2)

Mário Beja Santos

Tertúlias da Guerra Colonial é uma edição da Associação dos Pupilos do Exército, 2021, o presidente da associação convidou um conjunto de oficiais das Forças Armadas que ao longo de quatro sessões, sempre através da plataforma Zoom, analisaram as quatro dimensões tidas como mais interessantes para as tertúlias: antecedentes políticos e fundamentos; combater no mato; efeitos colaterais e sentimentos coloniais; do 25 de Abril à descolonização. Estas quatro sessões realizaram-se em outubro e novembro de 2020. É da temática “combater no mato” que vamos aqui resumir as comunicações de Carlos de Matos Gomes sobre a quadrícula do Exército e a Marinha na guerra no mato da Guiné por Alcindo Ferreira da Silva. No número anterior procedeu-se a recensão da comunicação de Carlos Matos Gomes, vejamos agora aspetos principais da intervenção de Alcindo Ferreira da Silva. Começa por nos dizer que no início dos anos 1970 a Marinha tinha na Guiné três Destacamentos de Fuzileiros Especiais de origem metropolitana e dois Destacamentos de Fuzileiros Especiais Africanos. Ele chegara a Bissau em princípios de junho de 1971. Seguiu para o mato, primeiro para Ganturé, situado na margem norte do rio Cacheu, junto de um antigo armazém da CUF, 9 casamatas-abrigos dispostos em círculo, e descreve o ambiente. No rio havia uma ponte cais onde atracavam com frequência a lancha de fiscalização grande que estava em missão na área e as lanchas de desembarque média que patrulhavam o rio. Da ponte cais partia uma picada que atravessava a base e se dirigia em linha quase reta até Bigene, onde estavam outras unidades militares. A missão principal do destacamento consistia em efetuar a interdição da passagem de pessoal e material do Senegal para o interior do território da Guiné através do corredor de Sambuiá, para além de efetuar operações na margem sul com o objetivo de desarticular o dispositivo do PAIGC.

Dois botes com três fuzileiros cada, armados com uma metralhadora e bazucas e outros elementos armados com armas ligeiras fiscalizavam o tarrafo à procura de indícios da presença do inimigo. Por vezes os botes eram emboscados na entrada ou passagem de uma clareira ou deparavam com uma canoa ou bote de borracha atravessar o rio. Uma ou duas vezes por semana, o destacamento realizava uma operação na margem norte do rio Cacheu para tentar intercetar alguma coluna de reabastecimento do PAIGC. Quando as operações se realizavam na margem sul tinham como objetivo assaltar acampamentos, eram recontros normalmente breves.

Ao fim de uns meses, o destacamento saiu de Ganturé e foi enviado para Gampará onde decorria, desde há cerca de dois meses uma operação de reocupação do território e ali se preparava a construção de reordenamento. Ali se encontraram com o Destacamento de Fuzileiros Especiais 21 de fuzileiros africanos e uma companhia do Exército. O acantonamento era constituído por um quadrado desenhado por covas de lobo, cobertas por ramagem, à sua volta construíram-se mesas e bancos, enfim uma vida muitíssima rudimentar. Nas redondezas do acantonamento encontravam-se alguns grupos dispersos de população que tinha sido desalojada das suas tabancas quando estas foram destruídas no início da ocupação. As restantes populações e os guerrilheiros do PAIGC tinham retirado alguns quilómetros para a margem sul do rio Pedra Agulha, junto de Ganquelé. Foi intensa a atividade operacional, nas atividades de proteção, patrulhando a região afim de contrariar a penetração dos guerrilheiros para norte do rio Pedra Agulha. Operações que exigiam um esforço físico violento, em percurso em corta-mato, em zonas em que se respiravam impregnado de pó da terra e do capim queimado. Dois meses e meio que levaram a um pleno cansaço, foram depois rendidos por uma companhia de paraquedistas. Depois de uns dias de descanso em Bissau partiram para operação conjunta Pato Azul, na região do Quínara, em que participaram forças especiais. Após Gampará foram enviados para Cacheu, com a missão de patrulhar o rio e afluentes e de realizar semanalmente uma ou duas operações nas proximidades da Caboiana, um santuário do PAIGC. Com alguma regularidade, também efetuavam operações conjuntas. Ao fim de três meses, foram novamente enviados para Gampará, aqui houve um incidente entre um fuzileiro e um elemento do Exército, Spínola determinou que o destacamento, por castigo, realizasse uma operação, subiram em botes o rio Corubal e percorreram cerca de 40 quilómetros uma região controlada pelo PAIGC, até Buba.

Meses depois, seguiram novamente para Ganturé, aqui terminou a comissão em finais de abril de 1973. Foi em Ganturé que se começou a percecionar a intensificação da atividade da guerrilha, viveram os últimos dias em Ganturé com o aparecimento de dois mísseis. Esta foi a vida no mato do Destacamento de Fuzileiros Especiais 8. E concluiu assim a sua intervenção:
“O estar no mato significou, para todos os que por lá andaram, o possível e o próximo contato de fogo quando saiam para operações no mato ou no decorrer dos ataques ao aquartelamento nas suas horas de serviço ou descanso e, por isso, a necessidade permanente de manter a disciplina e a segurança, a coesão e o espírito de unidade, o treino e as armas sempre prontas, mas o que marcava este decorrer dos dias era, sobretudo, a rotina, a espera de que qualquer coisa acontecesse, a contagem do tempo que não passava, o isolamento, a solidão mesmo que rodeado de camaradas, ausência de informação, a saudade e para muitos a participação numa guerra imposta, ou injusta, ou sem sentido”.


Render fuzileiros na Guiné, imagem da RTP, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 29 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24712: Notas de leitura (1620): "Tertúlias da Guerra Colonial"; edição da Associação dos Pupilos do Exército, 2021 (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24712: Notas de leitura (1620): "Tertúlias da Guerra Colonial"; edição da Associação dos Pupilos do Exército, 2021 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Janeiro de 2022:

Queridos amigos,
Do conjunto de intervenções que deram origem à publicação da responsabilidade da Associação dos Pupilos do Exército, optei por aquelas que são assinadas por Carlos de Matos Gomes e Alcindo Ferreira da Silva, a primeira sem a ver com as observações sobre a quadrícula, a presença da Companhia do mato, os seus méritos e deméritos, a lógica do Regime em fazer suprir as ausências da administração por um contingente militar a quem se multiplicavam as missões e as obrigações, acabando por implicar essa unidade, em zonas de média e alta intensidade bélica, a um recuo nos patrulhamentos e operações, delegando-se nas Forças Especiais, a realização de grandes atos ofensivos. E veremos seguidamente o testemunho de quem foi fuzileiro especial e combateu em pleno mato, em Ganturé e Gampará.

Um abraço do
Mário



O modo dos portugueses fazerem a guerra no mato (1)

Mário Beja Santos

Tertúlias da Guerra Colonial é uma edição da Associação dos Pupilos do Exército, 2021, o presidente da associação convidou um conjunto de oficiais das Forças Armadas que ao longo de quatro sessões, sempre através da plataforma Zoom, analisaram as quatro dimensões tidas como mais interessantes para as tertúlias: Antecedentes políticos e fundamentos; Combater no mato; Efeitos colaterais e entimentos coloniais; Do 25 de Abril à descolonização. Estas quatro sessões realizaram-se em outubro e novembro de 2020. É da temática combater no mato que vamos aqui resumir as comunicações de Carlos de Matos Gomes sobre a quadrícula do Exército e a Marinha na guerra no mato da Guiné por Alcindo Ferreira da Silva.

Carlos de Matos Gomes observa que a quadrícula constituía a base do dispositivo militar português nesta guerra: malha de unidades, organicamente e hierarquizadas, cobrindo o território de acordo com a intensidade da atividade dos guerrilheiros, da densidade populacional, da importância económica ou tática.

 Lembra também que desde 1959 existiam estudos no Ministério do Exército para a criação de um novo tipo de unidades e de novas táticas para fazer face à evolução da situação em África. Esta quadrícula foi o dispositivo territorial exclusivo do Exército, gozou de várias designações: Regiões Militares, Comando Territorial, Zonas de Intervenção Operacionais (estas comandadas por oficiais generais e coronéis, delas dependiam os setores que por sua vez integravam batalhões e na base da quadrícula situava-se a Companhia).

A opção por este dispositivo respondia a uma dupla necessidade: a de reconquistar e manter os locais onde haviam ocorrido ações violentas de sublevação; e a de instalar órgãos de soberania e de administração até aí inexistentes.

 Era a dupla necessidade de ocupar militar e administrativamente parcelas do território onde, até ao início das ações violentas não havia presença de órgãos do Estado, nem de administração, nem serviços públicos. O autor recorda que em 1961, no norte de Angola, não existia um só quilómetro de estrada alcatroada, não existia uma rede de telecomunicações com o mínimo de eficácia e não existia uma só unidade militar. Pode mesmo tomar-se os acontecimentos da Baixa do Cassanje, janeiro de 1961, prelúdio da violentíssima sublevação dos Dembos, como prova de ausência do Estado, não assegurando as funções elementares de garantia da justiça e segurança das populações. “Não foi por acaso que as ações violentas da guerra ocorreram em zonas onde a administração do Estado estava pouco presente, ou era quase inexistente, como acontecia no norte de Angola e no norte de Moçambique”.

A Companhia de quadrícula tinha demasiado tarefas, sobre ela recaía: administrar pessoal e equipamento, incluindo a defesa e o abastecimento da tropa; órgão de soberania e de administração do território, por ausência de outro, providenciando serviços mínimos de saúde, de educação e até de justiça, agindo segundo as normas da ação psicológica; e, acima de tudo, realizar operações militares, nomadizar, fazer patrulhamentos ofensivos. “Desde cedo foi percebido pelos comandantes dos teatros de operações que só era possível cobrir todas estas tarefas em zonas de baixa intensidade operacional, onde não fosse provável a ocorrência de situações de envergadura por parte do inimigo. Onde o pelotão/grupo de combate não era suficiente, e em boa parte dos teatros de operações deixou de ser nos primeiros anos da guerra, a atividade operacional ficava circunscrita às imediações do aquartelamento e quase se reduzia às colunas logísticas de reabastecimento, era uma atividade que se limitava à presença e à ação psicológica”.

Esta implantação territorial na quadrícula de companhia, observa o autor, teve o mérito de aproximar os seus militares das populações africanas, a quem proporcionaram significativas melhorias das condições de vida, mas desviavam o Exército da função principal de combater, o que fez com que as ações militares de alguma envergadura tivessem de ser assumidas pelas forças de intervenção, maioritariamente constituídas pelas tropas especiais. E há os efeitos perversos: “A reduzida capacidade operacional das companhias da quadrícula provocou o aumento de efetivos de unidades de intervenção, quase sempre especiais, mais caras e mais difíceis de obter. A quadrícula de companhia tornou ainda o Exército, no seu todo, como uma força defensiva, fixa ao território, sem mobilidade, com as suas unidades vulneráveis, e exigiu um esforço excessivo e pouco remunerador para manter este dispositivo. No final da guerra, em especial na Guiné e em Moçambique, a quadrícula de companhias consumia-se em boa parte para manter uma ocupação ineficaz do território, os seus quartéis constituam alvos fixos e remuneradores para os guerrilheiros”.

O regime de Salazar viu nesta solução de administração militar uma série de vantagens: era barata, pois os recursos das Forças Armadas substituíam o que competia com uma administração civil; solução que também agradava os militares, pois era moralmente mais recompensador dedicarem-se a tarefas de apoio social do que à guerra. “Em Angola, onde os efetivos em 1960 eram de cerca de 70 mil homens, o general Fraser, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas sul-africanas, numa reunião com as autoridades portuguesas, calculava que um máximo de 30 mil homens seria suficiente, desde que empregues naquilo que as Forças Armadas poderiam fazer, combater o inimigo, e desde que existisse um bom governo civil”.

E há o chamado sentimento de dever, a razão por que se luta, que o autor assim resume: “Na guerra colonial, curiosamente de forma muito semelhante ao que aconteceu com a participação de Portugal na Grande Guerra, as tropas nunca souberam com clareza por que combatiam. As respostas que davam nos inquéritos referem o cumprimento de um dever (resignação); defender o que é nosso (a adoção de um discurso vazio, que era contrariado por parte dos militares quando reconheciam que a guerra aproveitava a uns poucos que com ela enriqueciam à custa do sacrifício dos soldados). Mas as tropas, também como na Grande Guerra, foram, no geral, mal instruídas, e o seu nível quer de motivação quer de instrução sofreu uma contínua degradação ao longo dos anos de guerra”. O autor explana ainda a opinião dos Aliados, a situação em Moçambique e conclui assim: “A guerra colonial era, por motivos históricos e de conjuntura nacional, uma guerra perdida à partida, no sentido em que a vitória seria manter no último quarto do século XX uma entidade política com uma pequena cabeça na Europa, espalhado por três continentes e pelos três oceanos do planeta. Mas a guerra travada no mato, nas florestas, nas chanas, nas bolanhas de Angola, de Moçambique e da Guiné sofreu dos condicionamentos gerais da participação de Portugal na Grande Guerra. O mato de África não foi um lugar de glória nem de boa memória”.

Vamos de seguida ver uma exposição sobre a Marinha na guerra no mato da Guiné.

(continua)
Alferes Marques Vieira, 1971. Imagem carregada por Kai Archer, com a devida vénia
Viagem num rio da Guiné. Imagem retirada de GUINÉ BISSAU - Memórias, com a devida vénia
Fuzileiros a caminho de uma operação na Guiné. Imagem retirada de fuzileiros especiais 12 - 1970 / 1971 - guiné, com a devida vénia
Parte do armamento apreendido na Operação - Cocha, na base do PAIGC zona de Cumbamory, pelo destacamento de Fuzileiros Especiais. Imagem retirada de fuzileiros especiais 12 - 1970 / 1971 - guiné, com a devida vénia


Fixação do texto e edição de imagens: Carlos Vinhal
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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24697: Notas de leitura (1619): "PAIGC A Face do Monopartidarismo na Guiné-Bissau", por Rui Jorge Semedo; Nimba edições, 2021 (Mário Beja Santos)

sábado, 8 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24459: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (3): Um tiro de misericórdia!

Contos com mural ao fundo (3)> Um tiro de misericórdia! 

por Luís Graça


1. Conheceste-o no Chez Toi, em Bissau. Ou melhor, reconheceste-o, de Tavira, do CISMI, do Centro de Instrução de Sargentos Milicianos. Haviam pertencido, ambos, à Companhia de Instrução comandada por uma figura impagável, um tenente gordinho, que, dizia-se, tinha-se coberto de “honra & glória” no Norte de Angola. Já esqueceste o seu nome, para bem da tua higiene mental.

Em Bissau, estavas hospedado naquela espelunca, de paredes de tabique, que à noite funcionava como boite. (Era assim que, na época, se chamavam, “en français, comme il faut!”, todas as espeluncas da noite, em Lisboa e,  onde se bebia uísque marado, "de Sacavém", e havia umas miúdas de minissaia e cueca vermelha, peludas,  que te faziam olhos remelosos, e cócegas no pescoço… Tinham unhas compridas, como os felinos, pintadas de um verniz vermelho horroroso. Faziam, pela vida, coitadas. E viviam nas periferias de Lisboa que cresciam então como cogumelos, em arredores como a linha de Sintra, começando na Reboleira.)

O raio da espelunca de Bissau tinha um drôle de nom, chique, sedutor, Chez Toi, “Em tua casa” … Convidativo ao voyeurismo: "entra, senta-te, pede o que quiseres, estás em tua casa, não importa que seja a 4 mil quilómetros de distância de Lisboa"… Era já uma antevisáo do bar de alterne...

Para os gajos do mato, desenfiados em Bissau, de tomates inchados e bolsos cheios de patacão, que não viam há meses um pedaço de chicha (leia-se: carne de fêmea, branca, “comestível", em linguagem de "cabra-macho"), o Chez Toi devia ter um especial encanto que tu nunca conseguiste saborear nem descortinar…

Enfim, trazia aos machos solitários, tugas, que vaguegavam por Bissau, como baratas tontas,  algumas vagas reminiscências das não menos quentes noites de Lisboa e Porto, que o resto era paisagem, no Portugal de então, tão maneirinho, tão chato, tão piegas, tão púdico, tão beato, tão triste, tão desolador, tão deprimente, tão… (Porra, já chega!)

Uma deusa chamada Sophia tinha, em 1962, descrito no seu  “Livro Sexto” (um livrinho de poemas de cento e poucas páginas),  esse país liliputiano, onde quem mandava era um velho abutre:

“O velho abutre é sábio e alisa as suas penas, / A podridão lhe agrada e os seus discursos / Têm o condão de tornar as almas mais pequenas.”

Já não sabes como lá foste parar, ao Chez Toi… Publicidade enganosa, decerto. Indicação do turismo local, ou de um algum "proxegeneta" da 5ª Rep (o café  Bento), enfim, não te recordas. Para o caso também não interessa. Andavas desenfiado, há uns dias, em Bissau, antecipando o gozo do início da licença de férias na Metrópole. Tu e outro gajo da tua companhia. Aguardavam o avião da TAP para Lisboa. Tinham vindo com alguma antecedência, de noite, no "barco turra", rio Geba abaixo, outra pequena grande aventura...

Sim, era assim que se dizia: o gozo da licença de férias!... Eram as primeiras férias pagas da tua vida, pagas pela Pátria, com o soldo do soldado… (Farias questão de dizer, mais tarde, já "paisano", que não tiveste problemas de consciência nem devolveste, à Pátria, o dinheiro, sujo, de “mercenário”, saudação a que tiveste direito à chegada, num dos primeiros grafitos que te lembras de ver, naquela época, num dos muros do quartel da Avenida de Berna, em Lisboa: “Não sejas otário, / muito menos mercenário; / isto vai mal, / diz não à guerra colonial”).

Otário, mercenário?!
... Confessaste depois que te sentiste mal. Insultado, mesmo com as tuas reservas em relação à puta da guerra em que estavas metido. Sentiste que era um insulto a quem, como tu e os teus soldados, não deram o salto para o estrangeiro de fora, e cumpriam em África, longe de casa, uma missão em nome da Pátria, a qual estava acima de todos os regimes... Santa ingenuidade, a tua!

Estava-se em plena época das chuvas, talvez julho de 1970, já não te recordas bem ao certo. A atmosfera em Bissau era asfixiante. E tu deixavas para trás um ano de intensa atividade operacional. Nessa noite foste dar uma volta ao bas fond, como estava na moda dizer-se. Intelectualóide que se prezasse, arranhava o francês de praia ou, pelo menos usava expressões, coloquiais em francês, como o vachement bête, ou emmerder, copain, copine… (Ecos serôdios e longínquos do Maio de 68 em Paris que tu nunca viverias. ) Mas o bas fond em Bissau era, para a tropa-macaca, o Pilão, com má fama e bom proveito.

2. Abra-se aqui um parênteses, para explicar que tu tinhas feito uma aposta, tu e o teu parceiro do Chez Toi, coisas de machos solitários, bravatas, que fazem parte dos ritos de passagem da rapaziada da época: ir "dormir uma noite ao Pilão", antes de embarcar no avião da TAP; o primeiro a “desemparar a loja" e a "cavar", pagava o almoço no restaurante Pelicano, no dia seguinte. Era um teste de resistência, de virilidade e de coragem física... Pobres diabos!...

Ficaram os dois numa espécie de "casa da mariquinhas” lá do sítio, de toscas tabuinhas e telhado de zinco, e cada um foi com a sua “bajuda", cabo-verdiana, os quartos lado a lado, e com a "saída de emergência" por ali perto, mentalmente assinalada, para o que desse e viesse... Trajavam à civil e andavam... desarmados.

Às duas da noite, tu levantaste-te, vestiste as calças, deixaste a nota de 100 pesos que havias combinado com a rapariga, em cima do caixote que servia de mesinha de cabeceira, e saíste...

A atmosfera era sufocante, o zinco transformava as casas em estufa quente, as paredes de tabique deixavam passar os ruídos, de fora e de dentro, e sobretudo não aguentaste o choro de uma criança que dormia debaixo da cama, ao lado do balde do mijo, e em quem tu nem sequer tinhas reparado quando entraste, à luz mortiça de uma vela... Era demais para o teu estofo!...

Bateste à porta do outro quarto onde estava o teu parceiro, três toques secos, com os nós dos dedos, como combinado, e, passada meia hora, regressavam os dois, ao Chez Toi, meio "almareados" (o termo era do teu companheiro de viagem, oriundo do baixo Alentejo, Ourique ou Odemira, já não te lembras ao certo) e bêbados de sono.

3. Logo por azar nessa noite alguém arrombara a porta do teu quarto no Chez Toi, forçara o cadeado da mala de cartão e fanara-te uma Dimple. Duas ou três garrafas de uísque, velho, Old Parr e Dimple, para oferecer a quem devias favores, lá na terra, eram toda a riqueza que tu levarias a bordo para a Metrópole, para além de algumas peças, baratas, de quinquilharia e artesanato, que ainda tencionavas comprar no Taufik Saad na véspera do embarque.

Foste de imediato falar com o gordo do gerente do Chez Toi, que estava a aviar copos ao balcão. A conversa tornou-se logo desagradável: sebento, empertigado na defesa da honra e do bom nome da casa, o gerente começou por pôr em dúvida a tua versão. Mas acabou por aceitar ir averiguar o sucedido, face aos veementes protestos, teus e do teu parceiro de aventuras...

As suspeitas recaíram logo num dos rapazes, ali do "chão de Papel", que fazia o serviço de quartos. Em Bissau, não havia criadas, só criados, como no resto da África colonial ou pós-colonial.

Gerou-se algum burburinho. Alguns clientes, à civil, mais exaltados, de copo de uísque ou gin tónico na mão, juntaram-se a ti e ao teu solidário parceiro do Pilão.

O clima, no barzeco, que tinha música ao vivo, começou a ficar propício à pancadaria e até ao linchamento, depois dos teus protestos perante o gerente, por causa do arrombamento da tua mala de cartão. É a famosa lei de Gresham do conflito, a bola de neve que amplifica o conflito e faz perder de vista o pomo da discórdia e os protagonistas iniciais. Toda a gente, afinal, se sentiu lesada...

Tu e o sabujo do gerente já tinham chegado a um arremedo de acordo de cavalheiros, e o ladrãozeco de uísque, que andava a servir às mesas, suava por todos os poros, ao ver que não tinha nenhum álibi (nem porta, a não a ser a principal, para fugir). Foi quando alguém mandou um copo ao chão e berrou, alto e bom som, um chorrilho de insultos de teor racista:

– Filhos da puta de nharros, cambada de barrotes queimados, turras de um cabrão!... A culpa é do Caco Baldé, que obriga aqui um gajo a foder o coirão no mato para lhes proteger as costas em Bissau!...

O garnisé que cantava de galo àquela hora da noite era um gajo, branco, provavelmente militar, trajando à civil, de estatura meã, mais baixo do que tu, mas mais entroncado. Estava visivelmente eufórico, para não dizer embriagado. 
Tiveste então a infeliz ideia de o tentar acalmar, respondendo cilizadamente à sua provocação:

– Ó amigo, vai-me desculpar mas a conversa não é consigo, nem o assunto lhe diz respeito… Além disso, eu estou numa companhia de africanos, lá no mato, no leste, e não gosto de ouvir expressões como nharros ou barrotes queimados, porque são racistas, ofensivas para com os meus camaradas que arriscam todos os dias a vida…

O tipo não te deixou sequer completar a frase, saltou como uma onça, de garras afiadas, direitinhas à tua carótida… Foi a primeira (e única) cena de porrada, de luta corpo a corpo, em que tu te viste envolvido no teatro de operações da Guiné… De facto, nunca tinhas sentido o "inimigo" tão perto, olhos nos olhos… Foram os dois ao chão, mas os gajos do conjunto (caixa, guitarra elétrica e voz) continuaram a tocar, no meio da algazarra, o "All you need is love"...

Providencialmente foi nessa altura que “ele” apareceu, fardado... "Ele", o teu anjo da guarda... Com divisas de furriel, segurando o energúmeno com autoridade e classe, e salvando-te daquela situação de embaraço, apuro e aflição.

Escusado será dizer que o teu agressor também eram afinal,  militar e, ao que parece, estava em Bissau, de férias, ou em trânsito para o mato, noutra pensão rasca, ali ao lado. Os amigos, de ocasião, que o acompanhavam, tiveram o bom senso de o levar prontamente até ao cais apanhar o cacimbo da madrugada, antes que aparecesse a "ramona"… Quando te deste conta, eram já três ou quatro da madrugada…




Excerto do desdobrável publicitário do "Chez Toi", restaurante, pensão e "boite", sita na rua eng Sá Carneiro. Exemplar da coleção do nosso coeditor Carlos Vinhal. Data: Bissau, 15 de fevereiro de 1971. Parece que em 1973 também era conhecido por "Gato Negro"...

Foto (e legenda): © Carlos Vinhal (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



4. “Ele”, o teu salvador, que por sinal também estava hospedado no Chez Toi, era nem mais nem menos do que "o teu conhecido de Tavira", com quem de resto tu ainda tinhas umas velhas contas por saldar…

Resumidamente, aqui a vai a tua versão dessa história que te estava atravessada e que remontava ao quarto trimestre de 1968, em Tavira.

Numa das sessões de treino de boxe, que fazia parte da instrução da malta, levaste dele uns socos valentes nos queixos. Tu tinhas adotado uma atitude claramente passiva de quem não estava disposto "nem a aleijar nem a ser aleijado"… Esperavas, com a tua ingenuidade e boa-fé, que o teu parceiro, com mais cabedal do que tu, 10 ou 12 cm mais alto do que tu, entrasse no jogo do faz-de-conta… Como muitos dos instruendos do CISMI faziam, de acordo com um "tácito código de honra" mais ou menos assumido, se não por todos, por muitos, para quem Tavira era apenas mais uma estaçáo do calvário...

Ele assim não o entendeu (ou não quis). Pelo contrário, assumiu logo de início uma postura viril, de combate. Sabia que estava a ser observado pelo instrutor e que aquilo era um teste de agressividade. E que pontuava. Estava sobretudo  obcecado com a ideia de vir a poder ser um dos três melhores do curso, e assim, eventualmente, livrar-se de ir parar ao Ultramar, gorada a hipótese de ter ido para a Polícia Militar, como era o seu sonho…

Ficaste-lhe com um pó dos diabos!... Ainda hoje te doem os queixos da “porrada” que apanhaste, segundo confidenciaste mais tarde… Não tinhas, pois, grandes razões para te lembrar dele como um dos bons camaradas de tropa, bem pelo contrário!... Acabaste por perdê-lo de vista, até ao dia em que o Niassa levou as vossas duas companhias para a Guiné. Trocaram um olá, meio embaraçados ou "encavacados", já o navio tinha passado as Canárias.

– O que lá vai, lá vai. Boa sorte! – foram as únicas palavras de despedida que vocês disseram um ao outro, nos Adidos, em Bissau, depois de relembrarem o episódio de Tavira.

– Sem ressentimentos! E agora, que Deus e os santos te protejam!– terás gracejado tu.

5. Voltaste a reencontrá-lo, por um bambúrrio, nessa noite, no Chez Toi. Afinal, iam ambos de férias. Ficaram com os contactos um do outro. Ele ia para Bragança, sua terra natal. E foi aí que o procuraste, quase cinquenta anos depois, na sequência de uma estadia em Montesinho onde tu passaras uns dias, em turismo. 

Eis o teor, resumido, da sua longa conversa, de um homem que esperavas encontrar precocemente envelhecido, como alguns dos antigos combatentes que tu conhecias, uns já viúvos, solitários e amargurados, a lidar mal com a reforma, as doenças da idade e os fantasma do passado. Mas, não, o Carvalho (era o seu apelido) tinha ganho um novo fôlego, uma "alma nova",  entregando-se agora às delícias da natureza (fazia visitas guiadas no Parque Natural de Montesinho).

(...) “Talvez não acredites, mas já devo ter começado uma boa meia dúzia de diários da Guiné. Lá, e depois ainda cá, nos primeiros anos… Havia coisas que queria esquecer mas não conseguia, aliás ainda não consigo…

“Sem surpresa, vejo agora que afinal alguns gajos também tinha o seu… diário secreto. Num dos últimos almoços da nossa companhia, lá em baixo, no Sul, tínhamos combinado levar fotos e papéis da Guiné e houve vários camaradas que trouxeram os seus apontamentos, alguns escritos em aerogramas, outros em agendas de merceeiro, outros ainda em simples cadernos com linhas… No meu caso, eram simples notas,  esboços, rabiscos, até recortes de jornal e revista e alguns desenhos. Tinha a mania de ilustrar algumas situações, emboscadas, ataques e flagelações, operações, cenas da vida quotidiana das tabancas por onde andei… Uma forma, afinal, de passar o tempo e de fazer o gosto ao dedo. (Acho que tinha algum talento para a ilustração, que acabei por não desenvolver, depois da "peluda".)

“Muitas dessas notas são hoje ilegíveis ou quase. Acreditas que já não sou capaz de decifrá-las? Como a minha letra mudou, camarada, como o mundo mudou! E sobretudo, eu próprio, como e quanto eu mudei!...

“Sobretudo agora que estou reformado e tenho todo o tempo do mundo (ou penso que tenho, enquanto não me der nenhuma macacoa), tive a veleidade de retomar os meus papéis. Mas a escrita é algo de muito penoso. E eu, afinal, prefiro dar os meus passeios pela serra.

“Tentei voltar à escrita, mas a mão está perra. Escrevo pouco e sempre à mão. Não, não uso computador. Podes pensar o que quiseres, chamar-me analfabeto, infoexcluído ou outros mimos. Não acreditas, mas não tenho mail. Toda a gente tem pelo menos um, quando não dois ou três … Mas isso não me impressiona nem me intimida. A única concessão que faço é o telemóvel. Não por mim, mas por terceiros, pelos meus filhos e netos, pelos amigos, pela malta do grupo dos amigos de Montesinh0

"Mas antes que me perguntes porquê, eu adianto-te algumas explicações. Em primeiro lugar, odeio ecrãs de visualização. Foram muitos anos na banca, no 'front office'. Foram muitos anos de trabalho na banca. Escravizado. Robotizado. Por agências de província, até me fixar na minha terra natal (sou daqui perto de Bragança, da mesma aldeia da nossa amiga comum que que te deu o meu número de telemóvel. no posto de turismo).

 Enfim, uma vida a aturar os caprichos de gente mal educada, sem valores, deslumbrada com os sinais exteriores de riqueza que os fundos comunitários e outro dinheiro fácil, de especulação, corrupção e negociatas, trouxeram a este desgraçado país. E os cabrões dos chefes das agências a dar-te cabo da mona, a obrigar-te a impingir ao cliente tudo e mais alguma coisa, desde fundos de pensões, seguros de saúde, boas e más acções, quinquilharia da Vista Alegre, títulos da dívida pública, cartões de crédito, papéis, papéis e mais papéis…

"É uma fobia, uma alergia, não imaginas! Dá-me urticária só de tocar num teclado de computador. Não tenho, aliás, computador em casa. Quando preciso, o que é raro, cada vez mais raro, vou à Biblioteca Municipal. Voltei a Bragança, sim, bom filho à casa torna. A minha mulher é professora primária e reformou-se primeiro do que eu... 

"A província tem coisas boas e coisas más, como tudo na vida. Mas eu não suportaria viver numa grande cidade como Lisboa ou Porto. Lisboa, por exemplo, deprime-me. Lá sinto-me como um lobo solitário, encurralado, apanhado pelo Fojo do Lobo.

"Pois é, voltei à folha de papel A4, e ao caderno de linhas, como na 4.ª classe. Escrevo num bloco notas, de argolas. Desses baratuchos. Adoro arrancar, com vigor, as folhas do meu caderno de argolas quando me engano ou me arrependo do que escrevi. Adoro amarrotá-las, fazer uma bola e lançá-la para o cesto dos papéis. Sou um frustradíssimo jogador de básquete, tal como fui um não menos candidato falhado a Polícia Militar. Ser PM era o meu sonho, não sei se te lembras. Mas não cresci para lá dos meus 1,84 metros. A partir dos 15 ou 16 anos, estagnei.


"Ainda tenho a minha velha máquina de escrever. Ou melhor, dactilografar. Era assim que se dizia no meu tempo. Ainda trabalhei, antes da tropa, com um conhecido advogado aqui da praça que, depois do 25 de abril, haveria de chegar a deputado por um dos partidos do arco do poder. Eu fazia a biscatagem de aprendiz de solicitador. Bati muitos requerimentos em papel selado…

“Ainda te lembras do papel selado?!... Quando o chico do sorja da minha companhia queria lixar alguém (só se metia com os desgraçados dos cabos e dos soldados ou dos milícias), ameaçava com um 'Vou-te embrulhar em papel selado!'…


“Mas agora acabou. A minha velha máquina de datilografia está arrumada a um canto.  Foi das primeiras máquinas portuguesas, a aparecer no mercado,  com teclado HCESAR. Não me perguntes a marca... Messa, dizes tu?...Ah, sim, seria uma Messa... De qualquer modo, o problema é que não encontro fita para ela, a fita preta e vermelha.

"Ainda tive a veleidade, a pretensão ou, melhor, a ingenuidade, de tentar escrever um livro com as minhas memórias da Guiné, os meus quase dois anos de vida na Guiné… Não me perguntes porquê, não te saberia responder. É um problema cá comigo, um certo ajuste de contas com o passado. Um certo passado de um certo jovem que passou demasiado depressa para a idade adulta.


“Tenho hoje a sensação de que nos roubaram a juventude. Não sei se se passa o mesmo contigo… Ajuste de contas comigo, com o meu fado. Não, não é nada contra ninguém. Não sou daqueles que invetiva os outros, um mal tão tipicamente português. Os outros não sei quem são, não ando à procura de álibis, desculpas, pretextos ou bodes expiatórios. O outro sou eu, ponto final parágrafo.

"Nasci em 1947  
  como tu, suponho, somos da mesma colheita, não?! – muito longe do mar que aliás eu só vi quando fui para a tropa, não tenho vergonha de dizê-lo… A mobilidade era reduzida, o carro era um luxo. Um país governado por um velho celibatário e a sua criada. Ah!, e o Cerejeira!... Lembras-te do Cerejeira, o cardeal-patriarca de Lisboa ?... Foi o tempo e o lugar que me calharam na rifa, foi o meu fado. Não fiques à espera que eu me lamente, chore baba e ranho, ou que arranque os cabelos. Sou o que sou, ponto final.

"Não, não sinto raiva, desejo de vingança, vergonha, culpa, nada disso em que possas estar a pensar. Porque haveria eu de sentir culpa? Não matei, não torturei, não violei, não roubei, não desejei a mulher do próximo (se desejei alguma, era a mulher mais nova do régulo, que tinha muitas)… 

"Enfim, julgo ter cumprido os 10 mandamentos da lei de Deus que me ensinaram os meus pais, e em que fui educado na catequese e no seminário. Tive uma educação cristã, como toda a gente na minha terra. Fui igual a centenas de milhares de jovens da minha, da nossa geração. Nem cobardes nem heróis. Uma geração a que tenho orgulho de ter pertencido! (Podes apontar aí!).

“Matei, não matei?... Se matei, Deus já mo perdoou.. Há gente que pode não concordar comigo. Na realidade, matei, na guerra; não sei das balas que disparei; a matar, de certeza, foi apenas por razões humanitárias, ou em autodefesa... Matei, sim, conscientemente, para abreviar o sofrimento de um  homem ferido de morte. Explicar-te-ei isso melhor, mais à frente.

'Medo?', perguntas tu. Vamos lá ao medo... Sim, cheguei a ter medo, algumas vezes. Fora do arame farpado. Nunca dentro. Em colunas, em emboscadas, em operações no terreno do IN, em que estávamos mais expostos. O medo é próprio de qualquer animal e faz parte da maneira como avaliamos (e lidamos com) os riscos… Julgava-me bem preparado, física e mentalmente, para enfrentar o difícil teatro de operações da Guiné. Perdi cedo as ilusões!...


"Se bem te lembras,  fui logo de início parar à Região de Quínara e a pior humilhação que tive,  foi uma desidratação que sofri, num patrulhamento ofensivo, na margem esquerda do Rio Corubal, não longe já da foz… Ainda era 'periquito' e não soube gerir o esforço e sobretudo os dois cantis de água que nos eram distribuídos… Fui helievacuado para vergonha minha e gáudio de alguns sacanas da companhia, 'meias-lecas', filhos da mãe...

"Mas depressa recuperei a minha autoridade dentro do grupo. E a primeira situação foi quando, lá para os lados de Gampará, apanhámos um pequeno grupo do PAIGC, a caminhar na nossa direcção, na orla da bolanha. Estavam em contraluz, não nos viram... Uma bazucada deixou o gajo da frente sem pernas, à beira da morte… Os nossos maqueiros fizeram o que puderam, mas a vida daquele homem, um corpulento balanta (ou biafada, não te sei dizer ao certo),  mais ou menos da minha estatura, estava por um fio… 

"Chamar um heli, nem pensar, foi a palavra do capitão, miliciano, que estava à beira de um ataque de nervos, e deu ordens para uma rápida retirada do local… E o 'turra' ali a agonizar num pavoroso sofrimento… O capitão pediu um voluntário para lhe dar o tiro de misericórdia… Ninguém se ofereceu, nem sequer o sacana do alferes 'ranger', comandante do meu pelotão.

"Silêncio sepulcral. Na mata até os bichos se tinham calado. A cigarra, a gralha, o macaco-cão calaram-se face ao espectáculo de violência dado pelos seres humanos. A malta do meu pelotão, o 1.º pelotão, olhava, constrangida, ora para o capitão, ora para o alferes e para mim, à espera de um sinal, um gesto, uma ordem. 

"Ainda 'periquitos' com dois ou três meses de Guiné, nenhum de nós estava preparado para decidir o que fazer num caso destes. O dilema era abandonar o prisioneiro moribundo ou abreviar-lhe o sofrimento. Nunca ninguém tinha dado um tiro de misericórdia. Lembro-me apenas de ter andado a brincar com a baioneta da mauser a espetar sacos de areia, em Santa Margarida.

"Eu próprio ponderei as várias hipóteses: o capitão, antigo seminarista como eu, era uma pessoa com princípios cristãos, dificilmente aceitaria deixar um homem, mesmo inimigo, a agonizar no mato, entregue aos 'jagudis' e às formigas carnívoras; àquela hora da manhã, o comando do batalhão estava incontactável e o PCV, a DO 27, com o sacana do major de operações do batalhão de Tite, nem sequer ainda estava no ar; um tiro denunciaria ainda mais a nossa posição; restava a catana do guia (que não era de grande confiança) ou a nossa faca de mato... Acabar por sangrar o desgraçado como o porco da minha aldeia era uma ideia que me repugnava...

"Nos olhos do 'turra' pareceu-me ler uma última súplica: 'Depressa, 'tuga', dá-me o tiro de misericórdia... E que o teu deus te pague!'

"Fui tocado, acredita, por aquele olhar de humanidade! Não, não era um animal ferido que estava ali à minha frente, o porco do mato que eu abatera e sangrara de imediato, havia dois meses atrás, numa caçada noturna. (Como transmontano, nado e criado no planalto, eu era caçador, não direi exímio, mas era bom caçador.)

"Não, não era um porco, era um homem que estava ali a morrer, igual a mim, exceto na cor da pele, na Kalash que empunhava, na farda verde-oliva, esfarrapada, que vestia, nas sandálias de plástico que calçava, na bandeira por que lutava... Trazia amuletos no peito e nos braços, tal como eu que usava um fio de ouro com o crucifixo. Não sentia qualquer ódio por aquele homem, até há pouco meu inimigo, e que certamente me mataria, se eu fosse a presa e ele o predador. Deitado no chão, de braços estendidos, sem pernas, as tripas de fora, o sexo esfacelado, gemendo baixinho, numa poça de sangue, só me podia inspirar horror, piedade e compaixão...


"E num ápice pus a G3 em posição de tiro a tiro, rodei o corpo dele com a minha bota de modo a ficar de bruços, encostei o cano da espingarda à nuca e disparei... Uma única bala, um som breve, abafado, pôs termo ao sofrimento brutal daquele homem, tão ou mais jovem do que eu... A sua cabeça estoirou, a massa encefálica misturou-se com a lama das minhas botas de lona… Nunca mais esquecerei aquela cena atroz. E nunca mais usei aquelas botas, conspurcadas!

"Seguimos a corta-mato, o Destacamento A, a caminho da LDM que nos esperava no tarrafo, no Rio Geba, para nos recolher... E até lá os nossos grupos de combate seguiram, em passo estugado, no 'gosse-gosse', mas em total silêncio. A minha companhia, que era independente, regressou a Bissau, para mais tarde ser colocada no Leste. 

"Durante semanas, os olhos vidrados do 'turra' não me saíram da mente. Ganhei a alcunha, sádica, injusta e repugnante, de 'Furriel Ca...rrasco'. (Como eu gaguejava um pouco, quando me enervava, chamavam-me inicialmente Car...valho, os meus camaradas milicianos). Até mesmo os homens da minha secção passaram a olhar-me de outra maneira, com um misto de admiração, de respeito e de terror...

"É uma estranha sensação. Nunca tinha morto um homem. Como sabes, naquela guerra raramente se via a cara do inimigo. Só vias o rosto dos prisioneiros ou de um ou outro guerrilheiro abatido junto ao arame farpado... No mato eles tinham quase sempre tempo de arrastar ou de ocultar os cadáveres... Era por isso que a malta fantasiava com os números das baixas causadas ao inimigo em combate.

“Só mais tarde, muito mais tarde, li o conto do Miguel Torga, 'O Alma Grande', o gajo de manápulas compridas que era chamado, na aldeia, para apressar a morte dos moribundos. Chama-lhe eutanásia, se quiseres. Neste caso, ele usava o travesseiro para sufocar o moribundo. Tudo isto a pedido da família, que devia ser cristã-nova, e que queria evitar com isso que viesse o abade com os últimos sacramentos, a extrema unção…

"Em todo o caso, sempre estive e continuo a estar bem comigo. Não fui, não sou, nenhum assassino, ajudei apenas a humanizar a morte de um semelhante... Tornei-me imprescindível na companhia: o capitão voltou a solicitar os meus serviços mais uma vez ou duas vezes. Numa ocasião, recusei-me, obrigando-o a mandar evacuar, para o Hospital Militar de Bissau, um roqueteiro do PAIGC que aprisionámos, com ferimentos graves... Soube mais tarde que tinha sobrevivido, e que se integrara na vida civil, regressando à sua terra natal, ao abrigo da política do Spínola. E isso deu-me algum consolo. Noutra ocasião, o capitão que achava que eu daria também um bom torcionário, e poderia  pôr a 'cantar' um  gajo suspeito da população...  Recusei-me, indignado, o suspeito, um mandinga,  foi entregue à PIDE de Bafatá.

"Não, nunca usaria a faca de mato, se é isso que queres saber. Daquela vez (e única, juro) preferi o tiro na nuca... Fiquei com má fama, dentro e fora da companhia. E, no fim, nem uma merda de um louvor me deram, a começar pelo safado do capitáo, que depois meteu o chico...

"Estou-te a falar disto, pela primeira vez, a ti que eu considero um verdadeiro camarada da Guiné, um camarada que eu conheci de Tavira, e a quem eu peço perdão pelo 'uppercut' que te ia pondo KO... Mas instrução era instrução, era guerra a brincar, era reinação... Na Guiné, era guerra, guerra a sério, e guerra era guerra... E se calhar até me estás hoje agradecido pelos reflexos que tiveste de desenvolver para te saberes defender melhor... Em resumo, sei que hoje és capaz de me compreender sem me julgar nem condenar. Confio em ti. E acho que estamos quites,  pensando no apuro de que eu te livrei em Bissau, no tal Chez Toi... (já não me lembrava do nome).

"Nunca falei nem falarei disto aos meus filhos, nem sequer à minha mulher. Um deles até é juiz, ainda pior. Eles nunca entenderiam, e provavelmente eu até correria o risco de perder a sua estima... Como não invoco nem comento estes episódios, cruéis, da nossa guerra, nos convívios anuais da minha companhia... Há um pacto de silêncio em relação âs merdas que cada um fez... Hoje tratam-me pelo meu apelido Carvalho (sem gaguejar nem gracejar), não sou mais o 'Furriel Ca...rrasco', que era uma coisa que me irritava solenemente. Pode ser que o façam nas minhas costas, não tenho a certeza, mas espero bem que não.


(...) "Como te disse, deu-me alguma tranquilidade ler, muitos anos depois, essa obra-prima do Miguel Torga, transmontano como eu, o 'Alma Grande',  da colectânea 'Novos Contos da Montanha', se não me engano... 

"De alguma maneira eu fui também essa portentosa figura do 'abafador', a que na aldeia se recorria para apressar a morte dos entes queridos em agonia... Numa época em que não havia médicos nem cuidados de nenhuma sorte, muito menos paliativos ou terminais... E em que só se chamava o médico, como ainda acontecia na minha aldeia, no tempo dos meus avós e dos meus pais... para passar o atestado de óbito!”...

6. Despediram-se com um grande abraço apertado, com a promessa de tu voltares, em setembro, a seu concelho, para ele te levar a  ver e a ouvir a brama dos veados no Parque Natural de Montesinho... 

Ele por lá ficou, em Bragança, a fazer aquilo que lhe dava gozo, que era ser guia da natureza e levar grupos a descobrir a sua região... Tu voltaste ao Porto, não sem ficares por um bom par de horas, ao longo da autoestrada, a A4, com um nó na garganta não menos apertado que o teu abraço...

© Luís Graça (2019). | Última revisão: 7/7/2023
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Nota do editor:

sexta-feira, 7 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24457: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXXI: Na ocupação da península de Gampará, com a farda do PAIGC, a G3 e um maço de cigarros "Português Suave"... (pp. 207-211)


Guiné > Brá >  c. 1965/66 > Mulheres a trabalho na bolanha. (Foto do álbum de Virgínio Briote, 2005) (Foto reproduzida na pág. 208, do livro do Amadu Dajló)


Guiné > Brá > c. 1973 > Batalhão de Comando dos da Guiné > Tenente graduado 'cmd' Zacarias Saiegh, à direita do Major 'cmd' Raul Folques Foto reproduzida na pág. 210, do livro)



Capa do livro do Amadu Bailo Djaló,
"Guineense, Comando, Português: I Volume:
Comandos Africanos, 1964 - 1974",
Lisboa, Associação de Comandos,
2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.



O autor, em Bafatá, sua terra natal,
por volta de meados de 1966.
(Foto reproduzida no livro, na pág. 149)


Síntese das partes anteriores:

(i) o autor, nascido em Bafatá, de pais oriundos da Guiné Conacri, começou a recruta, como voluntário, em 4 de janeiro de 1962, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;

(ii) esteve depois no CICA/BAC, em Bissau, onde tirou a especialidade de soldado condutor autorrodas;

(iii) passou por Bedanda, 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), e depois Farim, 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), como sold cond auto;

(iv) regressou entretanto à CCS/QG, e alistou-se no Gr Cmds "Os Fantasmas", comandado pelo alf mil 'cmd' Maurício Saraiva, de outubro de 1964 a maio de 1965;

(v) em junho de 1965, fez a escola de cabos em Bissau, foi promovido a 1º cabo condutor, em 2 de janeiro de 1966;

(vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo 'cmd' Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amesterdão);

(vii) depois da última saída do Grupo, Op Virgínia, 24/25 de abril de 1966, na fronteira do Senegal, Amadu foi transferido, a seu pedido, por razões familitares, para Bafatá, sua terra natal, para o BCAV 757;

(viii) ficou em Bafatá até final de 1969, altura em que foi selecionado para integrar a 1ª CCmds Africanos, que será comandada pelo seu amigo João Bacar Djaló (Cacine, Catió, 1929 - Tite, 1971)

(ix) depois da formação da companhia (que terminou em meados de 1970), o Amadu Djaló, com 30 anos, integra uma das unidades de elite do CTIG; a 1ª CCmds Africanos, em julho, vai para a região de Gabu, Bajocunda e Pirada, fazendo incursões no Senegal e em setembro anda por Paunca: aqui ouve as previsões agoirentas de um adivinho;

(x) em finais de outubro de 1970, começam os preparativos da invasão anfíbia de Conacri (Op Mar Verde, 22 de novembro de 1970), na qual ele participaçou, com toda 1ª CCmds, sob o comando do cap graduado comando João Bacar Jaló (pp. 168-183);

(xi) a narrativa é retomada depois do regresso de Conacri, por pouco tempo, a Fá Mandinga, em dezembro de 1970; a companhia é destacada para Cacine [3 pelotões para reforço temporário das guarnições de Gandembel e Guileje, entre dez 1970 e jan 1971]; Amadu Djaló estava de licença de casamento (15 dias), para logo a seguir ser ferido em Jababá Biafada, sector de Tite, em fevereiro de 1971;

(xii) supersticioso, ouve a "profecia" de um velho adivinho que tem "um recado de Deus (...) para dar ao capitão João Bacar Jaló"; este sonha com a sua própria morte, que vai ocorrer no sector de Tite, perto da tabanca de Jufá, em 16 de abril de 1971 (versão contada ao autor pelo soldado 'comando' Abdulai Djaló Cula, texto em itálico no livro, pp.192-195) ,

(xiii) é entretanto transferido para a 2ª CCmds Africanos, agora em formação; 1ª fase de instrução, em Fá Mandinga , sector L1, de 24 de abril a fins de julho de 1971.

(xiv) o final da instrução realizou.se no subsector do Xitole, regulado do Corunal, cim uma incursão ao mítico Galo Corubal.

(xv) com a 2ª CCmds, comandada por Zacarias Saiegh, participa, em outubro e novembro de 1971, participa em duas acções, uma na zona de Bissum Naga e outra na área de Farim;

(xvi) em novembro de 1971, participa na ocupação da península de Gampará (Op  Satélite Dourado, de 11 a 15, e Pérola Amarela, de 24 a 28).


1. Continuação da publicação das memórias do Amadu Djaló (Bafatá, 1940-Lisboa, 2015), a partir do manuscrito, digital, do seu livro "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada) (*).

O nosso  camarada e amigo Virgínio Briote, o editor literário ou "copydesk" desta obra,  facultou-nos uma cópia digital. O Amadu Djaló, membro da Tabanca Grande, desde 2010, tem cerca de nove dezenas de referências no nosso blogue.


Guiné > Região de Quínara > Carta de Fulacunda (1955) (Escala: 1/50 mil) : Posição relativa de Gampará, rios Geba e Corubal, tabancas de Braia e Cubajal, bem como Uaná Porto.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)


Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano:

Parte XXXI:  Na ocupação da península de Gampará, com a farda do PAIGC, a G3 e um maço de cigarros "Portuguès Suave"... 
(pp. 207-211)

Na segunda quinzena de novembro[1] fomos para Quinara, na altura em que estava a decorrer a ocupação da península de Gampará. Armados com o nosso material, G-3 e respectivos equipamentos e fardados com roupa idêntica à do PAIGC, tomámos um barco em Bissau e navegámos na direcção de Quinara. 

Quando chegámos a um local adequado, o barco encostou à margem e começámos a desembarcar, amarrados aos ramos das árvores. Depois de reagrupados começámos a progressão rumo ao objectivo.

O sol estava a pôr-se e passámos a noite ali perto. De manhã, logo que o dia começou a clarear, retomámos a progressão até atingirmos uma bolanha, onde vimos mulheres[2] a fazerem as últimas colheitas.

Dirigimo-nos a elas, que ficaram muito surpreendidas com a nossa chegada. Dissemos-lhes que éramos do PAIGC e que tínhamos recebido G-3, para confundir os tugas. E que nos estávamos a deslocar para as proximidades de Tite, para atacarmos o aquartelamento nessa noite ou na próxima. Pareceu-me que ficaram convencidas, não sei se todas, e por volta das 16h00 despedimo-nos delas.

Quando estávamos a abandonar o local recebemos uma mensagem para arranjarmos um local para pernoitarmos, mas numa zona onde pudéssemos ser retirados por helicópteros.

Escolhemos uma grande bolanha de lavra de arroz onde os helis podiam aterrar à vontade. Nessa madrugada adormeci por uns momentos e estava a sonhar que um avião, um Dakota, cheio de passageiros, se estava a dirigir na nossa direcção, a baixar, a baixar, até que acabou por cair com um grande estrondo. Gritei bem alto e acordei sobressaltado, com os companheiros a perguntarem o que estava a acontecer.

De manhã voltámos a encontrar as mulheres, que ficaram surpreendidas quando nos viram. Uma começou a falar muito à vontade connosco e, a certa altura perguntou-nos:

– Vocês não disseram ontem que iam atacar Tite?

O tenente Saiegh respondeu que tínhamos recebido ordem para esperarmos aqui nesta zona, que os aviões nos vinham buscar.

A mulher perguntou se os aviões podiam aterrar neste local. Que sim, que podiam, respondeu. No meio desta conversa, ouvimos o ruído de uma avioneta que pediu a nossa localização.

Localizados facilmente, pouco tempo depois chegaram os helis que pousaram na bolanha e não demorou muito estávamos todos no ar. Entregaram-nos novas cartas topográficas, a missão tinha sido alterada.

Fomos largados junto a uma tabanca, na roda do rio Geba. Andámos um pouco, cortámos à direita e entrámos num carreiro com muitas marcas de pegadas. Ia direito a Cubajal. No trajecto encontrámos um velhote que nos disse que ia para a tabanca, onde tínhamos acabado de ser largados, e que vinha de Cubajal.

Perguntámos-lhe se nos podia acompanhar. Respondeu que tinha medo de estar na tabanca, que um avião andava lá em cima desde manhã. Saiegh garantiu-lhe que não ia acontecer nada e ele foi connosco. Enquanto caminhávamos ia conversando com o velhote e a certa altura disse que era o chefe da tabanca de Cubajara, informação que transmiti ao Saiegh.

Quando chegámos reunimos a população da tabanca. Era muita gente. Dissemos-lhes que éramos do PAIGC, que já tínhamos G-3 para confundirmos os tugas. E que tínhamos a informação que Gampará tinha sido ocupada pela tropa. Responderam que sim, que tinha sido ocupada. Estava ali o chefe da tabanca de Gampará que se levantou para se apresentar.

Continuámos a reunião dizendo-lhes que tínhamos vindo com uma missão, falar sobre mantimentos.

 Vocês sabem perfeitamente que nada nos falta na República da Guiné-Conakry. Mas não podíamos trazer connosco tudo o que precisávamos, por isso, têm que ter paciência, tem que nos reabastecer durante o cumprimento da nossa missão.

Foi assim que nos dirigimos à população da tabanca de Cubajal.

Foram rápidos a responder. Que podíamos contar com eles, que tinham arroz em quantidade suficiente para sustentar todos os combatentes pela Liberdade da Pátria que passassem em Cubajal.

O tenente Saiegh voltou a tomar a palavra para dizer que brevemente o quartel de Gampará iria cair nas nossas mãos, do PAICG, claro. Quando acabou de falar começaram a ouvir-se palmas e de um momento para o outro toda a gente aplaudia. Foi uma salva de palmas da população para o comandante da 1ª companhia de Comandos. O almoço ficou pronto e convidaram-nos a comer à vontade.

Perguntei a um rapaz que estava próximo se todos os chefes das famílias estavam ali connosco. Não, havia, ali em frente, uma família, respondeu-me.

Peguei na minha arma, chamei um soldado para me acompanhar e fui ao encontro de um homem que estava a comer com os filhos ao lado. Depois dos cumprimentos e do convite para almoçarmos com eles, perguntou-me de onde tínhamos vindo.

– De Conakry  respondi.

– De Conakry, com G-3?

   É por isso mesmo – comecei a responder    que estamos a convocar reuniões para toda a população saber que nós também temos G-3 para confundir os tugas.

Ele levantou-se e disse aos filhos para continuarem a comer.

 
– Também podes continuar a comer à vontade    disse eu. 

Que não estava bem, via-se na cara e na expressão,  que estava desconfiado.

Eu estava a fumar um cigarro, um Português Suave, e ele pediu-me um. Meti-lhe um cigarro na boca para o acender mas ele disse que primeiro gostava de lavar a boca. Pegou no cigarro, virou-o até à marca e depois meteu-o na boca, abanando a cabeça. Peguei-lhe num braço, levei-o até ao local da reunião, mandei-o sentar-se ao pé de mim e disse-lhe que não fizesse qualquer sinal às outras pessoas da tabanca.

Um dizia que desde o começo da guerra nunca a tropa lá tinha posto os pés, que tinha havido um ataque da aviação que tinha causado apenas um ferido ligeiro. Outro dizia que Cubajal era um local sagrado. Estava toda a gente a falar quando vimos uma avioneta aproximar-se. Quando estava quase em cima de nós, com todos a olhar para o ar, alguns disseram que era melhor afastarmo-nos e escondermo-nos.

Então dissemos quem éramos. Que os aviões não lhes iam fazer mal. Uma pessoa perguntou se aquele, o Saiegh, que estava ali com um aparelho estava a falar com o avião.

   Está – respondeu alguém. – Nós somos dos Comandos da Guiné, que alguns de vocês chamam criminosos. Estivemos convosco de manhã até agora, não matámos nem batemos em ninguém. Se formos atacados respondemos, isso é verdade. Quando há guerra é assim e tem que ser encarada com seriedade, não é brincadeira.

Toda a gente da tabanca estava surpreendida, menos um, o que eu tinha ido buscar. Ele sabia perfeitamente que não éramos do PAIGC.
Não falou nem uma vez, manteve-se sempre calado. Quando uma pessoa se levantou para falar, reparei que o homem fixava o olhar no orador, como se quisesse fazer um sinal, mas eu também nunca tirei os olhos dele. O erro do Português Suave não me saía da cabeça.



Português Suave" é uma marca de cigarros portuguesa, produzida e comercializada pela Tabaqueira a partir de 1929,, tendo passado a pertencente ao grupo Philip Morris International, desde 1997.  A imagem que se reproduz deve ser de 1975 ou data posterior, quando a Tabaqueria era E.P. (Cortesia da página, de Iana Peiu (Paris) >  "Peiuana", 23 de dezembro de 2013)

A reunião terminou com a avioneta em cima de nós. Foi-nos dada ordem de abandonarmos o local e levar connosco os chefes das tabancas de Cubajal e Gampará para a tabanca de Braia, que ficava junto ao rio, a cerca de uma hora de marcha. Ficámos com eles em nosso poder até de manhã. Depois demos a cada um cerca de 50 folhas de tabaco e um quilo de noz de cola e mandámo-los embora, de regresso a Cubajal.

Cerca de uma hora mais tarde recebemos ordem para nos dirigirmos para o porto de Uanazinho. Uma marcha de um dia inteiro, sem nada para comer. Tínhamos começado a andar às 08h00 da manhã e chegámos por volta das 18h30. Depois de ter comunicado a nossa chegada, o tenente Saiegh recebeu ordem para seguirmos para Gampará.

Dormimos um pouco, iniciámos a caminhada às 06h00 até que, por volta das 10h00, encontrámos uma tabanca com muitas cabras amarradas. Saiegh deu instruções para reunir a população da tabanca e para um grupo ficar de vigilância. Deu também ordem para se matarem três cabras, para as assarmos, porque já não víamos comida há muitas horas.

Na caminhada de regresso vimos manchas de sangue no caminho. Era sangue de páras que por ali tinham passado, viemos a saber depois. Nessa mesma operação tinham acabado de passar por ali, mesmo antes de nós. Já traziam um ferido e um deles pisou uma mina, que atingiu mais dois companheiros. (**)

Em Gampará soube que em vez de três tinham sido mortas quatro cabras, embora só nos tivessem apresentado três. A outra, pelo que vim a saber, era para levarem para Bissau. Mandei chamar o soldado e dei-lhe ordem para me trazer a cabra. Nem disse uma palavra, foi buscá-la e trouxe-a inteira.

Perguntei aos soldados o que é que pretendiam que se fizesse à cabra. Cozinhá-la, responderam. Que um tinha arroz e outro óleo de palma, acrescentou outro.

Dirigi-me em seguida para o aquartelamento e fui procurar o Saiegh para saber o que íamos fazer a seguir. Regressar a casa, missão terminada. Amanhã vem um barco que nos vai levar de regresso.

Avisei os meus soldados e aproveitei para lhes dizer que podemos roubar para matar a fome, não para levar para casa. Roubar e levar para casa é um crime e um mau vício.

Antes de embarcarmos, chegou um heli com o General Spínola. À frente da nossa companhia e da dos páras fez um pequeno discurso.
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Notas do autor e/ou editor literário:

[1] Nota do editor: as CCmds participaram nas operações da instalação do COP7 na península de Gampará, designadamente a “Satélite Dourado”, entre 11/15Nov71, e a “Pérola Amarela”, entre 24 e 28 Novembro 1971. 

A criação do Comando Operacional nº 7, em 24/11/1971, tinha como finalidade concretização a execução de um reordenamento da população de Ganjauará / península de Gampará, e limitar a atividade IN na região de Quínara. (Nota do editor LG)

[2] Biafadas.

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Subtítulo / Negritos: LG]
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 19 de junho de 2023 > Guiné 61/74 - P24414: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano; Parte XXX: A guerra pela população (pp. 204-206)

(**) O Amadu Djaló não terá feito confusão com outra data ?

Vd. poste de 21 de fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1540: Os pára-quedistas também choram: Operação Pato Azul ou a tragédia de Gampará, em 4 de Março de 1972 (Victor Tavares, CCP 121)

(...) Desta tragédia para a família pára-quedista, que jamais esquecerá este dia , resultaram:

(i) seis mortes, Alf Mil Paraquedista Abreu, Furriel Pára-quedista Cardiga Pinto, PCB/Pára-quedista 47/68 Santos , PCB/Pára-quedista 129/69 Almeida , Sol/Pára-quedista 318/69 Jesus , PCB/Pára-quedista 412/69 Sousa;

(ii) 2 feridos graves e nove com menos gravidade , Furriel Pára-quedista Casalta (Comandante da 1ª secção do 2º Pelotão) , Sol Pára-quedista Inês (evacuado para a metrópole ), Ferreira , Tavares, Ventura, e 1º Cabo Pára-quedista Figueiredo, todos do 2º Pelotão, e o Sold Pára-quedista Salgado - Estilhaço de alcunha - do 1º Pelotão, faltando três por identificar pois, passado todos estes anos, já não me recordo, e ficará para sempre uma saudade enorme D’AQUELES EM QUEM PODER NÃO TEVE A MORTE. (...)