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segunda-feira, 5 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24368: História da CCAÇ 2402 (Có, Mansabá e Olossato, 1968/70) (Coordenação: Raul Albino, 1945-2020) - Textos avulsos - Parte I: Tempo(s) de Homofobia(s) (Mário Vargas Cardoso, 1935-2023)

  

Capa do II Volume do documento policopiado "Memórias de Campanha  da Companhia de Caçadores 2402 (Guiné, 1968/70) (Raul Albino, ed. lit.), 2008,  inumerado.


1.  O nosso saudoso camarada e amigo Raul Albino (1945-2020), ex-alf mil at inf, MA, CCAÇ 2402 (Có, Mansabá e Olossato, 1968/70), publicou ainda em vida dois volumes com a história da sua unidade. 

No II Volume, que teve a coordenação fotográfica do Maurício Esparteiro, contou ainda com a participação especial do ex-cmdt da companhia, Vargas Cardoso, e do ex-fur mil SAM, João Bonifácio.  Hoje publicamos um pequeno texto do Vargas Cardoso, ex-cor inf ref, que há dias nos deixou (*). No nosso blogue, o Raul Albino também publicou, no devido tempo, 18 postes com episódios da história da CCAÇ 2402 (**).


O transmissões que era gay...

por Vargas Cardoso 

Durante o período de preparação das unidades que mobilizavam para o Ultramar, quando já tinha conhecimento do teatro de operações do destino, e se preparavam os exercícios finais, que em 1968 se faziam no Continente / Metrópole, apresentavam-se na unidade mobilizadora (no nosso caso, o Regimento de Infantaria nº 1, na Amadora) os chamados especialistas, ou sejam os elementos do comando da companhia.

De entre os condutores, enferfermeiros, mecânicos, radiotelegrafistas, trabsmissões, etc., apresentou-se-me um futuro cabo de transmissões, que durante a habitual entrevista que tive com todos os militares da CCAÇ 2402, me causou alguma preocupação, pois pareceu-me denunciar um comportamento de tipo sexual, à época, bastante anómalo.

Já não me recordo como obtive informações complementares, mas lembro-me que dias depois,  e uma vez confirmadas (em princípio) as minhas suspeitas, falei com o nosso médico, o dr. João Dória (***), manifestando-lhe os meus receios, por estar em vias de embarcar para a Guiné, um militar que iria ter uma actividade muitas vezes sozinho no seu posto de serviço.

Ficou decidido, entre mim e o nosso clínico, conseguir que o rapaz baixasse ao Hospital Militar da Estrela onde foi sujeito ao chamado teste do "prato de farinha" (****). Face às diligências do dr. Dória com os seus colegas do Hospital, chegou-se à conclusão que o rapaz era o que agora se designa por "gay".

Resultado, embarcámos com um militar de transmissões a menos, mas escapámos aos problemas que aquele militar, sendo "doente", nos poderia levantar.

Vargas Cardoso, cor ref 

Excerto de: Parte II - Comando da Companhia, textos de Vargas Cardoso. In: Memórias de Campanha  da Companhia de Caçadores 2402 (Guiné, 1968/70) (Raul Albino, ed. lit.), II Volume, 2008, documento em pdf, inumerado.

____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 3 de junho de 2023 > Guiné 61/74 - P24363: In Memoriam (478): Mário Vargas Cardoso, cor inf ref (1935-2023), ex-cap inf, CCAÇ 2402 / BCAÇ 2851 (Có, Mansabá e Olossato, 1968/70) e ex-cmdt do BCAÇ 3884 (Bafatá, 1972/74) (João Bonifácio, ex-fur mil SAM, CCAÇ 2402, 1968/70, a viver no Canadá); Manuel Oliveira Pereira, ex-fur mil at inf, CCAÇ 3547, Contuboel, 1972/74)

(**) Vd. último poste da série > 19  de setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7010: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (18): Terceiro ataque ao Olossato

(***) Julgamos tratar-se do dr. João Dória Nóbrega (1934-2021), ginecolista e obstetra.

(****) O "teste da farinha ou  do prato da farinha" era uma prática infamante, homofóbica, que esteve em voga em diversos exércitos, incluindo o brasileiro e, ao que parece, também no português.

sábado, 26 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23817: In Memoriam (463): Rui Alexandrino Ferreira (1943-2022)... Um excerto do livro "Quebo" (2014): Recordando os tristes acontecimentos que ensombraram Aldeia Formosa, na noite de Consoada de 1971, "se não a pior, uma das mais trágicas da minha vida"


Rui Alexandrino Ferreira (Angola, Sá da Bandeira, 
h0je Lubango, 1943 - Viseu, 2022) (*)





Guiné > Região de Tombali Aldeia Formosa > CCAÇ 18 (jan 197/set 72) > 1971 > Os primeiros foguetões 122 a serem capturados aos guerrilheiros do PAIGC. No foto, ao centro Cap Mil Rui Ferreira, comandante da CCAÇ 18, com dois dos seus homens, guineenses: o furriel mil Aristóteles Tomé Pires Nunes  e o furriel  mil Carlos Solai Só. Foto, com a devida vénia, reproduzida de "Quebo: nos confins da Guiné", Coimbra, Palimage, 2014, pág. 107. 




Capa do livro "Quebo: Nos confins da Guiné" (Coimbra, Palimage, 2014, 364 pp.).
Um exemplar deste segundo livro do Eui Alexandrino Ferreira, foi-me gentilmente ofertado pelo Manuel Gonçalves, ex-alf mil mec auto, CCS/BCAÇ 3852 (Aldeia Formosa, 1971/73), Reproduzo aqui a sua dedicatória: "Tendo estado em Aldeia Formosa com o autor, quero partilhar com o meu ilustríssimo amigo Luís Graça alguma dessa vivência. Manuel Gonçalves, s/d  [2022] ".



1. Em homenagem ao nosso ten cor inf ref Rui Alexandrino Ferreira (1943-2022), deixamos aqui a sua versão sobre os tristes acontecimentos que ensombraram Aldeia Formosa, na noite de Consoada de 1971,  sob a forma de confrontos armados, opondo militares, guineenses, da CCAÇ 18, a camaradas, metropolitanos da CCS e da CCAÇ 3399 / BCAÇ 3852 (Aldeia Formosa, jul 1971 / set 1973).  O Rui Alexandrino Ferreira estava então na sua segunda comissão no CTIG, desta vez a comandar a CCAÇ 18 (de janeiro de 1971 e setembro de 1972).

Trata-se de um excerto do seu livro "Quebo: Nos confins da Guiné" (Coimbra, Palimage, 2014). Com a devida vénia aos herdeiros do autor e à editora, a Palimage. É também uma homenagem à sua esposa, a quem dedica (a ela e às filhas) este livro, com palavras  de enorme ternura e humanidade que merecem ficar aqui registadas no nosso blogue:

"Este livro  (...) é principamente dedicado à minha esposa, que continua a ser dos meus sonhos o mais lindo, pro quem tive a ousadia de pedir a Deus: "Senhor! Cuida bem dela. Dá-lhe uma velhice calma e sem abrolhos, que a compense da imensidão de sacrifícios que por mim temfeito. Quando a tiveres de a chamar a Ti, não o faças sem primeiro o teres feito a mim, pois  sem ela nem o mundo seria o mesmo, nem a  minha vida teria qualquer sentido" (pág. 19).

Chama-se a atenção para o facto de haver outras versões dos acontecimentos a seguir relatados: vd. por exemplo, o testemunho do soldado do pelotão de morteiros que estva a altura em Aldeia Formosa, Joaquim dos Reis Martins ("Quebo: nos confins da Guiné", op cit, 2014,  cap 12º, ponto 10.5. A Revolta dos Militares Nativos, pp. 330-335); ou ainda a versão do nosso camarada Manuel Gonçalves, já aqui citado (**). 



Capítulo décimo primeiro – A noite dos horrores, ou o conflito armado entre metropolitanos e africanos e ainda a morte de Virgolino Ribeiro Spencer (pp. 197 – 202)


Por Rui Alexandrino Ferreira 



(...) Se durante a permanência do [BCAÇ] 2892, a coexistência entre brancos e africanos decorreu de forma natural, (…) dentro do aquartelamento e da povoação [de Aldeia Formosa] (…), com a chegada do [BCAÇ] 3852 tudo se tinha modificado.

(…) Sucedia que entre os fulas, para publicamemte mostrarem a grande amizade que os unia, estes se passeavam de mão dada. Tal facto foi originando alguns piropos da parte dos soldados metropolitanos, que foram agravando com o correr do tempo.

Longe de qualquer prática homossexual, que aliás não foi detetada nenhuma, na CCAÇ 18, durante todo o tempo em que lá estive (…). Os militares do [BCAÇ] 3852 pareciam, a este respeito, estar desinformados, pouco mentalizados, como se fosse coisa de que nunca tivessem ouvido falar.

Foram-se assim agravando as relações. E, se não me custa aceitar que havia alguns militares da [CCAÇ] 18, que estariam mais perto dos ideais do PAIGC, e atentos a uma oportunidade para lançar uma confusão, tal não me parece ter sido esse o presente caso.

Confusão que acabou por acontecer na noite da consoada de 1971. Foi seguramente, se não a pior, uma das mais trágicas da minha vida.

E tudo começou por uma violenta discussão entre africanos e metropolitanos no bar do Cabo Verdiano, envolvendo o campeonato de futebol da primeira divisão. Do Benfica ao Sporting (…), foi subindo de tom e passou para o futebol de Aldeia Formosa, onde tinha recentemente terminado o campeonato inter-unidades.

E assim, normalmente, acabava por vir a lume a minha própria pessoa. Não sendo efetivamente um elemento muito disciplinado, usando e abusando da força que então tinha, era extremamente corajoso, lutador e, sem ser violento, impunha o físico, nunca tirava o pé do sítio onde metia e raramente perdia um confronto a dois.

Tendo sido injustamente expulso durante um desafio por um furriel árbitro que, na busca de protagonismo, não encontrara melhor solução que me pôr fora de campo, ordenei então à equipa da 18 que abandonasse o terreno, pois o futebol para nós tinha acabado naquele momento.

Foi um alvoroço. Chamado às preces
 [ou à pressa ?]    o comandante [ten cor inf António Afonso Fernandes Barata], [este ] ordenou-me que fizesse reentrar o pessoal no campo, ao que lhe respondi que nem pensar.

− Então mando-os eu entrar – retorquiu.

−Essa é que eu gostava de ver, entrar um que fosse, depois de eu ter dito para o não fazerem.

− Então, eu prego-lhe uma porrada.

− E eu preocupado com isso, seguramente viu daqui para melhor, porque não há nada mais perigoso em matéria operacional do que uma companhia africana. E venha quem os ature.

− Mau…, então vamos conversar. O que é o senhor quer ?

− Mande substituir o árbitro.

E assim foi feito (…).

Do futebol se passaram às malévolas insinuações, se julgaram ações, se estabeleceram suposições, numa alusão a eventuais práticas homossexuais, metendo pelo meio o uso dos balandraus, alguns ricamente costurados, que os fulas usavam em ocasiões especiais, mas que efetivamente mais pareciam vestimenta de mulher.

E tudo acabou num confronto físico, quando um soldado africano enfiou pela cabeça abaixo de um soldado africano uma cadeira. Criadas fixaram assim as condições para o pandemónio que se seguiu.

Impotente para reagir fisicamente, dada a diferença de arcaboiço, o soldado africano foi a casa buscar a arma. Os soldados metropolitanos refugiaram-se no quartel e os africanos instalaram-se numa casa fronteiriça a este, de onde desencadearam o ataque.

A notícia chegou como uma bomba à tabanca da [CCAÇ ] 18 [fora do quartel, onde ficavam o comandante e os demais graduados da companhia].

− Nosso capitão, o pessoal está todo aos tiros uns aos outros.

(…) Desatmado, usando, tal como me encontrava, as calças do camuflado e uma t-shirt branca, dirigi-me rapidamente ao local do conflito.

Já então o tiroteio era verdadeiramente infernal. Os soldados metropolitanos tinham começado a responder de dentro para fora do quartel. Tendo feito rapidamente um balanço à situação, só havia um solução: terminar imediatamente com a troca de tiros, antes que a situação ficasse incontrolável.

Identificando-me e ordenando, tão alto quanto consegui, que pusessem fim ao tiroteio, avancei direto à casa onde se encontravam entrincheirados os soldados da 18.

Os tiros passaram por mim zumbindo, dilagramas iam rebentando um pouco por todo o lado. E fosse por intervenção divina, por interferência de Nossa Senhora de Fátima que protege os portugueses quando estes se encontram em más situações, ou pela intervenção que era conferida pelo amuleto que me fora dado pelo Cherno Rachid Jaló, não sofri nem a mais ligeira beliscadura.

Continuando a avançar em direção à casa, consegui que os meus soldados a abandonassem e assim se findou o tiroteio. No rescaldo, e num balanço final, tinha um dos majores um dos lados da cara completamente esfacelado, por se ter mandado abaixo do jipe que estava a ser atacado.

Mais grave, estava o Virgolino Ribeiro Spencer, um dois furriéis da 18, que transitava de boleia na motorizada do Ganga, outro furriel da mesma 18, que era avançado de centro da seleção da Guiné (…)[com família no Pilão]… [E a propósito do Pilão], ainda estava bem presente na mente de todos a morte de quatro elementos da polícia militar, vítimas de uma granada que lhes meteram dentro do jipe.

Virgolino Ribeiro Spencer foi inacreditavelmente atingido por uma bala que, tendo feito ricochete no farolim, o foi apanhar naquele exíguo pedaço do seu corpo, que não estava protegido pelo corpo do Ganga. (…)

Evacuado para Bissau, na madrugado do dia seguinte, morreu um dia depois [na realidade, umas três semanas depois, em 15 de janeiro de 1972]. Para o seu velório e enterro, Spínola mandou-me buscar a Aldeia Formosa.

Foi mais uma noite de profundo desgaste psíquico, físico e mental. Com o calor que se fazia sentir, o corpo já tinha começado a decompor-se. A família, num cantochão, misto de prece e oração, lamentava em conjunto a sua morte. Toda a noite, sem descanso, sem tréguas, sem intervalos. De madrugada, [eu] tinha os nervos arrasados. O enterro constituiu mais uma provação.

Mas voltando a Aldeia Formosa e à noite das facas longas, findo o tiroteio e após ter passado pela enfermaria, dirige-me à sala de operações onde se encontrava reunido o comando do batalhão. O comandante propôs-me então que se esquecesse o que se tinha passado, não informando Bissau do sucedido.

Ao que lhe respondi que não precisava ele de se preocupar em prestar qualquer esclarecimento, pois a essa hora já por toda a cidade de Bissau se sabia o que se tinha passado, com base no agente da PIDE, em Aldeia Formosa.

− E mais, temos de nos preparar para amanhã receber a visita de Spínola.

E assim foi. Formadas as unidades, Spínola determinou que os comandantes das companhias fizessem sair os cabecilhas. E quando viu que os elementos da 18, que tinha mandado sair, estava um cabo com uma cruz de guerra (que ostensivamente colocara), dirigiu-se-me dizendo que não era forma de tratar um herói nacional. Ao que eu respondi:

−Que em matéria de cruzes de guerra, ele ainda ficava a perder comigo.

A verdade é que Spínola estava absolutamente determinado a arranjar alguém que arcasse com as culpas e, se eu não lhe tenho respondido com a mesma arrogância, ele tinha-me passado por cima.

Embarcados os elementos que tinham sido dados como cabecilhas, Spínola regressou a Bissau.

De seguida, mandou quês e apresentasse em Bissau o comandante do [BCAÇ] 3852 e enviou, para Aldeia Formosa, o brigadeiro Ramires, comandante do CTIG, que, tendo como escrivão o major Carlos Azeredo, elaborou o auto respetivo. (Aliás, Carlos Azeredo conhecia muito bem Aldeia Formosa, pois tinha aí comandado um COP).

Ouvidos exaustivamente todos os possíveis intervenientes, foi o comandante punido. Salvo erro, com 12 dias de prisão disciplinar, findos os quais, foi mandado regressar à Metrópole.

No rescaldo, a vida regressou a uma efetiva normalidade, melhoram as relações entre militares, e eu sentia que o grosso que tinha que fazer naquela comissão já estava feito.

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Parênteses retos / Negritos , para efeitos de publicação deste poste:  LG]

2. Comentário adicional do editor LG:

Chama-se a atenção para o facto de haver outras versões dos acontecimentos acima relatados, que podem divergir, nalguns aspetos circunstanciais ou até essenciais, da versão do Rui Alexandrino Ferreira. Costuma dizer-se que quem conta um conto, acrescenta-lhe um ponto. Neste caso, ver por exemplo:

(i)  o testemunho do soldado do pelotão de morteiros que estava a altura em Aldeia Formosa, fotógrafo amador, e amigo do coamndante da CCAÇ 18, de seu nome Joaquim dos Reis Martins: ele próprio doou sangue para fazer uma transfusão ao furriel Spencer, assistido de imediato pelos quatro médicos do batalhão, por sorte todos reunidos nesse dia festivo em Aldeia Formosa: levado de helicóptero para o HM 241, logo no dia seguinte de manhã,   foi recuperando dos ferimentos de bala; mas terá morrido de uma hepatite no hospital (in "Quebo: nos confins da Guiné", op cit, 2014,  cap 12º, ponto 10.5. A Revolta dos Militares Nativos, pp. 330-335).

(ii) ou ainda a versão do nosso camarada Manuel Gonçalves, já aqui citado (**):. 

(...) Oficialmente, o exército considerou a  (...) morte   [do furriel mil Spencer] como "acidente". Na realidade, ele terá sido assassinado, quando circulava pela tabanca com a sua motorizada. Era um guineense, de origem cabo-verdiana,  sendo natural de Nª Sra. Natividade, Pecixe, Cacheu.

Era o único militar, ao que parece, que possuía uma motorizada  [o alf mil João Marcelino, da CCS, também tinha uma Honda, não sei se nessa altura, se mais tarde... LG] . 

Para o Manuel Gonçalves, terá sido morto mais provavelmnete morto por alguém da sua própria companhia. a CCAÇ 18,  As praças da CCAÇ 18 viviam na tabanca, estando por isso armados.

A haver crime. não se apurou o móbil do crime, nem se identificou o autor do disparo.. Pode-se pôr a hipótese de vingança ou racismo. Esta história acabou por ser um "pretexto" para uma "insubordinação militar", com o pessoal da CCAÇ 18,  a revoltar-se e virar as suas armas contra os "tugas" da CCS/BCAÇ 3852.

Foi preciso mandar avançar uma Panhard para serenar os ânimos... Isto passa-se na véspera de Natal, na noite de Consoada, 24/12/1971. O Spencer, evacuado para o HM 241, em Bissau, acabou por não resistir aos ferimentos, três semanas depois. (...)

Há outras referêcncias a estes acontecimentos da noite de Natal de 1971 em depoimentos prestados no livro do Rui Ferreira por militares que o conheceram e que com ele conviveram em Aldeia Formosa, quer pertencentes à CCAÇ 18 quer ao BCAÇ 3852. Não vamos, por ora, citá-los. Os seus depoimentos são importantes para se melhor conhecer o homem e o militar que foi o Rui Alexandrino Ferreira.

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Notas do editor:

(*) Último poste da sérue > 24 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23813: In Memoriam (462): Rui Alexandrino Ferreira (ex-Sá da Bandeira, Lubango, 1943 - Viseu, 2022), ten cor inf ref, ex-alf mil inf, CCAÇ 1420 (Fulacunda, 1965/67); ex- cap mil, CCAÇ 18 (Aldeia Formosa, 1970/72); autor de 3 livros de memórias: Rumo a Fulacunda (2000), Quebo (2014) e A Caminho de Viseu (2017)

(**) Vd. poste de 12 de setembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19006: (De) Caras (120): A morte do fur mil, da CCAÇ 18, Virgolino Ribeiro Spencer, em Aldeia Formosa, em 15 de janeiro de 1972... Acidente ou homicídio na Consoada de Natal de 1971 ? A versão do Manuel Gonçalves, ex-alf mil manutenção, CCS/ BCAÇ 3852 (Aldeia Formosa, 1971/73).

quinta-feira, 21 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23184: (In)citações (203): Nós, os fulas e os nossos (mal-)entendidos, a propósito da expressão "(lavadeira) para todo o serviço" (Cherno Baldé / Mário Miguéis)


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Saltinho > Rio Corubal > Rápidos do Saltinho > 3 de Março de 2008 > Lavadeiras do Saltinho.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Comentários ao poste P23180 (*):

(i) Cherno Baldé (Bissau):

O Sector de Empada, na região administrativa de Quínara, é habitada maioritariamente por Biafadas, contando com uma presença negligenciável de outras etnias como Fulas, Manjacos e Papel. De referir que esta localidade deu alguns comandantes dignos de registo ao movimento da libertação.

Quanto ao caso em apreço, como é habitual no contacto entre europeus (portugueses) e africanos, na minha opinião, deve haver um "grande" mal entendido, derivado da diferença de culturas e da deficiente comunicação entre os comunicantes de parte a parte, pois que, em meados de 1964 o nivel de percepção e entendimento correcto da lingua portuguesa a nível de todo o territorio não devia ultrapassar os 2% do total da população. 

E numa localidade como Empada, no início da guerra, devia ainda ser muito inferior e o ex-alf mil  Joaquim Jorge fala de dois homens grandes que, na melhor das hipóteses, nem o Crioulo dominavam.  Qual podia ser o diálogo possível entre um alferes metropolitano que não conhecia uma única palavra dos locais e dois homens grandes que nem sequer falavam o Crioulo?... Certamente um enigma.

E,  de mais a mais, em nenhuma sociedade conhecida do mundo, seja ela "civilizada" ou "arcaica",  um(a) avô/ó  poderia atribui-se a si a prerrogativa de dar a outrem, seja em que condições fossem, a sua neta para ser usada "para todos os serviços". Isto não pode existir senão na cabeça de alguém que desconhece completamente a cultura dos fulas.

Na verdade, em Empada, existia e penso que ainda continua a existir uma pequena comunidade de fulas dispersos pela zona e que, com o início da guerra, poderiam concentrar-se em Empada por razões de segurança, mas habitando fora do seu chao de origem, não estariam organizados colectivamente de modo a ter uma chefia, de modo que o homem grande em questão deveria estar a agir por sua conta e risco e não representava ninguém em particular a não ser que a isso fosse impelido por força da guerra e pela presença intimidante da tropa.

Em África, foram registados e são bem conhecidos os casos de ofertas de serviços (inclusive sexuais) a certas personalidades estrangeiras e não só como forma de hospitalidade em contextos variados e que vinham de períodos anteriores à colonização, mas que, todavia, não era uma particularidade unicamente africana, pois antes da chegada dos europeus a África já mantinha relaçoes seculares com os povos do Mediterrâneo Sul e do Médio Oriente.

Não é a primeira vez que leio estórias semelhantes vindas de portugueses (metropolitanos) que, se bem que possa haver alguns casos verídicos, na maior parte são fruto de uma interpretação errada dos factos e/ou de pura imaginação ligada a preconceitos tipicos do período do Estado Novo.

PS - O nome indicado como sendo do homem grande (Xalá) nao existe na nomenclatura da língua e cultura fula. E eu vejo nisso mais um indício da fraqueza do facto testemunhado.


(ii) Mário Miguéis (Esposende):

Nos meus dois anos de comissão na Guiné, salvo um breve contacto de duas semanas com balantas, nos Nhabijões, só estive em regiões onde os fulas eram, sem exceção, a etnia dominante. 

E, pelo que me foi dado observar ao longo do tempo (e eu lidava muito com as populações), não havia, nem de longe nem de perto, situações como a descrita pelo nosso camarada Joaquim Jorge, ou seja, não havia, pura e simplesmente, casos de favores sexuais prestados por responsáveis nativos a quem quer que fosse. 

Aliás, acompanhei a rendição de uma por outra unidade ao longo de todo o período de sobreposição e não só ninguém veio propriamente prestar vassalagem aos vindouros como os nossos anfitriões se mantiveram sempre à distância até o comandante da nova companhia lhes ser apresentado. 

Os fulas eram muito "senhores do seu nariz" e, para além disso, sabiam "dar-se ao respeito", comportando-se com uma dignidade que eu sempre admirei. 

Por isso me inclino para a tese do nosso camarada Cherno Baldé, justificando a confusão que se gerou na cabeça do novel e imaturo comandante (que me perdoe a piada o nosso camarigo Joaquim Jorge, que muito prezo) com uma incorreta tradução dos serviços a prestar (de lavadeira, não mais que isso) por parte do inabilitado intérprete, ele próprio traído, se calhar, pela tal expressão da "criada/lavadeira para todo o serviço",  muito utilizada, com a costumeira fanfarronice, por alguns militares menos discretos.

Agora, relações sexuais deste com aquela e daquela com este, independentemente de favorecimentos, isso é óbvio que acontecia com a naturalidade que acontece ainda hoje em qualquer parte do mundo. 

E, já agora, quanto à nomeação dos atores em presença, o bom senso ditará sobre a sua inconveniência ou não, tendo em atenção os usos e costumes, ao tempo, de cada grupo étnico. (**)
___________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 19 de abril de 2022 > Guiné 61/74 - P23180: Recordações de Empada do meu tempo (Joaquim Jorge, ex-alf mil, CCAÇ 616, 1964/66) (1): Xalá Baldé, o homem grande da etnia fula, que me veio prestar vassalagem e oferecer a sua neta, jovem e bonita bajuda, "para todo o serviço"...

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Guiné 63/74 - P12780: Filhos do vento (29): Ainda a história do Manuel Barros Castro, natural de Fafe, ex-fur mil enf, CCAÇ 414 (Catió, Bissau e Cabo Verde, 1963/65), e os preconceitos ainda hoje existentes (Jaime Bonifácio Marques da Silva)

1. Mensagem, com data de 12 do corrente, do nosso camarada Jaime Bonifácio Marques da Silva [, ex-alf mil para, BCP 21, Angola, 1970/72], prof educ física ref, e ex-autarca,  lourinhanense a viver em Fafe há cerca de  4 décadas [, foto à direita]:

Caro Luís:

Quanto ao Furriel Manuel Barros Castro  [, foto abaixo] (*)...

Estive hoje a tomar café com ele. Autoriza-me a enviar-te o seu n.º de telefone e o email. Podes contactar com ele,  pois está recetivo a aderir ao Blogue.

Manuel Barros Castro, Catió, c. 1963/64
O mesmo se passa em relação à jornalista do Público, Catarina Gomes. Ele está recetivo e falar com ela. Incentivei-o a isso e reforcei a importância de lhe dar o seu testemunho.

Deu-me mais alguns pormenores que eu não sabia:

A filha, a Mimi, era casada com um colega professor e deixou uma filha de 11 anos que está a ser educada pelo pai, claro, mas com grande apoio dos avós. Aliás, frequenta a escola em Fafe.

Voltámos a falar da mentalidade da época, dos preconceitos sociais em relação à “cor” da pele e à rejeição social, sobretudo nas aldeias do norte e interior do país, a dificuldade em aceitar casos destes. Diz que sentiu bem os “olhares” quando a filha chegou. Aliás, quando se referiam à filha, perguntavam-lhe: “Então como vai a sua filha adotiva”?  Ao que o Manuel Castro, disse, respondia perentório: “Eu não a adotei. A menina é mesmo minha filha”.

Disse-me, ainda, que no dia do funeral da filha, a madrinha (de quem já te falei) esteva em Portugal e esteve presente. Pois as pessoas, ainda então, “cochichavam” ao ouvido” e perguntaram-lhe, mesmo, se ela não seria a mãe. Teve que esclarecer que mãe já tinha falecido e que a senhora era a madrinha da Mimi.

Lembrei-me da história do meu colega de escola, do Seixal,  de quem já te falei (**). Quando me deu o seu testemunho, disse-me que, algum tempo após o regressoa metrópole,  teve saudades e pensou seriamente em mandá-los vir da Guiné, ao filho e à mãe.  Mas, disse-me (na presença de mais dois conterrâneos, um deles esteve na Guiné, também) que recuou,  com medo do que iriam dizer as pessoas !

Como tu bem dizes, não se deve julgar.

A propósito, o Castro disse-me, hoje, que nos encontros da companhia alguém (que ele identificou) lhe perguntou: “Trouxe a miúda, porquê?
___________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 6 de fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12687: Filhos do vento (27): Manuel Barros Castro, natural de Fafe, fur mil enf, CCAÇ 414 (Catió, Bissau e Cabo Verde, 1963/65) teve uma filha, de mãe guineense,e que ele de imediato perfilhou, Maria Biai Barros Castro (1964-2009)... Uma história exemplar (Jaime Bonifácio Marques da Silva)