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segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25995: Notas de leitura (1731): "O homem que via no escuro, A Lisboa de Bruno Candé", por Catarina Reis; Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2023 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Maio de 2023:

Queridos amigos,
A mãe de Bruno Candé, Cadi Candé Marques, viera do Olossato em amores com um soldado português, depois da rutura, já em Portugal, nascem mais 3 filhos, entre eles Bruno. Apreciei devidamente este ensaio sobre a Lisboa de Bruno Candé, mas lendo inclusivamente a imprensa daquele malfadado dia de julho de 2020, constato que o homicida Evaristo Martinho, antigo combatente é tratado como um doente de ódio racial, não vi ninguém questionar o que podia levar um ser humano, em 2020, dizer publicamente que violou africanas, matou pretos e tem lá em casa uma arma para fazer da sua justiça. Continuamos indiferentes a estes stressados, isto a despeito de lermos os relatos de antigos combatentes que fazem a vida familiar num inferno ou que se tornaram uns vagabundos a viver debaixo das pontes. Há muito mais história no assassinato do malogrado Bruno Candé de que recusamos falar, é mais económico não ter que tratar, é socialmente mais correto iludir que muitos antigos combatentes guardam dentro de si dolorosas cicatrizes na consciência.

Um abraço do
Mário



História de um assassinato onde faz presença a silenciada guerra colonial

Mário Beja Santos


O ensaio O homem que via no escuro, A Lisboa de Bruno Candé, por Catarina Reis, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2023, espelha esse dado incompreensível da sociedade portuguesa contemporânea e que tem a ver com os traumas que a guerra colonial deixou num número incerto de antigos combatentes. O assassinato de Bruno Candé, em julho de 2020, não tinha razão plausível para acontecer. O assassino era um homem de 76 anos que viu acidentalmente a quem roubou a vida, podemos falar de crime motivado por ódio racial, mas é o rótulo mais cómodo para continuarmos a deixar o esqueleto dentro do armário.

O retrato de Bruno Candé é de um homem bom, um ator dotado, que descobriu, serôdio, a vocação para o palco, que ultrapassou as vicissitudes de famílias disfuncionais, tomado pela curiosidade e pelo entusiasmo fugiu de qualquer abismo de que a Zona J podia favorecer, foi resiliente, três anos antes de morrer, depois de um grave acidente que sofreu, voltou a pôr-se de pé e a amar a vida.

Contribuiu para que a companhia de teatro Casa Conveniente tenha mudado as instalações do Cais de Sodré para o que se teria pensado ser um lugar improvável para fazer teatro, a Zona J.

Catarina Reis conta-nos admiravelmente a história da sua vida, começamos por Cadi Candé Marques, uma muçulmana guineense que se terá embeiçado por um soldado português no Olossato, naquela altura lugar fustigado pela presença do PAIGC no santuário do Morés. Cadi, mãe solteira, e com três filhos nos braços, viajou para Portugal, em 1973, veio só com dois filhos, a Santa Casa da Misericórdia apoiou-a, conheceu o trabalho precário, as limpezas, afeiçoou-se por outro português, dessa relação nasceram três filhos, Bruno foi o primeiro, ocuparam uma casa, veio a filha que ficara na Guiné, Olga, que se revelou uma irmã desvelada com os irmãos mais novos. O pai de Bruno acabou na bebedeira, Bruno e a família fixaram-se na Zona J, em Chelas; ao que consta, tinha o Bruno seis meses e esteve para morrer no Hospital D. Estefânia, houve batismo forçado, na falta de padrinho escolheu-se Santo António, o padroeiro de Lisboa teve direito a altar doméstico, mas a figura do santo seguia sempre no bolso do Bruno.

Adorava representar, tornou-se ator na companhia Casa Conveniente, a companhia transferiu-se para a Zona J em 2014. Entrou numa novela, mas o seu sonho era subir aos palcos, estreou-se no Bairro dos Remolares, no Cais do Sodré, a Casa Conveniente manteve-se aqui durante cerca de 20 anos. Teatro não convencional, pronto a novos desafios, chegou a representar nas prisões. Data de um espetáculo da companhia Rifar o meu coração, no Porto, em 2016, a frase em que Bruno sintetizou toda a sua história, uma consigna: “Eu tinha tudo para dar errado, mas sou o Bruno Candé.”

Um dos pontos mais estimulantes deste ensaio tem a ver com a forma como Catarina Reis põe em cena a Zona J e toda a área de Chelas, com os seus 10 bairros, conta-se a história do plano de urbanização de Chelas, os edifícios da Zona J e quem os habita, fala-se da emigração, das tensões culturais, dos pontos de encontro dos diferentes povos, a natureza das convivências, como a Zona J se reciclou em o Bairro do Condado, onde a cultura esteve ausente até há poucos anos. “A revolução começou há cerca de dez: em 2006, criou-se a Biblioteca de Marvila, seguiu-se o projeto cultural Galeria Underdogs, de Vhils (artista português Alexandre Farto), com o propósito de tornar a arte acessível por via de exibição do trabalho de artistas nacionais e internacionais. Surgiu, então, a Fábrica Braço de Prata, espaço que alberga eventos de todo o tipo. Mais recentemente, ali perto, ouvimos falar da chegada Hub Criativo do Beato, uma incubadora de criatividade situada no antigo complexo fabril do Exército. E, claro, estava presente a Casa Conveniente, a par da companhia de teatro Cepa Torta.”

A Casa Conveniente derrubou muros, instituiu uma cultura de proximidade, apareceram artistas no fado, hip-hop, impôs-se a arte urbana, emergiam as gerações já nascidas em Portugal.

E vamos agora aos três tiros mortais que Evaristo Marinho desfechou em Bruno Candé com uma semiautomática Walther PP de calibre 7,65 mm. As gentes espavoridas, desoladas, perplexas, interrogavam-se sobre o móbil do crime, prontamente se aflorou a palavra racismo. Consultando os jornais da época vejo como se passou por cão por vinha vindimada sobre a saúde mental de Evaristo Martinho. Este antigo combatente encontrara uma vez Bruno na dita avenida de Moscavide, houve uma troca azeda de palavras, Evaristo não se escusou a proferir ofensas e a dizer que matara pretos durante a guerra, isto só para sublinhar que o seu crime de ódio vem de longe, está identificado, existem até associações que procuram acolher antigos combatentes com stress de guerra que levam uma vida de inferno e destroem a família, e há mesmo livros que falam de Evaristos identificados, por vezes autênticos farrapos humanos. Tenho para mim que este ator tão esperançoso, que deixou três filhos menores, um punhado de notas magníficas espalhadas pelas gavetas da sua casa, amável, sonhador, teve um dramático encontro com um desses doentes desse ódio recalcado. E é muito tocante o termo desta narrativa em volta de um homem bom destruído por ódio racial:
“Bruno era o tipo de pessoa que jamais esperava gritos de revolta, canções revolucionárias e homenagens em palco. Jamais pensaria que a história colonial da qual a família nasceu e cresceu foi a mesma que o matou. A guerra levou um português até Cadi Candé Marques, encontro que fez nascer Olga, Carla e Fernando; também foi a guerra que conduziu a guineense até Lisboa, à Zona J. A mesma guerra que tornou um homem revoltado e armado que acabaria por trazer a Cadi a pior dor de uma mãe. O que pensara Candé de um homem que ameaça, a plenos pulmões, ter matados ‘pretos’ na guerra, violado mulheres africanas e ter uma arma em casa pronta a matar outros?
Creio saber o suficiente para adivinhar que Bruno viu neste homem uma amargura curável, travada antes do primeiro tiro, com uma cerveja e uma conversa à mesa.”


De leitura obrigatória para todos aqueles que queiram investigar os porquês de uma guerra colonial onde ainda decorre um sofrimento vivo a que a sociedade se alheia, tratando-o como um mal menor, como uma raiva que gradualmente se extinguirá quando o último antigo combatente fechar os olhos.
Bruno Candé, vítima de ódio racial
_____________

Nota do editor

Último post da série de 27 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25988: Notas de leitura (1730): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1876) (22) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 6 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24123: Notas de leitura (1561): Curiosidades guineenses no fundo do baú (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
Pediram-me para andar a esgravatar na biblioteca de um grande amigo recentemente falecido e lá encontrei reportagens que desconhecia, bem como uma publicação do FAOJ dedicada a Amílcar Cabral, também inteiramente desconhecida para mim, aqui fica o seu registo. Descobri igualmente um livro de Francisco Valoura, já aqui referenciado, bem como "Guinéus", de Alexandre Barbosa, que estou a reler com satisfação, o que se volta a ler, quando é impressivo e vivificante, traz aspetos novos, dar-vos-ei conta desta saborosa agenda de recordações da literatura colonial guineense.

Um abraço do
Mário



Curiosidades guineenses no fundo do baú

Mário Beja Santos

Tendo falecido um dos meus mais queridos amigos, os filhos pediram-me que os ajudasse a verificar as existências entre os seus milhares de livros, pastas com documentos, inumeráveis dossiês de recortes, pilhas de revistas, coletâneas de documentos pessoais que se prendiam com os seus vastíssimos interesses que iam da genealogia e heráldica ao movimento surrealista português, e que sugerisse os mais apropriados destinos. Dessa safra dou conta de algumas curiosidades guineenses que podem merecer a vossa atenção.
Primeiro, um número da "Flama" de junho de 1974, o artigo intitulado “Guiné-Bissau à procura do cessar-fogo e da paz”, assinado pelo jornalista Fernando Cascais. O autor dá conta das conversações iniciadas em Londres, em 25 de maio, e aproveita o momento para fazer uma síntese da história da luta armada e do papel do PAIGC. O regresso à democracia suscitara o empenho das maiores instâncias internacionais em obter-se a paz e abrir-se as portas à independência das antigas colónias. Um dirigente do PAIGC relatava mesmo que fazia todo o sentido as negociações, começar-se por um firme cessar-fogo e abrir conversações para as exigências do PAIGC, designadamente: - o reconhecimento da República da Guiné-Bissau e do direito do nosso povo, nas ilhas de Cabo Verde, à autodeterminação e à independência; - o reconhecimento desse direito aos povos das outras colónias portuguesas.

O histórico da luta da libertação da Guiné inclui a declaração unilateral de independência, o assassinato de Amílcar Cabral não podia deixar de ser mencionado, nesta fase ainda se batia muito a tecla de que entre os conspiradores havia guineenses que eram agentes da PIDE. O artigo termina com longuíssimas citações da mensagem para o ano de 1973 de Amílcar Cabral.
Da revista "Notícia", publicada em Luanda e Lisboa, número de 24 de maio de 1969, dá-se à estampa uma reportagem intitulada "O Paraíso Perdido", assinam António Gonçalves e Joaquim Cabral. O fascínio da viagem começa nos Bijagós, cantam-se as belezas naturais e o seu espantoso folclore. Os jornalistas vão assistir às danças Bijagós, e escreve-se:
“A luta é muito semelhante à greco-romana. A finalidade é derrubar o adversário. Apenas isso. Sem ser necessário o assentamento de espáduas. É preciso conjugar equilíbrio com agilidade e força. As pernas bem abertas, os corpos fletidos em frente. Com as mãos, os lutadores tentam agarrar uma das pernas do adversário ou rodear-lhe as costas para as forçarem a dobrar-se e tombar. Esta técnica é mais evidente nos Balantas, como iremos ver mais tarde. Mas tanto nos Papéis como nos Balantas o sentido desportivo é perfeito. Ao ser derrubado um dos contendores, a luta termina. Sem um gesto de enfado, sem a mais simples exteriorização de jactância. Não há humilhação nem glória.
Estávamos em Nhacra porque íamos almoçar em casa de Carlota e porque o administrador de Mansoa nos prometera uma batucada de Balantas. A tantã propaga-se e, aos poucos, timidamente, vai surgindo gente. Não resistem à curiosidade, a chamada atrai-os. Trazem consigo as suas latas, adornos estranhos e barulhentos. Fixam-nos às pernas e aos braços. Começam uma dança que se desenvolve em círculos. Aumenta o número das raparigas e das mulheres com os filhos às costas. A dança ganha aspeto alucinante. Cada um que chega é mais ágil. O barulho é ensurdecedor. Os guizos e a as latas contrastam com o som cavo dos tambores. O ritmo da dança é articulado, com paragens súbitas. Todos se libertam da presença estranha que os admira. Entregam-se ao frenesim dos saltos”
.

Os repórteres não deixam de comentar a diversidade étnica, porventura mal-informados falam em 14. Referem o fanado e os deuses Nalus. E regressam a Luanda.

Em 1976, o FAOJ – Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis, do Ministério da Educação, na coleção Juventude e Cultura, N.º 8, é dedicada uma coletânea de intervenções a Amílcar Cabral. Abre a publicação com o papel da cultura na luta pela independência, transcreve-se um texto:
“A cultura é o próprio fundamento do movimento de libertação e que apenas podem mobilizar-se, organizar-se e lutar as sociedades que preservam a sua cultura. Esta, quaisquer que sejam as caraterísticas ideológicas ou idealísticas da sua expressão, é o elemento essencial do processo histórico. É nela que reside a capacidade de elaborar ou de fecundar os elementos que asseguram a continuidade da História e determinam, ao mesmo tempo, as possibilidades do progresso ou de regressão de uma sociedade (…) Tanto os dirigentes do movimento, na maioria originários dos centros urbanos (pequena burguesia e trabalhadores assalariados), como as massas populares (cuja esmagadora maioria é constituída por camponeses) melhoram o seu nível cultural: adquirem um maior conhecimento das realidades do país, libertam-se dos complexos e dos preconceitos de classe, ultrapassam os limites do seu universo, destroem as barreiras étnicas, consolidam a sua consciência política, integram-se mais profundamente no seu país e no mundo. Qualquer que seja a sua forma, sabe-se que a luta exige a mobilização e a organização de uma maioria importante da população, a unidade política e moral das diversas categorias sociais, a liquidação progressiva dos vestígios da mentalidade tribal e cabal, a recusa das regras e dos tabús sociais e religiosos incompatíveis com o caráter racional e nacional do movimento libertador”.

A coletânea prossegue com o texto escrito de Amílcar Cabral apresentado numa reunião da UNESCO, em julho de 1972, e não deixa de observar um aspeto da mentalidade dos colonizados que o preocupava e que, como é bem sabido, acabou por triunfar quando o PAIGC perdeu qualquer forma de coesão ideológica:
“No decorrer de pelo menos duas ou três gerações de colonizados, forma-se uma camada social composta de funcionários de Estado, empregados em diversos ramos da Economia (sobretudo no comércio), profissionais liberais e alguns proprietários urbanos e agrícolas. Esta pequena burguesia autóctone, forjada pela dominação estrangeira e indispensável ao sistema de espoliação colonial, ocupa uma faixa social titulada entre as massas trabalhadoras do campo e dos centros urbanos e a minoria de representantes locais da classe dominante estrangeira.
Embora podendo manter relações mais ou menos intensas com as massas populares ou com os chefes tradicionais, essa pequena burguesia aspira em geral a um tipo de vida semelhante, se não idêntico, ao da maioria estrangeira. Isso resulta que, enquanto restringe os seus laços com as massas, tenta integrar-se nessa minoria, muitas vezes em detrimento de laços familiares ou étnicos, e sempre a grande custo pessoal. Porém, a despeito das exceções referentes, essa pequena burguesia nunca chega a ultrapassar as barreiras impostas pelo sistema, e cai prisioneira das contradições da realidade cultural e social em que vive, é-lhe sempre impossível escapar à sua condição de classe marginal. Essa marginalização constitui, tanto no país como entre os emigrantes instalados na metrópole colonialista, o drama sociocultural das elites coloniais ou da pequena burguesia indígena, que divide mais ou menos intensamente segundo as circunstâncias materiais e o nível de aculturação, mas sempre num plano individual e não coletivo”
.

A coletânea procede com um texto lendário, que são as palavras de ordem de Amílcar Cabral aos representantes do partido, em novembro de 1965. Desconhecia inteiramente esta publicação, e como outros camaradas do blogue, sinto que é nosso dever deixarmos aqui registado tudo o que se publicou sobre a Guiné Portuguesa e os acontecimentos alusivos ao país independente, com quem os ex-combatentes e Portugal pretendem manter laços fraternais.

____________

Nota do editor

Último poste da série de 3 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24114: Notas de leitura (1560): "Sons da Guerra Colonial", por Carlos Miranda Henriques; Edições Vieira da Silva, 2023 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24027: (In)citações (228): Na morte do Francisco Silva (1948-2023), relembrando o cmdt do Pel Caç Nat 51, Nuno Gonçalves da Costa, assassinado por um dos seus homens, em Jumbembem, em 16/7/1973 (Manuel Luís R. Sousa, SAj Ref, GNR)

1. Comentário (*) do nosso camarada Manuel Luís R. Sousa (sargento-ajudante da GNR na situação de reforma; ex-soldado da 2.ª CCAÇ / BCAÇ 4512/72, Jumbembem, 1972/74; autor do livro "Prece de um Combatente - Nos trilhos e trincheiras da guerra colonial" (2012) (**): tem 46 referências no nosso blogue, e entrou para a Tabanca Grande em 31/3/2011.
 

A MORTE DO ALFERES NUNO GONÇALVES DA COSTA

por Manuel Luís Rodrigues Sousa

(excerto do meu livro "Prece de um Combatente", 2012, imagem da capa à esquerda).

Em março ou abril de 1973, Jumbembém foi reforçado com um pelotão de militares nativos, para suprir a falta do 1.º pelotão acabado de ser colocado em Canjambari, um quartel a sul de Jumbembém, a cerca de doze quilómetros, juntamente com outro pelotão de Cuntima, em substituição de uma companhia que dali foi retirada.

Desse pelotão de nativos, o Pel Caç Nat 51,  apenas os comandos, o alferes, Nuno Gonçalves da Costa,  e um furriel, eram de origem metropolitana.

Num dia em que se realizava a habitual coluna de reabastecimentos a Jumbembém, Cuntima e Canjambari, a 
16 de julho de 1973, um dos elementos deste pelotão pediu ao alferes Costa, ao seu comandante, para o deixar seguir na coluna de Jumbembém para Cuntima para visitar familiares.
Tratando-se de um militar rebelde e indisciplinado, como forma de o castigar, o alferes não autorizou a sua deslocação a Cuntima.

Perante esta recusa, o referido militar deslocou-se ao quarto do alferes, em fim de comissão e quase formado em medicina, com um futuro promissor pela frente, disparando contra ele dois ou três tiros de G3, atingindo-o na região do abdómen.

Foi-lhe prestada a assistência possível na enfermaria, enquanto se aguardava a evacuação por meios aéreos que entretanto foi pedida.

Passada pouco mais de uma hora veio a falecer, perante a impossibilidade de ser evacuado por falta desses meios aéreos, cujo uso era já particularmente restritivo, em consequência dos mísseis Strela ao dispor do PAIGC.

Este caso ilustra bem a perda do controlo aéreo na Guiné das Forças Armadas Portuguesas a que faço referência noutra parte do livro.

O referido alferes Costa era natural de Campos de Sá, S. Jorge, Arcos de Valdevez.

Após a sua morte, foi substituído pelo alferes Francisco Silva. Foi nestas circunstâncias que o alferes Silva chegou a Jumbembém. 

Que descansem em paz o alferes Silva, bem como malogrado alferes Costa. (****)

30 de janeiro de 2023 às 19:24

(Revisão e fixação de texto: LG)
__________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 30 de janeiro de  2023 > Guiné 61/74 - P24022: In Memoriam (467): Francisco Justino Silva (1948-2023), médico, ortopedista, ex-alf mil, CART 3492 / BART 3873, Xitole, e Pel Caç Nat 51, Jumbembem (1971/73) cerimónias fúnebres, hoje, em Porto Salvo, na igreja local, com velório a partir das 16h00; missa de corpo presente às 14h00 de 3.ª feira, seguindo o funeral para o cemitério de Carnaxide


(***) Vd. postes de:


(...) Presumo que o alferes devia estar deitado. Deve ter-se levantado e foi nessa altura que o homem pegou na G3 e, traiçoeiramente, disparou três tiros à queima-roupa sobre o oficial português.

Este último ainda foi levado para a enfermaria, onde se prestaram os primeiros socorros, ao mesmo tempo que foi pedido, com a maior urgência, a sua evacuação aérea. Como estava a perder muito sangue, foi pedido sangue e, voltou a ser pedido insistentemente, o máximo de urgência na sua evacuação, que tardava em aparecer.

E tanto tardou que o alferes não resistiu aos ferimentos e faleceu, sem que aparecesse qualquer meio aéreo para o socorrer. Esta situação indignou todo o pessoal da companhia, desde o soldado até ao comandante.

O nativo foi preso com arames nos pulsos, atrás das costas, enquanto os próprios elementos do Pel Caç Nat 51, bem como a milícia queriam fazer justiça pelas próprias mãos (linchá-lo). Valeu-lhe o nosso comandante, que ordenou:

- Não lhe toquem!

Mas, mal ele virava as costas, alguns militares mais revoltados descarregavam a sua ira em cima do assassino, que foi depois colocado na casa do motor (gerador), que se situava ao lado do tanque da água.

Ali permaneceu o prisioneiro até meio da tarde, altura em que o nosso comandante, penso que por causa da evacuação não se ter efectuado e achando que o comandante em Farim teve alguma culpa nesta falta, resolveu ir a Farim levar o corpo do alferes em sinal de protesto.

Deslocamo-nos então numa coluna motorizada (já não sei quantos nem quais pelotões), com o corpo do defunto numa viatura “Berliet” e uma bandeira nacional a cobri-lo, até Farim (sede do Batalhão 4512).

A coluna fez-se sem fazer a habitual picagem, tal era a revolta, desagrado e excitação que grassava em todo o pessoal da Companhia. Um risco acrescido, mas justificado pela hora tardia para o fazer.

Viam-se aqui e ali soldados e graduados com as lágrimas nos olhos, chocados com um desfecho fatídico que o alferes assassinado não merecia, porque todos eram conhecedores e concordantes de que ele era boa pessoa e bom para os nativos do Pel Caç Nat 51. Talvez bom demais,  ainda hoje o penso e digo! Segundo ouvi dizer na altura, ele, quando isso lhe era solicitado, inclusive emprestava dinheiro aos militares do seu pelotão.

A coluna chegou à entrada de Farim, abrandou mais um pouco e continuou a sua marcha, enquanto os militares que a compunham saltaram para o chão e acompanharam as viaturas a pé. Ao passar defronte ao edifício de comando, estava em posição de sentido e continência um graduado (ou era o comandante - Ten Cor Vaz Antunes -, ou o 2º comandante Major Menezes, já não me lembro bem).

Este é o relato com que fiquei gravado no pensamento desse dia.

Também trouxemos o nativo assassino que, pelo caminho fora na viatura onde seguia, alguns soldados, em certas alturas do percurso, continuaram a dar-lhe o “tratamento especial”, tendo o mesmo chegado a Farim num estado físico muito debilitado.

Disseram-me posteriormente que ficou preso em Farim e depois seria enviado para a “Ilha das Cobras”.

Para substituir o comando do Pel Caç Nat 51, foi destacado o alf mil at inf Francisco Silva (madeirense), que apareceu na 2ª Companhia do BCAÇ 4512 logo após esta tragédia. (...)


(****) Último poste da série > 27 de dezembro de  2022 > Guiné 61/74 - P23921: (In)citações (227): As cheias, estas e as outras (Hélder V. Sousa, ex-Fur Mil TRMS TSF)

terça-feira, 30 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23568: Notas de leitura (1483): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte IV: as circunstâncias da morte do 2º sargento mecânico auto Rodolfo Valentim Oliveira, em 11/8/1965...

Bedanda, ao tempo da CCAÇ 6. Infografia de António Teixeira, "Tony" (1948-2018), ex-alf mil  CCAÇ 3459/BCAÇ 3863, Teixeira Pinto, e CCAÇ 6, Bedanda (1971/73).

1. Continuação da leitura do livro  "Panteras à solta: No sul da Guiné uma companhia de tropas nativas defende a soberania de Portugal", de Manuel Andrezo, edição de autor, s/l, s/d [c. 2010/2020] , 445 pp. , il. [ Manuel Andrezo é o pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade, ex-cap inf, 4ª CCAÇ / CCAÇ 6, Bedanda, jul 1965/jul 67, exemplar gentilmente facultado, a título de empréstimo, pelo cor inf ref Mário Arada Pinheiro] (*)


O livro, composto por cerca de 70 curtos capítulos, não numerados, pode ser considerado como um "diário de bordo", embora não datado, do autor (ou do seu "alter ego", o cap Cristo), que foi o último comandante da 4ª CCAÇ e o primeiro da CCAÇ 6 (a 4ª Companhia de Caçadores passou, a partir de 1 de abril de 1967, a designar-se por CCAÇ 6, "Onças Negras"). 

Um dos capítulos "intrigantes" é o intitulado "Morreu um sargento" (pp. 313-317)

Embora o sargento não seja identificado pelo nome, deve tratar-se do 2º Sargento Mecânico Auto Rodolfo Valentim Oliveira, natural de Tavira, morto em  11 de agosto de 1965, um mês depois do Cap Inf Aurélio Manuel Trindade ter chegado a Bedanda. 

Segundo o nosso coeditor e colaborador permanente Jorge Araújo, terá sido o 3º sargento a morrer no CTIG, de um total de 54 (**).

Escreve o autor do livro que temos vindo a citar:

(...) "Morreu em combate o sargento mecânico, um técnico excelente e um bom homem" (pág. 313). 

O Manuel Andrezo (aliás. Aurélio Manuel Trindade)  relata a seguir, sucintamente, as circunstâncias dessa morte para depois nos dar conta das suas fortes suspeitas sobre o soldado mecânico Fernandes, possível autor ou coautor do  assassínio do 2º sargento mecânico da 4ª CCAÇ.

O sargento queria melhorar as condições de trabalho da oficina auto em Bedanda. Nomeadamente, queria construir uma plataforma com rampa para  lavagem e melhor observação das viaturas. Para isso precisava de madeira.  Pediu autorização ao capitão  para ir cortar madeira nas proximidades do quartel, a 2 km, num sítio onde o pessoal costumava ir à lenha, e onde nunca até então houvera problemas. Teve o OK do capitão, desde que levasse segurança. 

O sargento pegou na sua secção de mecânicos e condutores. E lá foi com uma equipa de 10 homens, munidos de serra mecânica e machados, e armados (os soldados da 4ª CCAÇ na altura ainda usavam a Mauser).

Passados duas horas, ouviu-se um curto tiroteio na mata. Uma pequena força, comandanda pelo Alf Mil Carvalho,  saiu do quartel a correr para ir ver o que se passava, tendo deparado então,  no local,  com "o sargento morto, com um tiro na cabeça, e os soldados amedrontados" (sic) (pág. 313).

A explicação dada pelos soldados é que teriam sido "surpreendidos por uns guerrilheiros na estrada Mejo-Bedanda". Reagiram aos tiros e os guerrilheiros retiraram prontamente. A única baixa fora o sargento. Não souberam explicar "quantos eram e para onde foram" os guerrilheiros, já que fora tudo muito rápido. 

O Alf Mil Carvalho fez uma pequena batida  na zona mas não encontrou  quaisquer vestígios da presença dos guerrilheiros, nem sequer invólucros. A haver trilhos confundiam-se com os  da população, das milícias e das NT. Começou por isso a ter dúvidas sobre a versão do pessoal da ferrugem. E transmitiu as suas impressões (e apreensões) ao capitão. 

Este fez questão logo de "considerar oficialmente a morte do sargento como sendo morte em combate numa emboscada da guerrilha"  (sic)  (pág. 315), mas mandou entretanto o Alf Mil  Carvalho averiguar melhor o que se tinha passado, devendo para o efeito interrogar todos os homens da ferrugem que tinham estado  com o sargento naquele fatídico local. 

A versão de todos os soldados inquiridos era unânime: foram vítimas de emboscada do IN... Mas o alferes vai descobrir, no entanto, um "suspeito".

As relações do sargento com os soldados da sua secção não eram boas. Um deles, o Fernandes, que era de Bissau, "todo espevitado e mal encarado" (sic) (pág. 316), andava sempre a contestar as ordens do sargento. Três ou quatro dias antes, o sargento dera-lhe "duas valentes bofetadas" (sic). O Fernandes terá dito, em público, que se iria vingar.  Houve testemunhas.

Chamado ao capitão, o soldado mecânico Fernandes foi de novo apertado:

(...)" Ouve, Fernandes. Eu não acredito na tua história da emboscada quando morreu o nosso sargento. Não houve nenhuma emboscada e foi uma arma vossa que o matou  e todos combinaram isso da emboscada para enganar nosso capitão. Eu vou descobrir a verdade. Se descobrir que vocês me querim enganar,  eu dou cabo de vocês. Tiveste uma discussão com o nosso sargento dois ou três dias antes. Disseste que te havias de vingar e vingaste-te. És capaz de ter morto o nosso sargento e inventaste depois a emboscada. Se eu descobrir que foi assim, limpo-te o sarampo como tu limpaste o nosso sargento. Ficas em constante vigilância do nosso capitão" (pp. 316/317).

O Fernandes manteve a sua versão até ao fim, protestando a sua inocência.  

E a história acaba assim: 

"Na companhia, oficialmente, só o Alferes Carvalho e o capitão duvidavam da versão dos soldados. Aliás, o capitão tinha a certeza de que o sargento tinha sido morto por um soldado, e pelo Fernandes com muita probabilidade" (pág. 317).

 O Cap Cristo não quis, porém, esticar a corda e agravar o mal-estar já existente na companhia. Informou, no entanto, o Comando em Bissau , "em nota pessoal e confidencial das suas desconfianças e das razões que justificavam a sua atitude".

Por sua vez, "o soldado Fernandes, que estava no fim do seu serviço normal, pouco tempo depois passou à disponibilidade e, apesar de querer continuar e de ser um bom mecânico, tal não foi autorizado. As dúvidas que sobre ele existiam,  influenciaram a decisão. O capitão considerava-o responsável pela morte do sargento e nunca lhe perdou" (pág. 317).

Uma história edificante? Pode perguntar-se por que é que o capitão não mandou levantar um auto de notícia e não se procedeu à autópsia do corpo do sargento, como seria normal noutras circunstâncias?... Não sabemos mais pormenores do caso. E convém lembrar que a fonte que estamos a usar é um livro de memórias, em parte ficcionado...

E depois o capitão tinha chegado há um mês, havia problemas de disciplina na 4ª CCAÇ, e Bissau fará questão de lembrar, a propósito da entrega ou não das espingardas automáticas G3 (em substitituição da velha Mauser),  que se tratava de uma "companhia de negros em quem não confiamos totalmente" (sic) (pág. 139)... 

O enviado de Bissau a Bedanda, um tenente coronel, Chefe do Serviço de Material, lembrou ainda ao Capitão Cristo que já houvera lá "uma tentativa de revolta e ninguém nos diz que não possa haver outra, e era muito aborrecido se eles fugissem para o mato com as G3" (pág. 139)...

De qualquer modo, sabemos de outros casos, que no CTIG o exército lidava mal com estas situações de mortes por "acidente com arma de fogo" (termo que em geral era um eufemismo para escamotear as verdadeiras causas de acidentes mortais como o suicídio ou o homicídio). 

Para proteger seguramente a família e honrar a memória do 2º sargento Rodolfo Valentim Oliveira, este foi dado como "morto em combate", tendo sido louvado e agraciado, a título póstumo, com a Medalha da Cruz de Guerra de 4ª Classe bem como a Medalha da Cruz de Guerra, colectiva, de 1ª classe.

2. Lê-se, a propósito,  no portal UTW - Ultramar TerraWeb, dos Veteranos da Guerra do Ultramar (com a devida vénia...)

Honra e Glória - Rodolfo Valentim Oliveira (...)

(...) Louvado, a título póstumo, por feitos em combate, publicado na Ordem de Serviço n.º 118, de 1965, da 4.ª Companhia de Caçadores Indígena (4ª CCaçI);

Agraciado, a título póstumo, por feitos em combate, com a Medalha da Cruz de Guerra de 4.ª classe, por despacho do Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné, de 4 de Março de 1966, publicado na Ordem do Exército n.º 13 – 3.ª série, de 1966;

Agraciado, a título póstumo, com a Medalha da Cruz de Guerra, colectiva, de 1.ª classe, pelo Decreto n.º 48412, publicado no Diário do Governo n.º 129/1968, Série I, de 30 de Maio de 1968.(...)

Transcrição do louvor que originou a condecoração.

(Publicado na Ordem de Serviço n.º 118, de 1965, da 4.ª Companhia de Caçadores):

Louvado, a título póstumo, o 2.º Sargento, Rodolfo Valentim de Oliveira, da 4.ª Companhia de Caçadores, porque tomando parte numa patrulha a Cobumba, frente a um inimigo superior não só em efectivo, como em armamento automático, mostrou coragem, sensatez, sangue-frio e inteligência no comando da sua Secção, apesar de ter apenas alguns dias de Comissão, pondo sem dúvida em evidência, qualidades de um militar exemplar.

Contudo, durante a retirada do Pelotão, fazendo parte da força de cobertura, foi ferido pelo inimigo, do que adveio o seu falecimento. (...)

3. O que diz o nosso coeditor e colaborador permanente, Jorge Araújo, no poste P18953 (**) ?

A  3.ª BAIXA: - 2.º SARGENTO CMD RODOLFO VALENTIM OLIVEIRA, DA 4.ª CCAÇ, EM 11AGO1965


(...) A morte do 2.º Sargento Cmd Rodolfo Valentim Oliveira, natural de Santiago, Tavira, ocorrida em 11 de Agosto de 1965, 4.ª feira, é considerada a terceira na cronologia dos Sargentos do Exército falecidos em combate no CTIG.

O Sargento Rodolfo Valentim Oliveira pertencia à estrutura orgânica da 4.ª CCAÇ [Companhia de Caçadores Nativos (ou indígenas) constituída por praças africanas de Recrutamento Local, que eram enquadrados por oficiais, sargentos e praças especialistas oriundos da Metrópole.

Criada e instalada primeiramente em Bolama em finais de 1959, mudou-se em Julho de 1964 para Bedanda, por necessidades operacionais, uma vez que um dos objectivos intrínsecos para a sua criação foi/era a segurança e/ou a defesa das suas populações, estando assim implícito o conceito de "missão" ou "actividade operacional" na luta contra os grupos da/de guerrilha armados. Três anos após a instalação dos seus primeiros efectivos em Bedanda, esta Unidade é renomeada, em 1 de Abril de 1967, passando a designar-se por Companhia de Caçadores n.º 6 [CCAÇ 6 - "Onças Negras"] (vidé: P18387 e P18391). (...)

Na sequência da actividade operacional da CCAÇ 763, caracterizada pelo camarada Mário Fitas no livro acima referido ["Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra"], da qual resultou a morte do 2.º sargento Leandro Vieira Barcelos, já descrita no ponto anterior, encontrámos uma primeira referência à 4.ª CCAÇ, onde dá-se conta de missões conjuntas envolvendo as duas Unidades.

É a partir dessas vivências colectivas anteriores, partilhadas em palcos comuns, que se vem a saber da morte do 2.º sargento Rodolfo Valentim Oliveira. Por ausência de informações mais precisas quanto aos detalhes que originaram a sua morte em combate, citamos o que foi possível apurar neste âmbito:

"Voltamos a caminhos de Cabolol mas seguindo a estrada, passamos nas bordinhas da mata e vamos atá à tabanca de Cobumba, numa acção punitiva, por a sua população dar guarida a um grupo de guerrilheiros, que teria causado várias baixas à 4.ª CCAÇ estacionada em Bedanda, entre as quais se contava um sargento [Rodolfo Valentim Oliveira]"  [Poste P17130].

Para que não fiquem na "vala comum do esquecimento", como costumamos afirmar, eis os quadros estatísticos dos 54 (cinquenta e quatro) sargentos [Ajud., 1.ºs e 2.ºs], nossos camaradas dos três ramos das Forças Armadas, que tombaram durante as suas Comissões de Serviço na Guerra no CTIG, sendo 13 em acidente (24.1%), 17 em combate (31.5%) e 24 por doença (44.4%). (...) 

sábado, 15 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19892: 15 anos a blogar desde 23/4/2004 (9): Relembrando o cobarde assassinato em Jumbembem, em 16/7/1973, do alf mil op esp / ranger Nuno Gonçalves da Costa, natural de Arcos de Valdevez, cmdt do Pel Caç Nat 51, substituído depois pelo Francisco Justino Silva, hoje médico ortopedista (Fernando Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, 2ª CCAÇ / BCAÇ 4512, Jumbembem, 1972/74)


Lisboa > Belém > Monumento aos Combatentes do Ultramar > XXV Encontro Nacional dos Antigos Combatentes > 10 de junho de 2019 > Sob o olhar atento do Carlos Silva, régulo da Tabanca dos Melros, o Francisco Justino Silva, hoje ortopedista (. foto à  esquerda),  membro da nossa Tabanca Grande desde 26 de abril de 2010 (*), relembra os tempos em que foi substituir, em Jumbembem, em circunstâncias trágicas, o comandante do Pel Caç Nat 51: o seu interlocutor, um antigo milícia do seu tempo  (, à direita, na imagem), estava lá, nesse fatídico dia 16 de julho de 1973, em que foi cobardemente morto a tiro de G3 o alf mil op esp / ranger, Nuno Gonçalves Costa.

Dois camaradas, pelo menos,  da nossa Tabanca Grande conheceram e conviveram com o Nuno Gonçalves da Costa:

(i)  o  Luís Mourato Oliveira conviveu com ele, na 1ª metade do ano de 1973,  e com o seu Pel Caç Nat 51, em Cufar;

e (ii)  Fernando Costa Gomes de Araújo (ex-fur mil op esp / ranger, 2ª CCAÇ / BCAÇ 4512, Jumbembem, 1973/74): é deste último o relato do que aconteceu nesse dia 16 de julho de 1973, 2ª feira, relato esse  já publicado em poste, editado pelo Eduardo Magalhães Ribeiro (**), e que merece ser reproduzido na série "15 anos a blogar desde 23/4/2004" (***)

O Nuno Gonçalves da Costa era natural de Campos de Sá, freguesia de São Jorge, Arcos de Valdevez.  A sua morte é atribuída a "acidente com arma de fogo" (sic), forma eufemística das Forças Armadas classificarem não só os casos de acidente devidos a arma de fogo, como os de homicídio e suicídio no TO da Guiné.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


O assassinato do Alf Mil Op Esp/Ranger  Nuno Gonçalves Costa,  do Pel Caç Nat 51, em Jumbembem, em 16 de julho de 1973

por Fernando Araújo (*)



[ex-Fur Mil Op Esp/Ranger,  2ª CCAÇ do BCAÇ 4512, Jumbembem, 1973/74M foto à civil, à esquerda]


Jumbembem, 16Jul1973 – 08h00/09h00

Estava eu no meu quarto, quando ouvi, nas traseiras da instalação, três disparos de G3.

A primeira coisa que pensei foi que o alferes açoriano (cujo nome não me lembro) se tinha suicidado, pois, nos últimos tempos, vinha a dar sinais evidentes, não só de estar farto de permanecer em Jumbembem, como de graves complicações psicológicas.

Desloquei-me rapidamente para o local de onde ouvira as detonações, dando a volta às instalações do dormitório do meu quarto, cujas traseiras davam para as traseiras de outro edifício com quartos e fiquei muito surpreendido…

Ao contrário do que eu estava a pensar, não fora o alferes dos Açores a vítima dos tiros, mas sim o alf mil op esp Nuno Gonçalves Costa, do Pel Caç Nat 51 [, adido à 2ª CAÇ / BCAÇ 4512] ,  e que jazia no chão gravemente ferido, pois tinha sido ele o alvejado com as três balas.

A sua imagem ali tombado a esvair-se em sangue, mortalmente, ainda hoje a retenho no pensamento.

Motivo da morte: o alf mil Costa tinha aplicado como castigo (não sei a causa), um reforço a um nativo do Pel Caç Nat 51. O homem não conformado com a punição, foi à porta do seu quarto e disse-lhe:

–  Alferes, eu não fazer reforço!

Ao que ele retorquiu:

– Já te disse que vais cumprir o reforço!

Foram trocadas mais algumas palavras de que eu já não me lembro. O nativo tornou a reclamar:

– Alferes,  eu não fazer reforço!

–  Já te disse que sim e não se fala mais nisso!

Acabado este diálogo, o nativo deslocou-se à tabanca em busca da G3 que lhe estava atribuída. Passado algum tempo, talvez 30 minutos, regressou novamente para junto do quarto do alferes. Pousou a G3 à porta e, chamando-o novamente, disse-lhe:

–  Alferes, eu não fazer reforço!

O alferes voltou a afirmar que ele tinha de cumprir o castigo, com que o tinha sancionado. Presumo que o alferes devia estar deitado. Deve ter-se levantado e foi nessa altura que o homem pegou na G3 e, traiçoeiramente, disparou três tiros à queima-roupa sobre o oficial português.

Este último ainda foi levado para a enfermaria, onde se prestaram os primeiros socorros, ao mesmo tempo que foi pedido, com a maior urgência, a sua evacuação aérea. Como estava a perder muito sangue, foi pedido sangue e voltou a ser pedido,  insistentemente, o máximo de urgência na sua evacuação, que tardava em aparecer.

E tanto tardou que o alferes não resistiu aos ferimentos e faleceu, sem que aparecesse qualquer meio aéreo para o socorrer. Esta situação indignou todo o pessoal da companhia, desde o soldado até ao comandante.

O nativo foi preso, com arames nos pulsos, atrás das costas, enquanto os próprios elementos do Pel Caç Nat 51, bem como a milícia local, queriam fazer justiça pelas próprias mãos (isto é, linchá-lo). Valeu-lhe o nosso comandante, que ordenou:

– Não lhe toquem!

Mas, mal ele virava as costas, alguns militares mais revoltados descarregavam a sua ira em cima do assassino, que foi depois colocado na casa do motor (gerador), que se situava ao lado do tanque da água.

Ali permaneceu o prisioneiro até meio da tarde, altura em que o nosso comandante, penso que por causa da evacuação não se ter efectuado e achando que o comandante em Farim teve alguma culpa nesta falta, resolveu ir a Farim levar o corpo do alferes em sinal de protesto.

Deslocamo-nos então numa coluna motorizada (já não sei quantos nem quais pelotões), com o corpo do defunto numa viatura Berliet e com uma bandeira nacional a cobri-lo, até Farim (sede do BCAÇ 4512).

A coluna fez-se sem fazer a habitual picagem, tal era a revolta, desagrado e excitação que grassava em todo o pessoal da Companhia. Um risco acrescido, mas justificado pela hora tardia para o fazer.

Viam-se aqui e ali soldados e graduados com as lágrimas nos olhos, chocados com um desfecho fatídico que o alferes assassinado não merecia, porque todos eram conhecedores e concordantes de que ele era boa pessoa e bom para os nativos do Pel Caç Nat 51. Talvez bom demais,  ainda hoje o penso e digo! Segundo ouvi dizer na altura, ele, quando isso lhe era solicitado, inclusive emprestava dinheiro aos militares do seu pelotão.

A coluna chegou à entrada de Farim, abrandou mais um pouco e continuou a sua marcha, enquanto os militares que a compunham saltaram para o chão e acompanharam as viaturas a pé.

Ao passar defronte ao edifício de comando, estava em posição de sentido e continência um graduado (ou era o comandante, en Cor Vaz Antunes, ou o 2º comandante major Menezes, já não me lembro bem).

Este é o relato com que fiquei gravado no pensamento desse dia.

Também trouxemos o nativo assassino que, pelo caminho fora na viatura onde seguia, alguns soldados, em certas alturas do percurso, continuaram a dar-lhe o “tratamento especial”, tendo o mesmo chegado a Farim num estado físico muito debilitado.

Disseram-me posteriormente que ficou preso em Farim e depois seria enviado para a Ilha das Cobras [ou Ilha das Galinhas, que funcionava como campo prisional ? (LG)]

Para substituir o comandante do Pel Caç Nat 51, foi destacado o alf mil at inf Francisco Silva, madeirense, que apareceu na 2ª Companhia do BCAÇ 4512 logo após esta tragédia. [Era oriundo da CAÇ 3492, Xitole, 1971/73]

Com o meu pedido de desculpas por eventuais lapsos de memória, que poderão sempre ser corrigidos, mas esta é a visão dos factos que ainda mantenho hoje, passados mais ou menos  36 anos. Na minha agenda/diário, no dia 16 de Julho de 1973, 2º feira, anotei este fatídico evento, a morte do alf mil ranger Costa

Um abraço,
Fernando Araújo
Fur mil op esp / ranger
2ª CCAÇ do BCAÇ 4512
(Jumbembem, 1972/74)
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segunda-feira, 14 de abril de 2014

Guiné 63/74 - P12982: Notas de leitura (581): Quem são os responsáveis pelo assassínio de Amílcar Cabral?, em O Jornal de Janeiro de 1976 e Jeune Afrique de Novembro de 1983 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Outubro de 2013:

Queridos amigos,
Junto comentários a duas entrevistas publicadas em 1976 e 1983, alusivas aos acontecimentos de 20 de Janeiro de 1973.
Não deixa hoje de surpreender o tom perentório com que se incriminaram a PIDE de Bissau e Spínola, sem apresentar uma prova material, como foi possível pôr muita gente a acreditar que pessoas com reconhecidas limitações como Momo Turé pudessem ter-se imposto à frente de larguíssimas dezenas de quadros conspirativos.
As provas materiais de quem mandou matar Cabral continuam em falta, os arquivos estão vazios, os processos efetuados em 1973 desapareceram. Vamos ter que aguardar que algumas das figuras determinantes estejam dispostas a revelar o que aconteceu.
Joaquim Chissano, por exemplo.

Um abraço do
Mário


Quem são os responsáveis pelo assassínio de Amílcar Cabral?

Beja Santos

O puzzle continua incompleto, quarenta anos depois são escassos os factos provados quanto ao assassinato de Amílcar Cabral pelas 22h30 de 20 de Janeiro, em Conacri: sabe-se que houve uma equipa que o abordou, que o primeiro tiro partiu de Inocêncio Kani e que alguém de nome Bacar deu o tiro de misericórdia; sabe-se como atuaram várias equipas a fazer prisões dos quadros cabo-verdianos; sabe-se que Sékou Touré foi abordado pelos sublevados, mandou fazer prisões e institui uma comissão de inquérito, cujos resultados nunca foram divulgados; sabe-se que houve inquirições de todos os presumivelmente sublevados, foram tomadas decisões de execução e desapareceram todas as provas materiais do processo; e sabe-se que alguns dos observadores de toda esta situação à volta do assassinato ainda não disseram a última palavra – é o caso de Joaquim Chissano. Há muita penumbra, muito fogo-fátuo, muita presunção, com ou sem água benta. Por isso, todo o envolvimento sobre os mandantes é um grande mistério. E à volta desse mistério escreveram-se acusações sem provas, sobretudo a seguir ao assassinato era de bom-tom apontar o dedo a criminosos longínquos: Spínola, a PIDE, Rafael Barbosa, por exemplo. Há que juntar metódica e incansavelmente tudo quanto se escreveu e perceber que está quase tudo por esclarecer.


Numa edição de Janeiro de 1976, o semanário O Jornal publicava um documento inédito: páginas de um livro branco do PAIGC. O jornalista achou por bem encontrar uma relação causa-efeito entre a invasão de Conacri, de Novembro de 1970, com o assassinato de Cabral. Chega-se ao cúmulo de dizer que as infiltrações nas fileiras do PAIGC teriam começado em 1966 e com o maior à vontade escreve-se: “Foi essa máquina, montada minuciosamente ao longo de alguns anos, que os governantes de Lisboa e o seu representante em Bissau, Spínola, decidiram pôr em funcionamento no dia 20 de Janeiro de 1973. A morte de Cabral, o rapto de Aristides Pereira e a prisão dos principais dirigentes do PAIGC constituíam a parte operacional de um plano que tinha por objetivo último a sobrevivência dos interesses colonialistas na Guiné e a manutenção das ilhas de Cabo Verde”. O jornalista cola-se ao tal livro branco preparado pela comissão de inquérito do PAIGC que, resumidamente, defende tais teses, que se passam a sintetizar.

Primeiro, os colonialistas elaboraram um plano que desembocaria na independência da Guiné ao mesmo tempo que recusariam qualquer abertura à autodeterminação de Cabo Verde. Segundo, Spínola criara secretamente um partido formado exclusivamente de guineenses, a FUL (Frente Unida da Libertação) constituída entre outros por Rafael Barbosa e Momo Turé, havendo mesmo uma ramificação no Senegal. Em dada altura, libertaram-se antigos quadros do PAIGC como Momo Turé e Aristides Barbosa para serem preparados e enviados para Conacri. Terceiro, conseguido o descontentamento e a franca adesão dos guineenses do PAIGC contra os cabo-verdianos, punha-se em marcha o golpe, que seria apresentado como uma revolta dos guineenses contra a direção cabo-verdiana, havendo êxito Sékou Touré primeiro e a Organização da Unidade Africana depois iriam apoiar as novas autoridades.

O documento da comissão de inquérito excede-se na imaginação: “Portugal não pode falar da independência da Guiné sob pena de ser obrigado a falar também da independência de Angola e Moçambique. Se conseguissem todos os objetivos almejados com o complô, os colonialistas portugueses começavam por desarmar os combatentes do PAIGC, em seguida desarmavam os seus comandos africanos, evocando o fim da guerra: reforçavam a sua guarnição militar em toda a Guiné e finalmente prendiam todos os dirigentes da FUL em Bissau”.

É esta a única referência que eu conheço à comissão de inquérito do PAIGC liderada por Fidelis Cabral de Almada, o mesmo que, após o golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980, veio no Congresso do PAIGC pedir desculpa pelas barbaridades que tinham sido cometidas, nomeadamente as torturas praticadas durante os interrogatórios. Quando hoje se conhecem as profundas limitações intelectuais e políticas de Momo Turé (até desaparecer para Conacri, em 1972, era empregado de mesa no restaurante “Pelicano”), fica-se estarrecido como foi possível tentar fazer convencer que ele foi um dos autores da conspiração que envolveu largas e largas dezenas de quadros, muitos deles com elevadíssima preparação. Como foi possível ter criado tanta mistificação à volta de um processo de que hoje não há um só documento?

“Jeune Afrique”, num número de Novembro de 1983, volta ao assassinato de Cabral, trata-se de um inquérito de Sophie Bessis em Bissau, na Praia, em Lisboa e Paris. Pouco ou nada adianta. Refere o documento de Março de 1972, consagrado aos problemas de segurança, denunciado que está em curso um plano para a sua liquidação. Cabral diz que recebera estas informações através do Partido Comunista Português. A repórter não esconde a surpresa quanto ao silêncio à volta de dossiê que parece incomodar o poder político instalado. Não há prova determinante, passados dez anos do assassinato, para infirmar ou reforçar as suspeitas que pesam sobre uma série de personagens da época. Cabral tinha uma enorme relutância em fazer-se acompanhar de guarda-costas. Ana Maria, a sua mulher, revela que naquela noite, antes de partirem para o jantar na embaixada da Polónia em Conacri, ela viu Cabral inquieto. Durante a manhã desse dia, Cabral tinha recebido uma visita inopinada, a do embaixador da Guiné em Dakar, portador de uma mensagem de Sékou Touré, informando que havia qualquer coisa em preparação. Cabral chamou o responsável pela segurança, Mamadu Indjai, ao que parece um dos conspiradores, ao revelar-lhe que corria o rumor de um golpe pode ter dado azo a que os conspiradores acelerassem as movimentações.

A repórter descreve o que se passou nos momentos do assassinato e depois. A comissão de inquérito de Sékou Touré fez passar que a responsabilidade era dos portugueses, Spínola e a PIDE, mas que havia também africanos infiltrados. Lidas as sentenças, depois do processo organizado pelo PAIGC, um conjunto de sublevados foram executados, a repórter diz que morreram linchados. E volta a desenvolver a tese de que Spínola criara a FUL, sob a direção de Rafael Barbosa, que dera luz verde para a operação dos infiltrados guineenses em Conacri, etc. E citando “algumas fontes” diz que Spínola tinha projetado aproveitar-se dos guineenses para capturar Cabral e mantê-lo como reserva. Também releva o papel de Momo Turé, mas não deixa de insinuar que a morte de Cabral podia ter constituído um alívio para Sékou Touré que mantinha relações muito tensas com o pai fundador do PAIGC, a africanização do PAIGC permitiria a Sékou Touré ter um maior controlo sobre a futura nação independente.

Era dentro desta bruma e deste nevoeiro que se falava em 1976 e 1983 do assassinato de Cabral. Ninguém pediu provas, ninguém apresentou provas, acusava-se na base da especulação e das hipóteses. E aqui estamos, a aguardar que apareçam declarações ou depoimentos que tragam um verdadeiro esclarecimento a um dos imbróglios mais intrigantes da história da Guiné-Bissau.
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Nota do editor

Último poste da série de 11 DE ABRIL DE 2014 > Guiné 63/74 - P12964: Notas de leitura (580): "Os Portugueses Descobriram a Austrália? 100 Perguntas Sobre Factos, Dúvidas e Curiosidade dos Descobrimentos”, por Paulo Jorge de Sousa Pinto (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 - P11001: Notas de leitura (452): Fernando Baginha e o assassinato de Amílcar Cabral (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Janeiro de 2013:

Queridos amigos,
Os artigos de Fernando Baginha são necessários como peças do incomensurável puzzle das motivações profundas sobre o assassinato de Cabral. 40 anos depois, a penumbra continua densa, apesar da muita especulação gratuita em que sem provas se continua a apontar o dedo para a PIDE em Bissau, Rafael Barbosa, Spínola.
Ninguém acredita que numa conspiração em que estiveram envolvidas centenas de pessoas não se encontrasse um só documento, um conjunto de depoimentos articulados da ligação dos executores de Cabral com Spínola. Há uma carta nos arquivos da PIDE em que Fragoso Allas, diretor da delegação de Bissau, dá uma versão para Lisboa em que é impensável que estivesse a fingir nada saber ou a haver conivência com os altos dirigentes guineenses.
Deve doer muito ter que reconhecer que os guineenses não queriam ser dirigidos por cabo-verdianos.

Um abraço do
Mário


Fernando Baginha e o assassinato de Amílcar Cabral

Beja Santos

Fernando Baginha viveu na Suécia, onde trabalhou, durante alguns anos, com o PAIGC. Em 1972 e 1973, foi professor da Escola-Piloto do Partido, na República da Guiné-Conacri, de que chegou a ser diretor. Foi, também, o autor e responsável pelos programas de propaganda dirigidos aos militares portugueses, através das emissões da Rádio Libertação do PAIGC.

Em 4 e 18 de Dezembro de 1980, Baginha escreve no jornal O Ponto acerca do assassinato de Cabral e as repercussões que este teatro teve na vida do PAIGC, na Guiné-Bissau e em Cabo Verde. Diz ter assistido à morte de Cabral e a todo o processo que lhe seguiu, resolveu então tornar públicos factos que calou durante aqueles anos. Em 19 de Janeiro de 1973, os serviços de segurança checos em Conacri avisaram Cabral de que teriam sido detetados indícios de conspiração dentro do PAIGC. Cabral avisou o então responsável pela sua segurança para que tomasse precauções. Tratava-se de Mamadu N’Djai, herói nacional, comandante da frente Norte, três vezes ferido em combate e naquele momento em Conacri em convalescença do seu último ferimento. N’Djai teria feito saber diretamente aos outros conspiradores que o golpe era conhecido. Assim, tudo foi antecipado e a ação decorreu em plena visita oficial a Conacri de Samora Machel e a Joaquim Chissano.

Nessa noite, decorria na Escola Piloto do PAIGC, em Retoma, arredores de Conacri, uma reunião de informações sobre o desenrolar da guerra em Moçambique, presidia Chissano. Cabral e Machel estavam ausentes. À hora em que terminou a reunião, cerca das 23 horas, Cabral já estava morto. O grupo de viaturas que voltava para Conacri ou para outros campos do PAIGC, foi intercetado pelo grupo de revoltosos, sendo presos todos os elementos cabo-verdianos ou com ele conotados. Pela meia-noite, toda a direção política do PAIGC, de momento em Conacri, estava presa. Segue-se a reviravolta, o exército de Sékou Touré intervém em força e prende todos os elementos do PAIGC, revoltosos e vítimas, o golpe parou.

O que se passara, entretanto? O grupo diretamente encarregue de prender Cabral, comandado por Inocêncio Kani, acaba por abater o líder do PAIGC enquanto outro grupo, comandado por Mamadu N’Djai, prende e rapta Aristides Pereira que é levado para um barco de guerra do PAIGC, fortemente amarrado e com ele é levado Buscardini, um dos carrascos dos comandos africanos e morto em 14 de Novembro de 1980.

O grupo que abatera Cabral apresentou-se no Palácio de Sékou Touré, informando que acabara de matar o secretário-geral do PAIGC. Sékou Touré dá-lhes ordem de prisão. Para Baginha, o envolvimento da Guiné-Conacri na tentativa de afastamento da direção cabo-verdiana era por de mais evidente: toda a conspiração ocorreu em Conacri e foi detetada pela segurança checa que obviamente terá avisado Sékou Touré; os executores de Cabral, cumprida a sua nefanda missão, dirigiram-se ao palácio da Presidência para que houvesse reconhecimento do golpe; os revoltosos atravessaram toda a Conacri e saíram do porto, apesar das rigorosas medidas de segurança que existiam. Numa reunião que teve lugar no palácio da Presidência, Sékou Touré informou todos os quadros do PAIGC dos resultados provisórios do inquérito à morte de Cabral: no momento da morte de Cabral encontravam-se em Conacri 429 elementos do PAIGC e 336 estavam a par da conspiração.

Baginha refere os desentendimentos profundos entre Cabral e Osvaldo Vieira, prendiam-se sobretudo com a condução militar das operações. Cabral permitia-se, por vezes depois de longas ausências no estrangeiro alterar completamente planos já estabelecidos. Para mais, Cabral já não entrava nas zonas libertadas da Guiné havia cerca de 3 anos. No dia do assassinato, Osvaldo Vieira estava em Conacri, a tudo assistiu, todos o viram, ele viu tudo e não teve um gesto para evitar o que se passou (recorde-se o que Bobo Keitá escreve no seu livro, já aqui referenciado: foi visto Osvaldo Vieira durante todo o dia na companhia de Inocêncio Kani). Continua Baginha a referir que tendo ficado preso na companhia de guineenses, estes não disfarçavam a sua preocupação e falavam abertamente: Osvaldo era o nome mais citado. Nos interrogatórios perguntaram a todos os inquiridos se teriam ouvido algo sobre o envolvimento de Osvaldo Vieira e em consequência dos inquéritos ele foi suspenso de todas as funções diretivas no partido. Osvaldo Vieira foi conduzido para a zona de Madina de Boé sob prisão. Depois disse-se que teria morrido de doença do estômago. Mas Baginha não tem dúvidas, ele foi executado. No primeiro dia de execuções, foram executados nas três frentes de guerra 69 homens. Sékou Turé não autorizou fuzilamentos em território da República da Guiné. E Baginha diz sem rebuço que o golpe de 14 de Novembro de 1980 não é mais do que a continuação do golpe de 20 de Janeiro de 1973. Com este golpe não restava qualquer dúvida: pretendia-se levar Nino Vieira ao poder.

No segundo artigo, Baginha volta-se para Rafael Barbosa, uma das figuras mais assombrosas e enigmáticas de todo o processo: peça fundamental da subversão dos anos 50 até 1962, foi preso, foi visto como um herói durante uma boa parte da luta armada, classificado como traidor depois da sua confissão pública ao lado de Spínola, preso com a independência, condenado à morte, pena comutada, libertado, de novo herói e logo desmentido. Cabral sempre o considerou o pilar da primeira fase da luta de libertação, tratou-o, até à sua confissão pública, como o presidente do PAIGC. Para Baginha, é com a libertação de Rafael Barbosa, autorizada por Spínola, que irá começar a clivagem entre guineenses e cabo-verdianos. Segundo Baginha a direção política do PAIGC não insistiu muito na condenação de Barbosa devido a dois factos importantes: primeiro, a adesão de cabo-verdianos ao PAIGC ter estagnado; segundo as adesões cresciam exponencialmente a partir de fugas da Guiné, quem chegava a Conacri não escondia a sua admiração por Rafael Barbosa.

Baginha nunca acreditou nas implicações da PIDE no assassinato de Cabral, diz saber que a PIDE não tinha, diretamente, nada a ver com o assassinato, considera que Spínola terá jogado na agudização da contradição que ele sabia existir: quantos mais guineenses do PAIGC e mais rápida seria a desagregação do partido. Spínola, com a sua “Guiné melhor”, conseguiu insinuar a ideia, ao nível dos quadros de guerra, de que sem a unidade Guiné-Cabo Verde algo seria possível. E inúmera alguns “atrasos de percurso” até à chegada definitiva de Nino ao poder: o falhanço do golpe de 1973; o 25 de Abril, que obrigou todos os intervenientes a estarem de acordo; a confirmação do poder de Luís Cabral, beneficiando do processo de descolonização e do apoio dos outros países saídos das ex-colónias; o apoio que Luís Cabral sempre teve de Francisco Mendes (Chico Té) primeiro-ministro até ao acidente que o vitimou.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 21 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P10977: Notas de leitura (451): Guiné-Bissau: A Destruição de um País, por Julião Soares da Silva (1) (Mário Beja Santos)

domingo, 22 de julho de 2007

Guiné 63/74 - P1981: Antologia (60): Assassinato de Amílcar Cabral: O PAIGC, os russos e a Guiné-Conacri (José Milhazes)


1. Texto enviado pelo nosso camarada Jorge Santos, com data de 11 de Julho último:


Envio em anexo um artigo de José Milhazes sobre a Operação do contra-torpedeiro soviético Experiente, na Costa da Guiné, onde atracou em Novembro de 1972.

Cumprimentos

Jorge Santos


2. Artigo do conhecido jornalista português, José Milhazes que vive na Rússia há mais de 30 anos (1) e que tem um blogue chamado Da Rússia:


Da Rússia, blogue de José Milhazes > 30 de Maio de 2006 > Contributos para a História de Portugal - 6 > A Operação do Experiente na Costa da Guiné

O assassinato de Amílcar Cabral, dirigente do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), na cidade de Conacri, capital da República da Guiné, a 20 de Janeiro de 1973, continua envolvido em muito mistério, mas a chave de alguns segredos encontram-se nos arquivos ou nos testemunhos de militares soviéticos que acompanharam esse acontecimento de perto.

Em Novembro de 1972, a pedido do Governo da Guiné (Conacri), no porto de Conacri atracou o contra-torpedeiro soviético Experiente (Бывалый), da Armada do Norte, que devia patrulhar a costa desse país africano. O navio de guerra era comandado pelo capitão de fragata Iúri Ilinikh.

Na noite de 20 para 21 de Janeiro de 1973, entraram inesperadamente no Experiente o comandante das Forças Armadas da Guiné Conacri e o conselheiro militar soviético, o major-general Fiodor Tchetcherin. Eles trouxeram a notícia que, por volta das 23 horas, numa das ruas de Conacri, um grupo de desconhecidos tinha assassinado A. Cabral. A sua esposa e alguns membros do Comité Central do PAIGC foram feitos prisioneiros e levados para lanchas que se dirigiram para a Guiné Portuguesa.

As visitas inesperadas pediram, em nome do Presidente do país, Séku Turé, e do embaixador soviético em Conacri, A. Ratamov, ao capitão de fragata que fizesse sair o Experiente a fim de capturar as lanchas.

Às 0 horas e 50 minutos do dia 21 de Janeiro, o contra-torpedeiro pôs-se em marcha com marinheiros soviéticos e soldados guineenses a bordo. Ilinikh enviou para o Estado-Maior da Armada Soviética vários relatórios, mas apenas recebeu instruções para não empregar armas.

Às 5 da manhã, foram detectadas duas das três lanchas que saíram de Conacri. O contra-torpedeiro aproximou-se de uma lancha e prendeu-a com cordas. A segunda lancha rendeu-se ao ver-se na mira de canhões de 130 milímetros. Soldados guineenses entraram nas lanchas, libertaram os reféns, desarmaram os seus ocupantes e conduziram-nos para o Experiente.

Às 15 horas, o contra-torpedeiro regressou a Conacri, rebocando as duas lanchas. A terceira foi capturada por soldados guineenses.

Primeiramente, Iúri Ilinikh foi afastado do cargo devido a ter actuado sem autorização de Moscovo, mas, depois do relatório do major-general Tchitcherine, Ilinikh recuperou o comando do Experiente e recebeu elogios pelas suas "acções ousadas e decididas".

Fonte da ilustração: Da Rússia > Blogue de José Milhazes (com a devida vénia...)

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Nota de L.G.:

(1) Nota autobiogáfica de José Milhazes:

(i) José Manuel Milhazes Pinto nasceu a 2 de Outubro de 1958 na Póvoa de Varzim.

(ii) Começou os estudos secundários na Ordem Missionária dos Combonianos, mas terminou-os no Liceu Eça de Queirós da terra natal.

(iii) Em 1977, parte para a União Soviética a fim de cursar História da Rússia e assistir à “construção do comunismo”.

(iv) Tendo bem mais sorte do que muitos outros estudantes portugueses que foram mandados para os “confins do Império”, pôde levar a cabo os seus estudos na Universidade Estatal de Moscovo (Lomonossov).

(v) Formado em 1983, constituiu família e ficou a residir na URSS, dedicando-se à tradução de obras literárias (Tolstoi, Turgueniev, Erofeev), e políticas (Brejnev, Andropov, Tchernenko, Gorbatchov), bem como de filmes de ficção de língua russa para português.

(vi) A 8 de Agosto de 1989, escreve a primeira crónica para a TSF e, no ano seguinte, com o lançamento do Público, torna-se seu correspondente em Moscovo.

(vii) Em 2002, começa também a colaborar com a SIC.

(viii) A longa permanência na União Soviética e, depois, na Rússia, permitiu-lhe assistir e participar num dos períodos mais agitados do séc. XX: a queda da “cortina de ferro” e a formação de novos Estados no Leste da Europa.

(ix) O gosto pela História e a vontade de aprofundar o estudo dos “laços entre o Partido Comunista Português e o Partido Comunista da União Soviética” leva-o a realizar trabalhos de investigação nos arquivos soviéticos para o Instituto de Ciências Sociais da Universidade Clássica de Lisboa e Fundação Mário Soares.

(x) Actualmente, nas poucas horas livres de que dispõe, prepara a sua tese de doutoramento na Universidade do Porto sobre as "Influências do liberalismo português e espanhol no movimento dezembrista russo de 1825".

quinta-feira, 25 de maio de 2006

Guiné 63/74 - P792: Todos camaradas, mas uns mais do que outros? A propósito do assassínio de Amílcar Cabral (João Tunes)

Texto de João Tunes, de 23 de Maio último:

Caro Luís,

Julgo que a lista dos fuzilados pelo PAIGC que lutaram, ao nosso lado, pelo Portugal do Minho a Timor, não se deve esgotar nos actos pós-independência.

Porque os crimes contra a humanidade nunca prescrevem. Houve mais fuzilados pelo PAIGC sem julgamento decente. E, na minha opinião, eles devem entrar na lista que porfiamos em recordar para memória futura e homenagem retroactiva.

Em 1973, os mandos de Portugal (comando militar e PIDE) conseguiram o feito de assassinarem Amílcar Cabral, o turra-mor. Foi uma operação urdida com sucesso (ao contrário da Operação Mar Verde). Nesta operação, a PIDE conseguiu infiltrar o PAIGC e explorando os ressentimentos de alguns combatentes guineenses contra os seus camaradas caboverdianos, levou a bom termo a sua missão: Amílcar caiu em Conacri, fuzilado sem julgamento e pelas balas de combatentes ressentidos, preparados e pagos pela PIDE ao serviço de Portugal.

E só por uma unha negra, o sucessor de Amílcar, Aristides Pereira, não foi entregue em Bissau, então nossa, provavelmente para o competente e juridicamente assistido julgamento. Amílcar Cabral foi assassinado mas daí pouco se passou. Nada mau, como saldo. Acontece que os nossos aliados, os nossos infiltrados, ao nosso serviço, ao serviço de Portugal do Minho a Timor, nossos camaradas portanto, falhado o clímax da operação (a liquidação de todos os caboverdianos, o controlo do PAIGC pela facção guineense e a sua integração na Guiné Melhor), foram apanhados pelo aparelho de segurança interna do PAIGC e fuzilados (sem julgamento). Terão sido 50 (cinquenta) esses nossos camaradas em missão de infiltração e aniquilamento que caíram sob as balas da justiça revolucionária, iníqua porquanto não precedida de julgamento segundo as regras da civilização cristã e ocidental que espalhámos pelas sete partidas.

Segundo depoimento de Mário Pinto de Andrade (que, em tempos, publique no meu blogue) terá sido Vasco Cabral (dirigente do PAIGC e homem de Estado da Guiné-Bissau, falecido há pouco tempo e que não era caboverdiano nem familiar de Amílcar) que investigou a conspiração, a desmantelou e depois assassinou todos esses nossos queridos e saudosos camaradas. No mínimo, seria injusto não lhes recordar, pelo menos, os nomes e a missão em que tombaram.

Julgo de elementar justiça que os nomes destes nossos 50 camaradas fuzilados sem julgamento (talvez o Leopoldo, o Jorge e o Pepe nos ajudem a encontrar a lista dos seus nomes), renegados do PAIGC mas combatentes por Portugal, se juntem, na mesma homenagem e recordação, à lista dos comandos, outros militares, milícias e agentes e informadores da Pide caídos em fuzilamentos selvagens na pós-independência às mãos dos mesmíssimos facínoras e gente com aversão a julgamentos juridicamente assistidos.

Ou uns são mais camaradas que outros? Por mim, nem pensar.

Abraços com saudações patrióticas do
João Tunes