sábado, 5 de setembro de 2020

Guiné 61/74 - P21327: Os nossos seres, saberes e lazeres (409): No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (5) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Março de 2020:

Queridos amigos,
Vamos dar o merecido destaque ao Conde d'Aurora, um aristocrata limiano que andou em sedições monárquicas, andou pelo exílio, regressou, deixou prosa diversa, mas o seu principal fervor foi a Ribeira Lima e toda a envolvente minhota. O meu saudoso amigos Carlos Miguel de Abreu de Lima de Araújo venerava constantemente a sua memória, contando pilhérias em que ele participara, logo a recordação de um julgamento no Porto. O Conde era Juiz, salvo erro num Tribunal do Trabalho, o Carlos Miguel ao tempo trabalhava numa caixa de providência, competia-lhe ir testemunhar. O meirinho tratou-o por Sr. Dr. Carlos de Araújo, e interpelado pelo juiz, observou-lhe que não era licenciado. Resposta pronta do Conde d'Aurora: "Não é, mas tem muito tempo para vir a ser".
Hoje é aqui festejado, parece-me que bem merecidamente. Eu ganhei o dia, ir a Ponte de Lima e sair daqui com este texto e estas fotografias é como trazer um relicário. A feira descrita pelo Conde d'Aurora é hoje outra coisa, noutro espaço. Termino o dia percorrendo a Avenida dos Plátanos, imaginando tendas, pregões, loiças, bancas cheias de ouro, latoaria profusa, mungido dos animais, poeira, cor, a vibração do acento minhoto, aquela indumentária ilustre, lojas com socas e tairocas, e saúdo quem já partiu e tanto amou Ponte de Lima.

Um abraço do
Mário


No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (5)

Mário Beja Santos

Lembro-me como se fosse hoje. Aí por volta de 2013, numa tarde em que fui fazer leituras ao meu saudoso amigo Carlos Miguel de Abreu de Lima de Araújo, limiano inquebrantável, depois de nos sentarmos, ele no seu sofá, eu num cadeirão, a escasso metro e meio dele, naquele belo ambiente de paredes forradas com preciosidades de Carlos Botelho, Moniz Pereira, Lurdes Castro, Mário Cesariny, Noronha da Costa, tendo diante dos meus olhos o retrato que lhe fez um amigo comum, Vasco de Castro, ele pediu-me para abrir um pacote que chegara de Ponte de Lima. Abri e disse-lhe que se tratava de A feira da Ponte, do Conde d’Aurora. Agitou-se no sofá, os seus olhos vazos pareciam ter ganho uma luminosidade, Deus me perdoe, estava eu com o livro na mão e a fotografar imagens que me pareceram da década de 1950, ou talvez do início da década de 1960, e Carlos Miguel parecia falar para uma assembleia entusiasmada, foram convocados ilustríssimos e sonantes nomes de limianos como o poeta e Embaixador António Feijó, o Cardeal Saraiva, que foi Patriarca em Lisboa, veio à baila o foral de D. Teresa, naquela sala foram referenciadas casas, o Natal na Casa da Feitosa, e já cansado, disse-me na sua voz abaritonada: “Por gentileza, recorde-me o que o Conde d’Aurora escreveu, sei muito bem que é um documento literário incomparável”.

E eu comecei: “Oh! Se puderes, forasteiro, vem a Ponte de Lima num dia de mercado. É às segundas, de quinze em quinze dias (às outras, chama-lhes o povo solteiras)”. Mais para a frente voltarei ao texto, foi uma tarde magnífica, o Carlos Miguel parecia recolhido, como em oração, só raramente interrompia, houve mesmo uma chamada telefónica, pretextou que estava lá a sua médica de família, ligaria mais tarde, e eu recomecei a leitura, aquela viagem empolgante dentro de uma feira, sentia-se que o aristocrata discorria esfusiante, eram notas amoráveis de alguém que olhava com o coração a palpitar naquele mar de gente, a sua gente.

Hoje começo o dia por ir ao arquivo de Ponte de Lima, pergunto por obras do Conde d’Aurora, logo que vejo este livro da feira não perco mais tempo, a senhora que me atende está assim um pouco atarantada, trouxe-me uma carrada de títulos, e agora o cliente quer pagar imediatamente aquele livro, diz que tem pressa, coisas urgentes a fazer. Urgência havia, queria pôr-me à beira-rio a sonhar com aquela feira, caminhar com a vibração do escritor que deixou imagens ímpares desta feira legendária.



Na Rua do Souto, parei diante de um portão e avistei este átrio, o belo arco e a escadaria. Deu-me para imaginar que Camilo Castelo Branco podia muito bem ter passado por ali…


Uma capela para além da ponte, cheia de história, chama-se do Anjo da Guarda, tem lá dentro a imagem de São Miguel, século XIII, monumento nacional

Imagem do Arquivo de Ponte de Lima


Já me sentei à beira-rio, estou a inventar um mar de gente, tendas de bordados, vendedores de ouro, um extenso mercado de gado. Pego no livro, dou a palavra a José António Maria Francisco Xavier de Sá Pereira Coutinho: “Foi sempre muito concorrida dos povos da região – e, segundo rezam documentos antigos do arquivo camarário, em velhas épocas passadas eram muito frequentadas pelos galegos. Ainda há muito quem hoje venha de Caminha, pela serra. De Coura, Viana, Barca e Arcos chega muito gado. Não faltam a ela os ourives de Braga e as burriqueiras do Prado, dos linhos, e tantas gentes mais. Mas vou tentar descrever-ta.
Primeiro, de cima da ponte, um circo de montes de beleza única, solares acastelados nos altos, ermidas alvejando, como um chamamento de graça e de fé, pelo meio da verdura. Capelas, igrejas, casais de povo por todos os lados, dobra do rio envolta em verdura, traçando a larga curva a jusante – e verdes milheirais por ali abaixo. Depois a vila com o seu pastel de prédios e pano de fundo, de mata secular, a circuitar o casario: granito amontoado em fundo verde, heraldicamente emplumado”.

Atenda-se que todo este relato tem muito mais de meio século, quase tudo mudou, mas há descrições do Conde d’Aurora possuídas de um fulgor, é prosa limiana sacramental, a convicção é minha, consigo lembrar-me neste momento do recolhimento do meu amigo Carlos Miguel quando lhe estou a falar do formigueiro de povo que entra na feira, lavradeiras, ciganos, mulheres de saias muito compridas, de muitos folhos e pregas, passam carros de bácaros, muitos cestos, sacas, feixes. A narrativa é meticulosa, como se o autor fosse detentor de um olhar reticulado e pontilhista. Do lado norte é a feira do gado. Ao fundo, na parte do areal que toca na água, andam soltas as vacas leiteiras, cingidas na testa com fitas de mastro. “Neste extenso quadrilátero não entra um carro, um cesto, uma barraca – apenas as juntas de bois, quase todos Barrosões, dessa linda sub-raça vianesa de focinho preto luzidio”. Marcado este teatro de ação, passa a outra panorâmica: “Do outro lado da ponte: areal do sul, ainda mais extenso, formando quase um círculo, oval imensa que vai fechar-se ao fundo, lá muito ao longe, quando o rio vai de tangente beijar a capelinha da Guia, no topo da Avenida dos plátanos. O resto da feira, tudo o que não é gado bovino, aqui se desenrola”. Que melhor cicerone, aedo, porta-estandarte, podia ter a feira da Ponte, senão este iluminado?

Conde d’Aurora


O escritor segue entusiasmado, anda entre as tendas das barraqueiras da feira, avista linho, atoalhados com ponto aberto, parece que o sangue lhe ferve a falar dos barros, aqueles barros que emergem da capa do livro: “É a feira dos barros, esses barros de Alvarães e de Barcelos; panelinhas assadeiras de forma bizarra e tradicional, travessas de formato e desenho herdado do século XVIII, pratos coloridos como no Império, granadeiros napoleónicos e assobio dos pés para os garotos brincarem, e tantos assobios mais e panelinhas e cornetas de barro, esses temíveis clarins que o garotame estridula toda a tarde da feira (e felizmente se quebram ao fim do dia)”.

Fotografia do Conde d’Aurora


Eu sei que o Carlos Miguel quer falar de algumas das ousadias e brejeirices do Conde d’Aurora, ainda continua recolhido, estou agora na última página deste livro plenamente limiano, comprado ao princípio da manhã e destinado a ficar perto de mim, no meu escritório, tal a magnificência das imagens. Carlos Miguel, vamos acabar este fabuloso texto, antes da sua memória, das mais rigorosas que conheci, trazer à tona aspetos facetos deste escritor. Assim termina a viagem pela feira:
“Pela meia tarde, sol alto ainda, começa tudo a debandar, os de mais longe em carros acogulados de gente, camionetas incómodas de ingénuas pinturas menineiras, camionetas que vieram substituir os velhos carros de cavalos, essas catitas de funda caixa e alta boleia tripla onde se encarrapitavam trinta caceteiros de varapau em riste”. Deixa-nos saudades das carripanas e despede-se com ufania: “Poeira, alegria, cor, som, algazarra – e tudo é beleza em redor e a bênção de Deus enche de alegria os corações e os lares”. Bendito reencontro com a prosa e as imagens do Conde d’Aurora, insuperáveis, e que bom recordar aquela tarde de 2013, chegara um livro do Conde d’Aurora a casa do Carlos Miguel, tivemos os dois uma tarde de paraninfo, graças a um senhor ilustre que sabia mergulhar entre a seiva do seu povo.

Imagens recentes de feiras de Ponte de Lima

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21303: Os nossos seres, saberes e lazeres (408): No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (4) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21326: Parabéns a você (1863): José Marcelino Martins, ex-Fur Mil TRMS da CCAÇ 5 (Guiné, 1968/70)

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Nota do editor

Último poste da série de 4 de Setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21320: Parabéns a você (1862): Armor Pires Mota, ex-Alf Mil Cav da CCAV 488 (Guiné, 1963/65); José Câmara, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56 (Guiné, 1971/73) e Torcato Mendonça, ex-Alf Mil Art da CART 2339 (Guiné, 1968/69)

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Guiné 61/74 - P21325: Guiné 61/74 - P21319: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (3): As ratazanas (e o PAIGC) ao ataque em Gampará



Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > Mapa de Fulacunda (1956) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Gampará e da Ponta do Inglês na Foz do Rio Corubal 

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2013)




Carlos Barros, ex-fur mil at art, 
2ª C/ BART 6520/72 (1972/74)

1. Mais um pequena história do Carlos Barros, um de "Os Mais de Nova Sintra", 2ª C/BART 6520/72 (Bolama, Bissau, Tite, Nova Sintra, Gampará, 1972/74) (*):


As ratazanas ao ataque… 

 por Carlos Barros


O 3º Grupo de Combate da 2ª CART / BART 6520/72  foi destacado para Gampará, um pequeno inferno de guerra, zona conquistada “recentemente” ao PAIGC e que este movimento guerrilheiro nunca deixou de atacar, de uma forma insistente: eram constantes flagelações ao aquartelamento, inúmeras emboscadas no mato, em suma, era a guerra em toda a plenitude…

A maioria dos militares dormia ao ar livre, no período mais quente e outros recolhiam-se nas casernas, feitas de adobes com cobertura de chapas de zinco, onde o frio e a chuva, tinham entrada livre…

O furriel Barros dormia numa caserna, sobre um colchão de espuma, sem lençol, e dormir nestas condições era terrível já que a ansiedade estava constantemente presente, devido aos ataques dos guerrilheiros inimigos para além dos mosquitos, inimigo número um dos militares “metropolitanos”…

Os ratos eram às centenas, atacavam os militares, subiam pelas paredes dos adobes e “guinchavam” numa melodia de sons agudos e incomodativos.

Um dia, para fazer face a esta praga, o Barros pediu aos mecânicos da companhia para fazerem uma ratoeira e, passados dois dias, apareceu,  ao furriel, uma ratoeira cheia de molas, parafusos e outras “tecnologias”. Ratoeira montada durante uns dias, e os ratos entravam e saiam da ratoeira num gozo irritante…O Barros sentia-se ultrajado e agiu…

Fez uma ratoeira simples, com tábuas dos caixotes das batatas, uma caixa forrada com folheta, das latas de conservas, uma porta “levadiça”, um arame em caracol, com isco, a segurar a entrada da ratoeira improvisada e, no final, de uma semana, o Barros tinha apanhado 47 ratazanas, sim, foram quarenta e sete, nada mais , nada menos que essa quantidade de ratos…

E o que fazia o Barros, todas as manhãs? Imagine-se!...

Colocava as ratazanas num bidon, regava-as com gasolina e soltava-as numa curta corrida contra a morte…

Hoje, não faria isto, mas a guerra transtorna as nossas mentes e a realidade foge-nos…

O Barros não ficou com a patente da armadilha, pelo contrário, deu a conhecer aos “artistas inventores” dos condutores a estrutura e o funcionamento do mesma e, a partir daí, o furriel Barros, era o grande inventor e o inimigo das ratazanas… O Barros apanhava, e a população nativa, levava a “mercadoria” para as suas tabancas, para comerem como “pitéu”…

Em Gampará havia alguma população e eram maioritariamente Balantas e Mandingas e as ratazanas assadas eram comidas por esta população e vi, muitas vezes, eles nas bolanhas secas, com uma catana, esburacarem as tocas para apanharem esses roedores para sustento da família….

Como curiosidade, e um pouco aparte desta história, segundo censo de 1960, a população total da Guiné era de 521 336 habitantes, dos quais 519 229, constituíam a população residente.

A densidade populacional média, para toda a “Província” aproximava-se dos 15 habitantes por Km2.

No grupo mandinga contam-se os Mandingas, os Saracolés, os Bombarás, os Jacandas, os Sossos e os Jaloncas. A Guiné tinha uma diversidade étnica muito grande: Balantas, Manjacos, Mandingas, Papel, Brame, Fulas, Beafadas,Bijagós, Felupes, Torancas…Estas etnias e muitas outras, eram constituídas por vários subgrupos, numa complexidade tal, que a convivência entre eles não era fácil, como se pode depreender.

Estes dados é apenas , para dar a conhecer um pouco da população guineense mas, muito mais poderia descrever…

Uma coisa é certa, o Barros continuou na sua luta contra os ratos, uma longa guerra que continuou no tempo e, no final da Comissão, já em Esposende, contei esta história à minha família e amigos meus que a acharam engraçada e curiosa…

Carlos Barros
Esposende, 19 de junho de 2020
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Guiné 61/74 - P21324: Blogpoesia (694): poemas para dizer em voz alta, em casa, na varanda, na rua, ou à beira-mar, em tempos de pandemia: António Gedeão, Li Bai, David Mourão Ferreira e Viriato da Cruz (seleção de Mário Gaspar, António Graça de Abreu, Mário Beja Santos e Luís Graça respetivamente)

Lisboa > Bairro da Graça > Festival Todos 2019 > 29 de setembro de 2019 > Janelas. 

Foto (e legenda);  Luís Graça (2019)


Janelas de Lisboa

Tenho quarenta janelas
nas paredes do meu quarto.
Sem vidros nem bambinelas
posso ver através delas
o mundo em que me reparto.

Por uma entra a luz do sol,
por outra a luz do luar,
por outra a luz das estrelas,
que andam no céu a rolar.

Pela maior entra o espanto,
pela menor a certeza,
pela da frente a beleza,
que inunda de canto a canto.

Pela redonda entra o sonho,
que as vigias são redondas,
e o sonho afaga e embala
à semelhança das ondas.

Todos os risos e choros,
todas as fomes e sedes,
tudo alonga a sua sombra
nas minhas quatro paredes.

Oh janelas do meu quarto,
quem vos pudesse rasgar!

Com tanta janela aberta
falta-me a luz e o ar.

[Seleção de Mário Vitorino Gaspar, 
1/9/2020, 23h24. Sem indicação de fonte]

   


O poeta Li Bai (China, séc. VIII), "bebendo ao luar". 
Foto: origem desconhecida.  Cortesia:
facebook de António Graça de Abreu

Bebendo ao luar

por Li Bai [701-762]

Tradução de um dos mais famosos poemas de Li Bai,  por António Graça de Abreu
 

月下獨酌
花間一壺酒
獨酌無相親
舉杯邀明月
對影成三人
月既不解飲
影徒隨我身
暫伴月將影
行樂須及春
我歌月徘徊
我舞影零亂
醒時同交歡
醉後各分散
永結無情遊
相期邈雲漢

Um jarro de vinho entre as flores,
bebo sozinho, sem amigos.
Levanto o copo e convido o luar,
com a minha sombra somos três.
Ah, mas a Lua não sabe beber,
a sombra só sabe acompanhar meu corpo.
O luar por amigo, a sombra por escrava,
vamos todos fruir a Primavera, festejar.
Eu canto e passeiam no ar
os raios de luar.
Eu danço e volteia no espaço
a sombra de mim.
Lúcidos, nós três desfrutámos prazeres suaves,
bêbados, cada um segue seu caminho.
Que possamos repetir muitas vezes
nosso singular festim
e nos encontremos, por fim,
na Via Láctea.


[ Seleção: Anjos Silva Mendes | António Graça de Abreu, 
26/8/2020, 23h12]

 

Adiamento

por David Mourão-Ferreira [1927-1996]

Olhar-te bem nos olhos: que voragem!
Ouvir-te a voz na alma: que estridência!
É tão difícil termos coragem
de nos vermos enfim sem complacência.

É tão difícil regressar de viagem,
e descobrir no rastro tanta ausência…
Mas os meus olhos, súbito, reagem.
À tua voz chega o silêncio e vence-a.

Nos pulsos vibra ainda o mesmo rio
que no delta dos dedos se extasia
e moroso reflui ao coração.

O gesto de acusar-te? Suspendi-o.
Mas foi só aguardando melhor dia
em que tenha lugar a execução.

David Mourão-Ferreira
in, “Obra poética” a págs. 171/172
Editorial Presença, lISBOA, 2001

[Seleção: António Beja Santos, 

27/08/2020, 19:14]


















Maqueso, "makèzú", noz de cola... Cortesia de 

Makèzú


makèzú

— «Kuakié!... Makèzú, Makèzú...»

..........................................................

O pregão da avó Ximinha

É mesmo como os seus panos,

Já não tem a cor berrante

Que tinha nos outros anos.

 

Avó Xima está velhinha

Mas de manhã, manhãzinha,

Pede licença ao reumático

E num passo nada prático

Rasga estradinhas na areia...

 

Lá vai para um cajueiro

Que se levanta altaneiro

No cruzeiro dos caminhos

Das gentes que vão p’ra Baixa.

 

Nem criados, nem pedreiros

Nem alegres lavadeiras

Dessa nova geração

Das «venidas de alcatrão»

Ouvem o fraco pregão

Da velhinha quitandeira.

 

— «Kuakié!... Makèzú, Makèzú...»

— «Antão, véia, hoje nada?»

 

— «Nada, mano Filisberto...

Hoje os tempo tá mudado...»

 

— «Mas tá passá gente perto...

Como é aqui tás fazendo isso?»

 

— «Não sabe?! Todo esse povo

Pegô um costume novo

Qui diz quê civrização:

Come só pão com chouriço

Ou toma café com pão...

 

E diz ainda pru cima,

(Hum... mbundo kène muxima...)

Qui o nosso bom makèzú

É pra veios como tu».

 

— «Eles não sabe o que diz...

Pru quê qui vivi filiz

E tem cem ano eu e tu?»


— «É pruquê nossas raiz

Tem força do makèzú!...»


In: Viriato da Cruz, "Poemas", 1ª edição. Lisboa, Casa dos Estudantes do Império, Colecção de Autores Ultramarinos, 1961

[ Seleção: Luís Graça, 4 set 2020;  "maquezo", do quimbundo  makezu, plural de dikezu, noz de cola,  fruto mascado ou de que se faz uma bebida; fruto sagrado na cultura bantu]

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Guiné 61/74 - P21323: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (17): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Agosto de 2020:

Queridos amigos,
Chegou o momento de ouvirmos Annette Cantinaux na intimidade, o desabafo do que a vida lhe ensinou, o inesperado deste romance, este esfuziante português que a passeia por Bruxelas de mão dada com um mapa na mão, à cata de becos e vielas no bairro de Marolles onde Annette nasceu na clandestinidade, ainda havia o perigo de uma denúncia, a criança judia cresceu entre duas famílias, amou e desamou, dois filhos cresceram e aquela cinquentona que se desloca em permanência de reunião em reunião na Europa dos Doze, atira para trás das costas as inquietações do que o futuro lhe reserva, aquele homem trouxe-lhe a luminosidade das estrelas e confiante parte para mais um dia de trabalho, sabe que de Lisboa virá carta ou telefonema, o seu amor prepara afanosamente uma viagem até Bruxelas, mas já avisou que no próximo Natal haverá encontro em Lisboa, pode até dar-se o caso de ela se apaixonar pela cidade e passar ali a velhice com os trapinhos ajuntados.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (17): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Este é o meu solilóquio de destemor e epifania. Possuo nome que não coincide com o meu sangue judeu, vim ao mundo em Marolles, na mais completa das clandestinidades, se minha mãe e eu tivéssemos sido descobertas viajaríamos sem regresso para Auschwitz. Não me envergonho de me sentir Annette Cantinaux, sabendo que os meus ancestrais se chamaram Rute ou Isaac, Aaron ou Judite. Os meus pais adotivos repartiram fielmente os seus afetos como os filhos de sangue, em circunstância alguma me privaram viver com os meus pais legítimos, naquele pós-guerra que se revelou duríssimo, a clandestinidade, os interrogatórios brutais e as prisões insalubres deixaram o meu pai diminuído, a minha mãe bem se esforçou por trabalhar, mesmo com falta de habilitações atirou-se à vida. A ajuda dos Cantinaux foi fundamental para que eu estudasse, cheguei a frequentar o Conservatório de Bruxelas, ali bem perto da Sinagoga, cedo se revelou a minha vocação para as línguas, esforcei-me por ser independente, era o timbre da minha geração, não depender dos pais, tive uma carreira afortunada, até hoje. Não lamento ter conhecido Gérard, contagiou-me o seu entusiasmo pela arquitetura e fotografia, a meio dos seus estudos descobriu vocação para bibliotecário, aceitei tudo, éramos jovens com pouco dinheiro, alugámos uma casinha perto da estação ferroviária de Namur, tínhamos as despesas muito controladas, os nossos dois filhos apareceram com um intervalo de três anos, a minha vida profissional pouco se ressentiu, foram anos com menos trabalho mas aceitámos as regras do jogo. Gérard concorreu para a Biblioteca Real Alberto I, por pura coincidência nesses anos eu trabalhava com muita regularidade no Comité Económico e Social Europeu, na Rue Ravenstein, chegámos a almoçar sentados nos bancos dos jardins, os nossos filhos na creche, Gérard saía mais cedo, tinha a vida facilitada com horário compactado, consegui mudar para perto da Gare du Nord, uma casa de três divisões que fomos melhorando e era o nosso castelo.

Cerca de vinte anos depois da vida em comum surgiram os espetros da indiferença, os monossílabos, o não saber o que fazer nas férias, os filhos cresciam, constituíram os seus mundos à parte, eu ainda tinha a fuga de uma vida profissional trepidante, o poder de receber um telefonema do meu chefe de serviço indicando-me que na semana seguinte começava em Kolmar na segunda-feira, terça-feira à tarde ia para uma cabine na Rue Froissart para uma reunião do Acordo Ásia, Caraíbas e Pacífico, qualquer coisa que metia pescas, quarta-feira ia para o Parlamento na Rue Belliard, quinta-feira a malfadada reunião de estatística no Luxemburgo, sexta-feira à tarde de novo em Bruxelas, sem limite de horário, um conselho de ministros. Achava que esta correria dissimulava a melancolia conjugal, puro engano. Saía de manhã, muitas vezes voltava ao fim da tarde ou ausentava-se no estrangeiro quando obrigado a reuniões internacionais em países europeus. Gérard encontrou um novo amor, foi tão intenso, desabrido e tão tomado a sério pelos dois que a revelação me chegou de chofre, Gérard terá procurado estudar a lição, confessou tudo aos solavancos, parecia que estava a pedir desculpa pelo desamor instalado. Foi o que se chama um fim de relação civilizado, sem gritarias, chantagens, não houve uma só crispação na divisão dos bens. Acordámos e cumprimos em dar aos nossos filhos todo o apoio na sequência de uma educação que pretendemos esmerada. Escolheram profissões mal remuneradas, nunca hesitámos em dar-lhes apoio, o nosso relacionamento com os filhos é firme e afetuoso. Consultei uma terapeuta, recomendou-me que mudasse de casa, que renovasse a vida relacional, que cuidasse do futuro. Numa dessas conversas até fiquei arrelampada quando ela me referiu que eu não me esquecesse que trabalhava como freelancer, devia cuidar com urgência de constituir um fundo de pensões, ela tinha razão, vivera cerca de duas décadas num regime de chapa ganha chapa gasta, mesmo sabendo que havia uma conta folgada no banco, não conhecíamos qualquer inquietação pela falta de dinheiro. Estou agora a olhar-me bem ao espelho enquanto me maquilho, ainda não são oito horas da manhã e vou trabalhar todo o dia no Parlamento Europeu. Conheci e habituei-me à solidão, a vida relacional que foi recomendada pela terapeuta teve os seus altos e baixos, devido às contingências profissionais. Estou a aplicar um creme hidratante do dia, sou uma cinquentona, encorpei, pinto o cabelo, e momentos houve nestes últimos dez anos em que aceitei resignadamente ter passado o prazo de validade.

E depois veio este tornado, este português de olhar intenso, de fala articulada, que me surpreende a qualquer hora, eu que sou belga passo a ser questionada sobre queijos, porque é que não comemos o Brie belga, os queijos do tipo trapista, disse-me gostar muito do Denée Maredsous, contou-me a história de ter levado num avião uma série de queijos picantes de Liège, mal acondicionados, era um fedor de tal ordem que o passageiro da fila atrás chamou a hospedeira para reclamar da atmosfera nauseabunda, que peripécia. Quando lhe falei de Marolles e da minha infância disse-me logo que iríamos fazer uma longa visita ao bairro, eu ainda insinuei que o que ele pretendia era voltar mais uma vez à Feira da Ladra, ficou muito sério e disse-me que queria conhecer rua por rua todo esse mundo da minha infância, como aconteceu, saímos da Rua do Eclipse de carro, estacionámos perto do Palácio da Justiça, eu levava um mapa detalhado, descemos pela Rue Ernest Allard, entramos numa igreja, depois visitámos o Museu Judaico da Bélgica, para pasmo do guia foi-me falando das diferentes migrações Asquenazes e Sefarditas, parámos na praça Émile Vandervelde onde existiu a Maison du Peuple, que eu ainda conheci, foi destruída em 1965, e lá puseram uma torre que é um mamarracho, seguimos para Nossa Senhora de la Chappelle, o Paulo queria revisitar o túmulo de Bruegel, um dos artistas belgas que ele mais admira, pediu-me mais um esforço para irmos a uma outra igreja, Église des Minimes, era perto do meio-dia, havia um concerto com cantatas de Bach, coisa de uma hora, e quando saímos Paulo abraçava-me efusivamente, segredava-me ao ouvido que Deus lhe trouxera este milagre da vida, esta companheira que ele estava pronto a seguir até ao fim dos seus tempos. Escolheu um restaurante perto do Grand Sablon, parecíamos dois namorados, então eu disse-lhe que também gostava de decidir, tínhamos feito uma parte de Marolles, tinha agora uma surpresa, íamos ver uma exposição a Antuérpia, e espontaneamente disse que sim, foi uma tarde muito feliz, momentos inesquecíveis a juntar a tantos outros.

Tenho pronta a maquilhagem, a escassos meses, turbilhonantes, este homem aponta-me para o futuro, não interessa neste momento pôr-me a inquietar com as distâncias entre Lisboa e Bruxelas, o que os nossos filhos vão pensar, e o mais que se sabe, neste momento eu sou a mulher mais feliz do mundo, não me interessa a interpretação que vou fazer hoje durante o dia todo, sei que o Paulo me irá telefonar ou escrever, excitada abrirei a caixa do correio ou ouvirei suar o telemóvel. Haja os sobressaltos que houver, este homem garantiu-me com uma solenidade inusitada que a âncora da vida está numa estranha travessa perto de um Boulevard e que tem um nome rutilante, bem adequado ao que nos aconteceu, um eclipse, não total, mas que marejou o insípido do nosso quotidiano de constelações em forma de estrelas, tão intensas que chegam aos nossos corações.

E pensar eu que tudo isto começou por causa de uma ficção engendrada pelo Paulo, uma paixão arrebatada que tinha como pano de fundo a guerra colonial na Guiné.

(continua)

Palácio da Justiça, uma desmesura de colunas, arcos babilónicos e vestíbulos monumentais

Porte de Hal, um dos raros vestígios do sistema fortificado medieval de Bruxelas

Um belo grafiti na Rue Haute, Marolles, Bruxelas

Bilhete-postal da Maison du Peuple, por Victor Horta

Torre do Sablon, mamarracho que substituiu a Maison du Peuple

Interior da Église des Minimes, Marolles, Bruxelas
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Nota do editor

Último poste da série de 21 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21278: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (16): A funda que arremessa para o fundo da memória

Guiné 61/74 - P21322: Agenda cultural (754): convite da Catarina Gomes para a sessão de lançamento do seu livro, «Coisas de Loucos: O que eles deixaram no manicómio": Feira do LIvro de Lisboa, Tinta da China, domingo, dia 6, às 17h00



Convite da autora, Catarina Gomes, e da editora, Tinta da China,


1. Mensagem da jornalista e escritora, Catarina Gomes [ tem cerca de 3 dezenas de referências no nosso blogue; não pertence formalmente à nossa Tabanca Grande, por razões de independência e deontologia profissional; é também autor da "Furriel Não É Nome de Pai: Os filhos que os militares portugueses deixaram na Guerra Colonial" (Lisboa, Tinta da China, 2018, 224 pp.)  

Data: terca feira, 1 set 2020, 11h10

Assunto: :«Coisas de Loucos» lançado na Feira do Livro a 6 de Setembro

Bom dia a todos,

O meu livro «Coisas de Loucos-O que eles deixaram no manicómio (editado pela Tinta da China) será lançado este domingo à tarde, 6 de Setembro, na Feira do Livro de Lisboa, sendo seguido de sessão de autógrafos às 17h00.

Devido às medidas de prevenção da Covid na Feira do Livro de Lisboa poderá haver limitações no acesso.

Abraços,  Catarina Gomes

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Nota do editor:

Último poste da série > 2 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21313: Agenda cultural (753): Arte urbana: mural, da autoria do artista plástico cabo-verdiano, António Conceição, de homenagem às mulheres da seca do bacalhau, e aos demais ofícios da Faina Maior... Gafanha da Nazaré,Ílhavo, agosto de 2020 (Ana Aveiro / Valdemar Aveiro)

Guiné 61/74 - P21321: In Memoriam (369): o historiador Joaquim Veríssimo Serrão (1925-2020), meu mestre e meu amigo, que falou do meu "Diário da Guiné", em 2007, como sendo "uma 'jóia' de verdade histórica e de beleza literária incomparáveis" (António Graça de Abreu)



Joaquim Veríssimo Serrão (Santarém, 1925 - Santarém, 2020): homenagem do António Graça de Abreu a um dos seus grandes mestres e amigos, recentemente desaparecido aos 95 anos. Para admiradores e críticos, uma figura incontornável do nosso séc. XX português

O Historiador Joaquim Veríssimo Serrão e a Guerra na Guiné-Bissau

António Graça de Abreu

Tive a sorte, ao longo da vida, de ter como professores e mestres, no liceu e na universidade, alguns homens de enorme envergadura intelectual e humana, que muito me ensinaram e, de algum modo, contribuíram para ser o que sou, um ser aparentemente humilde, em busca do inalcançável entendimento do mundo, um permanente apaixonado pelas palavras, a caminhar pelo fluir das gentes da minha Pátria, da China e da língua portuguesa, a navegar pelo mundo, pela prosa, pela poesia, pela História.
Recordo Óscar Lopes, o excepcional professor de Português nos meus antigos 3º., 4º. e 5º. anos, no início da década de sessenta do século passado, no Liceu D. Manuel II, Porto. 
Trinta anos depois, Óscar Lopes e Eugénio de Andrade fariam a apresentação da minha tradução Poemas de Li Bai, na Galeria da Praça, no coração do Porto, obra depois galardoada com o Prémio Nacional de Tradução 1990, do Pen Club e da Associação Portuguesa de Tradutores.
Mantive, com Urbano Tavares Rodrigues, meu professor de Português em 1965/66, no 7º. e último ano do liceu, no Colégio Moderno, Lisboa, uma amizade saudável e entusiasmante que perdurou até ao fim da sua vida. Em 1997, Urbano Tavares Rodrigues fazia, na Missão de Macau em Lisboa, a apresentação do meu livro China de Jade e escrevia palavras de grande simpatia sobre a minha poesia. 
Quer Óscar Lopes, quer Urbano Tavares Rodrigues foram militantes de topo do Partido Comunista Português, com ambos aprendi a olhar melhor o mundo, que respeitei e admirei sempre, embora, depois de seis anos de vida na China Popular, de 1977 a 1983, eu já não acreditasse nos “amanhãs que cantam” e na superioridade dos regimes políticos socialistas.
Na Faculdade de Letras de Lisboa, nos anos sessenta e setenta do século passado tive a ventura de encontrar Fernando Mello Moser, mais um excelente professor, no 1º. e 4º. ano do meu curso de Filologia Germânica. Grande Mestre e amigo, precocemente falecido, faz parte dos não muito homens de eleição que conheci.
Em 1995, regressei à minha Faculdade de Letras, agora para um mestrado em História dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa. Dois professores se destacavam, António Borges Coelho e Joaquim Veríssimo Serrão. Bem diferentes nas suas opções políticas (Borges Coelho, ex-comunista, havia passado longos anos na cadeia de Peniche, Veríssimo Serrão era o grande amigo de Marcello Caetano). 
Unia-os a História e o rigor e seriedade com que transmitiam aos seus alunos as estórias da História. Aulas fabulosas com estes dois professores, tão diferentes e tão dentro da nossa viagem pelas gestas de um passado, tão presente.
            Joaquim Veríssimo Serrão, falecido há um mês atrás, com 94 anos, seria o orientador da minha tese de mestrado. Encontrávamo-nos na Academia Portuguesa da História, a que presidia, para conversarmos e melhorarmos o meu trabalho, a biografia de D. Frei Alexandre de Gouveia (1751-1808), bispo de Pequim. Diante de mim, a abertura permanente com um excepcional ser humano, um fabuloso homem da nossa História, um Amigo.
            Em 2004, era publicada pela Universidade Católica, a minha tese, a biografia D. Frei Alexandre de Gouveia, Bispo de Pequim.


Capa do livro de memórias do António Graça de Abreu,

"Diário da Guiné" (Lisboa, Guerra e Paz, 2007)



Em Junho de 2007, eu recebia esta carta do Prof. Dr. Joaquim Veríssimo Serrão, então com 82 anos:

Santarém, 8 de Junho de 2007
Exmo. Sr. Dr. António Graça de Abreu
                        
 Meu querido António

            Há muito que formei em mim a concepção de que a velhice não corresponde apenas ao último degrau da vida. Pelo contrário, deve ser vista como uma época de permanente actuação, para nela ainda fazermos o que se torna possível no campo da actividade creadora. 
            No dia 4 de Junho, adquiri na Feira do Livro de Santarém uma “jóia” de verdade histórica e de beleza literária incomparáveis. Fiel aos princípios acima enunciados, a obra foi logo objecto de leitura e apreciação, e esse agrado, fiz sentir no telefonema que lhe dirigi para o Estoril. Agora, no regresso de uma deslocação a Madrid, onde fui acompanhar o Professor Juan Velarde Fuertes, nos seus 80 anos. Mais novo do que eu que vou nos 82 anos! Mas todos os dias a ler, a escrever e a fazer livros.
            Pois hoje voltei ao belo e dramático “Diário da Guiné”, da sua autoria, e lá pude esclarecer a tonteria do General Spínola de deixar ir a um encontro com guerrilheiros 3 majores…desarmados, que foram feitos em postas. 
            Como se a moral dos “libertadores” fosse a mesma que a nossa: bons ou maus cristãos que sejamos! E não custa tampouco compreender a renúncia do General Spínola em 28 de Setembro de 74. Valente a lutar, inexperiente como político. E o coronel Fabião, que alinhavou a paz com os guerrilheiros, mas deixou que 2000 fulas tivesses sido fuzilados por “traição” à Guiné que nem sequer era ainda um país independente!
            As suas crónicas da Guiné de 1972-1974 são das mais lindas e comoventes que jamais foram escritas por um combatente. Que o Prof. Marcello Caetano tinha razões para desconfiar dos guerrilheiros, dá-a o António, na página 44. “Não era essa – nem é hoje – a linha política do governo de Lisboa, nem do PAIGC, que lutava pela independência total e expulsão dos colonialistas brancos.”
            Que lindas páginas que fazem chegar as lágrimas aos olhos!, da cor dos olhos dos meninos guinéus, da doçura tropical das mulheres do território que amenizavam a solidão dos combatentes, da beleza de uma Guiné que não merecia os libertadores que teve, nem o Luís Cabral, nem o Nino, talvez o Amílcar que era amigo dos portugueses, mas que abatido pelos radicais do PAIGC…
            O seu “Diário da Guiné” é uma obra prima de sinceridade, de enlevo pela terra, de ternura pelas crianças de olhos azuis e coração de ouro. Mas ganharam elas com a libertação, quando continuam a andar nuas, sem sapatos e esfaimadas, mas antes eram amadas pelo colonizador que as erguiam nos braços?
            Um grande abraço, cheio de ternura e admiração, do seu muito amigo, e a dedicação,
                                                           Joaquim Veríssimo Serrão


Cópia da carta, de 8 de junho de 2007. dirigida por Joaquim Veríssimo Serrão ao nosso camarada António Graça de Abreu, elogiando o seu livro, "Diário da Guiné" (Lisboa, Guerra e Paz, 2007).

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Nota do editor:

Último poste da série de 22 de julho de 2020 Guiné 61/74 - P21192: In Memoriam (368): José Barreto Pires (1945-2020): "termina uma vida, nasce uma saudade", a de um homem bom, grande camarada e indefetível barrosão, que muito amou a sua aldeia, Gestosa, Couto Dornelas, Boticas... Era membro da primeira hora da nossa Tabanca Grande.

Guiné 61/74 - P21320: Parabéns a você (1862): Armor Pires Mota, ex-Alf Mil Cav da CCAV 488 (Guiné, 1963/65); José Câmara, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56 (Guiné, 1971/73) e Torcato Mendonça, ex-Alf Mil Art da CART 2339 (Guiné, 1968/69)



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Nota do editor

Último poste da série de 3 de Setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21317: Parabéns a você (1861): Carlos Vieira, ex-Fur Mil do Pel Mort 4580 (Guiné, 1973/74) e Luís Gonçalves Vaz, Grã-Tabanqueiro, ex-Fur Mil PE (EPC, 1983/84)

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Guiné 61/74 - P21319: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (2): A fuga da 'beijuda'


Guiné > Região de Quínara > Mapa de Tite  (1955) > Escala 1/50 mil > Alguns topómimos mais conhgecidos: Tite, Enxudé, Jabadá, na margem esquerda do Rio Geba.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2020)




Carlos Barros, Esposende


1. Mais um pequena história do Carlos Barros, um dos Mais de Nova Sintra, 2ª C/BART 6520/72 (Bolama, Bissau, Tite, Nova Sintra, Gampará, 1972/74) (*):



A fuga da “beijuda" 

por Carlos Barros


O 3º Grupo de Combate dos “Mais de Nova Sintra” foi garantir a segurança da estrada Tite-Enxudé, um acesso de extrema importância, uma vez que o cais do Enxudé [vd. infografia acima], garantia o acesso, por via marítima e fluvial, à cidade de Bissau, através da utilização de pequenas embarcações para o transporte de tropas, material de guerra e outras mercadorias..

No seu abrigo, o Barros entretinha-se a comer castanhas de caju oferecidas por um grupo de crianças que, geralmente, recebiam sopa quentinha vinda da cozinha de Tite, que era pedida pelo furriel Barros.

Sobrava sempre sopa,  já que a maioria dos soldados não a comia e, deste modo, “matava-se a fome” àquelas gentis e simpáticas crianças que, com os seus sorrisos, alegravam o ambiente.

De repente, ouviu-se uma gritaria tremenda:

− Socorro, socorro, ele vem atrás de mim!  −  uma jovem beijuda africana que fugia de um pretendente ao casamento…

− Furriel, ajude-me, ajude-me!…

O Barros não se queria envolver numa situação complicada e que não lhe dizia respeito e respondeu à jovem para fugir para a mata densa,  que depois  ria despistar o intruso…

Passados momentos, numa correria louca,  apareceu o africano, suando por todos os poros da pele, e perguntou ao Barros se tinha visto a beijuda...

O Barros respondeu-lhe que sim e que ela tinha fugido por aquele caminho, totalmente oposto ao percurso seguido pela jovem africana…

Naturalmente que os dois jamais se encontrariam e até ao final do dia, nunca mais soube do desfecho daquela “intriga” não palaciana mas... "tabancaciana"- 

− Acontece-me cada uma! −  desabafou o furriel Barros para um soldado que o acompanhava na segurança… 

Para esquecer isto, o Barros convidou o amigo para beberem uma cerveja fresquinha que estava dentro de um balde com água perto do Unimog…

Tite,  1972

Ex-furriel Barros
2ª C/BART 6520/72

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Nota do editor:

Último poste da série > 3 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21318: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (1): Bacari, o caçador furtivo

Guiné 61/74 - P21318: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (1): Bacari, o caçador furtivo



Guião do BART 6520/72 (Tite,  1972/74). 
Coleção: Carlos Coutinho
(com a devida vénia...)


Carlos Barros, ex-fur mil at art, 
2ª C/BART 6520/72 (1972/74).
"Os Mais de Nova Sintra"

1. Vamos dar início à publicação de algumas "pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra", série da autoria  do novo membro da Tabanca Grande, Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª CART / BART 6520/72 (Bolama, Bissau, Tite, Nova Sintra, Gampará, 1972/74).

 O nosso camarada é professor aposentado e  um  apaixonado pela  sua terra natal, Esposende, em cuja vida comunitária continua a participar proativamente. (*)


Bacari, o caçador furtivo

por Carlos Barros


O Bart 6520/72, o nosso Batalhão de Artilharia, já tinha 18 meses de Comissão e o tão ansiado regresso à Metrópole, estava cada vez mais próximo. Havia um redobrado cuidado nas saídas para o mato e no cumprimento das normas de segurança ao destacamento de Nova Sintra, guarnecido pela 2ª Companhia. 

O arame farpado era constantemente vigiado assim como qualquer acesso ao destacamento porque o inimigo era astuto e conhecia bem o terreno.

Numa tardinha, na despedida do astro-rei, o vigia a um dos postos viu um vulto no meio de capim à espreita e foi dado o alarme porque poderia ser um guerrilheiro do PAIGC. Via-se a cabeça a mover-se entre as ressequidas ervas do capim e o soldado avisou:

 Quem está aí, levante os braços e entregue-se! 

O militar poderia ter disparado mas teve o bom senso de tomar as devidas cautelas e com a arma G3 em posição de fogo apontou ao “fantasma”…

Ouve-se um grito:

− Não dispare , não dispare, sou o Bacari!

O Bacari era um elemento da povoação nativa que andava sempre à caça e, muitas vezes de noite, não avisava os militares de Nova Sintra, o que punha em risco a Companhia.

Felizmente, o desfecho não foi trágico mas poderia ter sido e este amigo foi avisado para nunca mais sair de noite para caçar, o que cumpriu até ao final da Comissão [, ou seja, até 17 de julho de 1974].

Ao amigo Bacari, nesta noite, tinha-lhe saído a sorte grande…

Nova Sintra,  1974

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Nota do editor: