sábado, 23 de outubro de 2010

Guiné 63/74 - P7167: Ser solidário (93): Vamos ajudar a Associação de Estudantes de Gadamael em Bissau, o Inussa Intchasso e os seus colegas (Fernando Miguel Naves)

1. Mensagem de Fernando Miguel Naves, cooperante na Guiné-Bissau, com data de 19 de Outubro de 2010:

Caro Luís Graça,
Desde já saúdo o seu blogue, tão importante como veículo de partilha para todos os que estiveram na Guiné-Bissau, em circunstâncias tão diferentes daquelas que recebem hoje os portugueses que lá trabalham, estudam, cooperam etc. Eu sou um desses portugueses que conheceram a Guiné-Bissau, e particularmente Gadamael, nas condições actuais, e quero propor neste email algo que penso será do seu interesse e dos muitos camaradas que estiveram em Gadamael.

Talvez lhe cause surpresa ao saber que tenho 26 anos, mas posso garantir que, embora a distância no tempo e as circunstâncias tenham sido radicalmente diferentes, também eu sinto carinho e saudade pelas gentes de Gadamael.

Estive em Gadamael a fazer trabalho de campo para uma investigação biológica e social, onde acampei durante vários meses. Tendo-me deslocado sozinho para Gadamael, fui acolhido de braços abertos por aquela gente maravilhosa e rapidamente me misturei na comunidade local e me senti perfeitamente em casa.

Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gadamael Porto > 10 de Outbro de 2010 > A pista de aviação (ou melhor, o que resta dela)...
Foto (e legenda): © Pepito / AD -Acção para o Desenvolvimento (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados

O objectivo do meu email é uma proposta, que, ao ver os comentários de José Casimiro e outros ao post de Pepito sobre Gadamael, me parece irrecusável para os que continuam a ter vontade de ajudar a população daquela aldeia.

Confio que um dos principais meios de ajuda será a educação, pois julgo que pode dotar os "filhos" de Gadamael com ferramentas que possam ajudar a desenvolver a sua terra e a trazer mais e melhor formação, saúde etc.

Ainda em Gadamael, comecei a ajudar um rapaz de 18 anos, o Inussa Intchasso, cujo pai não tinha dinheiro para lhe pagar uma ida para a escola. O sonho do rapaz é ser professor e ensinar às crianças de Gadamael no futuro. Fiquei sensibilizado pois ele mostrava muita vontade de aprender e comecei a pagar-lhe uma escola de qualidade em Bissau, acrescido de um curso de francês e informática, assim como uma pequena ajuda para cadernos e lápis. Fez a diferença total para a vida dele, vejo agora. Um rapaz que não sabia o que era a internet no final de 2009, e que agora me põe a par dos seus estudos por email. Foi comovente receber o seu primeiro email.

A ideia que me surgiu foi replicar esta iniciativa, pois assim como ele, são vários os estudantes de Gadamael que vão para Bissau e mal têm dinheiro para um caderno e um lápis, e frequentam escolas de ensino francamente mau. Gostaria de ajudar mais mas, como estudante, não tenho capacidade de ajudar mais que um.

Gostaria portanto de propor um sistema que pode ser desenhado em conjunto com os que estiverem interessados, de apadrinhamento de alunos de Gadamael em Bissau, de maneira a investir no futuro individual de cada um, mas ao mesmo tempo no futuro da própria Gadamael. A ideia seria cada um de nós apadrinhar um aluno, ou aluna, tal como eu já estou a fazer, e garanto que não se gasta muito dinheiro.

Gostaria muito de discutir em conjunto com os interessados e conseguir um intermediário de confiança em Bissau que possa assegurar a distribuição justa das ajudas a cada aluno, por exemplo o nosso amigo Patrício, que trabalha há 20 anos em Bissau e que seguramente muitos de vós conhecem, ou então o Pepito através da AD. Penso que seria interessante discutir isto em conjunto.

Gostaria de dizer também que este aluno, o Inussa, a quem pago a escola e materiais, teve a iniciativa (da qual me orgulho), de fundar a associação de estudantes de Gadamael em Bissau, a qual diz terem 46 membros, e foi a partir desta informação, pois não sabia que eram tantos em Bissau, que me surgiu esta ideia de proposta que apresento aqui.

Não me alongo mais, espero sinceramente obter um retorno de si, e que talvez possa reenviar a mensagem a quem interesse, pois eu não tenho mais contactos,

Desde já um obrigado imenso pela consideração,
Saudações cordiais,
Fernando Sousa
miguelnaves@yahoo.com
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 23 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7161: Ser solidário (92): Ainda a propósito das iniciativas da ONGD - Ajuda Amiga (António Estácio)

Guiné 63/74 - P7166: Blogoterapia (163): Recordações da infância (Felismina Costa)

1. Mensagem da nossa tertuliana Felismina Costa* com data de 22 de Outubro de 2010:

Boa-noite editor e amigo Carlos Vinhal!
Dando sequência às minhas memórias, trago hoje a público recordações da minha infância que primam pela agradável recordação dos primeiros anos, onde a família fez questão de me dar a perceber, que eu era para eles um elemento importantíssimo.

Se achar que tem algum interesse publicar, uma vez que saí do âmbito do blogue, faça o favor!



Recordações da infância

Nas grandes noites de Inverno, de chuva, frio e ventania, o aconchego do lar e o calor humano que me rodeava, fizeram com que as recordações permaneçam em mim.

Hoje quero falar do meu avô materno, Carlos Costa de seu nome, que juntamente com minha mãe foram os mais directos responsáveis na minha formação.

Depois do jantar, e arrumada a cozinha, sentávamo-nos à volta da lareira na casa do avô, com quem vivíamos.
A avó Adelina, pouco interventiva, fazia meia, sentada no lado direito do semi-circulo que formávamos frente à lareira.

A mãe costurava a roupa que vestia a prol, e eu, sentada entre a mãe e o avô, ouvia encantada as suas histórias de vida.
O avô fechava o semi-circulo à esquerda.

À nossa frente, um lume aceso e agradável ia sendo moderadamente alimentado por lenha de azinho, seca durante o Verão, e guardada em lugar seco durante o Inverno, para tornar aprazível aquela lareira dos serões familiares.

Nem televisão nem rádio incomodavam as nossas mentes, que estavam permanentemente disponíveis para ouvir contar aos mais velhos, as histórias que recordamos com saudade.

Lembro-me desde os meus seis anos de idade, de acompanhar interessadíssima, os serões familiares.
O pai, magnífico contador de estórias, deitava-se cedo, para cedo se levantar e sair para o trabalho, que quase sempre era longe de casa.
Então a avó Adelina, a mãe, eu e o avô Carlos, permanecíamos até por volta da meia-noite, junto à lareira em agradável e amena cavaqueira.

Seguro e indesmentível, o avô oferecia-nos o seu passado, o seu conhecimento, a sua vivência, religiosamente escutado.

Comecei por saber que o avô tinha nascido em 1896, que em criança tinha feito a 4.ª classe com distinção e que os professores o haviam aconselhado a prosseguir os estudos, mas a falta de estruturas na localidade e as dificuldades económicas, fizeram com que ficasse por ali.

Tive ao longo da vida oportunidade de constatar a sua inteligência, o seu gosto pela cultura e a sua capacidade de análise a tudo o que o rodeava.

Lia interessadíssimo jornais e revistas da época, que assinava, e guardava extraordinárias revistas a cores de grande formato, sobre a 2.ª Grande Guerra , que cedo comecei a ler.
O avô tinha sido 1.º Grumete Escriturário da Armada Portuguesa durante a Primeira Grande Guerra.
Contava ter assistido à revolta dos marinheiros, durante o período em que cumpria o serviço militar, e tinha sido acusado de pertencer à dita sublevação. Preso e presente a Tribunal de Guerra, o avô fez a sua própria defesa tendo sido absolvido.
Eu bebia as palavras do avô! Extasiada! O avô era para mim... um herói.

No fim do serão, um café de cevada ou um chá quentinho e umas torradas feitas na lareira, confortavam-nos o coração, porque a alma já estava ricamente confortada.

Ao longo do dia acompanhava-o nas sementeiras e na labuta à volta da casa, que ele construíra com as suas próprias mãos, e onde tinha aplicado os seus conhecimentos, para se rodear e aos seus, do maior conforto possível. Até os animais domésticos que possuíamos tinham alojamentos confortáveis. Respeitador de todas as formas de vida, nunca o vi matar um animal doméstico, era a minha mãe, mulher de grande coragem, que tal como os criava com prazer, também os matava para nos alimentar.

A cerca ao lado da casa, que o avô cultivava, foi o meu primeiro palco, onde cantei a alegria de existir!
Misturava-me com as flores e as aves, e encantava-me no azul do céu e nas nuvens.
Nas primaveras da vida e do tempo, apreciei encantada, as quatro estações!
Rodeada de carinho, sentia a importância que tinha para todos.

Livre, podia brincar até anoitecer.
Correr, sentindo a leveza do corpo criança, era um prazer indescritível!
As nuvens no céu de Abril, corriam ligeiras como eu, que observava as suas formas desmultiplicadas, que desenhavam naquele céu azul e lindo, as mais variadas figuras.

E, nas noites de Verão, luminosas e calmas, onde só o cantar das cigarras e dos grilos quebravam o silêncio, eu e o avô, sentados no banco frente à casa, observávamos o céu.
O céu magnifico da minha infância magnifica!
Lua, estrelas e um cometa (que passava na altura), faziam as delícias da nossa observação.
As estrelas cadentes assustavam-me na sua queda aparatosa.


Foi o avô, que me ensinou a conhecer as constelações como a ursa maior e a ursa menor, algumas estrelas, as fases da lua, Vénus e Júpiter igualmente.
Desse tempo me ficou a adoração pelos astros, e todas as noites, antes de me deitar, abro a janela da cozinha, e olho agradecida o pouco que me é permitido ver.Vénus continua a encantar-me, e perfila-se frente ao meu observatório.

Quando eu e o avô dávamos por terminada a observação da noite, o avô vinha até à ponta da rua da casa, e, olhando para Oriente, fazia as suas previsões meteorológicas, baseado, não sei em que factores, mas muitas vezes saíam certas.

Fui crescendo sempre próxima desse grande e velho amigo, que marcou positivamente a minha existência, e, sempre que eu chegava à sua beira me dizia com um sorriso... olá minha neta!

Foi o meu primeiro professor!
O meu primeiro dicionário.
Devia-lhe esta Homenagem!

Felismina Costa
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 17 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7141: Blogoterapia (162): Juventude, anos sessenta (Felismina Costa)

(Imagem retirada da Internete)

Guiné 63/74 - P7165: Estórias do meu amigo de infância Alfredo Ramos, ex-Sold Condutor Auto da CCAÇ 556 (Guiné, 1963/65) (Arménio Estorninho)

1. Mensagem de Arménio Estorninho* (ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas, CCAÇ 2381,Ingoré, Aldeia Formosa, Buba e Empada, 1968/70), com data de 20 de Outubro de 2010:

Amigos e camaradas editores, saudações tabanquenhas
O Soldado Condutor Auto Alfredo Ramos, indo ao fundo do baú, tirando as recordações e sacudindo o pó (passados 45 anos), agora narra “estórias” que aconteceram entre si e o ex–Alf Mil Jorge Rosales, quando faziam parte do 1.º GCOMB, colocado no Destacamento de Porto Gole, da CCaç 556, Guiné, 1963/65, Bissau, Enxalé e Bambadinca.

Dei conhecimento aos dois intervenientes da minha pretensão, em que fossem postadas no blogue as suas lembranças.

Pela amizade e camaradagem, os cumprimentos a toda a tertúlia.
Com um Abraço
Arménio Estorninho


Estórias do meu amigo de infância Alfredo Ramos

Reportando-me ao Poste 7092, dedicado ao aniversário do nosso amigo e camarada Jorge Rosales, está inserida uma foto onde se encontra o aniversariante e o Sarg. Arlindo Verduga Alface (paz à sua alma), era natural do Cano – Alto Alentejo e ao tempo Comandante de uma Secção de Soldados oriundos da 1.ª CCI de Farim. Sendo a foto do meu interesse, devido na mesma conter um marco histórico e porque estava a ultimar um trabalho sobre a chegada dos primeiros navegadores Portugueses à Guiné.

Foto 1 > Guiné > Região de Bafatá > Parada de Porto Gole > 1964 > O amigo e camarada Jorge Rosales, junto do marco histórico colocado na parada. Actualmente este marco assinala o V centenário da descoberta da Guiné, 1446-1946.

Dai até eu entrar em contacto com o camarada Jorge Rosales foi um instante, predispondo-se ele a me facultar aquela e mais outras das suas fotos, de Porto Gole. Entre as mesmas vinha uma onde constava um Soldado detendo uma macaquinha saguim, sendo dadas as referências, de que ele se chamava Alfredo, era de Ferragudo e que aparecia por vezes pela praça dos táxis local.

Pelo conhecimento que tenho do concelho de Lagoa, foi fácil indagar e logo tomando conhecimento de que se tratava de Alfredo Ramos, natural e residente em Lagoa, que fora proprietário de um táxi na praça de Ferragudo.

Andámos na mesma Escola Primária, jogámos com a mesma bola de trapos, ao berlinde e ao rapaz pirata nas mesmas ruas, e tantos outros jogos da nossa infância.

Como eu vi o camarada Alfredo Ramos, algarvio humilde, com a voz embargada e uma lágrima ao canto do olho, aquando dialogava via telemóvel com o seu ex-Comandante do Grupo de Combate o amigo e camarada Jorge Rosales.

Estando já na posse das informações e das fotografias, dirigiu-me a casa do meu vizinho Alfredo, que na circunstância se encontrava em casa onde me recebeu com toda a simpatia pessoal. Disse-lhe o porquê de ali estar, mostrando-lhe as fotos e se nas ditas conhecia alguém, retorquindo prontamente: "este sou eu tendo à trela a macaquinha “Gabriela,” o outro é o meu Alferes Jorge Vilar Rosales que está a provar o rancho".
Diga-se que a macaquinha saguim ”Gabriela,” veio para Portugal e ainda viveu mais 20 anos.

Foto 2 > Guiné > Região de Bafatá > Destacamento de Porto Gole > 1964 > À esquerda da foto o Soldado Alfredo Ramos, segurando a macaquinha saguim “Gabriela” enquanto Alf Mil Jorge Rosales prova o rancho.

Tudo esclarecido e nos conformes, resolvi ligar ao amigo e camarada Jorge Rosales. Do outro lado atendeu-me um filho, tendo para o efeito encaminhado o solicitado contacto e havendo dialogo com certa divagação na presença do Alfredo a fim de se relacionar.

Passei o telemóvel ao Alfredo Ramos, e o que eu ouvi mas só do lado de cá, foi:

- Olá meu Alferes como está…, tudo bem…, eu já estou aposentado…, então quando vem ao Algarve…, quando passar por Lagoa tem um quarto para ficar…, é no Largo do Jardim 5 de Outubro, n.º 32, e não se esqueça porque tenho muito gosto em recebe-lo em minha casa.

Estando a aperceber-me que o Alfredo, um genuíno algarvio, tinha a voz embargada e as lágrimas nos olhos, e sentindo o que se passava, fiquei também com um pouco de comoção. Tudo se passou em fluente português, lindo… lindo..!

A ”estória” contada pelo camarada Alfredo Ramos, que pretendia ir a Bissau “tirar” a carta profissional de condução auto. O seu desenfianço de Porto Gole e o desenrascanço em Bissau.

Estando o Comando da CCaç 556, colocado em Enxalé, o Soldado Alfredo Ramos solicitara autorização ao Comandante da Companhia, Cap. Inf. Fernandes Gonçalves Foitinho para ir “tirar” a carta profissional de condução auto, sendo o pedido recusado por haver falta de condutores.

Ora, Porto Gole era um Destacamento, estando o amigo e camarada ex-Alf Mil Jorge Rosales a comandar o 1.º GCOMB, o Alfredo Ramos lastimou a sua vida e recebera daquele um “vou pensar no teu assunto.”

Foto 3 > Guiné > Região de Bafatá > Campo de futebol de Porto Gole > 1964 > Uma equipa de futebol, em que os metropolitanos eram do 1.º GCOMB/Caç 556. De pé, a partir da esquerda: 1.º Cabo do Morteiro, 1.º Cabo da Bazuca, Sold At e Sold Cond Auto Alfredo Ramos. Agachados: 1.º Cabo de Transmissões António José, Fur Mil Enfermeiro, e o último não identificado. Quanto aos guineenses, eram de uma Secção da 1.ª Companhia (CCI) oriunda de Farim.

Porque vulgarmente os Fuzileiros entre os quais o Ten. Fuzileiro Crispim, aportavam a Porto Gole e aqui faziam umas jogatinas de futebol. Assim, o ex-Alf Mil Jorge Rosales e o Ten. Fuza, acordaram a forma de o Alfredo Ramos se deslocar a Bissau.

Depois de tudo acertado o camarada Alfredo Ramos foi autorizado verbalmente a deslocar-se a Bissau. Não seria portador de passaporte, seguiria num barco dos Fuzas e voltaria na mesma forma.
Conquanto em Bissau teria que se desenrascar, não andar em distúrbios e/ou ser interceptado. Evitando problemas para si próprio, para o Comandante do Destacamento de Porto Gole e contornando dessa forma o RDM.

Em Bissau, o bom do camarada Alfredo Ramos sempre muito compenetrado, encontrava amigos e fazia-lhes um choradinho justificativo. Indo almoçar, jantar e dormindo conforme o mais oportuno, no Destacamento dos Fuzas, na Polícia Militar na Amura e na Base Aérea C.C. Pára-quedistas. Neste último lugar é que a coisa ia-lhe saindo da pior forma, pois tendo procurado o nosso conterrâneo Pára-quedista Jacinto, com o dito choradinho lá foi convidado a ir para a Base tomar uma refeição. Estando sentado no refeitório apareceu-lhe o Oficial de Dia à Companhia, e como era facilmente identificável pela farda, foi-lhe feita a pergunta de quem o autorizou a estar aqui a comer. “Tremedeira total e vontade de meter-se no mais pequeno buraco.” Logo em sua defesa se levantou o Pára-quedista Jacinto, informando que fora ele quem o convidara porque era seu conterrâneo e estava com fome. O Oficial de Dia à Companhia aceitou a situação por ser o Jacinto mas…, quando acabasse de comer devia retirar-se. Já fora do Quartel outros Pára-quedistas disseram que podia-se ter dado uma sublevação e deram a justificação de o Jacinto já ter mais castigos que saltos de pára-quedas.

Foto 4 > Bissau > Região de Bafatá > Parada de Porto Gole > 1964 > Alfredo Ramos envergando a farda amarela. Ao fundo o rio Geba.

O camarada Alfredo Ramos, concluiu com aproveitamento o exame de condução profissional de veículos automóveis pesados e partiu lesto para Porto Gole.

Chegado, apresentou-se ao Comandante do 1.º GCOMB do ex-Alf  Mil Jorge Rosales, sendo este colocado ao corrente dos acontecimentos e informado que não houvera qualquer ocorrência de registo. Tudo se recompôs.

O Alfredo Ramos, agora em Porto Gole, já tinha a sua cama, a comidinha e roupa lavada atempadamente. Porque para um soldado desenfiado em Bissau, a frequentar a escola de condução a fim de obter a carta profissional de veículos pesados e os Pesos a escassear, a coisa não era fácil.

Um caso disciplinar resolvido a contento, entre o ex-Alf Mil Jorge Rosales e o Sold. Alfredo Ramos.

No entanto não há bela sem senão, o Sold. Alfredo Ramos, estando certa noite de sentinela num posto de vigia, por descuido como se costuma dizer, aconteceu-lhe um grande azar. Estando a passar pelas brasas na hora que o ex-Alf Mil Jorge Rosales fora fazer ronda, este assentou-se a seu lado. O Sold. Alfredo ao despertar toma consciência da imprudência, defendo-se que não estava a dormir, mas não se safou de cinco reforços "à benfica", ficando só por ai.

Foto 4 > Bissau > Região de Bafatá > Porto Gole > Rio Geba > 1964 > Barco civil de transporte de mantimentos e material de manutenção. Militares do 1.º GCOMB/CCaç 556. Identificado só o 1.º elemento que está junto à proa do barco, dentro de água, trata-se do camarada Alfredo Ramos.

E assim, o nosso camarada Alfredo Ramos está grato ao seu bom amigo Jorge Vilar Rosales do qual ainda sabe de cor o seu nome completo, porque não quis ter a mão pesada (participação disciplinar) e embora sendo um risco, facultara-lhe a possibilidade de obter a carta de condução profissional de veículos autos pesados, permitindo-lhe posteriormente como bom condutor ter exercido a profissão de motorista particular de ”Sua Alteza Real Infanta D. Filipa de Bragança,” de proprietário de um táxi na Praça de Ferragudo e de condutor camionista na Câmara Municipal de Lagoa.

Nota: - Este trabalho foi observado pelo amigo e camarada Alfredo Ramos, tendo sugerido acertos e dando conformação ao seu conteúdo.

Pela amizade e camaradagem, os cumprimentos a toda a tertúlia.
Com um Abraço
Arménio Estorninho
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Nota de CV:

15 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7133: Descoberta do Senegal e da Guiné, pelos Portugueses (2) (Arménio Estorninho)

Guiné 63/74 - P7164: Meu pai, meu velho, meu camarada (24): Bijagós, memórias de menino e moço (Manuel Amante)



Guiné-Bissau > Bolama > s/d > Cais > Uma canoa nhominca, para transporte de passageiros 

 Foto: © Patrício Ribeiro (2009). Todos os direitos reservados.


1. Eis um belo texto sobre uma das mais belas regiões da Guiné, os Bijagós, que  a maior parte de nós, antigos combatentes, não conhece, não conheceu nem nunca  terá, infelizmente, oportunidade de conhecer... 

O embaixador Manuel Amante da Rosa, que foi nosso camarada de armas em 1973/74, e que tem hoje funções de responsabilidade na CPLP - Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, autorizou-me em tempos a reproduzir esse texto, que ele escreveu para a sua filha, Carla,  autora do blogue Amante da Rosa, e que vive (ou vivia na altura) em Cabo Verde... É um blogue que eu visitava regularmente mas que infelizmente fechou, entretanto (embora continua a ser pesquisável na Net). Apresenta(va)-se nestes termos: "Meu Cabo Verde. História e Estórias. Minhas raízes, família e recordações. A Guiné. Pensamentos e Imagens. Sem ordem cronológica"...

Com a devida vénia, e como homenagem à Carla, ao pai Manuel Amante e ao avô paterno, em cujo barco, o Bubaque, muitos nós, malta da zona leste da Guiné, deve ter viajado entre Bissau e Bambadinca, entre 1961 e 1974, permito-me transcrever este texto de antologia, que o Manuel Amante escreveu para a sua filha Carla, em memória do seu velho... (Julgo que as ilustrações são da responsabilidade da autora do blogue).

Uma resslava: apesar de termos na nossa posse, digitalizadas, todas as cartas do arquipélago dos Bijagós - oferta do nosso camarada Humberto Reis, em 2005 - , nunca as chegámos a pôr  "on line", por razões de segurança... Ficam, no entanto, à disposição dos amigos e camaradas que precisaram delas, por razões de turismo, solidariedade, investigação ou outras razões a avaliar, caso a caso e mediante pedido pessoal ao editor Luís Graça. (LG).

Fonte: Blogue Amante da Rosa > Setembro 10, 2007 > Bijagós, memórias de um pai


2. Meu pai, meu velho, meu camarada > Bijagós, memórias de menino e moço
por Manuel Amante (**)


Após a separação dos meus pais, aí por volta dos meus dez anos, passei a fazer parte do espólio do meu velho. Ele, aos 33 anos, com o fim do casamento, reinventara-se marinheiro errante e pescador, desventurado que estava com o início da guerra que o impedia de circular pelas estradas da Guiné. Já lhe estava na matriz de ilhéu o destino de ser um deambulante incansável e, na altura, a pretexto de uma fuga imaginária, transferiu a sua sanha de aventuras para a descoberta um arquipélago desconhecido, onde poderia livremente saltar de uma ilha para outra. Um lugar onde as lágrimas que foi vertendo, certamente a olhar para lá das ilhas de Caravela e de Unhocomo, se foram diluindo na mistura baça resultante do encontro das águas do Rio Geba e do Atlântico.

O horizonte longínquo que em algumas ocasiões pairava no seu olhar perdido foi-me decifrado numa manhã solarenga, de mar prateado, com vento de través, no canal entre as ilhas de Uno e Orango, quando murmurou, agarrado à cana do leme que aquela canoa, a sua Ave do Paraíso como carinhosamente a apelidava, certamente que aguentaria ir até à ilha de Santiago,  em Cabo Verde. Mal sabíamos os dois que, quase 40 anos depois, milhares de africanos, a fugir da miséria e instabilidade, desafiariam o destino e as intempéries nessas frágeis embarcações para chegarem tanto às ilhas de Canárias como às ilhas creolas.

O desterro voluntário do velho, por longos períodos, tinha sido a encantadora ilha de Sogá,  no arquipélago dos Bijagós. E eu, orgulhosamente só,  em Bissau. Os meus outros dois irmãos mais novos, o Rui e o Djoi, tinham acabado por regressar à protecção e segurança do lar materno. Lá ia aguentando menos mal a casa da madrasta onde nunca me integrei.

Tornei-me também, junto de outros companheiros de mais idade do Bissau Velho, um aventureiro incorrigível de caça, dos banhos e pesca de bentaninhas e bagres nas bolanhas próximas da segunda ponte, lá para os lados de Bulola. Nadávamos em grande algazarra e descontraidamente junto de grandes saltões, de sapos, de lagartixas, de garças, de raras linguanas e de cobras que por vezes se entremeavam, de cabeça erguida, no nosso meio à procura de sossego ou da outra margem, sem contar com os crocodilos que, sempre que alguém gritava lagarto,  saltávamos em debandada para fora da água. Apesar de alguns terem dito que lhes viam, ali na segunda ponte, nunca os vi. Inventávamos os saltos mais arrojados para a água,  em especial o arratchacoco, que repetíamos vezes sem conta em cima dos mais incautos.

[bjg2.bmp]Outras vezes, num grupo mais pequeno embarcávamos na lancha Barreiro ou no pequeno Gouveia 16 e íamos para o ilhéu do Rei com os operários da fábrica de óleo de amendoim. Esta aventura era somente para os mais destemidos e que aguentavam fome. Ali não havia árvores de fruto ou quem se condoesse connosco. Voltávamos cedo e durante dias sentíamos o odor do óleo de mancarra para onde fossemos.

Por vezes, caminhávamos bem mais longe. Até vermos Cumeré do outro lado de um pequeno rio lodoso, o Impernal. Outras vezes ainda caminhávamos alegres, nus ou semi nus, com a roupa enrodilhada na cabeça, cana de pesca no ombro e a indispensável fisga ao pescoço, sempre em bicha de pirilau, através dos diques das bolanhas e canaviais, através de grandes extensões de terra alagada, até sairmos atrás do quartel de Santa Luzia e entrarmos na Granja do Pessubé (***). Aqui, num jogo de esconde-esconde com os guardas, surripiávamos fruta e nos banhávamos, se possível, no tanque que apelidávamos de piscina. Depois, ao anoitecer, era o regresso ao Bissau Velho sem sapatos ou algumas peças de roupa, arrependidos e com promessas repetidas de que nunca mais faríamos a pirraça de faltar às aulas. A entrada no Bissau Velho despertava em todos o receio das cintadas ou da palmatória de cinco buracos. Dividíamos no Zé da Amura para não dar nas vistas.

Pai fora e madrasta ocupada com afazeres profissionais. Vida boa. O que mais poderia almejar naquela idade? A vontade de continuar livre foi tanta que, após um bom final de exame do segundo grau,  disse orgulhoso a uma vizinha da minha Mãe, perante um olhar dela de comiseração e surpresa, que não tencionava mais voltar à escola porque o meu Pai tinha dito que para ser pescador não era preciso mais que a quarta classe. Ainda acabei, por alguns meses, como aprendiz de mecânico, nas oficinas navais.

Mas antes, num certo dia, numa das inúmeras passagens pelo porto do Pidjiguiti, após as aulas, soube que a canoa a motor de cerca de nove metros a flutuar desajeitadamente a uns metros, para além da cabeça de ponte, era do meu velho e que se prestava a sair com a vazante, de regresso aos Bijagós. Não hesitei e arranjei forma de embarcar. Ninguém mais conseguiu de lá me tirar por mais argumentos que me fossem apresentados.

[bjg4.bmp]Época das chuvas, com uma brisa irregular do Sudoeste, horizonte escuro lá para os lados de Tite e de Enxudé a avisar da aproximação de um tornado e mar algo encapelado lá fomos, meia força avante, apontando, num fim de tarde triste, para a embocadura desse largo rio de onde por vezes não se via a outra margem.

Uma hora depois, resguardado, por uma manta fortuita do arrais Nhô André, compadre do meu velho, fascinou-me ver a água fosforescente a deslizar para trás, as luzes de Bissau a desaparecerem e um farol, o Pedro Álvares, muito ao longe pela proa, por vezes, a piscar. O bater compassado do esporão da canoa nhominca a cortar as ondas altas, as inclinações laterais e a chuva miudinha pouco me amedrontaram. Sentia-me o herói de uma aventura da banda desenhada do Príncipe Perfeito e do Simbad.

Mesmo assim, lá para as nove, já com a lua a iluminar o rastro deixado pela canoa, após ter tentado imitar os outros, mijei em equilíbrio precário para sotavento, mastiguei a custo um pão duro e bebi, por um dos orifícios, quase meia lata de leite condensado que me deram. Adormeci depois todo enrolado e a tiritar em cima de uma prancha, logo a seguir à arca de gelo.

Uma avaria inesperada no único motor, ao largo da ilhas das Galinhas, faria com que continuássemos, a custo por causa da enchente, à vela e a remos até ao nascer do sol. Lá pelas nove, já com a força da maré de vazante, desembarcamos, perante a fuga de mais de uma dezena de macacos e debandada ocasional dos habituais caqres, numa praia da lindíssima ilha de Rubane. O meu primeiro desembarque de muitas outras paragens pela maioria das mais de 60 ilhas e ilhotas. 

Achei que aquela paisagem deslumbrante seria a tradução do que deveria ser o paraíso. E nunca me arrependi desse juízo. A viagem continuou ainda para uma outra ilha (Canhabaque) algumas milhas adiante, para recolher o meu Pai, que um dia quase que se tornava um nobre desse pequeno reino dos Bijagós. Muito certamente o primeiro espaço da África negra a sofrer um bombardeamento aéreo na guerra dos Bijagós de Canhabaque contra os poderes coloniais por volta da década de 20 do século passado. Só seriam considerados completamente pacificados após sucessivas campanhas que terminaram em 1936.

[bjg1.bmp]Mas, depois contar-te-ei com mais detalhes e também do meu encontro com um pai assustado até dizer chega, por ver a loucura que eu tinha feito e naquelas condições de tempo. O meu receio de poder levar uma valente sova quando ele me visse e as ilhas que percorremos, numa breve semana, até retornar, a toque de caixa, a bordo do lento e estafado Ametite, à enfadonha turma da quarta classe da Escola Oliveira Salazar, em Bissau. Poucos dos colegas acreditaram que tinha feito tamanha proeza por ser dos mais novos, franzino e não passar de um brancucinho que, apesar de brigador e rápido, jogava desajeitadamente à bola e que até ia para a escola de tchacual. Ainda hoje, julgo que partilho da mesma praga que tombou sobre Cassandra.

Até aos meus 21 anos nunca mais lá deixei de ir sempre que podia. Aprendi com vários arrais, sem cartas e ou outros instrumentos, a não ser a bússola, a navegar no arquipélago, aproveitando as estrelas à noite e o pulsar regular das marés, por entre aquelas ilhas e canais, ao ponto de, aos 13 anos, levar o LP3 de Bissau a Bubaque e regresso, sem supervisão do arrais, sem encalhar e demorar mais tempo. Surpreendia-me sempre o Arrais Avião, cego de um olho, que me instruía assim:
- Segue paralelo à Sogá, passa o canal de Bubaque, até veres a ponta mais afastada de Rubane, aproas à ponta e deixas a popa na extremidade norte de Sogá até estares dentro do canal. Atenção ao descaimento provocado pela enchente e na vazante à malhadeira na ponta de Bubaque à entrada do canal. 

Um autêntico desafio seguir estas instruções na roda do leme. Umas vezes de canoa a remo ou à vela ou outras vezes no barco de pesca e navios de passageiros fui conhecendo o último paraíso desta costa africana que até há pouco tempo ainda detinha resquícios de uma sociedade matriarcal.

[bjgs1.bmp]
O site dar-te-á o alumbramento do que pude ver pela primeira vez. O encanto das ilhas, suas gentes, flora e fauna nunca se perderam dos meus olhos apesar de ter percorrido mais de meio mundo e visitado lugares exóticos. Vê e diz-me se não é mesmo um paraíso o que descobri ainda na infância.

Manuel Amante da Rosa

[ Revisão / adaptação / fixação de texto: L.G.] (****)
___________

Notas de L.G.:

(*) Vd. postes de Manuel Amante publicados no nosso blogue:


28 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5555: A navegação no Rio Geba e as embarcações do meu tempo: Corubal, Formosa, BOR... (Manuel Amante da Rosa)


 12 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5455: Memória dos lugares (60): O Rio Geba e o navio Bubaque, do meu pai (Manuel Amante da Rosa)

27 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1787: Embaixador Manuel Amante (Cabo Verde): Por esse Rio Geba acima...


 (**) Recorde-se que o nosso camarada Manuel Amante nasceu, em 19 de Dezembro de 1952,  na Guiné, de pais caboverdianos, tendo passado pelas fileiras do Exército Português,  em 1973/74. 

Depois da independência de Cabo Verde, exerceu, entre outros cargos e funções, os seguintes (de acordo com um currículo, desactualizado, de que dispomos: conselheiro do Ministro dos Negócios Estrangeiros do Governo de Cabo Verde (2005), embaixador de Cabo Verde no Brasil (1992/2002) e em Angola (1995/99), observador internacional da OUA no processo de democratização da África do Sul (1993/94), diplomata em Moscovo, colocado na embaixada de Cabo Verde (1986/90) bem como na missão permanente de Cabo Verde nas Nações Unidas, em Nova Iorque... Entrou em 1980 para o Ministério dos Negócios Estrangeiros.


O Manuel Amante exerce actualmente o cargo de Secretário Geral Adjunto do Fórum para as Relações Económicas e Comerciais entre a China e os Países de Língua Portuguesa, com sede em Macau. No exercício desse cargo, passa uma larga temporada em Macau, lugar de onde acompanha o nosso blogue com assiduidade, atenção e carinho.

Como ele recorda, "também fui militar (73/74), de recrutamento local, no CIM de Bolama onde fiz a recruta e especialidade antes de ser colocado no QG (Chefia dos Serviços de Intendência) em Bissau. No momento de ser incorporado, tal como muitos da minha geração, estava relativamente familiarizado com as questões de foro castrenses. Não se podia viver na Guiné e ficar alheio ao que se passava e à inutilidade que essa guerra significava em termos de vidas humanas.

"Na minha infância e adolescência fiz muitas viagens pelo interior da Guiné-Bissau durante a luta de libertação. Mas o que mais me encantava (70/73), pelas paisagens e desafios, era subir o Rio Geba, nas férias ou mesmo nos fins de semana, num dos barcos de passageiros do meu Pai (o Bubaque, antiga traineira algarvia, adquirida pela Marinha portuguesa e transformada, nos inícios da guerra, em Lancha Patrulha nº 4, até ser comprada pelo meu Pai e transformada em navio de transporte, mais popularmente conhecido por Djanta Kú Cia)". (...)


(***) Granja de Pessubé, nos arredores de Bissau: estação agronómica onde trabalhou o Engº Amílcar Cabral entre 1952 e 1955.

(****) Último poste desta série > 20 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6874: Meu pai, meu velho, meu camarada (21): Parabéns a vocês! Luís Henriques e Armando Lopes, 90 anos, uma vida! (Luís Graça)

Guiné 63/74 - P7163: Patronos e Padroeiros (José Martins) (18): Nossa Senhora do Cheche


1. O nosso Camarada José Marcelino Martins, (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), enviou-nos mais uma mensagem, em 22 de Outubro de 2010, da série “Patronos e Padroeiros do Exército”:


Patronos e Padroeiros do Exército
Padroeira do Destacamento

© Foto: José Marcelino Martins (1969) – Direitos reservados

Nossa Senhora do Cheche

A imagem intitulada Nossa Senhora do Cheche, não é mais que a imagem da Senhora de Fátima que, para lá foi transportada, provavelmente, por um militar europeu.

A primeira unidade a instalar-se naquele destacamento foi a Companhia de Cavalaria nº 702, que em 5 de Junho de 1965 para ali enviou uma secção, reforçada poucos dias depois por um pelotão da Polícia Administrativa que, por sua vez, é substituído por um pelotão de Milícias.

Em 1 de Abril de 1967, a 3ª Companhia de Caçadores Indígenas já guarnece o destacamento do Cheche, quando é alterado o seu nome para Companhia de Caçadores nº 5, permanecendo naquele destacamento um Grupo de Combate (reforçado) e o Pelotão de Milícias nº 163.

Aquele destacamento passa a ser guarnecido por um Grupo de Combate (reforçado) da Companhia de Artilharia nº 2338, até ao dia 6 de Fevereiro de 1969, data em que é desactivado, após a retirada da guarnição que se encontrava no Cheche.

A imagem que se encontrava no Cheche em Junho de 1968, vem para Canjadude onde, em 12 de Maio de 1968, é incorporada numa procissão de velas, data em que se celebrava o 51º aniversário da primeira aparição, em Fátima, de Nossa Senhora aos pastorinhos.

Rezando e cantando, a procissão percorreu o caminho que levava à porta sul, na direcção do Cheche, tantas vezes percorrido pelas patrulhas quando se dirigiam para efectuarem operações para aqueles lados. Chegando ao fim do caminho, circundou uma árvore enorme, à sombra da qual se davam reuniam os “homens grandes”, regressando pelo mesmo caminho até ao aquartelamento.

Se no percurso de ida o caminho estava ladeado pela população que tinha acorrido, não só atraído pelas “ladainhas e cânticos”, mas também pelo cortejo de luz que as velas proporcionavam, no regresso pouca gente se via. Poucas pessoas estavam ao longo do percurso.

Feitas as orações finais e quando o padre Libório se voltou para os militares para proferir a despedida, ficou surpreso, direi mesmo espantado. Misturados com os militares metropolitanos estavam quase todos os habitantes civis que, tendo à frente os seus “sacerdotes”, com os seus terços, rezando a Alá, se foram integrando no cortejo, fazendo daquela procissão, um acto ecuménico espontâneo.

Quando deixamos Canjadude em Maio de 1970 a imagem ainda lá permanecia, desconhecendo-se se foi trazida por algum militar ou, na altura da desactivação do aquartelamento, teria ficado esquecida ou foi destruída involuntariamente.

José Marcelino Martins
Fur Mil Trms da CCAÇ 5
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

9 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7106: Patronos e Padroeiros (José Martins) (17): Curso 1962/1967 da Escola Naval - Jorge Manuel Catalão de Oliveira e Carmo

Guiné 63/74 - P7162: Agenda Cultural (87): Passeio temático a "La Lys", organizado pela Liga dos Combatentes


Divulgamos hoje um evento de interesse geral que vai ser realizado pela Liga dos Combatentes, deixando aqui uma pergunta/desafio a esta “nossa” instituição: Para quando a programação de uma ida à Guiné, Angola e Moçambique?
Inscrições para o passeio temático a "La Lys", organizado pela Liga dos Combatentes.

Exmo(a). Sr(a).

Em parceria com a agência de viagens Cistertour, a Liga dos Combatentes promove passeios temáticos para todos os seus associados e interessados nas temáticas. São quatro passeios que demonstram a presença portuguesa no Mundo e que deixam transparecer o esforço heróico de grandes batalhas, o sistema defensivo e operações tácticas militares, assim como, o sentimento de regresso a alguns dos lugares do antigo Império português.

O programa dedicado às comemorações da Batalha de La Lys recebe as suas inscrições ou pré-reservas até 8 de Dezembro de 2010. Esta viagem leva-o aos territórios das batalhas e da história da Flandres e da Normandia. Para além da oportunidade de assistir às cerimónias que assinalam a Batalha de La Lys, tem ainda a possibilidade de visitar os locais do desembarque dos aliados ("Dia D", na Normandia) em 6 de Junho de 1944, os locais onde se encontram os memoriais referentes à Batalha e ainda uns dias de "fuga" em Paris.

Para ficar a conhecer todos os roteiros de cada viagem, assim como as condições que temos para oferecer, consulte os links infra indicados ou navegue até ao website da Liga dos Combatentes:

LINHAS DE TORRES – 09 de OUTUBRO 2010
Oportunidade de descobrir os sistemas defensivos que ao longo da história protegeram a cidade de Lisboa. As fortalezas da costa e as Linhas de Torres. Almoço incluído.

1 dia – preço por pessoa 60€ (Reservas até 22 de Setembro)

GOA, DAMÃO, DIU E COCHIM – 20 JAN a 01 FEV 2011
Regresso aos territórios da antiga Índia Portuguesa, numa viagem singular plena de emoções e afectos.

13 dias – preço por pessoa 2850€ + taxas aeroporto (Reservas até 22 de Outubro – sinalização 700€)

BATALHA DE LA LYS – 8 a 13 ABRIL 2011
Comemorações da Batalha de La Lys. FLANDRES e NORMANDIA os territórios das batalhas e da história.

6 dias – preço por pessoa 1200€ + taxas aeroporto (Reservas até 08 de Dezembro – sinalização 250€)

MARROCOS – 10 a 21 SETEMBRO 2011
A presença portuguesa no Norte de África. Ceuta, Tânger, Ksar-el-Kebir, Mazagão, Casablanca, Mogadoro, Safim, Marrakech e Fez.

12 dias – preço por pessoa 1650€ (Reservas até 10 de Julho 2011 – sinalização 500€)


NOTA: Cada viagem só se realizará com um mínimo de 20 a 30 participantes.

Qualquer dúvida ou esclarecimento deve remeter para a Liga dos Combatentes para Catarina Carvalho, contactos:

Tel. 92 738 31 39 / 21 301 72 25

E-mail: fbs.marketing@ligacombatentes.org.pt

Catarina Carvalho
Departamento de Marketing e Comunicação
Museu do Combatente e Forte do Bom Sucesso
(junto à Torre de Belém),
1400-038 Lisboa - Portugal
Telefone: 92 738 31 39
E-mail: fbs.marketing@ligacombatentes.org.pt
http://www.ligacombatentes.org.pt/

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Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:

17 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7137: Agenda Cultural (86): DocLisboa2010, 14-24 de Outubro de 2010: a pesca do bacalhau na Terra Nova como alternativa à guerra colonial (Luís Graça)

Guiné 63/74 - P7161: Ser solidário (92): Ainda a propósito das iniciativas da ONGD - Ajuda Amiga (António Estácio)

1. Mensagem do nosso tertuliano António Estácio com data de 20 de Outubro de 2010:

Que me perdoem o atraso, mas aqui vai, com amizade, o resumo dum filme, de 40 minutos referente a belezas naturais da Guiné-Bissau, que no passado dia 06 de Outubro tive o prazer de comentar no Centro Cultural Franciscano, em Lisboa.
A minha terra é linda!...

Nota: - Ao que apurei, Bemba, é um termo em crioulo que significa celeiro, pois é o nome dado aos depósitos em barro onde, dentro de casa, se guardam as proviões.
Assim, o Celeiro na Guiné-Bissau, são as zonas protegidas uma vez que a sua diversidade é uma riqueza capaz de assegura a vida aos residentes.

António J. Estácio


2. Transcrevemos o convite, que já não servirá como tal, mas que também dá a conhecer algumas iniciativas da Ajuda Amiga.

A Ajuda Amiga – Associação de Solidariedade e de Apoio ao Desenvolvimento, associação sem fins lucrativos, e ONGD (Organização Não Governamental para o Desenvolvimento), com estatuto de utilidade publica, vem por este meio solicitar a V. Exa., a aceitação do nosso convite para estar presente na exibição do Filme "Bemba di Vida" no dia 6 Outubro de 2010 (hora - 21:15). Pode ver o trailer do filme:


Um dos nossos objectivos prioritários é conseguirmos enviar livros escolares para um dos países mais pobres do mundo a Guiné-Bissau, cujas precárias escolas que ali existem na sua maior parte funcionam sem livros.
Esta nossa acção tem dois efeitos positivos, por um lado porque é um elemento muito importante para promover o desenvolvimento, e por outro porque preserva e difunde a língua portuguesa no mundo lusófono.
O contentor que enviamos em 2010 seguiu a 10/2, e levou cerca de 20.000 livros escolares, que desactualizados face às alterações dos programas escolares em Portugal, foram um bem precioso na
Guiné-Bissau (este é um exemplo da ajuda prestada, mas há mais).

Para mais informações pode consultar o nosso site: http://ajuda.com.sapo.pt/ e http://www.facebook.com/AjudaAmiga#!/AjudaAmiga?v=info.

Queremos aderir à iniciativa 24 horas pelo Combate à Pobreza e Exclusão Social com a exibição do filme "Bemba di Vida", cuja duração é 40 minutos (suporte em DVD), e seguida de tertúlia com o fim de divulgar a Biodiversidade e sua importância na Guiné-Bissau. Para esse efeito gostaríamos de ter a sua presença, pois é um grande conhecedor desta matéria e tornaria o debate de ideias mais esclarecedor. O tema é: Conservação da Biodiversidade para manter o Pão dos Guineenses.

Este filme é da propriedade do IBAP - Instituto da Biodiversidade e das Áreas Protegidas cuja autorização já foi concedida para passar o filme em Lisboa (anexo).

O local escolhido para esta acção é o Centro Cultural Franciscano (Largo da Luz - Carnide), pois o Professor Padre João Lourenço (Director do CCF) mostrou grande disponibilidade e interesse para esta iniciativa. Para além de disponibilizar o auditório também fará divulgação deste evento junto da Família Franciscana e Universidade Católica.

A Ajuda Amiga irá divulgar este serão junto dos seus associados, amigos, familiares, internet e facebook.

Contando com a sua amável presença, agradeço a sua confirmação a fim de podermos dar inicio à sua divulgação.

Melhores Cumprimentos
Cristina Ferreira
Vice-Presidente para a Gestão

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Notas de CV

(*) Vd. poste de 4 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6529: Cusa di nos terra (15): A propósito do último livro do António Estácio, Nha Carlota... e as suas comidinhas (Luís Graça)

(**) Vd. poste de 5 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7084: Ser solidário (89): Em Oeiras e Lisboa, dia 6 de Outubro, dois eventos da iniciativa da ONGD Ajuda Amiga: Combate à Pobreza e à Exclusão Social, e Defesa da Biodiversidade (Carlos Silva)

Vd. último poste da série de 12 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7120: Ser solidário (91): Sarau cultural para angariação de fundos a favor da Guiné-Bissau (José Teixeira)

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Guiné 63/74 - P7160: Notas de leitura (160): Descolonização Portuguesa - O Regresso das Caravelas, de João Paulo Guerra (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Outubro de 2010:

Queridos amigos,
Andei por terras da Galiza, mas não descurei as minhas obrigações.
Li duas obras de grande importância para o nosso blogue: “Guerra na Guiné”, de Hélio Felgas e “Crónica da Libertação”, de Luís Cabral.
Delas começarei a falar amanhã, haverá surpresas.

Um abraço do
Mário


O regresso das caravelas, por João Paulo Guerra (2)

Beja Santos

Em 25 de Abril de 1974 o dirigente máximo do PAIGC, Luís Cabral, convocou o Comité Executivo de Luta. O comunicado saído da reunião advertia de que não haveria negociações sem o reconhecimento da República da Guiné-Bissau e sem o reconhecimento à autodeterminação e à independência de Cabo Verde, bem como das outras colónias portuguesas. Em termos de concessão, o PAIGC predispunha-se a começar imediatamente as negociações, com cessar-fogo ou sem cessar-fogo. Inicia-se um processo tumultuoso de reivindicações e até de actos de indisciplina. Aquando do golpe de Estado, Senghor estava em Paris e pediu a Spínola para falar com um delegado que ele mandatasse. Carlos Fabião seguiu para Paris e sobre o teor da conversa entendeu manter o maior sigilo. Depois começaram as negociações em Londres e Fabião considera que houve um grande erro do general Spínola em não ter reconhecido imediatamente a independência da Guiné. A este propósito, Almeida Santos vem afirmar que o general Spínola nunca aceitou de bom grado a independência de um território onde ele fora comandante-chefe das Forças Armadas. Para Carlos Fabião, Spínola tinha outros planos: “Ele desejava ir à Guiné, fazer um congresso do povo, que o povo lhe pedisse a independência, e ele, Spínola, oferecia a independência à Guiné. O PAIGC nunca aceitou isso, dizia que era da parte do general um acto de vaidade pessoal, e que se ele fosse à Guiné recomeçaria a guerra”. Alguns milhares de panfletos com fotografias de Spínola ainda seguiram para a Guiné e o recomeço da guerra esteve no horizonte. Quando Fabião chega à Guiné, todos se manifestavam a favor da paz. Portugal foi o 87.º país a reconhecer a independência da Guiné. Depois de 13 anos de guerra, Portugal descolonizou em menos de 20 meses, em África e na Ásia.

E veio o depois. No dia 11 de Setembro de 1974, o PAIGC entrou no palácio do Governo em Bissau. Revolucionários e românticos, traziam os ideais de justiça. Oiçamos Luís Cabral: “Quando chegámos a Bissau, uma das primeiras medidas que tomei foi aumentar o salário mínimo, porque eu achava que o salário mínimo não dava para nada. Mas fiz isso sem ter a preocupação de saber se o Estado podia pagar ou não o aumento. Depois disso, viemos a constatar que o dinheiro deixado pela administração colonial dava para pagar apenas os salários de Novembro e Dezembro. E no dia 31 de Dezembro tínhamos na Caixa do Tesouro 56 centavos. E não tínhamos experiência nenhuma. Tínhamos arroz para mais 15 ou 20 dias e nem sabíamos como comprar o arroz. Foi nessa altura que nos valeu a solidariedade decisiva de um homem, o presidente Siad Barre, da Somália. Ele tinha recebido uma ajuda importante dos países árabes para fazer face à seca e achou que, dessa ajuda, devia trazer-me um cheque de 1 milhão de dólares. E foi com esse cheque que nós arrancámos com o país.

Os grandes problemas da descolonização da Guiné bateram à porta dos africanos que cooperavam com o exército colonial. Em diferentes obras este doloroso e delicadíssimo assunto tem sido ventilado e nem sempre se descobre a determinação em agir bem. Para uns, durante as negociações com o PAIGC, tinham sido dadas garantias de que o país não iria entrar em ajustes de contas. Para outros, teriam sido tomadas todas as iniciativas para trazer os militares para Portugal mas que estes tinham preferido receber o que lhes era devido até Dezembro de 1974. Fabião é duríssimo com eles, custa a crer que o seu juízo implacável seja de todo consistente: “Veio ao de cima a face mercenária deles. Começaram a exigir dinheiro para entregar as armas, para passar à disponibilidade. Chegaram a dizer-me que já não me obedeciam porque estavam com o PAIGC. Eu paguei-lhes os vencimentos a que eles tinham direito até ao fim de 1974. E tentei trazer comigo aqueles que quisessem. Mas o PAIGC também os aliciava. Depois é que lhes tirou o tapete. Nas vésperas de regressar a Lisboa tive uma reunião com eles todos e disse-lhes: “Isto aqui está mau para vocês”. Mas quase ninguém quis vir na altura. Sei que muitos deles foram depois fuzilados. Mas o que quiseram vir comigo, vieram”.

Como é de todos sabido, o PAIGC tentou uma experiência socialista, foi um falhanço clamoroso, a economia colapsou, entrou-se numa fase de ajuda e dependência permanente da caridade internacional. Foi uma fase romântica a que se seguiu a crispação e o devorismo, agitou-se o espantalho do inimigo interno e apontou-se o dedo aos Comandos. As questões étnicas, confabuladas e dissimuladas durante a luta da libertação, vieram ao de cima, em Novembro de 1980.

No campo da especulação, poderá argumentar-se que os dirigentes do PAIGC tinham razão quando pediam a presença das autoridades portuguesas por vários anos, a seguir ao reconhecimento da independência.

Resta saber se existia viabilidade para pôr em marcha um plano de cooperação depois de tudo o que se vivera na Guiné, a própria turbulência dos militares em Maio e Junho. O caldeirão pela luta do poder já fervia e os acontecimentos de Angola e Moçambique foram determinantes para esquecer que os militares do PAIGC podiam saber muito de guerra e da gestão dos armazéns do povo mas não estavam preparados para as complexidades de uma governação pós-colonial, em estado de puro abandono, sem técnicos, sem investidores, sem gestores. Foi um sonho que se consumiu rapidamente e que carbonizou uma esforçada classe política, que não aguentou o tempo da inocência.
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Nota de CV:

Vd. poste de 18 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7143: Notas de leitura (159): Descolonização Portuguesa - O Regresso das Caravelas, de João Paulo Guerra (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P7159: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (5): Até beber urina

1. Mensagem José Ferreira da Silva* (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 20 de Outubro de 2010, com mais outra das suas memórias:

Caros Camaradas
Junto a história "Até beber urina", para incluir nas "Outras memórias da minha guerra".
E, tratando-se de uma bastante pesada, queria aproveitar parajustificar com o seguinte:

Quando terminei a guerra não descansei sem "fugir" para Angola (terra de meus sonhos), para onde fui trabalhar, arranjar um filho e procurar esquecer aqueles tempos marcantes das nossas vidas. Dediquei-me à pesca e aos filmes leves, belos e divertidos. Só lia e ouvia assuntos de desporto. Sempre que falava da guerra, apenas recordava as tais "boas memórias" porque o resto era imperioso esquecer. Penso que esta reacção era comum à maioria dos que tiveram o azar de ser mais "castigados". Não é por acaso que só ao fim de 11 anos, a nossa malta começou a reunir e também como eu, a evitar relembrar as tais "outras memórias".

E foi na sequência dos bons momentos que passámos no último encontro da Companhia, especialmente na sua continuação, em casa do Seixas de Felgueiras, que o amigo e camarada da Cart 1689, Abrunhosa Branquinho, insistiu de novo e fez-me prometer contar as minhas histórias, no blogue do Luís Graça & Camaradas da Guiné.

Claro que só pensava registar as coisas boas mas, como reacção de alguns camaradas, ouvi criticas acusando de que eu deveria também contar as outras histórias em que a nossa Companhia tanto sofreu. Por isso, e porque o lema da tertúlia é "não deixes que sejam os outros a contar a tua historia por ti", vejo-me a relembrar o que tanto forcei para esquecer.

Porém, preso aos mesmos princípios, peço desculpa a todos os camaradas que me lêem, pelo facto de os fazer reviver tão lamentáveis momentos.

Um abraço do
Silva da Cart 1689



Outras memórias da minha guerra (5)

Até beber urina

Continuávamos a norte de Banjara do Oio (10.Jun.67), dando seguimento à Op Inquietar I.
Havíamos sofrido o baptismo de fogo e o embate de Cambaju. Já acusávamos um certo desgaste pela difícil progressão e pela falta de água. Num qualquer gabinete fresco e arejado das nossas Forças Armadas, algum “iluminado” programara esta Operação. Estava marcado, no desenho da operação, que a nossa Cart 1689 deveria atingir o rio (Cambaju), por volta do meio-dia do dia seguinte, no qual já nos podíamos reabastecer de água.

O Silva após a Operação Inquietar I

O problema é que não se via rio, não se enxergava qualquer espaço húmido, nem um simples declive, e menos ainda o que se pudesse chamar uma linha de água. Fomos batendo a zona em vão. E, quando ao fim de algumas horas notamos que estávamos em local já por nós calcorreado, decidimos ficar a descansar e pernoitar, possivelmente no leito do tal rio invisível.

Logo de manhã (11.Junho.67), ali perto, fizemos um prisioneiro que nos serviu de guia. Quando demos por ela, o guia já nos desviava para atacar e destruir umas tabancas de população Manjaca (claro que não era da sua etnia), e não tardou que também nos desorientasse.

Nesta situação, contactámos a base de Bafatá. Apareceu-nos o pequeno avião (PCV do CMD Operacional) cujo piloto, mesmo a sobrevoar-nos afirmava que não nos descobria nem nos ouvia, Foi lançada uma granada de fumos, para facilitar a localização. Como ela não deflagrou, teve que se lançar outra e mais outra (era a última), porque a anterior também não deflagrou. Mesmo assim, não nos descobriram. Porque nos expusemos a ser descobertos pelo IN, dada a movimentação aérea e o fumo da granada, procurámos logo sair dali. Ao iniciar esse movimento, o soldado António Soares, mais conhecido pelo “Banharia”, possivelmente o militar mais curioso e mais reguila da nossa Companhia, agarrou numa granada que não deflagrara e meteu-a no bolso lateral direito das calças.

Não tardou que a granada deflagrasse e apanhasse o “Banharia” em cheio. Foi gritaria incrível, pois a granada de fósforo não parava de arder. Era um louco a correr de um lado para o outro, em gritos e em total desespero. A primeira reacção da nossa tropa foi afastar-se dele. Então, num gesto corajoso, o “Cabo Felgueiras” tirou a sua camisa e com ela tentou fazer o impossível. Só quando se rasgaram e afastaram as calças do corpo do “Banharia” é que ele ficou mais aliviado. Descobertos pelo IN, e um pouco apavorados com o sucedido, não podíamos ali permanecer muito tempo à espera de socorro.
Curiosamente, recebemos então uma informação do PCV de que já havíamos atravessado o tal rio e de acordo com o programado! Era a confirmação de que sabiam onde estávamos e não nos tinham perdido de vista.

Não demorou muito a chegada de um helicóptero, mas não se descobria uma clareira para ele aterrar. Foi então que presenciei uma manobra incrível daquele helicóptero. Depois de circundar a zona, aproximou-se a sobrevoar rasteiro sobre as árvores mais pequenas em direcção ao tronco da árvore maior, e ao chegar perto da árvore inclinou-se ligeiramente e aterrou mesmo debaixo dela; regressou pelo mesmo espaço e com as mesmas manobras, depois de carregar o Banharia”. Só voltei a vê-lo no dia do regresso da Guiné, na Metrópole, porque nos foi esperar. Estava muito contente porque já conseguia andar sem muletas.

Mas, o pior estava para vir. Agora não se vislumbrava o tal reabastecimento da água e que era indispensável para se poder continuar. A noite aproximava-se de novo, sem termos progredido quase nada. Vários camaradas já só andavam apoiados nos outros. Esse número de impossibilitados ia aumentando à medida que o tempo passava. Alguns militares tinham beneficiado de alguma água dos carregadores, no início da manhã do dia anterior, enquanto houve. Os outros, com o cantil quase vazio foram resistindo até ao máximo, racionando a pouca que ainda tinham por já temerem o pior. Porém, já não havia água alguma há cerca de 30 horas!

Desidratados, caminhávamos lentamente, já com poucas forças e pouco alento. E, conforme se veio a saber, também sem rumo. A mata era toda igual, cheia de arbustos baixos que era preciso romper, muitas vezes rastejando, sem relevos nem linhas de água, mesmo secas. Não sabíamos para onde avançar. Tivemos que parar. O cansaço esgotante já estava a dominar-nos. Era imperioso descansar para continuarmos a resistir naquela noite horrível. Ao contrário do que se pode imaginar, dentro da mata, o calor abafado e a falta de oxigénio aumentava o sofrimento.

Os primeiros raios da madrugada (12.Junho.1967) vieram encontrar aqueles corpos “mortos” e estendidos no chão, alguns aparentando poucos sinais de vida.
Como se sentia alguma frescura nas folhas dos arbustos, lá as íamos mascando, algumas com sabores insuportáveis. E como as ervas pareciam ter humidade, rastejávamos e nelas pousávamos os lábios para as lamber. Recordo que apanhei uma espécie de jarro (flor), onde se via um pouco de água no fundo; bebi aquilo e senti um gosto horrível. Era um líquido corrosivo, decerto da própria planta para matar os insectos que lá iam beber. Deu para senti-los na boca, e vê-los em decomposição.

É nesta movimentação arrepiante que o Massarelos, ao caminhar, raspou no Chico e sentiu que o seu cantil deu sinal de ter água. Atirou-se a ele:

– Ó filho da puta, tu tens água e deixas-me aqui morrer à sede? Eu, que sou mais que teu irmão?

O Chico, sentado no chão, ficou apático, calado, sem a mínima reacção ao que lhe diziam. Tiraram-lhe o cantil e sofregamente, cada qual o levou à boca na esperança de colher alguma água.

- É mijo, é mijo! - logo berraram os que deitaram o cantil à boca.

E o Chico, imperturbável e resignado, acabou por confessar que ainda não tinha bebido nada e que tinha a urina como reserva, o que ninguém acreditou. E, ao constar-se este caso, logo se descobriram outros.

O “guia forçado” voltou a perder-se. Afinal nunca nos orientou bem e já temíamos o pior. Não sei quanto tempo mais andámos à deriva. Era pouca a distância percorrida porque, nesta situação já rareavam a força para caminhar e a consciência das coisas. Alguns lá resistiam mais, agarrando e arrastando outros já semi-inconscientes, que pareciam de borracha. Quase ninguém tinha a arma em posição de defesa, pois vinha em bandoleira. Confesso que tenho dificuldade em dizer o tempo que tudo isto durou.

Agora, esgotados, desfalecidos e estendidos pelo chão, já quase ninguém andava. Não havia forças nem lucidez para falar. Alguns sentados e encostados às árvores, buscando energias e vontade de viver, acariciavam com os dedos, as pequenas fotos dos seus entes queridos. Digamos que já se procurava esquecer o pior, até porque ninguém queria tal despedida. É que já havia quem pensasse que a nossa salvação seria o IN nos encontrar e não nos atacar.

É neste cenário de morte esperada e quase resignada que surge a informação de que o guia se havia desviado tanto para a direita que nos levou para próximo da estrada Banjara-Bafata.

Localização de Banjara e Cambaju

De repente, não sei de onde veio tanta energia. Os “mortos” ressuscitaram e os “moribundos” endireitaram-se. Alteraram-se os rostos, voltaram a brilhar os olhos mortiços e recuperaram parte das forças.

Foram respeitadas as orientações dadas para prosseguirmos devagar e dentro da mesma ordem. Eu procurei assumir alguma autoridade, avisando “o pessoal” que ninguém deveria ir beber água ao charco putrefacto, situado umas centenas de metros antes de Banjara. Ainda consegui incentivá-los:

- Vamos resistir mais uns minutos, porque em Banjara não faltam bebidas frescas e lá já estão a contar connosco.

Todos pareceram concordar com o aviso. A esperança sempre nos dava mais um bocado de alento e resistência.

Seguíamos em frente, pela estrada, já a ver o Destacamento e mais apressadamente, beneficiando da leve descida da estrada. Nem queria olhar para o charco e lá ia incentivando a malta para fazer o mesmo. De repente, faz-se atrás de mim uma algazarra. Era a malta a correr e a atirar-se para o charco. Não sei o que se passou comigo, que, quando dei por mim, também estava no meio daqueles corpos fardados, imersos no charco, onde os animais bebiam e defecavam, agora transformado em lamaçal, e no qual as bocas semi-abertas sugavam sofregamente todo o líquido que podiam. Cabeças, canos e coronhas de armas, botas, braços e pernas, tudo se misturava descontroladamente, em movimentos bruscos. Sentindo barro na minha boca sequiosa, mais forçava com os lábios a entrada do líquido através do bigode, que servia de filtro. Cheguei a sentir “seres estranhos” a rabear entre os pelos que eu procurava tirar com as unhas. A partir dali, fiquei seguro de que nada pode dominar o instinto da sobrevivência.

Agora incentivávamo-nos uns aos outros para largarmos aquele perigoso e nojento lamaçal e avançarmos para Banjara. Aí chegados, era cerveja, sumol, água, tudo o que pudéssemos levar aos lábios numa vontade de beber incontrolada. Não tardou que as dores horríveis sentidas no abdómen se misturassem com a vontade imensa de... beber, beber e beber. Insaciavelmente.

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Duas notas finais:

1 - Por não ter sido atingido o objectivo (acampamento IN em local incerto na zona de Canjambari), a nossa Companhia, reduzida a um terço do seu efectivo, foi mandada montar emboscadas na região de Bantajã, até às 6H30 (13.Jun.1967), por ordem do PCV.

2 - Esta operação foi repetida, com grande sucesso, pela nossa Companhia sob a denominação( Inquietar II)

(Silva da Cart 1689)
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Notas de CV:

Vd. último poste da série de 27 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7044: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (4): Olhar fatal

Em tempo: - Houve um lapso da minha parte porque encontrei no Google Earth uma localidade com o nome Cambaju junto à fronteira com o Senegal e considerei-a como sendo aquela a que o Silva se referia na sua história.
O nosso camarada pediu para rectificar porque o Cambaju que ele conheceu se situava próximo de Danga.

Está rectificada e reposta a verdade.
Carlos Vinhal
23OUT2010