BOAS MEMÓRIAS DA MINHA PAZ - 7
“Covidando” com os meus botões
ou“Covidando” com o confinamento
Nunca estive preso, excluindo aquela vez (“verão quente” de 1975) em que me detiveram durante mais de cinco horas no posto fronteiriço de Vila Verde de Ficalho/Rosal de la Frontera, por me terem confundido como um PIDE em fuga, quando apenas pretendia gozar uns dias em viagem por Marrocos.
Também não vamos considerar como “prisão”, quando caídos naquela emboscada no Oio, em que, durante 3h40, não podíamos levantar cabeça. Essa sim, bem mais perigosa.
E, já agora, por que não lembrar os meus camaradas da CART 1689 que “viveram presos e soterrados” naqueles 38 dias de Gandembel, dos quais eu me safei por estar de férias?
Pois é por isso que, neste confinamento de voluntário à força, me vejo a cogitar/”covidar” com os meus botões. E passo a divagar.
Desde o dia 19 de Março que não saio à rua. Tinha abusado no último convívio do “Bando” de Combatentes (Op Sarrabulho, em Ponte de Lima) no dia 11, mas ainda saí duas vezes: uma ao ribeiro, para apanhar os agriões (que a mulher, depois, se recusou a colocar na mesa) e a outra quando jantámos, no dia 19, num restaurante dos camionistas, vindos de Coimbra a caminho de casa. Neste caso, em que comemos sós, com mais outra pessoa na sala, naquelas enormes instalações. Ficámos de tal maneira assustados, que fomos quase directos para a casa de banho exterior e mergulhámos até hoje no ninho renovado. Nos telefonemas recebidos dos familiares, recusámos dizer onde andávamos.
Desde então, estamos realmente em prisão. E por aquilo que se consta, há criminosos a viver melhor que nós, os inocentes. Isto, para não falar nos outros (os maiores) que nos gozam e que vão gozando à grande e à francesa.
E aqui no cativeiro, vamos experimentando uma nova vida. A minha Mulher, que sempre reinou no lar, mostra agora ainda mais o que vale (que remédio!), à beira daquele que, nas coisas da casa, nunca deixou brilhar. Valha-me o gozo desse proveito, que não devo desprezar.
Nesta situação, também gozo muito ao ver os filhos e netos a procurar-nos via Skype ou Whats App. Momentos inesquecíveis, cheios de amor, carinho e ternura. Relíquias de uma época insólita, para eles mais tarde recordarem.
Quase sempre na cama, tenho a TV ligada. Procuro ver mais as graças do que as desgraças. Mostro algum interesse pela evolução deste coronavírus e lamento em murmúrios o que vejo informar/divulgar. Não fora a curiosidade de saber o porquê daquelas aflições de autarcas do norte e o sucesso das poucas mortes na zona de Lisboa, eu consideraria que tudo marcha razoavelmente. E já com dois AVC, vou afligir-me, porquê?
Gostaria de ler. Ler aquilo que devia e o que gostaria de saber. Porém, a visibilidade não ajuda e o cansaço também. E é por isso que me limito a dormir o máximo, como se na guerra estivesse, ansioso que o tempo passasse. Vejo a TV, mas já não aguento a violência, mesmo que sejam heróis americanos a salvar o Mundo. Coisa que acontece umas 20 vezes por dia. Gosto de coisas mais leves, tipo “coboiadas” americanas, espanholas ou italianas. O enredo já pouco importa. Ligo mais à paisagem, à música e ao insólito. E vejo repetidamente aqueles “Artistas” que em miúdo tanto me entusiasmaram. Todos galãs ou vilões de se lhes tirar o chapéu. E elas, tão giras, tão pudicas e tão belas!
Apesar disso, uma grande diferença eu noto. Agora, vejo mais que a justiça era a lei da bala. Não aceito que os índios eram maus e que os pistoleiros eram heróis. Os índios, americanos genuínos porque originários daquela terra, ganharam o meu maior respeito e fico com pena deles. E deliro nos poucos filmes em que o índio se vinga (ah, grande Apache Charles Bronson!).
E tinha que aparecer aquela dupla Terence Hill mais o Bud Spencer, cujas histórias hilariantes nos levam ao Oeste Americano, às Caraíbas ou ao Brasil.
Foram dias e dias de relaxe e boa disposição. Até que me falharam as pilhas do comando da televisão. E o canal Fox Movies ficou-se para sempre. Não imaginam quantas vezes vi os filmes do Trinitá, dos Super Polícias e do Banana Joe. Foram dias e dias a gramar até… enjoar.
Foi então que influenciei a minha Mulher para furar o confinamento e ir ao supermercado buscar alguma coisa em falta e… se pudesse… trazer-me pilhas das mais pequenas, para o comando da televisão do quarto.
Ela veio de lá toda entusiasmada com aquilo que viu. Tantos eram os cuidados com a desinfecção, a disciplina e a limpeza, que lhe deram confiança para sair de casa mais duas vezes no mesmo dia.
Perdi eu a confiança no confinamento, fiquei fulo e desconfiado. Já não deixo minha Mulher aproximar-se e obrigo-a a usar luvas e máscara. Já lá vão três dias a viver desta maneira. Possivelmente, terei que quebrar esta medrosa teimosia.
Para terminar:
Nota 1: - Hoje, dia 16 de Abril de 2020, pelas 14h55, acabei de saber que o novo teste à Covid-19 feito a minha Mãe, acusou “negativo”. Ela foi internada no Hospital S. Sebastião, com a doença, no dia 30 de Março. Apesar dos seus 100 anos e, portanto, pertencer ao grupo de maior risco desta pandemia, melhorou, está bem, está a vencer o malvado!
Nota 2: - Perante tal graça divina, já chamei minha Mulher, pedi-lhe desculpa, mandei-a vir para a cama e já lhe dei o comando da televisão: - Olha, escolhe o programa que quiseres, mesmo que seja uma telenovela.
José Ferreira
(Silva da Cart 1689)
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Nota do editor
Último poste da série de 18 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20868: Boas Memórias da Minha Paz (José Ferreira da Silva) (7): Op. Confinamento, retrato do estado psicológico dos Bandalhos