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terça-feira, 21 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24159: Os nossos seres, saberes e lazeres (563): O Estado a que isto chegou (Victor Costa, ex-Fur Mil At Inf)

1. Mensagem do nosso camarada Victor Costa, ex-Fur Mil At Inf, CCAÇ 4541/72 (Safim, 1974), com data de 16 de Março de 2023:


O Estado a que isto chegou

Para mim a guerra não foram só problemas. A capacidade de liderança, tolerância e a resistência aprendi-as na tropa, essa tolerância e resistência foram fundamentais quando iniciei uma nova atividade em 1976.

Numa empresa é fundamental dizer "o cliente tem sempre razão", mas para engolir tantos sapos e aguentar tanta razão, foi precisa muita resistência, tolerância e ouvir muita m..da. Eu sou empresário desde 1976.

Nem sempre há tempo para responder em devido tempo aos comentários, mas neste caso, com um barco da nossa Marinha de Guerra na Madeira, tive de arranjar tempo para escrever esta mensagem, porque ela me trouxe as recordações de um amigo com idade de ser meu pai chamado Maximiliano de Sousa, mais conhecido por Max.

Pouco tempo convivi com ele, mas aquela do "magala", numa conversa com ele numa mesa do café Nicola, depois da sua actuação no salão de festas do Casino da Figueira no outro lado da rua foram inesqueciveis.

Max era um homem vivido, com muita categoria, que não deixava ninguém indiferente, que saudades tenho daquele tempo. A primeira conversa com ele começou numa simples mesa do café Nicola e terminou com a mesa rodeada de assistência.

No que a mim me toca sendo eu um "reacionário" eleito pela CCaç 4541/72 para o MFA, que acima de tudo procura honrar os antigos combatentes, vou voltar a ouvir o "magala" de Max e meditar.

Depois deste desabafo vou responder ao último comentário da minha anterior mensagem.

A carta militar de 1947, mostra o estuário do rio Mondego, junto à Figueira e depois o início do baixo Mondego, que depois continua para Nascente até Montemor o Velho. A constituição do terreno (aluvião) é igual, mas as culturas são diferentes.

Da Ínsua, passando pelo marco geodésico (Pontão), até à Ribeira, para Noroeste é o Estuário do Mondego, para Sudeste da Quinta do Canal, Lares e Carrapatosa e até Montemor o Velho fica o Baixo Mondego, como mostra a simbologia da carta.

Durante mais de 4 anos fiz um trabalho de pesquisa no Arquivo da Universidade de Coimbra sobre escrituras do século XVIII e XIX, relativas a terrenos privados no Estuário do rio Mondego.

Este trabalho permitiu-me conhecer, a evolução da escrita, heróis da época, as virtudes do nosso povo e a covardia de alguns dirigentes que fugiram para o Brasil. Com as invasões francesas, veio o "aliado", o Duque de Wellington para organizar a resistência, este estabeleceu o seu Q.G. no Porto de Lavos em 1808.

A Figueira da Foz era então uma pequena vila em pleno crescimento devido à exportação de sal. Portugal tinha então um cobarde como Rei e com a falta de Forças Armadas capazes, as tropas de Wellington chegaram e fizeram uma política de "Terra Queimada" na região.

A maioria da população refugiou-se na Vila da Figueira que não estava preparada para este aumento de população. Seguiu-se um período de doenças, sofrimento e miséria tais que não constam dos manuais de História, mas que está registada nos velhos livros do Arquivo da Universidade de Coimbra.

Nas escrituras de aforamento do princípio do século XIX, do notário Manuel Peregrino de Carvalho, consta o Dr. Manuel Fernandes Tomaz, um ilustre figueirense do século XIX, deputado do Reino e o seu pai João Fernandes Tomaz. Da descrição consta a utilização de terrenos de aluvião na região de Lares e Carrapatosa, para instalar marinhas, que foram até aos anos 60 do século XX, actualmente são campos de arroz.

A constituição dos terrenos é igual, mas as culturas são diferentes devido ao tipo de água que utilizam. No Estuário a água é salgada e as culturas são Marinhas, Sal, Peixe, Crustáceos e Bivalves e no Baixo Mondego até Montemor o Velho, predomina a cultura do arroz, onde as águas são doces, ambas estão representadas na carta com simbologia diferente.

As invasões registadas na História de Portugal a nós trouxeram muitos problemas, mas também nos trouxeram conhecimento. No Estuário do rio Mondego junto ao mar a invasão do Império Romano trouxe-nos o conhecimento das marinhas para levar o sal até Conimbriga, a influência da água salgada chegava a Montemor o Velho vulgarmente chamado de Baixo Mondego.

A invasão dos mouros trouxe-nos o conhecimento da cultura de produção do arroz e a tecnologia dos canais de irrigação que conduziram a água doce para jusante até ao início do estuário.

As marinhas de sal são constituídas por diversos compartimentos, sendo o primeiro deles o viveiro ou reservatório da marinha, aqui através da comporta entra além de água salgada, peixe, crustáceos e Bivalves, daí que a produção extensiva destas culturas já venha do tempo do Império Romano.

Nos anos 80 do século passado alguns produtores converteram as marinhas de sal e construíram novas instalações para produção de peixe e com a utilização de novos equipamentos, alteraram as instalações para o regime semi-intensivo.

Para exercer esta atividade é preciso saber lidar com a vida animal, a DGRM, ex-Direção Geral das Pescas passou a chamar-lhe Aquacultura Marinha, eu sou um dos pioneiros ainda vivos.

Como a História mostra as invasões e as guerras trouxeram sempre problemas, mas não podemos esquecer aquilo que aprendemos com os romanos e os árabes e também não devemos esquecer aquilo que ensinámos a outros povos, por esse Mundo fora.


O Estado Fascista, o Estado Comunista e o Estado a que isto chegou.

Há gente neste País que colaborou com o IN, outros fugiram cheios de "coragem" e são hoje apresentados como heróis, há outros "democratas" que pediram ao regime "fascista" um adiamento à sua integração nas FA. Esse direito foi-lhes concedido e tratam os ex-combatentes com peste. Há ainda os filhos do papá, que não foram à guerra e opinam sobre tudo e todos e desprezam tudo o que deixámos em África e no Brasil.

Há ainda alguns que procuram o "ouro do Brasil", ou do quinto dos infernos que vinha na Nau dos Quintos para devolver aos "Brazileiros". Deste ouro, ainda só encontrei pedras já que as jóias da coroa foram roubadas na Holanda, está a decorrer a "investigação" e eu como "homem de fé ainda não perdi a esperança", porque a fé é a última a morrer.

Quando regressei da Guiné em Outubro de 1974, a Presidente da C.M. da Figueira da Foz, convocou-me para uma reunião cujo objectivo era a criação de uma comissão para elaborar os Cadernos do Recenseamento Eleitoral da Freguesia de Lavos.

A minha abertura a esta tarefa foi imediata, a caloirice falou mais alto, foi um trabalho que durou dois meses, as eleições de 25 de Abril de 1975 foram realizadas graças ao trabalho deste e de outros "parolos" deste País. Se a velhice fosse um posto, eu devia debitar os serviços prestados pela elaboração dos Cadernos Eleitorais, das inúmeras vezes que pertenci a várias mesas de voto, quatro anos como 1.º Secretário da Assembleia de Freguesia, só para falar destas e tudo isto a custo zero, mas não o vou fazer porque vivemos num "Estado de direito democrático". Hoje até os membros de uma simples Mesa de Voto, recebem 75 Euros pela execução daquela "tarefa dificil".

Já só falta o Presidente, numa qualquer comemoração atribuir um prémio aos parolos, "habituem-se", porque o valor que é dado às coisas depende das "costelas".

Se as "costelas" forem de esquerda, levam-se as facturas ao contabilista para registar, esperamos pelo relatório no fim do ano e sabendo que há contas por pagar, vamos para casa descansados e dizemos ao vizinho "as contas estão certas."

Se as "costelas" forem de direita, além das contas certas, sabemos que é importante pagar as dívidas e ter lucro para não deixar problemas aos filhos.

Estes são os novos tempos, por este andar ainda vou morrer reacionário. Os Donos disto tudo continuam a reclamar o Estado de direito democrático, mas o que nós temos, é o Estado a que isto chegou. Quer gostem ou não, o que está em causa é o Estado de Direito. Quem sabe se não precisamos voltar ao "ferro", ou a outro 25 de Abril?

Antes de terminar quero agradecer ao Luís Graça, Carlos Vinhal e restante equipa pela coragem que têm demonstrado na defesa da liberdade de expressão e pedir-lhes desculpa por não saber elaborar um texto que possam perceber, mas há uma razão para isso, eu sempre gostei mais de lidar com números.

Um abraço,
Victor Costa
Ex-Fur Mil At Inf


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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24154: Os nossos seres, saberes e lazeres (562): Os meus livros. Ao todo, quinze (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico)

sexta-feira, 6 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23234: (In)citações (205): O general Spínola, a guerra e a paz (Victor Costa, ex-fur mil, At Inf, CCAÇ 4541/72, Safim, 1974)


Guiné > Sector de Bissau > Safim > CCAÇ 4541/72 (Caboxanque, Jemberém, Cadique, Cufar e Safim, 1972/74) > Maio de 1974 >  Eu e a minha lavadeira e a sua famíla. Foto de que lhe ofereci uma cópia.

Foto (e legenda): © Viictor Costa (2022). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do nosso camarada Victor Costa, ex-Fur Mil At Inf, CCAÇ 4541/72 (Safim, 1974), natural da Figueira da Foz, e membro nº 855 da Tabanca Grande :

Data - terça, 3/05/2022, 19:48
Assunto - O General Spinola, a Guerra e a "Psicola", na Guiné

Amigos e Camaradas da Guiné,

Quando cheguei à Guiné, o General Spínola já não estava no Comando do Território, no entanto o seu nome era citado frequentemente com opiniões a favor ou contra. Foi um personagem que mexeu com todos e não deixava ninguém indiferente.

Passei a conhecer e admirar Spínola a partir de uma entrevista dada por Leopoldo Sedar Senghor em 15 de Junho de 1974.

Para mim, fosse ele de esquerda ou de direita, era pouco importante, considerava-o um grande guerreiro, que procurou a paz para a Guiné e dava muita importância à Acção Psicológica e à vantagem militar para dar início às negociações de paz numa posição de força, mas não tinha habilidade para a política.

Na CCaç 4541/72 era frequente os "Velhos" falarem da "Psícola" do Gen. Spínola. Tratava-se de ele oferecer prendas a um Homem Grande, onde constavam um rádio de 6 transistores, uma camisa garrida e uns óculos escuros.

Como eu tinha vindo do Leste da Guiné,  nunca tive oportunidade de ver estas acções, mas o que sei é que ele dava muita importância às condições físicas e mentais da tropa e ao exercício da Acção Psicológica e utilizava tudo para conseguir um bom relacionamento com as populações locais.

Eu acabei por receber essa influência dos "Velhos", não ofereci óculos escuros, que era visto duma forma depreciativa, porque talvez o exemplo não fosse o melhor, mas também utilizei a "Psícola", chegando a brindar a minha lavadeira e família com uma fotografia conjunta. 

Na guerra devemos sempre manter boas relações com a população porque nas patrulhas podemos vir a precisar, eu próprio verifiquei isso e não custa nada procurar evitar atritos, que nos possam trazer desvantagem no futuro.

Penso que seria uma mais-valia os camaradas lerem a entrevista republicada no Boletim Informativo n.º 2 do MFA,  de 17 de Junho (de «Jeune Afrique»,  n.º 701 de 15 de Jun 74) nomeadamente a opinião do Representante do IN (PAIGC), o Presidente do Senegal Leopoldo Sédar Senghor, "O meu papel acabou", sobre o que ele pensava do General Spínola e a descolonização da Guiné.

Não pretendo fazer nenhuma crítica sobre outras formas de ver estas questões mas apenas emitir a minha opinião. Mas lembro que por vezes agarramo-nos a preconceitos, não vamos ao fundo da questão, não vemos o personagem na globalidade e acabamos a desvalorizar os valores do nosso País, em detrimento de outros. 

Por isso continuo a admirar Spínola e a dar valor aos nossos, porque se não o fizermos, quem o irá fazer? (*)

Segue em anexo a fotografia e o texto da entrevista. (**)

Um abraço do Victor Costa
Fur Mil At Inf
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 24 de abril de  2022 > Guiné 61/74 - P23196: (In)citações (204): As comemorações do dia 25 de Abril de 1974 (Victor Costa, ex-Fur Mil Inf)

(**) A publicar, num outro poste, na série "18º aniversário do nosso blogue"

domingo, 24 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23196: (In)citações (204): As comemorações do dia 25 de Abril de 1974 (Victor Costa, ex-Fur Mil Inf)

Safim, Abril de 1974 - Lendo o jornal República


1. Mensagem do nosso camarada Victor Costa, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4541/72 (Safim, 1974), com data de 5 de Fevereiro de 2022:

Amigos e camaradas,
Apesar de muito importantes, as fotografias não dizem tudo sobre nós. Esta mensagem e a fotografia anexa pretende recordar um período da nossa História que eu vivi intensamente.
A fotografia que vos trago hoje é de um membro da Delegação do MFA de 22 anos de idade da CCaç 4541/72, nos balneários do Quartel de Safim a ler o Jornal República.

Fundado em 15 de Janeiro de 1911, o jornal República, foi um Jornal da Oposição moderada ao Governo do Estado Novo e como muitas outras instituições e pessoas deste País não resistiu ao vendaval do PREC.

Na minha opinião, as duas datas mais importantes antes e depois do PREC são o 25 de Abril de 1974 e o 25 de Novembro de 1975, por isso dou muita importância às Comemorações do 25 de Abril de 74 porque pôs fim ao Estado Novo e à Guerra Colonial e também dou muita importância às comemorações do 25 de Novembro de 75, porque sem esta data, continuaríamos seguramente a não ter, a democracia, nem o País que ainda temos hoje.

É no entanto necessário falar do que aconteceu entre estas duas datas, isto é - a 5.ª Divisão do MFA e o PREC-, para percebermos como chegámos ao 25 de Novembro de 1975.

Em 17 de Junho de 1974 é publicado na Guiné o Boletim Informativo n.º 2 do MFA na Guiné, em formato A3 que refere nomeadamente na sua pág. 4, cito - Constituição de uma Repartição de Relações Públicas e Acção Psicológica (espécie de 5.ª Repartição) a funcionar ao nível do EMGFA, - que mais tarde se assumiu na Metrópole em 9 de Setembro desse mesmo ano como - 5.ª Divisão do MFA .

Neste documento começam as minhas reservas com a orientação política do MFA na Guiné, que depois irão aumentar durante o período do PREC.
Ler o Jornal República, era comungar daquilo que no Jornal se escrevia, e acompanhar os seus problemas internos durante o PREC e em particular no Verão Quente de 1975, serviu para reforçar as minhas convicções.

Quando finalmente no dia 25 de Novembro de 1975, o Ten. Cor. Ramalho Eanes e o Maj. Jaime Neves puseram novamente o País nos eixos, foi com alívio verificar, que afinal não estava sozinho naquela barricada.
De facto até o Director, a equipa redactorial e colaboradores do Jornal República, nomes que não vou divulgar, nem emitir qualquer comentário, mas que estavam nessa barricada.
Foi necessário esperar 46 anos para receber a triste notícia dum Senhor, rijo mas moderado, o "Velho" Gen. Ramalho Eanes, ex-Presidente da República com apenas alguns "gatos pintados" e aquela coragem, à chuva a dar o exemplo, nas comemorações do último 25 de Novembro.

Foi uma comemoração desvalorizada e apagada, para dar um sinal político ao País, que as coisas tinham mudado e que eles é que mandam. Que mais disseram esses Senhores que mandam nisto tudo? Disseram apenas que o 25 de Novembro é uma data que divide os Portugueses. E é verdade, visto que do lado desses Portugueses, já só falta o casamento, porque a união de facto, há muito que já existe.

Luís de Camões tinha razão, mudam-se os tempos, mudam-se as vontades (...). Será que a próxima data a deixar de ser comemorada, seja o 25 de Abril?

Quando damos tudo por garantido, não damos valor aos melhores, não respeitamos os mais velhos, não defendemos os nossos heróis e procuramos apagar a História, afastamo-nos da razão. Quem sabe se não existe agora mais um problema, à procura de uma solução!

Um abraço,
Victor Costa
Ex-Fur. Mil. At. Inf.

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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE ABRIL DE 2022 > Guiné 61/74 - P23184: (In)citações (203): Nós, os fulas e os nossos (mal-)entendidos. a propósito da expressão "(lavadeira) para todo o serviço" (Cherno Baldé / Mário Miguéis)

quarta-feira, 20 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23183: Historiografia da presença portuguesa em África (313): Informações da Guiné na Memória do Tenente Bernardino de Andrade (1777) (Mário Beja Santos)

Carta da Costa Ocidental de África, feita em Amesterdão, 1705


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Maio de 2021:

Queridos amigos,
É mesmo para ter em conta o que aqui relata o Tenente Bernardino António Álvares de Andrade, a viver há dez anos e oito meses na Praça de S. José de Bissau, escreve uma Memória para um Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor que não sabemos de quem se trata, e dá-lhe informações preciosas sobre a nossa presença na ilha de Bissau, nas nossas relações com os Felupes e o comércio de Cacheu, desce depois a Tombali e ao rio Nuno, sobe à povoação de Geba e dá-nos a saber que um tal José Lopes ofereceu a Sua Majestade domínio senhorio que tinha na Serra Leoa. Várias ilações podemos extrair deste texto: referências a régulos déspotas nas cercanias da ilha de Bissau, pouca lealdade à soberania portuguesa, algum tráfico negreiro; uma admirável descrição dos Felupes de Bolor e da sua lealdade com Cacheu; negócios concorrenciais de Tombali e em Rio Nuno, na Serra Leoa tinham chegado os ingleses recentemente e hostilizavam às claras a presença portuguesa; considerar a povoação de Geba como a de melhores negócios e de plenos recursos, por ali andou acompanhado de administradores da Companhia de Grão-Pará e Maranhão; e a doação de José-Lopes dos seus bens na Serra Leoa ao rei de Portugal (D. Maria I), que seguramente não teve efeitos práticos. Somando estas parcelas caleidoscópicas que podemos ir formando uma certa ideia do que era a nossa presença na Guiné no último quartel do século XVIII.

Um abraço do
Mário



Informações da Guiné na Memória do Tenente Bernardino de Andrade (1777)

Mário Beja Santos

No Arquivo das Colónias, Volume I, Julho-Dezembro de 1917, encontra-se um bem curioso documento que é a Memória que o Tenente Bernardino de Andrade elaborou em 1777 para informar o Governo da Guiné e dos seus recursos. Um dos aspetos mais curiosos do texto é ele revelar como foi cedido a Portugal o território da Serra Leoa. Em rigor não sabemos a quem se dirige, fala sempre no Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor a quem expõe sobre a ilha de Bissau, a terra firme da Guiné, Serra Leoa e Cacheu:
“Divide-se a ilha de Bissau da terra firme da Guiné por um pequeno rio chamado o de Balantas”. Refere algumas das frutas próprias do país (banana, mamão ou papaia e limão azedo). Fala numa viagem de três horas de Bissau a um outro porto chamado dos Brames onde vivem Balantas: “Nação indómita, muito traidores, cruéis nos seus procedimentos, vendem poucos escravos, raras vezes marfim e nenhuma vez cera”. Alude ao porto de Bejamita, na ilha de Bissau, onde se compra sal, arroz, algum milho, azeite de chabéu, diz ser povoada de muita madeira boa, para obras navais e de edifícios, aqui se vendem alguns escravos, é abundante dos frutos próprios do país, tem abundância de peixe, caça de toda a qualidade e produz bem a mandioca. “Deste porto para a Praça de Bissau há caminho por terra, em que se gasta pouco menos de um dia, é governada por um fidalgo despótico no seu governo, mas quando este morre herda o sobrinho filho do irmão, e para herdar dá certos donativos ao rei da ilha de Bissau”. Refere igualmente outros lugares como Safim, porto antes de chegar ao de Bejamita.

Está agora a caminho de Cacheu e refere Felupe do Bote, porto abundante de arroz, milho, galinhas, peixe, porcos, azeite de chabéu, diz ser gente de muito má fé, revoltosos, inimigos declarados de franceses e ingleses, admitem nos seus portos as embarcações portuguesas, neles se fazem negócio de mantimento para a praça, mas com muita vigilância, “e cuidado por amor da sua traição”. Fala igualmente de Felupe de Bolor, dizendo que é gentio manso e que se intitulam vassalos do nosso soberano, praticam as mesmas cerimónias que se veem usar na praça de Cacheu, onde vão levar escravos, mas caros, muitos bons porcos e em bom preço. “Esta nação tem por costume ser obrigada, nem lhe ser penoso, quando sucede haver alguma diferença em Cacheu com o gentio do seu continente, logo que ouvem a peça de rebate largam as suas casas e nas suas próprias embarcações, e com as suas armas, nos vêm auxiliar e ajudar à defesa da Praça. Esta nação pouco cultiva, mas são as que mais vendem e aonde se acha mais abundância de mantimentos; porque até as próprias mulheres metidas em embarcações, sem decência alguma em seu corpo, andam comprando de porto em porto; elas são as mesmas que remam nas suas embarcações, as que limpam o arroz, e os maridos só servem para o venderem, e para lhe defenderem a terra dos invasores de outros bárbaros, que lhe acometem”.

O Tenente Bernardino António Álvares de Andrade refere agora a terra firme de Guiné e o caminho de Serra Leoa. Começa em Tombali e fala na venda de escravos, cera e marfim, esta nação Beafada vai vender aos ingleses e franceses que frequentam o rio de Nuno. O porto de Tombali tem abundância de arroz, milho, galinhas, peixe e frutos do país, tem muita caça e muita vaca. Ficamos a saber que o rio de Nuno é povoado pela nação Beafada e alguns Fulas. Nalguns portos deste rio se faz negócio abundante em escravos e marfim, mas caro, pela frequência dos navios estrangeiros. Um deles chama-se porto de Santa Cruz e ainda há alguns vestígios de uma população portuguesa, e nela se adora uma cruz, há cristãos dispersos sem pasto e espiritual. Deste porto faz-se caminho por terra tanto para a Serra Leoa como para Geba. O Tenente Andrade refere o Porto dos Ídolos, povoado de gentio mouro preto, aonde vão carregar franceses e ingleses os seus escravos. No princípio do ano de 1775 principiaram os ingleses de Liverpool a fortificar uma casa de negócio neste porto, para o que tinham levado artilharia e materiais precisos. E adverte na sua memória: “Os ingleses não querem dar passagem às nossas embarcações, e quando veem que os capitães são frouxos, e lhe não sabem dizer que aquele continente é conquista descoberta pela nação portuguesa e a esta doado pelos nacionais do mesmo país o direito, que tinham dele ao nosso soberano”.

Fala da viagem da ilha de Bissau para a povoação portuguesa de Geba, demora de quatro a cinco dias sem perda de tempo. “Todo o gentio deste sertão estima a correspondência dos nossos nacionais que a eles vendem os escravos, cera e marfim que têm. A povoação de Geba é grande, tem um só padre. O governo desta povoação intitula-se capitão Cabo que se costuma dar este governo aos filhos da terra, e os nacionais do mesmo país, ainda que cristãos, são muito revoltosos, levantados, sem fé além de Deus e sem obediência à de Sua Majestade. É esta a melhor povoação de negócio de Guiné, farta de mantimentos da terra, muito povoada de matos de boas madeiras, cercada de muitas povoações e aldeias de mouros pretos, Soninqués e Fulas. Segue-se o mesmo rio Geba sempre caminhando a leste oito dias de viagem, no fim destes se dá em uma cachoeira por onde não pode passar a embarcação, mas em pouca distância é navegável, e dizem os naturais daquele país que, caminhando-se pela margem daquele rio, se dá em uma grande lagoa, e que desta despede outro rio também de água doce. Esta é a informação mais comum, e certa, que achei em as repetidas jornadas que fiz por terra, e pelo mesmo rio em serviço de Sua Majestade, acompanhando aos administradores da Companhia de Grão-Pará e Maranhão na condução das remessas que se lhe faziam para a dita casa”.

E despede-se do Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor referindo a doação que fez José Lopes da Serra Leoa: “No ano de 1760 do feliz reinado do fidelíssimo rei D. José, doou José Lopes em presença de todos os seus parentes e cabeças daqueles povos e de todo o povo e por parte do nosso soberano o Capitão Cabo António Godim Sanches e Frei Fernando da Feira e outros se celebrou a escritura de doação para todo o sempre do domínio e senhorio que ele tinha da Serra Leoa, para que Sua Majestade houvesse por bem fortificá-la e fundar nela igreja e convento e tudo mais que fosse do seu real agrado. Tomou posse em nome de Sua Majestade António Godim Sanches e foi remetida a esta Corte pela Secretaria de Estado dos Negócios do Reino. É do que posso informar a Vossa Excelência pelas notas que tenho adquirido em dez anos e oito meses de actual serviço na Praça de S. José de Bissau”.

Capturados e vendidos numa feitoria do litoral
Sónó de bronze com braços laterais e figura de um cavalo na extremidade superior, atribuído ao grupo soninquê. 1,23m. Acervo do Museu Nacional de Etnologia (Lisboa)
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Nota do editor

Último poste da série de 13 DE ABRIL DE 2022 > Guiné 61/74 - P23164: Historiografia da presença portuguesa em África (312): Fundos da gaveta: leituras espúrias sobre a História Antiga da Guiné Portuguesa (3) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 25 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23110: Memória dos lugares (439): Safim e o edifício do posto administrativo (Victor Costa, ex-fur mil at inf, CCAÇ 4541/72, Safim, 1974)



Guiné > Sector de Bissau > Safim > CCAÇ 4541/72 (Caboxanque, Jemberém, Cadique, Cufar e Safim, 1972/74) > O Victor Costa à esquerda com outro camarada da companhia... Ao fundo, o edifício do posto administrativo... Curioso, tem dois telhados, um mais baixo acompanhando todo a varandim e um sobreelevado, correspondendo ao piso térreo, de pé direito alto... Uma solução da arquitetura colonial, certamente a pensar  na melhoria da ventilação do edifício.

Fotos (e legenda): © Viictor Costa (2022). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do Victor Costa, ex-Fur Mil At Inf, CCAÇ 4541/72 (Safim, 1974), natural da Figueira da Foz, e membro nº 855 da Tabanca Grande (*):

Data - domingo, 20/03/2022, 14:14 

Assunto - Fotografias do edifício da Administração de Safim


Amigos e Camaradas da Guiné,

Seguem duas fotografias minhas, tiradas no mesmo dia, com dois elementos da CCaç 4541/72, em frente à casa do Administrador de Safim (**), bem próximo do nosso Quartel e do desvio  para João Landim Porto. (***)

(...) Um abraço e em particular àqueles que, com o seu exemplo de coragem, continuam a resistir aos seus problemas de saúde. Aqui se vêem os guerreiros deste País.

Victor Costa
Ex-Fur Mil At Inf
___________

Notas do editor

(*) Vd. poste de 30 de novembro de  2021 > Guiné 61/74 - P22765: Tabanca Grande (528): Victor Manuel Ferreira Costa, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4541/72 (Safim, 1974). Senta-se no lugar n.º 855, à sombra do nosso poilão

(...) Mobilizado em 4 de Março de 1974 para a Guiné, beneficio de 10 dias de licença e no dia 16 de Março do mesmo ano, a bordo de um Boeing 727 da FAP, chego ao aeroporto de Bissalanca e daí em transporte rodoviário para Bissau, a fim de render um camarada Fur Mil, morto em combate na região de Bafatá.

Fico instalado no QG e aguardo ordens, que chegam uns dias depois. Fazer o espólio de guerra do camarada acima citado.

No final do mês de Março sou colocado na CCaç 4541/72 em Safim.

Nesta Unidade é-me atribuído o comando de uma Secção constituída por mim, 3 Cabos e 7 praças e dou início à minha actividade operacional realizando patrulhas e controlos em João Landim Sul, Impernal, arredores da BA 12 e Capunga. A Norte do Rio Mansoa no destacamento de João Landim Norte, segurança e patrulhas do Rio Mansoa até Bula.

Em Maio de 1974, fui eleito membro da Delegação do MFA na CCaç 4541/72.

Regresso à Metrópole a 3 de Outubro desse ano em avião da FAP. (...) 

(**) Deve tratar-se de chefe de posto, e não administrador.  Safim não era circunscrição ou concelho, mas posto administrativo.

domingo, 13 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23074: Memória dos lugares (437): Rio Mansoa, destacamento de João Landim (Victor Costa, ex-fur mil at inf, CCAÇ 4541/72, Safim, 1974)


Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 3


Foto nº 4


Foto nº 5

 Guiné > Região do Cacheu > Rio Mansoa >  Destacamento de  João Landim

Fotos (e legendas): © Viictor Costa (2022). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região do Cacheu > Rio Mansoa > João Landim > 1965/66 > A famosa jangada que atravessava o Rio Mansoa em João Landim, ligando Bissau com a região do Cacheu

Foto (e legenda): © Virgínio Briote (2005). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região do Cacheu > Mapa de Bula (1953) > Escala 1/50 mil > Pormenor: Rio Mansoa e passagem em João Landim.

Infogravura: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2016)


1. Mensagem do Victor Costa, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4541/72 (Safim, 1974)

Data - 12 mar 2022 17:09 
Amigos e camaradas da Guiné,

Ao longo da História,  os Rios e os Portos tiveram sempre muita importância numa guerra e os rios da Guiné, como não podia deixar de ser, tiveram também aqui um papel de relevo.

Este tema que pretendo abordar prende-se com o facto das fotografias que pretendo ver publicadas se referirem ao Rio Mansoa, ao Porto de João Landim e daí até a Foz, às Jangadas que realizavam a travessia, à proteção das pessoas e bens que as utilizavam, à amplitude das marés e à segurança e riscos associados ao funcionamento da engrenagem e também aos acidentes que vitimaram muitos de nós.

Todas estas fotografias não incluem equipamento militar nem armas, apesar da maior parte delas serem tiradas de cima de uma jangada militar. Isto não foi devido a qualquer imposição do Comando ou dos meus superiores mas por opção minha e deve-se a uma tonteria dum puto 22 anos que não queria que quando o rolo fosse revelado em Bissau pudesse fornecer ao IN qualquer informação por mais pequena que fosse das NT. Também não foi com a ideia de prejudicar quem acima de mim mandava, até porque era uma pessoa de trato fácil, muito correta e se calhar não dava muita importância a estas questões por ser do interior. Mas acontece que eu nasci e vivo numa zona onde desde miúdo convivi com o Rio, o Mar, a amplitude das marés e os riscos aí associados.
 
Quando em meados de Maio de 1974 fui colocado no Destacamento de João Landim Norte a minha travessia do Rio Mansoa foi feita na praia-mar, foi muito fácil e decorreu sem incidentes.

Mas durante as operações de segurança que ali fiz constactei que, apesar do Porto de João Landim estar a mais de 40 Km da foz (Mar), a influência das marés fazia-se sentir fortemente, com um caudal também muito forte e ainda com uma amplitude de maré superior a 4 metros e onde naturalmente se passeava o tubarão negro.

As próximas 5 fotografias tiveram como objectivo captar:

1º O aluvião descoberto no leito do Rio na baixa-mar para poder calcular a altura entre o nível da maior e da menor maré.

2º O desnível da rampa de acesso à jangada a marca da maré na margem e as dificuldades associadas.

3º A entrada das pessoas para a Jangada civil e a Lancha da Marinha a executar a proteção.

4º A Jangada a navegar no Rio sem qualquer dificuldade.

5º A minha última travessia e despedida já ao longe do edifício do Porto de João Landim, felizmente mais uma vez sem qualquer problema.

Para concluir,na minha modesta opinião, durante o período da Lua, o risco de embarque e desembarque nas Jangadas fora do pico da maré era muito elevado.

Um abraço,
Victor Costa
Ex-Fur Mil At Inf
__________

Nota do editor:

Último poste da série > 8 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23058: Memória dos lugares (436): Safim, às portas de Bissau, e o terminal dos autocarros da A. Brites Palma (Victor Costa, ex-fur mil inf, CCAÇ 4541/72, Safim, 1974)

quinta-feira, 10 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23065: (In)citações (196): Bissau, Safim e Nhacra: havia ir e voltar... (Victor Costa / Virgílio Teixeira /Carlos Pinheiro / José Colaço)


Guiné 61/74 > Região de Bissau > CCS/BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) > 11 de março de 1968 > Safim > O alf mil SAM Virgílio Teixeira, na esplanada... da "Marisqueira de Safim". Em Safim, havia um cruzamento: para norte,   seguia-se para João Landim e Bula; para leste e nordeste, seguia-se para Nhacra e Mansoa. De Bissau a Nacra, eram pouco mais de 20 km, e daqui até Mansoa mais uns trinta... De Bissau a Safim, por Bissalanca, também seriam uns 20 km...


Foto (e legenda): © Virgílio Teixeira (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné > Bissalanca > BA 12 >  c. 1973/74 > O Eduardo Jorge Ferreira, alf mil da Polícia Aérea, à porta dos seus aposentos, pronto para partir para Nhacra, para comer umas ostras, à civil, de sandálias, e com capacete de segurança, conduzindo a sua motorizada, de 50 cm3 (?), Yahama, matrícula G5907, e levando à boleia o seu amigo Jorge Pinto, alf mil, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74)...

Pormenor digno de registo: o Jorge Pinto, também à civil, de sapatinho de vela, meiinha branca, leva um capacete de segurança pouco ortodoxo: um capacete, branco, da polícia aérea... A ideia só podia ser do nosso saudoso Eduardo Jorge Ferreira (1952-2019), um homem prático e desenrascado...

Foto (e legenda): © Jorge Pinto (2019). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Comentário do Victor Costa ao poste P23058 (*)

(i) (...) Nunca deixei nenhuma missão a meio e não é agora que irei começar, isto para vos dizer que irei responder a todas as questões colocadas em todos os comentários e em particular ao Luís Graça ou a outros comentários que possam chegar. Eu só preciso de tempo para o fazer. Posso desde já responder ao camarada Valdemar Silva por ser aquele que coloca menos questões.

No tempo em que estive com a CCaç 4541/72 e até Agosto 74,  os autocarros da A. Brites Palma e os táxis que faziam serviço de Bissau para Safim e vice-versa nunca tiveram segurânça por não ser necessário. 

De vez em quando um táxi até trazia meninas de Bissau para satisfazer necessidades fisiológicas do pessoal. Isto quer dizer que nas operações que fazíamos não brincávamos. Serviço é serviço e conhaque é conhaque e isto foi uma das coisas que me orgulho ter aprendido com os "velhos", levávmos as coisas muito a sério.

Irei também enviar mais fotografias sobre Safim, João Landim Porto e outros locais acompanhadas de mensagens.


(ii) (...) Os camaradas Virgílio Teixeira e Carlos Pinheiro em conjunto não podiam ser mais precisos para caracterizar aquilo a que chamo a "marisqueira de Safim", o que demonstra que eram clientes assíduos, mas o primeiro não foi preciso na placa de informação rodoviária localizada 200 m mais a Norte. 

Trata-se das 3 placas,  cujas fotas foram publicadas em 6/3/2022 (**):  a do lado esquerdo João Landim 8 Km, com seta à esquerda e por baixo Porto e na parte central a placa Bula e uma seta à esquerda. Do lado direito da placa Ensalma 5 km com seta à direita. Se consultarem o Mapa no Google ainda existe no local a citada "marisqueira" mas não deve restar nada do edifício antigo.

No mês de Julho de 1974 iniciámos uma operação contínua de controlo e revista de todas as viaturas e civis que entravam e saiam de Bissau, em que todas as viaturas eram obrigadas a parar. Instalamos uma tenda de campanha junto à Base Aérea nº 12, em Bissalanca, precisamente ao lado dos caças Fiat G 91. 

Esta operação contava,  além da secção que eu comandava, também com a participação de dois elementos da Polícia de Segurança Pública de Bissau. Num desses dias um condutor civil cabo-verdiano que circulava na direcção Bissau-Safim,  não parou à nossa ordem e abalroou um elemento nativo da PSP. 

Imediatamente corremos para o condutor da viatura e dei-lhe ordem para sair com as mãos bem levantadas. Começou a gesticular, eu puxei a culatra atrás e dei-lhe ordem de prisão, entretanto o outro elemento da PSP  aproximou-se e meteu-lhe as algemas. 

Chamámos a ambulância e a ramona e lá seguiram os dois para Bissau. No dia seguinte comuniquei para à PSP  para saber do estado de saúde do agente, entretanto falecido de noite. Nunca mais soube o que aconteceu ao preso, nem se houve posterior investigação, eu limitei-me a fazer o relatório.

Entretanto a CCaç 4541/73 com o fim da comissão regressa à Metrópole e eu em Setembro sou colocado na CCS do QG em Bissau até ao meu regresso em Outubro de 1974. Bissau foi uma cidade segura durante o tempo que lá estive. Constava no entanto que haviam alguns problemas entre a nossa tropa pelo controle do Pilão, o Bairro das meninas, mas não era nada comigo.

Havia muito trânsito de viaturas militares em Safim, quer de Bissau para Nhacra ou Cumeré, quer de Bissau para Bula e vice-versa, era a artéria principal de ligação ao interior da Guiné e nunca senti insegurança até Safim e mesmo até João Landim Porto. 

Mas todos os dias em particular à noite eram realizadas patrulhas no mato e nas bolanhas circundantes desta estrada com objectivos definidos pelo Comando. Um Unimog 404 deixava a secção perto da estrada ou se a picada fosse minimamente segura deixava-nos mais no interior, a operação da noite durava em média 6 horas, a pé até ao objectivo e depois regressavámos ao ponto de partida e aqui não havia facilidades, porque era isto que nos dava segurança. 

Contactos com o PAIGC, zero!, apenas o grito das hienas. Do rio Mansoa para Norte as operações eram executadas pelo nosso Destacamento de João Landim Norte que se estendia até às imediações de Bula, onde também estive. Aqui a segurança das Jangadas na travessia do Rio era feita nós e uma LDM da Marinha. Ao fim de um mês com os "velhos", já me sentia seguro e as coisas tornavam-se mais fáceis.

Desloquei-me várias vezes a Bissau á livraria do Sr. Manuel Moreira em Benfica, penso que era perto do Palácio do Governador, para comprar livros e jornais, ia ao Café Ronda, onde gostava de apreciar o bater dos tacões das botas na marcha do render da Guarda para o palácio do Governador feita pela PM ao longo da avenida, tive conhecimento do rebentamento da granada que neste café provocou um morto e 63 feridos, mas não era coisa que nos tirasse o sono e fui ao café Pelicano perto do quartel da PM na Amura. 

Em Bissau, só senti alguma apreensão em meados de Março quando visitei com meu amigo fur mil  José Bilhau,  penso que dos Piratas do Guileje (CCAC 8350), amigos seus no hospital e vi pela primeira vez os seus camaradas a esfregar os dedos das mãos nos braços, pernas e tronco e ver o ferro a sair do corpo,mas isto era no Hospital e este à data estava bastante preenchido. 

Numa das minhas últimas deslocações a Bissau e de regresso a Safim apanhei um táxi um Peugeot 404, estabeleci conversa com o condutor um cabo-verdiano que me garantiu que os efectivos do PAIGC rondava os 7.500 homens, ouvi, calei, mas não acreditei. Em Safim os transportes A. Brites Palma funcionaram antes e depois do 25 de Abril. (...)


Guiné > Carta geral da província (1961) > Escala 1/500 mil > Bissau e povoaçõs a norte: Safim, Landinm, Bula; Nhacra, Mansoa, Mansabá...

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2018)



 2. Outros comentários  ao poste P23058 (*)
 
(i) Virgílio Teixeira:

(...) Victor Costa, uma saudação especial pelo tema deste poste, pois sou um amante quer de Safim, Nhacra, João Landim, etc.

Nos anos de 67-68-69, fui lá muitas vezes, tantas quanto as minhas idas a Bissau, com a minha motorizada, não parava, por vezes acompanhado, a maioria sozinho. Ia à procura de mariscos em Safim, e à piscina do quartel de Nhacra. Depois era a aventura e conhecer novos sítios.

"Marisqueira de Safim", assim com este nome, não havia, era uma esplanada, café, cervejaria e servia uns petiscos para quem passava. Ficava perto do cruzamento e das marcas das estradas para João Landim e Mansoa / Nhacra. Tenho imensas saudades desses momentos, o pior era o regresso, na maioria das vezes já noite, e com uns copitos a mais.

Quanto ao assunto do Poste, e quanto à mensagem do amigo Lobo, não se preocupe pois não é só a idade e a memória. Na minha modesta opinião, e tanto quando me lembro, e somos dos mesmos anos, 68 e 69, nunca vi semelhantes viaturas tipo "ambulância", parecem-me da 2ª guerra mundial.

Por isso posso quase afirmar que não existiam no meu tempo estes autocarros. Podem ser posteriores, mas parece-me mais pós-independência.

Não reconheço nem as viaturas nem os lugares aqui ilustrados, lamento mas não é por falta de memória, se existiam passaram-me ao largo.

Quanto a segurança, nunca pensei no assunto, apesar de tantos quilómetros através do mato, em especial entre Bissalanca e Safim. Depois disso não sei nada.

Podem consultar as minhas fotos aqui publicadas nos meus postes. E quem puder acrescentar mais alguma coisa, que o faça, pois eram locais lendários. (...)

(ii) (...) Relembro aqui para quem já não se lembra ou não viu os postes, a minha narrativa do dia em que sonhei que tinha de ir de motorizada de Bissau até Mansabá, nem sabia onde ficava, era a seguir a Mansoa.

Depois de ir a uns banhos à piscina, encho o depósito da Peugeot, por vinte e cinco tostões, e vou para a estrada a caminho de Mansoa, mas a viagem foi curta, pois uma patrulha militar, teve de me identificar, pois eu ia à civil, eu não tinha documentos mas disse-lhes que era Alferes Mil do BCaç 1933, que estava nessa época em S. Domingos, e depois de pormenores que não me lembro, não me deixaram passar, e lá voltei desolado...

Com certeza se continuava a viagem nem chegava a Mansoa,  muito menos a Mansabá (**).  Era uma miragem, uma loucura, maluca da idade, e já tinha uns 25 ou 26 anos, que ficavam mais curtos com os copitos que nunca faltavam.

Um dia se melhorar da minha saúde, ainda me meto no jipe que tenho lá à minha disposição, com motorista privativo, e faço a vontade ao meu amigo do HOtel Coimbra, que teima em me ver lá... e vou até Mansab!... Até posso morrer por lá, é uma terra que ficou na alma, para sempre.

Perdoem estes comentários de quem já não bate bem... da mona!... São quase 80 anos!  (...)

Carlos Pinheiro:

(...) Estive 25 meses em Bissau e só me lembro das camionetas do Costa mas não sei para onde iam. Eram camionetas já com certa idade e algumas deviam ter o chassis empenado. A malta até dizia que camionetas do Costa "suma a cachorro de rabo de lado"...

Só fui uma vez a Safim. Tinha três dias de Guiné, tina ido em rendição individual para o BCAÇ 1911, mas nunca o cheguei a conhecer, era dia de Todos os Santos de 1968 e foi um camarada da Companhia de Transportes, que me arranjou cama lá na sua Companhia porque nos Adidos não havia nada, para além da confusão geral, e que me levou a Safim onde eu paguei o petisco, ainda com patacão da Metrópole, em agradecimento ao facto de ele me ter arranjado uma cama. 

Gostei do petisco, uns camarões, umas ostras, que eu nunca tinha comido e fiquei freguês sempre que podia e até um bocado de leitão aparaceu. A cerveja já não me lembro a marca mas estava fresca e escorregava bem. 

Foi nesse dia que houve um acidente grave com uma companhia que tinha ido comigo no Uíge, perto de Bula, por ter rebentado uma granada de bazuca em cima duma GMC da CT que já estava carregada de pessoal. Vi passar perto de uma dezena de helicópteros e com três dias de Guiné comecei logo a aperceber-me da situação. Nunca cheguei a saber se houve mortos, mas feridos foram imensos. 

Gostei do petisco mas nunca mais voltei a Safim. Para mim a fronteira era BA 12, em Bissalanca.  (...)


José Botelho Colaço:


(i) (...) Obrigado, Victor Costa, pelas fotos dos autocarros da empresa A. Brites Palma, é precisamente este modelo de autocarro que está gravado na minha mente de 1964/65. 

Quanto aos camaradas dizerem que a memória pifou,  talvez não... O que aconteceu foi que á medida que as malhas da guerra foram apertando,  os colonos deixaram de ter o seu papel activo e quase de certeza estes autocarros deixaram de circular,  por isso os camaradas não se lembram de os ver. 

Eu recordo de ver em Bafatá, ao lado do café do tio Bento, a carcaça de um autocarro abandonado, deste modelo. 

Resumindo, antes da Guerra, estes autocarros ciculavam em grande parte do território da Guiné, que se foram confinando com o rebentar e evoluir da guerra. 

A memória que eu tenho do dono da A. Brites Palma era um homem de baixa estatura,  já com os anos a pesarem sobre si mas um poligolota em vários dialetos na lingua nativa.

(ii) (...) Que a memória vai pifando não há dúvidas mas é devido á idade, é mais a doença da anosognosia do que a Alzheimer. Obrigado, 

Victor Costa,  por me avivares e confirmares tudo aquilo que guardo em memória e escritos pessoais.

O que me parece é que o sector de Bissau se manteve quase igual ou com pequeníssimas alterações pelo que nos contas durante o tempo que durou a guerra. Exemplo,  em 1964/65 até á jangada do João Landin ou via Nhacra era praticamente zona livre,  viajava-se sem qualquer problema, mas para Mansoaa também se ia mas já era uma pequena aventura e só durante o dia. No Pilão á noite só os mais aventureiros e alguma segurança. Quanto aos transportes em Bissau,  total acordo confirmas tudo o que guardo em memória.  (...) (***)

__________

Notas do editor:

(**) Vd. poste de 5 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18287: Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) - Parte XIV: o dia em que eu queria ir de motorizada, de Bissau a Mansoa... e a Mansabá!

terça-feira, 8 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23058: Memória dos lugares (436): Safim, às portas de Bissau, e o terminal dos autocarros da A. Brites Palma (Victor Costa, ex-fur mil inf, CCAÇ 4541/72, Safim, 1974)


Foto nº 1


Foto nº 1A


Foto nº 2


Foto nº 2A

Guiné > Região de Bissau > Safim > c. 1973/74 > Autocarros da empresa A. Brites Palma que faziam a carreira Safim-Bissau (Foto nº 1) e Safim-Nhacra (Foto nº 2)

Fotos (e legendas): © Victor Costa  (2022). Todos os os direitos reservados. [Edição e legendagem complementa: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do nosso camarada Victor Costa, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4541/72 (Safim, 1974)


Data - 8 de março de 2022, 14:20  
Assunto - Fotografias dos autocarros da A. Brites Palma em Safim

Amigos e camaradas da Guiné,

Esta mensagem tem como objectivo, adicionar informação e duas fotografias relativas aos autocarros da empresa A. Brites Palma,  da Guiné,  para melhorar o produto final da publicação de 20/02/2022. (*)

A primeira fotografia mostra um autocarro dessa empresa, pronto para partir para Bissau. Por detrás dele encontra-se um mangueiro e o edifício da Marisqueira de Safim e do lado direito desta, o escritório da venda de bilhetes. 

A segunda fotografia é do mesmo dia e mostra outro autocarro no outro lado da estrada, na direção de Nhacra com as pessoas a aguardar a sua partida, portanto na direção contrária. O local das fotografias corresponde à estação de Safim.
 
Entre a estação e a placa de informação rodoviária (Bula) publicada em 06/03/2022  (**) existia uma distância de cerca de 200 m onde se realizava um mercado ou pequena feira ao ar livre (posso também enviar duas fotografias se acharem de interesse).

Se acharem que alguma coisa está fora da forma ou do espírito do Blogue, por favor, devem corrigir. Isto para mim é uma coisa nova, mas penso que estou a melhorar. (***)

Um abraço,
Victor Costa
Ex-Fur Mil At Inf
___________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 20 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P23011: Fotos à procura de... uma legenda (160): Transportes públicos de Bissau: ABP, que sigla seria esta ?

(**) Vd. postes de:


(***) Último poste da série > 28 de janeiro de 2022 > Guné 61/74 - P22944: Memória dos lugares (435): Missirá, regulado do Cuor, Sector L1 (Bambadinca), 23 de dezembro de 1966 (José António Viegas, ex-fur mil, Pel Caç Nat 54, 1966/68)

domingo, 6 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23053: Memórias do Chico: Refugiado na sua própria terra durante a guerra civil de 1998/99: 200 km e oito dias de aflição, entre Bissau e Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte II: de 11 a 13 de junho de 1998, de Safim a Mansoa: uma dádiva de Deus


Guiné > Carta de Bissau (1949) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Nissau, Ajuda , Brá, Bissalanca, Antula, Cumeré, Jal, Safim e Nhacra

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2022)



Guiné > Região de Bissau > Safim > 1973 > Cruzamento: Bula e João Landim, à esquerda; Ensalme, a 5 km, à direita... (e depois Nhacra e Mansoa)

Foto de um militar português, António Rogério Rodrigues Moura, que lá estava aquartelado em 1973...



RECORDAÇÕES DA GUERRA DE BISSAU,
O CONFLITO POLITICO-MILITAR DE 7 DE JUNHO DE 1998


Parte II-  De 11 a 13 de junho de 1998: De Safim a Mansoa, uma dádiva de Deus 

por Cherno Baldé (*)


5º dia,  11 de junho, quinta-feira, Safim. (*)

Na manhã do quinto dia, 11 de Junho de 1998, decidi que desta vez se a Djenaba, a minha cunhada, irmã mais velha da minha esposa,  não quisesse sair, então eu sairia com a minha família, mulher e filho. 

No entanto, quando lá cheguei, já estavam prontos, na verdade todos os vizinhos já se tinham ido embora. Pegámos nas coisas, metemos algumas provisões num carrinho de mão e rapidamente, atravessámos a bolanha de Bairro Militar, na zona de Brá. Ainda o fluxo da população era enorme. 

Seguimos ao longo da estrada que leva a estrada de volta a Bissau. A nossa caravana estava constituída de 10 pessoas: Eu, a minha esposa, o filho de três anos de idade [Abduramane Santos Baldé], a minha sobrinha de cinco anos, por um lado, e por outro Djenaba, seus quatro filhos e uma sobrinha, com 13 anos. Portanto, três adultos e sete crianças,  dos 3 aos 13 anos.

No caminho, pelas informações que circulavam, soubemos que em Safim a multidão era tanta que já era muito difícil encontrar água. Munido desta informação, decidi seguir a via alternativa. Consultámo-nos rapidamente e decidimos tentar chegar até Nhacra

O percurso seria difícil mas aumentava nossas hipóteses de sobrevivência se conseguíssemos lá chegar. Caminhámos para o cemitério de Antula. A minha intenção era atravessar a bolanha, passar para os lados de Cumeré e seguir até Nhacra a uma distância de, talvez, 20 Km.

Era puro palpite, nunca tinha feito esse percurso antes. O raciocínio parecia correcto mas, todavia, ao chegarmos às portas do cemitério, cruzámo-nos com uma multidão de pessoas que estavam cobertas de lodo dos pés a cabeça, irreconhecíveis, pareciam Nhayés Balantas, informaram-nos que era impossível passar por ali pois o curso d´água estava muito baixo, só pessoas jovens e fortes podiam fazer a travessia, e isto quando havia canoa.

Ao ver o estado deplorável dos nossos interlocutores, não tive qualquer dúvida e tivemos que voltar atrás a fim de procurar o caminho de Safim. Já tínhamos perdido três horas de tempo e as crianças já davam sinais de fadiga. A quantidade de água era insuficiente pelo que comecei a racionar o seu consumo. 

A alegria das crianças abrandou, no caminho, juntámo-nos à multidão que de todos os lados afluía, seguindo depois pela bolanha que separa o Bairro de Afiá ao Aeroporto de Bissalanca, para tentar chegar à estrada que leva a Safim, para os lados de Djáhal.

Ninguém soube porque tinham fechado as vias de saída para fora, por onde todos podiam sair, transportados em veículos, sem grandes dificuldades. Mas eu sei e a resposta, na minha opinião, é muito simples: Ódios e medos que ganharam as hostes dos militares e antigos combatentes desde 1980. Ódios, medos e velhos demónios trazidos das matas de Oio, Cubucaré e Quitáfine, que ainda não tinham sido exorcizados de todo.

Durante o trajecto ouvíamos o som das explosões das BM [, órgãos de Estaline,] e uma vez pareceu-nos que éramos nós os visados ao ouvirmos o assobio,  seguido do impacto de uma bomba à nossa frente e nessa altura tivemos que nos deitar ao chão. 

Foi durante este exercício que o meu filho que viajava em cima dos meus ombros, caiu estatelando-se no chão. Para além dos bombardeamentos contínuos que pareciam nos perseguir, foi, talvez, o único momento em que ele sentiu, de facto, o perigo em que nos encontrávamos e já não lhe parecia tão divertido andar viajando nos ombros do papai.

Chegámos à vila de Safim quando o sol já começava a descair para oeste, pintando o horizonte de vermelho. O maior problema que tivemos foram os bombardeamentos que nos acompanharam ao longo do trajecto, de resto, chegámos em bom estado e, no fundo, a travessia acabou sendo divertida com as crianças a correr de um lado para o outro numa planície largamente aberta e pitoresca. 

As paisagens da nossa terra são lindas. Era uma maravilhosa descoberta para eles, crianças de uma cidade caótica, fechadas entre muros e estradas estreitas. Sentia-se o cheiro acre da terra esbranquiçada da bolanha que os pés libertavam na caminhada qual manada de búfalos em corrida tresloucada.

A confusão em Safim, afinal, não era assim tão grande como se dizia, e não tivemos problemas de maior para nos instalarmos. Era preciso preparar rapidamente qualquer coisa para comer e preparar-se para o que desse e viesse. 

Graças à ajuda de um colega, consegui uma cama para três pessoas. O espectáculo na estrada era impressionante, uma corrente humana afluía de Bissau para o interior, cada um carregando o que podia, acompanhado de suas crianças e até de alguns animais. Esta caminhada era sobretudo difícil, para não dizer impossível, para os idosos. Alguns caiam no caminho completamente esgotados, e muitos acabaram por morrer.

Passámos dois dias em Safim, na vã esperança de que tudo ficava resolvido e que tão cedo como isso voltávamos para casa. Tudo se assemelhava a um pesadelo, que insistia teimosamente em transformar-se na mais dura das realidades, daquelas que não queremos reconhecer como tal mas que parecem gozar com a nossa capacidade de entendimento. Todos os dias víamos pessoas a correr para embarcar em camiões que as levavam para longe dali.

Como da primeira vez, a minha decisão de partir chegou tardiamente, pois a Djenaba estava à espera que o seu marido viesse à sua procura. Também eu desejava que assim acontecesse pois senão teríamos grandes problemas com ela e seus filhos pois o seu destino era para o sul e nós devíamos seguir para leste. Todavia, o marido não aparecia. No dia seguinte, decidimos avançar para o centro da vila na esperança de conseguir transporte.



Guiné > Mansoa > 1968 > CCAÇ 2405 (1968/70) > O Alf Mil Inf Paulo Raposo, membro da nossa Tabanca Grande, junto à placa toponímica que indicava as localidades mais próximas: para oeste, Nhacra (28 km), Bissau (49 km)...; para leste, Enxalé (50 km), Bambadinca (65 km), Bafatá (93 km)... De Bissau a Fajonquito, o "refúgio" do Cherno Baldé e família eram caerca de 200 km.

Foto (e egendaO: Paulo Raposo (2006)Todos os os direitos reservados. [Edição e legendagem complementa: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


7º dia, 13 de junho, sábado, Mansoa:  O perigo ainda a espreita

No centro da vila de Safim, apesar do trabalho contínuo dos camiões que transportavam as pessoas para o norte, o  leste e o sul, ainda a multidão apinhada junto a estrada era enorme e, para conseguir um lugar num desses camiões,  era uma autêntica guerra e para quem tinha crianças e cargas ainda pior. 

Como a desgraça nunca vem só, o transporte não era gratuito,  aliás, os preços tinham subido cinco vezes mais. Fomos parar junto a uma escola, onde pernoitámos. A maioria estendeu-se assim directamente no chão. Consegui arranjar um lugar sentado numa carteira da escola local, apinhada de gente, onde passei a noite com o meu filho ao colo. Na manhã do dia seguinte esperava-nos uma boa surpresa.

O meu colega tinha conseguido, para nós, uma boleia até à cidade de Mansoa. Bem, não era exactamente o que precisávamos mas, nessa altura, com os ruídos e os sinais da guerra cada vez mais perto, o que importava era afastar-se o mais longe possível. Quando me informaram, nem sequer nos preocupámos com o pequeno-almoço. Preparámo-nos rapidamente e fomos pegar o camião.

Depois de muitos anos trabalhando como quadro superior da administração com carro de função e regalias, a sensação que senti, ao embarcar nas traseiras de um camião, foi indescritível. Mais uma vez, isto não era o mais importante, aliás, sem o saber, tínhamos entrado no labirinto onde, cada vez, as coisas tomavam um carácter estranhamente diferente, onde tudo perdia o seu verdadeiro sentido e valor. 

Ali, pela primeira vez, percebi que o mal era irreversível e com ele a desgraça humana que o acompanha sempre que a ordem é abalada. A pensar que, no meu íntimo, tinha desejado esta sublevação armada, logo a desordem. Não, de facto, não era a desordem que desejara mas sim uma mudança. Mas, é possível fazer a mudança sem criar desordem? Era possível criar, algo de novo, sem destruir? Eis uma questão melindrosa para a qual não tinha resposta.

No geral não nos surpreendeu muito esta inversão de situação e, como eu, as pessoas viviam esta situação de forma absolutamente normal, afinal tinham também vivido a independência, acontecimento que tinha virado o país de pernas ao ar há cerca de 24 anos atrás. 

O desespero é apanágio das pessoas de pouca fé. Isto não durará para sempre, dizia-me a mim mesmo para me confortar. Na verdade, o medo do desconhecido roía o meu coração de chefe de família e, chegado a este ponto, lembrei-me do meu pai e da sua coragem nas situações mais difíceis por que tínhamos passado, na infância. Tinha conseguido, finalmente, encontrar a âncora que me faltava neste mar de angústias, o exemplo e a bravura do meu pai.

O camião rolava velozmente para fora de Safim, finalmente tínhamos conseguido sair do inferno situado nos arredores de Bissau. Tentando verificar se estávamos ao completo, acabei reparando em Djenaba, acocorada não muito longe, à minha esquerda. O seu rosto estava banhado em lágrimas. Porque chorava ela? É possível compreender as mulheres? Virou-se para o outro lado como quem queria admirar o andamento das árvores, na verdade, não queria enfrentar o meu olhar recriminatório. Ah, Chita, a nossa cadela, deixámo-la ficar em casa. Era tarde demais.

A nossa partida para Mansoa tinha sido fruto de um puro azar, o que não era de admirar naquelas circunstâncias e, por isso mesmo, não tínhamos ninguém à nossa espera. Descemos do camião e acomodámo-nos na sombra de uma mangueira,  perto da missão católica enquanto ia pensando sobre a decisão a tomar de seguida. 


Sabia do enorme esforço que a igreja estava a fazer para ajudar as multidões abandonadas a si, particularmente naquela cidade. Mas, na verdade, imaginando o trabalho que já teriam tido com toda aquela gente, eu não tinha qualquer intenção de sobrecarregá-la com mais pessoas, por enquanto. Fomos, sim, lá dentro reabastecermo-nos de água.

Foto (à esquerda): Cherno Baldé em Fajinquito  (2010) . 

Mais uma vez, foi um colega que nos encontrou ali casualmente e que nos socorreu, levando-nos para a sua casa. No dia seguinte  já estávamos bastante melhor. Estávamos longe do teatro da guerra, tínhamos tomado banho e recuperado um pouco do nosso juízo e amor-próprio.

Todavia, sabia que ainda estávamos numa área potencialmente perigosa, pois a cidade de Mansoa, situada na confluência das principais vias que atravessam o pais, é um corredor natural de acesso às três zonas em que este se divide, Bissau/Centro, Leste/Sul e Norte/Oeste. E funcionou sempre como um ponto estrategicamente importante em termos militares. 

Por enquanto estava sob o controlo da Junta Militar [de Ansumane Mané,], aliás toda a zona norte estava nas mãos desta, enquanto a zona leste e parte do sul se mantinham fiéis ao governo. Para qualquer das duas partes, pensei, o controlo de Mansoa será indispensável para a conquista do resto do país. Por isso convinha sair dali sem perda de tempo.

A casa do meu colega estava situado na estrada que liga Mansoa a Mansabá e não muito distante do centro da cidade, por isso, deixámo-nos ficar ali à espera mesmo depois de ter despedido dos nossos benfeitores. Comecei, então, a fazer vaivém entre a casa e o centro da cidade à procura de uma solução. 

Foi com grande alívio que vi aparecer um camião que já conhecia, e o motorista, um jovem da minha aldeia, Fajonquito, quando me viu parou para os habituais cumprimentos. Não foi preciso dizer nada pois era evidente que estava ali à espera de poder viajar até Bafatá a partir donde poderia seguir para a aldeia natal. Explicou-me que tinha que ir até Farim mas que, de seguida, voltaria no mesmo dia a Bafatá.

Ficámos à espera, já, mais confiantes e descontraídos. Consegui finalmente comer alguma coisa para enganar a fome,  pois a preocupação e a responsabilidade que pesavam sobre mim não me tinham permitido fazê-lo havia muito tempo. A espera não foi demorada. Pode ser que tenha sido, mas não deu para perceber, estava contente de mais pela dádiva que Deus nos concedera.

(Continua)
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 5 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23050: Memórias do Chico: Refugiado na sua própria terra durante a guerra civil de 1998/99: 200 km e oito dias de aflição, entre Bissau e Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte I: Bissau, 7-11 de junho de 1998