1. Mensagem do nosso
camarada Alexandre Coutinho e Lima, Coronel de Art.ª Reformado (ex-Cap
Art.ª, CMDT da CART 494, Gadamael, 1963/65; Adjunto da Repartição de Operações do COM-CHEFE das FA da Guiné entre 1968 e 1970 e ex-Major Art.ª, CMDT do COP 5, Guileje, 1972/73), com data de 30 de Julho de 2015:
Caro Amigo Carlos Vinhal
Junto envio, em anexo, um texto com o título
"Um dia diferente" que, penso ter interesse para ser publicado no nosso blogue.
Um abraço
Coutinho e Lima
Um dia diferente*
Dia 29 de Fevereiro de 1964
Um dia que nada significa para muitos. Um dia igual a tantos outros. Mas para alguém este dia é diferente, não é igual aos outros. Para ele, o dia 29 de Fevereiro de 1964 representa muito, a vitória da sua honradez sobre a desonra daqueles que eram seus subordinados, o regresso à terra que julgava perdida, uma vitória do Exército Português sobre os que têm trazido o desassossego, a fome, as lágrimas aos que vivem na Guiné Portuguesa.
Esse homem é um régulo, um português daqueles de antes quebrar que torcer, um português de alma e coração, apesar da sua pele escura, provando que não há distinção de raças entre os que amam Portugal.
Abibo é o seu nome. Desde há longo tempo que Abibo é o Régulo da área de Gadamael, junto da fronteira sul da Guiné Portuguesa com a República da Guiné.
Abibo é Alferes de 2.ª linha, representando a justiça e a paz entre os habitantes da sua tabanca. Ganturé é uma tabanca de beafadas, raça de trabalhadores que se deixaram seduzir pelas palavras enganadoras dos terroristas.
De um lado e de outro da estrada da fronteira, alinham-se as moranças de adobe, à sombra das árvores, dando-nos a ideia de uma aldeia metropolitana. Apenas os telhados de colmo nos lembram que estamos em África. Noutros tempos, era uma tabanca feliz, onde a vida dos seus habitantes se fazia num ambiente de fartura e alegria, onde a riqueza das colheitas do arroz e dos citrinos lhes dava uma auréola de confiança no futuro.
Abibo representava para todos a certeza da paz e da justiça entre a gente do seu regulado. Abibo Inchassó era conhecido em todo o território desde o Forreá à Península de Cacine. E admirado até pelos habitantes de outros regulados.
Este homem, um dia, viu-se perseguido dentro da sua própria terra. Os aliciadores terroristas lentamente foram minando o seu povo, seduzindo-o com promessas.
Abibo tentava mostrar a verdade ao seu povo, pondo uma barreira àqueles que o afastavam do bom caminho.
Um dia, pressentiu que a sua vida perigava. Sentiu-se perseguido, tendo de abandonar todos os seus haveres e a sua própria família e acolher-se entre os seus amigos, entre aqueles em quem tinha sempre confiado.
Os meses foram passando. E, por força das circunstâncias, não foi possível tentar a recuperação de Ganturé. A nossa atenção era necessária noutras regiões.
Abibo, apesar de confiar no exército da sua Pátria, começou a pensar que não voltaria à sua terra. Ali estava ele em Bedanda, sofrendo a ausência dos seus familiares, dos quais apenas sabia que se encontravam na República da Guiné.
Ele, que entre os seus era fidalgo, que vivera sempre na fartura, dando àqueles que necessitavam arroz ou cola para viver, via-se agora despojado de tudo, vivendo das esmolas dos seus amigos.
Mas um dia Abibo soube que na sua tabanca estavam instaladas tropas. Os terroristas tinham sido desalojados, graças ao esforço de um punhado de briosos soldados portugueses.
Estes mesmos soldados quiseram ser eles a entregar-lhe o que por direito lhe pertencia. Quiseram prestar assim homenagem a outro português que também lutava pelo mesmo ideal: a paz e a tranquilidade no território português.
Vista aérea de Ganturé
E no dia 29 de Fevereiro de 1964 a azáfama era grande em Ganturé.
Sabia-se que Abibo chegaria nesse dia pela manhã. Todos queriam expressar-lhe a sua admiração.
Qual seria a reacção do Abibo ao voltar a pisar os velhos caminhos que conduziam a Ganturé?
Todos nós que estávamos presentes – pessoal de Infantaria, de Cavalaria, Milícia fula – pudemos ver as lágrimas sulcando naquele rosto curtido pelo sol da Guiné e pelas amarguras suportadas, um rosto leal de alguém que tem mantido indefectível fidelidade a Portugal.
Ganturé tinha um ar quase festivo, apesar de se verem os sinais de destruição, de vingança, de raiva surda contra quem não tinha curvado a cerviz, mantendo o seu amor pela Pátria, contra tudo e contra todos. De um lado e doutro se ouviam as palmas e gritos de acolhimento de todos aqueles que tinham de algum modo contribuído para o seu sonho. Mas algo fazia descer um véu de tristeza nos seus olhos leais!
Aqui, a casa de Abibo, soberba vivenda de estilo europeu, agora quase arrasada pela malvadez dos que dizem defender a liberdade e a paz na Guiné; ali, as casas da seus irmãos, um dos quais fora prisioneiro e mandado abater pelos terroristas.
Quantas saudades dos dias passados, em que a tranquilidade reinava naquelas terras, em que o trabalho era a lei que as regia!
Mas ali estavam os defensores do solo pátrio, aqueles militares que lhe mostravam que as promessas feitas pelos portugueses não são palavras vãs, dando-lhe as boas-vindas, recebendo-o da braços abertos, como um irmão recebe outro irmão.
Tudo se fundia. A alegria do regresso e a tristeza provocada pelas saudades dos seus familiares, para nascer um sentimento de que uma nova era ia começar na sua tabanca, numa promessa de um futuro que faria esquecer dias passados.
Ele via nos olhos daqueles que o abraçavam a vontade necessária para fazer ressurgir uma nova Ganturé, se possível mais linda, mais harmoniosa, mais garrida, que lhe dissesse que ali também é Portugal.
E, quando lhe entregaram a Bandeira Nacional, símbolo querido da Pátria, para que numa cerimónia singela, mas significativa, a içasse na sua tabanca, enquanto a Milícia fula lhe prestava a guarda de honra, Abibo deixou que as lágrimas corressem, lágrimas de alegria que não serão esquecidas por aqueles que as viram.
Era bem um dia diferente para ele e para aqueles que amam Portugal.
Aníbal Justiniano
(*) - Este texto foi escrito pelo então Alferes Miliciano Médico, Aníbal Justiniano, médico da CART 494 e está incluído no livro
“Missão Guiné 63-65 Companhia de Artilharia 494”, escrito por Augusto Carias, Adelino Gomes e Aníbal Justiniano.
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Nota do editor
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