Queridos amigos,
Vamos dar o merecido destaque ao Conde d'Aurora, um aristocrata limiano que andou em sedições monárquicas, andou pelo exílio, regressou, deixou prosa diversa, mas o seu principal fervor foi a Ribeira Lima e toda a envolvente minhota. O meu saudoso amigos Carlos Miguel de Abreu de Lima de Araújo venerava constantemente a sua memória, contando pilhérias em que ele participara, logo a recordação de um julgamento no Porto. O Conde era Juiz, salvo erro num Tribunal do Trabalho, o Carlos Miguel ao tempo trabalhava numa caixa de providência, competia-lhe ir testemunhar. O meirinho tratou-o por Sr. Dr. Carlos de Araújo, e interpelado pelo juiz, observou-lhe que não era licenciado. Resposta pronta do Conde d'Aurora: "Não é, mas tem muito tempo para vir a ser".
Hoje é aqui festejado, parece-me que bem merecidamente. Eu ganhei o dia, ir a Ponte de Lima e sair daqui com este texto e estas fotografias é como trazer um relicário. A feira descrita pelo Conde d'Aurora é hoje outra coisa, noutro espaço. Termino o dia percorrendo a Avenida dos Plátanos, imaginando tendas, pregões, loiças, bancas cheias de ouro, latoaria profusa, mungido dos animais, poeira, cor, a vibração do acento minhoto, aquela indumentária ilustre, lojas com socas e tairocas, e saúdo quem já partiu e tanto amou Ponte de Lima.
Um abraço do
Mário
No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (5)
Mário Beja Santos
Lembro-me como se fosse hoje. Aí por volta de 2013, numa tarde em que fui fazer leituras ao meu saudoso amigo Carlos Miguel de Abreu de Lima de Araújo, limiano inquebrantável, depois de nos sentarmos, ele no seu sofá, eu num cadeirão, a escasso metro e meio dele, naquele belo ambiente de paredes forradas com preciosidades de Carlos Botelho, Moniz Pereira, Lurdes Castro, Mário Cesariny, Noronha da Costa, tendo diante dos meus olhos o retrato que lhe fez um amigo comum, Vasco de Castro, ele pediu-me para abrir um pacote que chegara de Ponte de Lima. Abri e disse-lhe que se tratava de A feira da Ponte, do Conde d’Aurora. Agitou-se no sofá, os seus olhos vazos pareciam ter ganho uma luminosidade, Deus me perdoe, estava eu com o livro na mão e a fotografar imagens que me pareceram da década de 1950, ou talvez do início da década de 1960, e Carlos Miguel parecia falar para uma assembleia entusiasmada, foram convocados ilustríssimos e sonantes nomes de limianos como o poeta e Embaixador António Feijó, o Cardeal Saraiva, que foi Patriarca em Lisboa, veio à baila o foral de D. Teresa, naquela sala foram referenciadas casas, o Natal na Casa da Feitosa, e já cansado, disse-me na sua voz abaritonada: “Por gentileza, recorde-me o que o Conde d’Aurora escreveu, sei muito bem que é um documento literário incomparável”.
E eu comecei: “Oh! Se puderes, forasteiro, vem a Ponte de Lima num dia de mercado. É às segundas, de quinze em quinze dias (às outras, chama-lhes o povo solteiras)”. Mais para a frente voltarei ao texto, foi uma tarde magnífica, o Carlos Miguel parecia recolhido, como em oração, só raramente interrompia, houve mesmo uma chamada telefónica, pretextou que estava lá a sua médica de família, ligaria mais tarde, e eu recomecei a leitura, aquela viagem empolgante dentro de uma feira, sentia-se que o aristocrata discorria esfusiante, eram notas amoráveis de alguém que olhava com o coração a palpitar naquele mar de gente, a sua gente.
Hoje começo o dia por ir ao arquivo de Ponte de Lima, pergunto por obras do Conde d’Aurora, logo que vejo este livro da feira não perco mais tempo, a senhora que me atende está assim um pouco atarantada, trouxe-me uma carrada de títulos, e agora o cliente quer pagar imediatamente aquele livro, diz que tem pressa, coisas urgentes a fazer. Urgência havia, queria pôr-me à beira-rio a sonhar com aquela feira, caminhar com a vibração do escritor que deixou imagens ímpares desta feira legendária.
Na Rua do Souto, parei diante de um portão e avistei este átrio, o belo arco e a escadaria. Deu-me para imaginar que Camilo Castelo Branco podia muito bem ter passado por ali…
Uma capela para além da ponte, cheia de história, chama-se do Anjo da Guarda, tem lá dentro a imagem de São Miguel, século XIII, monumento nacional
Já me sentei à beira-rio, estou a inventar um mar de gente, tendas de bordados, vendedores de ouro, um extenso mercado de gado. Pego no livro, dou a palavra a José António Maria Francisco Xavier de Sá Pereira Coutinho: “Foi sempre muito concorrida dos povos da região – e, segundo rezam documentos antigos do arquivo camarário, em velhas épocas passadas eram muito frequentadas pelos galegos. Ainda há muito quem hoje venha de Caminha, pela serra. De Coura, Viana, Barca e Arcos chega muito gado. Não faltam a ela os ourives de Braga e as burriqueiras do Prado, dos linhos, e tantas gentes mais. Mas vou tentar descrever-ta.
Primeiro, de cima da ponte, um circo de montes de beleza única, solares acastelados nos altos, ermidas alvejando, como um chamamento de graça e de fé, pelo meio da verdura. Capelas, igrejas, casais de povo por todos os lados, dobra do rio envolta em verdura, traçando a larga curva a jusante – e verdes milheirais por ali abaixo. Depois a vila com o seu pastel de prédios e pano de fundo, de mata secular, a circuitar o casario: granito amontoado em fundo verde, heraldicamente emplumado”.
Atenda-se que todo este relato tem muito mais de meio século, quase tudo mudou, mas há descrições do Conde d’Aurora possuídas de um fulgor, é prosa limiana sacramental, a convicção é minha, consigo lembrar-me neste momento do recolhimento do meu amigo Carlos Miguel quando lhe estou a falar do formigueiro de povo que entra na feira, lavradeiras, ciganos, mulheres de saias muito compridas, de muitos folhos e pregas, passam carros de bácaros, muitos cestos, sacas, feixes. A narrativa é meticulosa, como se o autor fosse detentor de um olhar reticulado e pontilhista. Do lado norte é a feira do gado. Ao fundo, na parte do areal que toca na água, andam soltas as vacas leiteiras, cingidas na testa com fitas de mastro. “Neste extenso quadrilátero não entra um carro, um cesto, uma barraca – apenas as juntas de bois, quase todos Barrosões, dessa linda sub-raça vianesa de focinho preto luzidio”. Marcado este teatro de ação, passa a outra panorâmica: “Do outro lado da ponte: areal do sul, ainda mais extenso, formando quase um círculo, oval imensa que vai fechar-se ao fundo, lá muito ao longe, quando o rio vai de tangente beijar a capelinha da Guia, no topo da Avenida dos plátanos. O resto da feira, tudo o que não é gado bovino, aqui se desenrola”. Que melhor cicerone, aedo, porta-estandarte, podia ter a feira da Ponte, senão este iluminado?
O escritor segue entusiasmado, anda entre as tendas das barraqueiras da feira, avista linho, atoalhados com ponto aberto, parece que o sangue lhe ferve a falar dos barros, aqueles barros que emergem da capa do livro: “É a feira dos barros, esses barros de Alvarães e de Barcelos; panelinhas assadeiras de forma bizarra e tradicional, travessas de formato e desenho herdado do século XVIII, pratos coloridos como no Império, granadeiros napoleónicos e assobio dos pés para os garotos brincarem, e tantos assobios mais e panelinhas e cornetas de barro, esses temíveis clarins que o garotame estridula toda a tarde da feira (e felizmente se quebram ao fim do dia)”.
Eu sei que o Carlos Miguel quer falar de algumas das ousadias e brejeirices do Conde d’Aurora, ainda continua recolhido, estou agora na última página deste livro plenamente limiano, comprado ao princípio da manhã e destinado a ficar perto de mim, no meu escritório, tal a magnificência das imagens. Carlos Miguel, vamos acabar este fabuloso texto, antes da sua memória, das mais rigorosas que conheci, trazer à tona aspetos facetos deste escritor. Assim termina a viagem pela feira:
“Pela meia tarde, sol alto ainda, começa tudo a debandar, os de mais longe em carros acogulados de gente, camionetas incómodas de ingénuas pinturas menineiras, camionetas que vieram substituir os velhos carros de cavalos, essas catitas de funda caixa e alta boleia tripla onde se encarrapitavam trinta caceteiros de varapau em riste”. Deixa-nos saudades das carripanas e despede-se com ufania: “Poeira, alegria, cor, som, algazarra – e tudo é beleza em redor e a bênção de Deus enche de alegria os corações e os lares”. Bendito reencontro com a prosa e as imagens do Conde d’Aurora, insuperáveis, e que bom recordar aquela tarde de 2013, chegara um livro do Conde d’Aurora a casa do Carlos Miguel, tivemos os dois uma tarde de paraninfo, graças a um senhor ilustre que sabia mergulhar entre a seiva do seu povo.
(continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 29 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21303: Os nossos seres, saberes e lazeres (408): No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (4) (Mário Beja Santos)