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segunda-feira, 19 de maio de 2025

Guiné 61/74 - P26816: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (40): Quem não arrisca, não petisca

Guiné > Zona leste > Região de Bafatá  O Rio Geba... Estreito (do Xime para montante),  c. 1970, no tempo seco... O rio era navegável de Bissau até Bafatá!... Mas normalmente, as embarcações (civis, os " barcos- turras") iam até Bambadinca... As LDG ficavam pelo Xime, mas chegavam a Bambadinca, pelo menos até a 1968... Dois pontos vulneráveis do percurso eram a Ponta Varela (na margem esquerda do Rio, entre a Foz do Corubal/Ponta do Inglês e o Xime), e o Mato Cão (entre o Xime e Bambadinca, no troço serpenteante do Geba Estreito).

Guiné > Zona leste > Região de  Bafatá > Bambadinca >  Tasca do Zé Maria > Um dos nossos poucos luxos no mato... Os famosos lagostins do Rio Geba Estreito... Da direita para a esquerda, três camaradas da CCAÇ 12 (1969/71) : o Humberto Reis, o Tony Levezinho e o José António G. Rodrigues (já falecido).  A foto terá sido tirada por mim (LG).

Fotos do álbum do Humberto Reis, ex-fur mil op esp (CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

Fotos: © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Contos com mural ao fundo >  Quem não arrisca,  não petisca

por Luís Graça

No teu tempo de Guiné era raro comer-se peixe nas messes e ranchos da tropa. A não ser em conservas (cavala, atum, sardinha...). A indústria conserveira sempre se deu bem com as guerras. Depois da indústria de guerra, claro...

Peixe fresco ?!... Nem vê-lo. Peixe ?!...  Só se fosse alguma pescada congelada, chegada na véspera ou no próprio dia, vinda de Bissau, na avioneta, a DO-27.

 A maldita pescada marmota rançosa! ... A saber a fénico.

Sim, de vez em quando, recordavas tu, os "caixeiros" (como tu chamavas aos "intendentes", os homens da Intendência) lembravam-se dos desgraçados que passavam fome no mato, mandavam-lhes algumas caixas de "frescos" (ovos, legumes, fruta, congelados...). Nunca ou  raramente carne, a não ser frango de aviário. E muito menos peixe, com tanto mar e rio ali à volta de Bissau!...(E se havia peixe naqueles grandes rios ou braços de mar, do Cacheu ao Cacine, do rio Corubal ao rio Grande de Buba, sem esquecer o ubérrimo estuário do Geba, o rio Mansoa, e até o rio Undunduma, cujo destacamento era vital para a defesa da estrada Xime-Bambadinca!).

 Porca miséria!

Nunca ninguém se revoltava. Isso é que era surpreendente. Era mais fácil haver um levantamento de rancho num quartel da metrópole do que algures no mato, na Guiné. 

O soldado português aceitava estóica e resignadamente, não a "fome" (o que podia ser mal interpretado pela hierarquia militar, como um ato de indisciplina ou insubordinação e, para mais,  em tempo de guerra,  passível até de ser um crime de lesa-pátria) mas a pobreza franciscana das ementas dos vagomestres, tão coitados e pobres como nós.

− Fome, camarada ?!

− Sim, vais-me dizer que não!?

Nunca passaste fome, não senhor. Fome propriamente dita, não, graças a Deus. No rancho, havia sempre pão e vinho sobre a mesa... E mais a sopa e algum conduto, como na casa pobrezinha mas honrada dos teus pais.  

Nunca passaste fome, não, senhor,  desde que  houvesse pão e vinho e latas de conserva, salpicão  ou chouriços enviados de casa pelo correio,o SPM, o Serviço Postal Militar. Vinho ? De preferência,  cerveja... Mesmo que gastasses o "patacão" todo do mês em  "bazucas", a garrafa de cerveja de 0,6l.

Na mesma avioneta vinha o correio, que era tão ou mais sagrado que "o pão nosso de cada dia". Claro, que não faltassem a farinha e o fermento para o padeiro fazer o milagre da multiplicação do "casqueiro"...

-- Não sei o que seria de nós sem casqueiro nem correio!

O pão e as notícias, molhadas e  quentes, da longínqua terra natal (estamos a falar de 4 mil km de distância, cinco dias de viagem de barco, 3 horas e tal de avião), ajudavam a suportar melhor o pesadelo daqueles dias e noites sem fim.

− Pesadelo ?!...

− Podes crer!... Prisão, desterro, sem culpa formada. 

 Culpa ?!... Só se fosse por seres filho de pais portugueses...

Ao fim daqueles meses todos em que se reforçaram os laços de camaradagem,  havia já um certo espírito de corpo que te impedia de seres do "contra"...

− Do contra ?! 

− Pior: dissolvente!... Mais do que subversivo...

O pide de Bafatá adorava o termo. Subversivo era o turra, dissolvente era  a tropa que o não combatia e aniquilava, que acampava no mato, que não acreditava na vitória...  Deixava depois  no ar a insinuação de que o Spínola e a sua "entourage"  (o pide era filho de "imigras" e fluente em francês ) estavam a criar um clima "dissolvente" no seio das Forças Armadas e da população da província, suscetível de criar brechas na muralha da coesão do "todo nacional". Sobretudo com essa mania da "psico"...

 Qual psico, qual carapuça! ... Então um tipo,  investido de autoridade, um cipaio, um chefe de posto, um administrador de circunscrição, um agente da Polícia Internacional e Defesa do Estado, como eu, já não podia dar um tabefe num preto, "turra",  sem que o gajo ou um primo dele  não fosse logo a correr a Bissau fazer queixinhas ao Caco Baldé ?!...

Pois claro, "para uma Guiné melhor"!... Que para pior já bastava assim!... 

Encontraste-o ocasionalmente no café do Teófilo... Duas vezes ou três vezes,  se tanto...Não parecia ter sentido de humor... E, se o tivesse, nunca poderia ter sido pide...De qualquer modo, confessas, não lhe deste grande troco, e detestavas ver alguns dos teus amigos a "acamaradar" com ele...  Intrigava-te vê-lo ali, no café de um homem que se dizia ter sido desterrado no final dos 20 por atentar contra a segurança do Estado...

A primeira vez que o viste, tinha levado porrada num rusga noturna, lá no bairro da Rocha, em Bafatá...Mas ficaste sem saber por que é que um gajo (que ele disse que era "turra" ou "suspeito") lhe dera uma valente dentada no nariz ou numa orelha...

Mas voltando ao "casqueiro nosso de cada dia"..

− Os gajos do PAIGC − ironizava o "ranger" − podiam combater de barriga vazia (ou com um punhado de arroz cozido no bucho)... Mas não o Zé Soldado, o  "tuga", que antes de sair para o mato,  aí às três ou quatro da madrugada, já levava no bucho meio "casqueiro",  a sair, quente,  do forno,  com  marmelada,  e uma meia de leite (em pó) ou uma caneca de café de chicória.

E lançavas tu mais lenha para a fogueira:

− ...Marmelada que fazia uma sede do caraças!... Claro que, ao fim da manhã, já tinha despejado os dois cantis de água que levava à cintura... E num deles já tinha mijado... Era o cantil SOS...Mais valia, numa aflição, o próprio mijo com desinfetante do que a água preta da bolanha (sabe-se lá até se não estaria envenenada!)... 

O "ranger" era um dos teus companheiros de mesa. Acabaras de o conhecer, num dos almoços-convívios da Tabanca da Linha. Associava-se, assim, à conversa que tu e a malta à tua volta haviam  entabulado sobre o sempre presente e momentoso problema dos comes e bebes da tropa no TO da Guiné.

Não gostaste da maneira, um bocado desabrida e sobretudo despropositada,  como se referia à "tropa-macaca" que estaria mal preparada para "vencer e convencer" naquele difícil teatro de operações... Mas tinhas que lhe dar razão: aquela guerra deveria ter sido feita pela "elite da tropa,  rangers, comandos e parafusos" ( sic).

Este encontro deve ter ocorrido por volta de 2014, ainda o saudoso "régulo" Jorge Rosales era vivo... Confessou-te, o "ranger", que tinha sido um dos primeiros do curso de operações especiais em Lamego. Mas de nada lhe valera a alta classificação que tirara: acabou por ir  "parar com os cornos" (sic) à "maldita Guiné das bolanhas, dos mosquitos, do Cabral e da Maria Turra"...

Devia usar a mesma linguagem desbragada de há 40 e tal anos atrás. Tu e ele não se conheceram lá,   ele era "mais antigo, o que na tropa era um posto". Do tempo do Schulz.  Mas ambos, tu e ele,  tinham passado pelo Leste. 

O "ranger" era de uma companhia açoriana ou madeirense (não fixaste esse pormenor),  com alguns graduados continentais, como ele. E também eram pau para toda a obra, aqueles desgraçados dos ilhéus. Madeirenses e  açorianos sempre foram maltratados pelos senhores da guerra, que eram continentais...

O "petisco", nessa quinta feira, ao almoço, nesse já longínquo ano de 2014,  era magnífico, um regalo para os olhos, o palato e até o olfato: um divinal arroz de marisco, com generosa presença de lavagante... E tudo, vinho e sobremesa incluídos, pela módica quantia de 15 euros... Estava-se ainda em tempo de crise, mas ela, como sempre,  não era para todos. Como acontece, afinal,  em todas as crises.  

Ainda te lembravas do  nome do restaurante (e casa de chá!), "Oitavos", ali na estrada do Guincho, com uma vista privilegiada sobre o Atlântico. Na altura, só abria para grupos e em ocasiões especiais. O "régulo" Rosales, antigo salesiano, "menino da Linha", tinha um bom capital de relações sociais... E lá descobria estes "retiros fora de portas"... Aliás, como ele amava a vida e prezava a camaradagem, o Rosales!

À boa maneira portuguesa, tu, o "ranger" e os demais convivas, à volta da mesa, continuaram a comer e a falar de comida. Na tropa, na Guiné. E da fome e da sede, mais do que da guerra propriamente dita. 

Infelizmente não havia no grupo nenhum antigo vagomestre que pudesse falar, com melhor conhecimento de causa, dos problemas de abastecimento e de alimentação durante a guerra. 

Mas vieram ao de cima algumas recordações, "umas boas, outras más", desse tempo e dos lugares de que tu e ele  ainda se lembravam.  

  Eh, pá, o peixe que havia era da bolanha!  − gritou alguém do outro lado da mesa. − A gente chamava-lhe o peixe nharro. E até nem era mau.

Lembravas-te, sim, de algum peixe que os teus soldados apanhavam (muitas vezes com granadas deso, ofensivas) e que eram parecidos com o bardo, de pele escamuda, verde-escura, e que achavas repulsivos, habituado à sardinha, ao chicharro, ao robalo do mar do Cerro, a sul das Berlengas.  

E, no início, confessas,  nem sabias distinguir bem onde começava e acabava uma bolanhas  (também nunca tinhas visto  um campo de arroz na tua terra, só searas de trigo!), tal o emaranhado de rios, rias, riachos, braços de mar, tarrafos, mangais, palmeirais,  trilhos, picadas...

Achavas que conhecias bem o rio Geba, Estreito, o Xaianga, entre o Xime e e Bafatá, em especial na zona de Bambadinca, onde havia um porto fluvial. Mas não conhecias. Patrulhaste as duas margens lodosas, e de contornos indefinidos. Montaste segurança à navegação fluvial e emboscadas aos "turras" na margem direita, perto do Mato Cão. Às horas mais desencontradas...que as marés eram quem regulava  o trânsito fluvial.

No tempo das chuvas, o Geba e os seus afluentes eram uma massa pastosa, barrenta,  outrora infestada de crocodilos (garantiam-te os teus soldados fulas, os mais velhos, o que em África queria dizer  mais sábios e respeitados).

Quando "cambavas" o rio, eles não se viam, os "alfaiates". Mas tu tinhas muito respeitinho  por  aquelas águas onde quem lá caísse, nunca mais voltava à superfície, jurava o barqueiro da canoa comprida  que levava dez homens armados, uma secção, de cada vez para a bolanha de Finete. Mas ai deles  se fossem apanhados pelo macaréu... 

O macaréu fazia-se anunciar ao longe,   pelo ruído, o tropel de uma manada de cavalos, e sobretudo pela forma, a de uma onda com o aspecto de rolo compressor... Era como um pequeno tsunami. 

Já no caso do "barco-turra",  que tinha "as quotas em dia pagas no cais do Pijiguiti ao Partido", sempre achaste  estranho que o "patrão" mandasse apitar três vezes no regresso a Bissau, em noite clara de luar e em plena maré cheia... Claro que era um sinal de código.  Mas às vezes o "barco- turra" lá calhava ser atacado, por engano ou não, na Ponta Varela ou no Mato Cão...  Dizia a voz do povo que, afinal,  "não tinha as quotas em dia"... Ou então era o comandante de bigrupo,  emboscado numa das margens, que estava bêbado....

Não eras, tens de reconhecer, um grande aventureiro, nunca darias á  Pátria um bom explorador  como o Serpa Pinto ou o Roberto Ivens. Muito menos um bom soldado como o Mouzinho de Albuquerque. E seguramente não querias ser um herói... Menos ainda um herói morto. Aquela guerra, a Guiné, a Casa Gouveia, o BNU, não, não valiam o teu cadáver.

− Devias ter passado por Penude... Uma escola de virtudes!... 

− Penude ?!...

− Centro de Operações Especiais, nos arredores de Lamego!...Mas aquilo era só para gajos de barba rija!...

Aparte as provocações do "ranger", também pensavas que sim, nem tu nem ninguém da "tropa-macaca" vinha bem preparado para aquele terreno, aquele clima, aquela guerra... E muito menos para passar fome e sede.

E foste buscar o exemplo de Nhabijões onde estiveste destacado quinze dias. Paradigmático. A população, sem ser abertamente hostil à nossa tropa, tinha  "parentes no mato".  E recebia-os em casa, como tu receberias o teu pai, a tua mãe, os teus irmãos, os teus tios e primos, se estivesses no lugar deles... Mesmo correndo riscos... 

Foi construído um grande reordenamento com 300 moranças,  cercada de arame farpado. Um dos maiores, senão o maior da Guiné. Com  escola, posto sanitário, lavadouros, fontanário, mercado, mesquita ... No Vietname, chamavam-lhe, em 1962,  "aldeias estratégicas"... Falharam. Na Spinolândia, foram um sucesso!... E um desaire para o PAIGC, tens de concordar.

Todavia, era  completamente impossível, técnica, humana e militarmente falando, controlar aqueles milhares de almas,  vigiar as saídas e as entradas da população que ia trabalhar na bolanhas, ou caçar ou pescar ou apanhar  lenha. 

Os idiotas do batalhão, lá nos mapas deles, puseram um pionés de cabeça  cor de rosa, querendo dizer que era "população (pop) sob duplo controlo"... O Zé Soldado não entendia patavina  daquela conversa do "mandjor":

− Quer-se então dizer que de dia a pop é nossa, e à noite é deles ?!...

O "tuga" podia ser básico mas não era estúpido:

− Olhavas para um balanta, e depois ?! Eram todos turras!...

− ... E tresandavam a vinho de palma ainda a fermentar no garrafão!... Só o cheiro dava logo volta às tripas de um gajo!− sentenciava o "ranger",  categórico.

− Não sejas tão primário,  para não dizer racista... Havia balantas entre as nossas tropas e alguns, coitados, pagaram bem caro, com a vida, a sua colaboração com os "tugas"!

− Pois é, apostaram no cavalo errado, a guerra é uma lotaria...

− Estás a ser cruel!...

− Além disso, andavas fardado e armado, como eu, éramos todos iguais, tropa do exército português... Quem vê fardas, não vê corações...

− ... exército colonial-fascista, ainda por cima!

− Fica sabendo que nunca ouvi isso da boca daquela gente... Só da sacana da "Maria Turra"!...De qualquer modo, nunca conheci esse tal reordenamento de Nhabijões 
− esclareceu o "ranger" (que, segundo te disse, tinha sido promotor imobiliário no Algarve, depois da tropa).

Tu, no escasso tempo em lá estiveste, em Nhabijões, nunca conseguiste ganhar a confiança daqueles balantas e alguns mandingas para poder observá-los, acompanhá-los no seu quotidiano, aprender alguns termos da sua língua...

−  Quais tempos livres ?! Estavas vinte e quatro  horas de serviço, sete dias por semana!.. Não havia folgas no destacamento...

E depois aquilo era um depósito de básicos,  "cacimbados", malucos, convalescentes,  "desenfiados", aleijados ou de gajos com porradas que ninguém queria ter nos seus pelotões. 

Era a escória  do batalhão que te mandavam de reforço ao teu grupo de combate,  já de si desfalcadíssimo. O alferes ia dormir em cama fofa em Bambadinca, tu aguentava os cavalos.  

 O que farias com aquela maltosa toda, que mal sabia manejar uma arma, em caso de ataque ?!

Era uma força  simbólica que estava ali a guardar a bandeira nacional! ... Guardar ?!...

O major, que temia  a ira do Spínola (e Nhabijões era uma das suas "meninas bonitas"), resumia a questão da soberania nacional à bandeira verde-rubra das quinas a flutuar por cima da cabeça dura dos balantas... E daqueles pobres diabos,  que defendiam o "fortim'" (como outrora defenderiam o "quadrado"...), à entrada do reordenamento, e que só pensavam no panelão que lhes traziam  nesse dia, para o almoço:

− Será esparguete com cavala... ou cavala com esparguete ?

 − De resto, podíamos ser todos apanhados a mão, essa é que é essa!... 

Dormiam nos postos de sentinela ou então desatavam aos berros às tantas da noite porque tinham visto turras no arame farpado... 

Não havia luz elétrica... E o vento fazia  tilintar as garrafas de cerveja atadas em cachos no arame farpado... Ou às vezes eram os animais selvagens ou até os próprios cães da população que pregavam cagaços ao pessoal... Por razões de segurança também não havia campos de minas nos reordenamentos. Por isso era fácil os "gajos" entrarem por ali adentro, sorrateiros, armados...

 − Os "gajos"...?!

 − Sim, quem havia de ser ?!... Os "turras"!

 Obviamente que isso nunca aconteceria,  um ataque direto ao destacamento  que, de resto, mais parecia um daqueles fortes dos filmes do faroeste,  feitos com troncos de árvores que as buldózeres haviam arrancado nas terraplanagens... Enfim, o PAIGC não estava interessado  em que a população sofresse retaliações por parte das NT nem muito menos alienar o  indispensável apoio dos "seus balantas"...

− Nunca se atreveram, no meu tempo, a atacar ou flagelar o destacamento (que, de resto, era um alvo fácil)... Nem no dia de Natal nem no Ano Novo (estávamos de prevenção)...

Sim, é verdade, mas no dia 13 de janeiro de 1971, puseram-te duas valentes minas anticarro à saída do destacamento,  sabendo, pelas rotinas da malta,  que às 11h00, religiosamente,  iria lá passar o Unimog (o "burrinho") para  buscar a comida do almoço a Bambadinca!...

Dois presentes envenenados, um morto, uma porrada de feridos graves, duas viaturas destruídas, o piquete destroçado...

− Um ano e tal depois, o meu antigo  grupo de combate limpou o sebo ao Mário Mendes, um dos gajos que pôs as minas.

− Também era o nosso lema, "Cá se fazem, cá se pagam!" − arrematou o "ranger".

... A Guiné, vistas de cima, de avião, parecia um paraíso... Quando foste uma vez a Bissau, de avioneta,  ficaste deslumbrado, com todos aqueles braços de mar, rios, rias, canais, lalas, bolanhas, água, ouriques, florestas cerradas... Mas, não,  aquela não era a tua terra. Nem o verde dos teus pinhais, nem a areia branca das tuas praias.... E havia demasiadas armas espalhadas ao redor. E, seguramente, nenhuma delas estava em boas mãos.

Hoje tens pena de não podido circular livremente por Nhabijões e  e outras tabancas balantas em redor (como Mero, Santa Helena, Fá Balanta...) até à grande e bela bolanha de Samba Silate,  um símbolo trágico daquela guerra... Toda aquela população, que escapara ao cerco da tropa, acabará por fugir para o mato, nos anos de chumbo de 1963, diziam-te os teus soldados...

Do rio Geba, só te lembras de comer lagostins... Nunca te tinha passado pelo "estreito", o lagostim do rio, embora na tua terra houvesse bom marisco (lagosta, lavagante, santola, sapateira, navalheira,..., mesmo que a lagosta já fosse a 7$50, diretamente do pescador, no cais acostável de Paimogo ou do Porto das Barcas, e o tamboril se deitasse fora, por não ter valor comercial!)...

Era, em Bambadinca, na tasca do Zé Maria, um branco, comerciante, que cultivava algum mistério. O "alfero Cabral" gostava dele e dava-lhe corda. Passava sempre por lá para beber o último copo, e ganhar balanço  até Fá Mandinga...

Dizia-se que o Zé Maria "estava feito com os turras!"... Era a habitual suspeita dos militares em relação aos poucos comerciantes brancos que restavam no mato, e que precisavam, para sobreviver, tanto dos favores da tropa como do PAIGC.  

Nunca conseguiste ( nem sequer procurasse ) ganhar a confiança dele, mesmo sendo cliente da tasca, mistura de loja e bar com ar decadente, junto ao porto fluvial de Bambadinca. Claro que o tipo fazia-se pagar bem pelo petisco, 50 pesos o quilo o lagostim cozido (com muito piripiri), fora a cerveja. Nunca soubeste quem era a cozinheira ou o cozinheiro.  E muito menos quantos pesos pagava ele ao mariscador...

A população do mato  "cambava" o rio Geba, quase nas barbas da tropa,   e ia ao Zé Maria abastecer-se : tabaco, redes mosquiteiras, panos, petróleo, fósforos, sal, cachaça... 

Também vendia vacas, ao que parece... À tropa. 

Mais acima,  a meia encosta, perto do morro onde ficava o quartel e posto administrativo de Bambadinca (a escola, a capela, o depósito de água, a missão católica, etc.) havia a loja do Rendeiro que era, soubeste mais tarde, cinquenta anos depois, "informador da Pide". 

Tinha a cabeça a prémio, por traição ao PAIGC. Fizera-se passar, no início da guerra, em setembro de 1963, por simpatizante do partido de Amílcar Cabral... E escrevera uma carta ao "senhor engenheiro" a jurar fidelidade e lealdade... Afinal, era casado com uma guineense. E a sua terra era a dos seus filhos... Escolhas difíceis, quando se é apanhado por uma guerra.

 Quiseram-no levar a Conacri para o "beija-mão"... Acabou por fintá-los, em Dacar... E dar preciosas informações à tropa, no regresso, m Bissau... Nunca lhe perdoaram o embuste de se fazer passar por simpatizante do Partido, só para salvar a pele... Teve que trocar Porto Gole por Bambadinca, por razões de segurança... Tê-lo-iam fuzilado, sem apelo nem agravo, se o voltassem a agarrar...

Era casado com uma mandinga, a Auá,  e tinha um rancho de filhos.

Em suma, ambos jogavam com um pau de dois bicos, tanto o Zé Maria como o Rendeiro. Havia ainda um terceiro branco, ou cabo-verdiano, que pertencia à Casa Gouveia... Ia à missa, e irá escutar e anotar, mais tarde, as famigeradas homilías do capelão Puim... 

Aqueles homens estavam entalados, não tinham grande margem de manobra e sabiam que nunca teriam futuro com o fim da guerra...

Em todas as guerras, os comerciantes procuram tirar o melhor partido da situação-limite que é a guerra... Afinal, a tropa precisa de comer...

Não te lembras de ter comido peixe na casa do Rendeiro. A galinha ou o caldo de chabéu era, invariavelmnete, o melhor petisco  que ele podia oferecer a alguns dos seus convidados, os "milicianos" de Bambadinca...

Não sabes se alguma vez convidou o comando do Batalhão  de Bambadinca, o tenente-coronel e os dois majores, além dos capitães... É muito pouco ou nada provável. Sentia-se mais à vontade com "os senhores alferes e furriéis" da companhia africana, que a si próprios se intitulavam "nharros de 1ª classe" (sendo os seus soldados,  guineenses, de 2ª classe)... E era a companhia  que podia defender Bambadinca em caso de ataque. E salvar a sua casa e a sua família. Isto, se não andasse na "porrada", no mato.  

No intervalo, entre as frequentes saídas para o mato, os soldados viviam nas tabancas em redor, com as suas famílias, a de cima e a de baixo, a G3 e as cartucheiras e as granadas de mão sempre à mão de semear... Os graduados dormiam (às vezes) no quartel, sobranceiro á  grande bolanha de Bambadinca (em mandinga, a "cova do lagarto").

O Rendeiro tinha uma ampla morança, com telhado de chapa de zinco, logradouro e estaleiro de materiais, mesmo junto ao arame farpado. Não estava  livre de ser surpreendido à noite pelos "turras", em caso de ataque.  A mãe dos seus filhos (e também a belíssima cozinheira do caldo de chabéu) nunca te fora apresentada.  Nem a ti nem a ninguém.

Era um homem nervoso, seco de carnes, magro de cara e corpo, marcado pela malária, e "cafrealizado", que se enterrara naquelas terra palúdicas  muito jovem, com 17 anos, fugindo da miséria da sua terra, ali para as bandas da ria de Aveiro... Tinha uma camioneta a cair aos bocados que era alugada  de vez em quando à tropa  para fazer colunas logísticas a Mansambo, Xitole, Saltinho, Galomaro... Ele e os demais comerciantes da região viviam também destes "biscates" da tropa... Sempre entrava em casa mais algum patacão.

Dizem que terá tido "manga de problemas" a seguir ao 25 de Abril, e que inclusive teria estado  na iminência de ser linchado... Terá sido a tropa que o salvou... 

− Quem não arrisca, não petisca... − comentou o "ranger",  já no final da  conversa.

Como querendo dizer: a vida não é de quem a perde, é de quem  arrisca,  ou sabe arriscar, pondo-a em jogo... Como na lerpa. E "quem não arrisca, menino, não petisca"... 

Como o pobre armador da tua terra, que foi nove vezes à Mauritânia pescar goraz... Fez uma fortuna... Levava batatas para os sarauís da Frente Polisário. Havia um acordo tácito. Em troca, deixavam-no pescar mesmo junto à costa... Na 10ª viagem, quis encher o barco até ao teto, era "uma pescaria só para os camaradas da companha", "iam ficar todos ricos, com o melhor goraz do mundo". E depois, arrumava as botas e vendia o barco...

Arriscou, pela 10ª vez... Uma "roquetada" atingiu a casa das máquinas, houve uma morto (o motorista) e vários feridos... Teve de cortar as redes e zarpar com a máxima velocidade... Conseguiu chegar a Peniche, depois de socorrido no Algarve. Nunca mais foi pescador nem armador,  muito menos homem. Um dia contou-te a sua história, trágica... Estava bêbedo que nem um cacho... Uma ruina humana.

E tu lembravas-te, também,  de outros armadores, da tua terra, ribeirinha, fronteira ao Mar do Cerro, e que noutros mares, os do Norte de África,  trocaram o peixe pela droga... E desgraçaram-se. A eles, aos seus filhos, à sua comunidade. 

E lembravas-te, ainda, do sacana do  "Vermelhinha", que na Guiné esfolava os "incautos", no dia de "São Patacão", com  a lenga-lenga do "ganha esta, perda esta, ganha esta"...  E a malta ficava com os olhos em bico e sem... "patacão". Também esteve à beira de levar um enxerto de porrada, quando alguém descobriu que ele fazia batota com as cartas...

− Quem não arrisca, não petisca... − voltou  a dizer-te o "ranger", no último aceno de despedida, já à saída, à porta do restaurante.

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Nota do editor:

Úlltimo poste da série > 17 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26696: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (39): a Páscoa de antigamente

domingo, 10 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26135: As nossas geografias emocionais (32): Bafatá, 1959, ano de cheias, fazendo jus ao nome da vila ("o rio vai cheio") (Leopoldo Correia, ex-fur mil, CART 564, Nhacra, Quinhamel, Binar, Teixeira Pinto, Encheia e Mansoa, 1963/65)

 

Foto nº 1 > Guiné > Região de Bafatá > Bafatá > 1959 > O jardim local, na margem direita do rio Geba Estreito. Ao centro, a estátua de Oliveira Muzanty.


Foto nº 2 > Guiné > Região de Bafatá > Bafatá > 1959 > Cheias (1): Uma das ruas da zona ribeirinha inundadas; à esquerda, o comerciante Carlos Marques da Silva


Foto nº 3 > Guiné > Região de Bafatá > Bafatá > 1959 > Cheias (2):  uma loja com um passadiço improvisado


Foto nº 4 > Guiné > Região de Bafatá > Bafatá > 1959 > Cheias (3):  o mercado que já existia nos 30, de arquitetura revivalista



1. Ainda não se falava de "alterações climáticas", mas já o rio Geba Estreito (ou Xaianga) transbordava, periodicamente, as suas margens, inundando a baixa da vila de Bafatá (próspera, a partir dos anos 30/40, graças ao "ciclo da mancarra")...


As fotos chegaram, há uns largos anos atrás, ao nosso blogue, pela mão do nosso tabanqueiro Leopoldo Correia (ex-fur mil, CART 564, Nhacra, Quinhamel, Binar, Teixeira Pinto, Encheia e Mansoa, 1963/65) (foto à esquerda).

Estas e outras fotos de Bafatá, de 1959, foram tiradas por um familiar seu, ligado ao comércio local (Casa Marques Silva), casado com uma senhora libanesa, filha do senhor Faraha Henen.

Mais tarde, falando com o Leopoldo Correia, ao telefone, vim a descobrir que afinal o Mundo é Pequeno e a Nossa Tabanca... é Grande!...

De facto:

(i) era um homem das sete partidas: depois da "peluda", viveu em Angola, trabalhou na Diamang;

(ii) voltou para o "Puto', trabalhou na EDP, por exemplo na Central Termoelétrica do Barreiro onde fez amizade com amigos e conterrâneos meus, o Carlos e o Hugo Furtado (que andou comigo na escola primária);

(iii) na Guiné, também conheceu, entre outros, o Fernando Rendeiro, comerciante de Bambadinca a cuja casa fui algumas vezes almoçar, no tempo em que lá estive (julho de 69/março de 71)...

(iv) falou-me da viúva do Rendeiro, mandinga, Auá Seid (entretanto já falecida) e dos filhos (que  o comerciante de Bambadinca, natural da Murtosa,  nunca nos mostrava mas de quem falava com tanto carinho e orgulho: tinha uma filha a tirar direito, em Coimbra)...

(v) vivia em Águas Santas, Maia;

(vi) não tenho, há muito, notícias dele.

As fotos revelam um drama que se tem agravado com o tempo: as cheias do rio Geba (ou Xaianga).

A antiga cidade colonial de Bafatá (topónimo que vem do mandinga, "baa faata", "o rio vai cheio), infelizmente ainda não conseguiu ultrapassar a decadência urbana,demográfica e económica, que tem a idade da independència do país. (**)

O fim do "ciclo da mancarra", " a semente do diabo" (imposta pelos "colonialistas", e de queo grupo CUF, através da Casa Gouveia, foi o grande beneficiário)  foi também, material e  simbolicamente, o fim da "princesa do Geba". Em contrapartida, o "ciclo do caju", imposto pela nova economia planificada de Luís Cabral, não produziu a riqueza que se esperava, para a grande maioria dos guineenses, em geral, e os bafatenses, em particular, que criaram novas tabancas  ao longo do eixo rodoviário do leste, que liga Bambadinca a Nova Lamego. 

No nosso tempo havia as tabancas da Rocha,da Ponte Nova, da Nema... Há muitas mais... Mas continua a haver inundações no Vale de Bafatá, como este ano, provocando grandes estragos, em culturas (arroz de bolanhas de água doce) e em habitações, ao longo do curso do rio até Bambadinca,
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Notas do editor:

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26126: Historiografia da presença portuguesa em África (451): o tecido económico da província em 1951, visto através dos anúncios publicados no suplemento, "dedicado ao Ultramar Português" (218 pp., no total), do "Diário Popular", de 20/10/1961



Barbosas & Cia: Import-export... com sede em Bissau. Representava sobretudo duas marcas norte-americanas, a General Eletric e a Studebaker


Ed. Guedes Lda era outro peso pesado do comércio local, já presente em Bolama quando esta era a capital... Tinha sucursais pelo território... "Cetió";  mais que provável erro tipográfico, deve ler-se Catió... Tchequal também deve ser gralha, é topónimo que não existe. Banta El deve ser Madina Bantael, entre Sonaco e  Sare Bacar (esta já na fronteira  com o  Senegal)... Chegava a Orango, a ilha do arquipélago dos Bijagós mas afastada do continente,

A nossa já conhecida  empresa francesa, a NOSOCO, onde trabalhou o nosso camarada Mário Dias... Tinha instalações em Bissau, Bolama,  Bafatá, Binta, Bissorã e Olossato. Tinha o exclusivo, para a Guiné, de marcas prestigiadas como a Shell, Phillips,  Electrolux, Frigelux, Dunlop...


SCOA: outra empresa de import-export, de origgm francesa, com sucursais em Bafatá, Bissorã, Bolama, Sonaco e Farim... Representava uma série de marcas (camiões, automovéis, eletrodomésticos, motores marítimos, cerveja alemã) e também companhias de navegação... Curioso: não estava representada na capital...



Enpresa de import-export e comércio geral, estava ligada ao BNU (Banco Nacional Ultramarino). e cobria praticamente todo o território, com  exceção do Nordeste (Gabu); Bafatá, Sonaco, Contuboel, Teixeira Pinto, Bissorã, Bolama, Bijagós, Chugué, Cabochanque,  Cadique, Cafine, Salancaur, Cabedu, Bedanda, Cacine, Brandão (seria na ilha do Como, a casa Brandão ?)...


O Fouad Faur, sírio-libanês, tinha sede em Bafatá, com "feitorias em Piche, Paunca, Bajocunda ("Bajicunda") e Bambadinca


Outro comerciante de origem sírio-libanesa, com sucursais na África Ocidental Francesa (Dacar e Coldá) e na Guiné Portuguesa (Mansoa, Mansabá, Xime, Bambadinca, Bafatá, Contuboel, Sonaco, Nova Lamego, Pecixe, Buba, Campeane, Cacine, Gadamael, Catió)



Foi a partir deste anúncio de 1956, que descobrimos o acrónimo ASCO (endereço telegráfico da empresa) (*)


Outro sírio-libanês, Mamud Eluar & Cia., com "sucursais em toda a província da Guiné"... Os comerciantes, de origtem sírio-libanesa, não eram mais do que uma centena na 1ª metade da década de 1920. O José Gardete Correia uma empresa de uma família prestigiada, com estabelecimentos em Bissorã. Olossato e Encheia.




Francisco Paulo, uma empresa em nome inmdividual, com estabelecimento em Bafatá e "feitorias" em  Xitole ("Chitoli"), Sara (Gabu), Baca (Sarde Bacar ?), Paunca, Bajocunda ("Bajicunda"), Cabuca ("Caboca"), Boé ("Mandina do Boé).  O Fausto da Silva Teixeira é o único industrial que aparece nesta amostra, e é já nosso conhecido (foi deportado.


João Batista Pinheiro & Irmão: com sede em Bafatá, e sucursais em Bussau, Buruntuna, Bajicunda (sic), Pirada, Paunca, Piche e... Sama  (deve ser é Sara, Gabú, presume-ser que seja gralha tipográfica, não há povoação com esse nome). O único anúncio da área da restauração e hotelaria é do Pensão Restaurante Bafatá, de Judite Teixeira Quaresma da Costa.



A OMES, com um grande currículo de obras de engenharia na Metrópole e  em Angola, tinha na Guiné, em 1951, duas obras em fase de conclusão: a ponte-cais de Bissau e a ponte de Ensalma


1. Estes anúncios refletem inegavelmente  o clima de relativa paz e prosperidade económica que a província começou a viver, no pós II Guerra Mundial,  com o governador Sarmento Rodrigues (1945-1950).

Curi0samente, em 1951, só há uma anúncio de um industrial (com exceção da OMES, que era uma empresa de engenharia e obras públicas, com sede em Lisboa). Referimo-nos ao madeireiro e antigo deportado Fausto Teixeira da Silva.

Ainda estamos longe dos trágicos acontecimentos de Angola, no princípio de 1961, que não deixaram de ter repercussões nas outros territórios ultramarinos protugueses,. incluindo a Guiné: loigo a partir de 1961/62, parte dos comerciantes locais  (cabo-verdianos, metropolitanos e sírio-libaneses) acabaram  por se retirar das zonas mais isoladas do interior, e fixaram-se em Bissau ou regressaram  mesmo à metrópole...

Os sírio-libaneses, que se começaram a radicar no território a partir de 1910, alguns  acabaram por ligar-se, pelo casamento, a famílias portuguesas... Inicialmente não eram, porém, bem vistos pela concorrência nem até pelas autoridades locais, Por outro lado, em 1974, todos já teriam a nacionalidade portuguesa...Mas parte desta comunidade optou por ficar no novo país lusófono, a Guiné-Bissau.

Estes anúncios acima publicados fazem parte de um suplemento, "dedicado ao ultramar portuguès", que integrou a edição do "Diário Popular", de 20 de outubro de 1951. São em menor número dos que seráo  publicados, mais tarde,  na revista "Turismo", edição de janeiro/fevereiro de 1956 )(ano XVIII, 2ª série, nº 2,  número temático dedicado à Guiné), e reproduzdos em  tempos no nosso blogue (em dez postes, com material fornecido pelo nosso saud0so camarada Mário Vasconcelosl, 1045-2'17) (**)

Na amostra de 1951, verificamos que  todos os anunciantes  se dedicavam ao "comércio geral: compra e venda de produtos da província" e alguns ao "!import-export#", a começar pelas empresas francesas, a NOSOCO e a SCOA... Mas também as portuguesas, Barbosas & Cia, Ed. Guedes Lda, Sociedade Comercial Ultramarina, SARL.

O que havia para exportar ? Muito pouco, alguns produtos agrícolas e matérias-primas: arroz, oleaginosas (amendoim, coconote, óleo de palma), e pouco mais...  E importava-se tudo, da cerveja às viaturas automóveis... Tal como hoje, agora na Guiné-Bissau (só que o amendoim foi substituído pelo caju.)

Alguns valores: em 1950, a colónia tinha exportado c. de 118 mil toneladas, e importado pouco mais de 128 mil... Os cinco produtos mais exportados eram  (com base nas médias anuais): 

  • o amendoim (61,0%), 
  • o coconote (26,6%), 
  • o arroz (4,1%), 
  • o óleo de palma (1,7%) 
  • e os couros (0,8%)...  

Por outro lado, na década de 40 (1941-1950), as importações passavam de 49 mil contos para 128 mil (um aumento de 260%). As exportações, por sua vez,  passavam, no mesmo período, de  65 mil para 118 mil contos (um aumento de 180%).

Em outubro de 1951 já se escrevia-se "província" e não "colónia", com a revogaçãpo do "Acto Colonial" e a revisão da Constituição (Lei nº 2048, de 11 de junho de 1951).   Mas a grafia dos topónimos ainda não era respeitada: vejam-se grafias como Bajicunda, Pitche, Contubo El,

Em suma, estes anúncios tem hoje algum interesse documental pelas inesperadas informações que nos trazem de gentes e de lugares que conhececmos e que depois de 1961 vão ser varridos pela guerra, oficial ou oficiosamente iniciada em  Tite, região de Quínara, em 23 de janeiro de 1963...

É interessante assinalar a ausência de uma grande casa como a  Gouveia  neste pequeno mostruário das "forças vivas" da província, cujo tecido económico parece ser  constituída por apenas pela Ultramarina, ligada ao BNU, duas empresas francesas de import-export, a SCOA e a NOSOCO, e sobretudo por pequenos comerciantes e empresários, de origem metropolitana, cabo-verdiana e sírio-libanesa. (***)
 
Esta edição do "Diário Popular", de 20 de outubro de 1951 (e não 1961, como vem escrito por lapso , na Hemeroteca Digital de Lisboa / Câmara Municipal de Lisboa, a quem agradecemos a cortesia).  É uma raridade bibliográfica: o suplemento dedicado ao Ultramar tem 218 páginas (22 dedicadas à Guiné, pp. 45-66).  Disponível  aqui em formato digital. 

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terça-feira, 5 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26118: As nossas geografias emocionais (29): A antiga Nova Lamego ou Gabu Sara, em set 67/fev 68, ao tempo do Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, CCS/BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69)



Foto nº 1 > Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego > CCS/BCAÇ 1933 (1967/69) >  O ex-alf mil SAM, junto a uma placa com as distâncias quilométricas, a partior de Gabu Sara: a povoação mais longe era Buruntuma, na fronteira com a Guiné-Conacri (67 km), a nordeste. Bafatá, a sudoeste, ficava a 53 km. E Madina do Boé, a sul, distava 65 km.



Foto nº 2 > Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego > CCS/BCAÇ 1933 (1967/69) > 4º trimestre de 1967 > Edifício do comando e do Conselho Administrativo, de estilo colonial, tal como o encontrámos, com paliçadas e bidões de protecção, ruas esburacadas e em terra batida, com pó ou lama. Foto tirada a partir do edifício dos CTT,  na outra esquina. 
 

Foto nº 3  > Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego > CCS/BCAÇ 1933 (1967/69) > Dezembro de 1967 > Junto ao Posto de Transmissões, com a mascote deles, um pequeno macaco.cão. Foto tirada na porta de acesso do serviço de  tansmissões, do qual era responsável o meu amigo alferes Mesquita.  


Foto nº 4 > Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego > CCS/BCAÇ 1933 (1967/69) >  Janeiro de 1968  > O Posto de abastecimento da velhinha ‘SACOR’. Sendo uma vila  já importante [cidade só era Bissau, e mais tarde, já em 1970, Bafatá]  tinha a bomba de gasolina.  Devo ter abastecido lá a minha motorizada.


Foto nº 5 > Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego > CCS/BCAÇ 1933 (1967/69) > 4º trimestre de 1967 > >  Rua Principal da vila
 cheia de gente, mas sem carros. Verifica-se um movimento de pessoas locais e não só, com as suas bicicletas, a maioria a pé, com os seus bebés às costas, e não se vê aqui no centro, mulheres com os seios à mostra.


 Foto nº 6 > Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego > CCS/BCAÇ 1933 (1967/69) > Novembro de 1967 > Uma das ruas principais, com casas modernas de habitação. A rua ainda era de terra batida, mas notava-se já um movimento de construção nova, quer para residência das populações locais, ou para arrendamento como cheguei a ouvir.


Foto nº 7 > Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego > CCS/BCAÇ 1933 (1967/69) > Dezembro de 1967 >  A ‘Porta de Armas’ das instalações do Quartel. Junto ao local de entrada, uma legenda da BCAÇ 1856 (Nova Lamego, mar 1966/abr 67). Junto de mim (estava eu de oficial de dia), o alf mil inf Carneiro.


Foto nº 8  Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego > CCS/BCAÇ 1933 (1967/69) >  c. Janeiro / fevereiro de 1968  > A 
 cerimónia,  cheia de significado,  da continência à Bandeira Nacional. Trata-se do hastear da bandeira, pela manhã. O  arrear era às 18 horas, já quase noite. Em Bissau, por exemplo, toda a gente ficava em sentido, até na estrada principal, paravam os carros e saiam as pessoas com destino ou vindas de Bissau, a passar em Brá.



Foto nº 9 > Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego > CCS/BCAÇ 1933 (1967/69) >  Novembro de 1967 > Na entrada da Escola Primária do Gabu: uma visita à escola, na companhia do meu camarada o alf mil trms Mesquita.


Foto nº 10 > Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego > CCS/BCAÇ 1933 (1967/69) >  4º trimestre de 1967 > Um passeio de bicicleta, a um domingo, numa rua bem arranjada. São pequenas vivendas, moranças,  para a população local, numa época em que era preciso  criar melhores condições de vida e habitação.


Fot6o nº 11 > Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego > CCS/BCAÇ 1933 (1967/69) > Janeiro de 1968 >  Uma casa nova e moderna com cobertura de telha.  Sendo uma vila  em desenvolvimento, as casas faziam-se a bom ritmo.


Foto nº 12 > Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego > CCS/BCAÇ 1933 (1967/69) > Novembro de 1967 > Passeio de bicicleta com a malta, numa tarde de Domingo:

(i) eu, em segundo plano, apoiado na árvore;  

(ii) a seguir o furriel Carvalho – que ficou ferido num dedo e mais tarde passou a fazer parte da ADFA no Porto;

(iii) a seguir o furriel enfermeiro – Carlos Veiga, com camisa aos quadrados, e que foi mais tarde, já na peluda, médico, entretanto já falecido infelizmente;

(iv)  depois outro furriel que não me lembro do nome;

(v)  um homem à vil civil, talvez militar, guineense;

(vi)  sentado o alferes Figueiredo, natural da Guiné, onde tinha já mulher e filhos, bem como os pais e o seu negócio de família.

 Este edifício pertencia naturalmente às instalações da tropa, mas não estou certo.



Foto nº 13 > Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego > CCS/BCAÇ 1933 (1967/69) >  > Outubro de 1967 > Um passatempo nos primeiros tempos, a frequència do Clube do Gabu. Talvez numa tarde de domingo, no café do cllube,  com os meus amanuenses; os primeiros cabos Seixas (ao meio) e Horta (à esquerda), eu à direita.


Foto nº 14 > Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego > CCS/BCAÇ 1933 (1967/69) > Setembro / outubro de 1967 > A melhor casa comercial, a Casa Caeiro. Foto tirada do 1º andar das instalações do Conselho Administrativo do batalhão (que esteve ali, de setembro de 67 a fevereiro de 68(.



Foto nº 15 > Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego > CCS/BCAÇ 1933 (1967/69) >  21 Fevereiro de 68 > O comerciante, sr. Caeiro, e a sua filha, na sala de cinema do Gabu, nas últimas filas.   A família era portuguesa da metrópole. (Detalhe: a filha do sr.  Caeiro  ostenta, na foto, a capa de uma revista humorística brasileira, popular na época, "Vamos Rir!", de periodicidade mensal, da "Rádio Editora Lda.)


Foto nº 16 > Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego > CCS/BCAÇ 1933 (1967/69) >  4º trimestre de 1967 > 
Vista aérea da cidade e quartel de Nova Lamego.  O avião – Dakota – a fazer-se à pista à sua frente, não se conseguem ver bem os contornos nem da cidade nem das ruas, nem casas nem quartel, só a pista.


Fotos (e legendas): © Virgílio Teixeira (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. O nosso amigo e camarada Virgílio Teixeira, natural do Porto, a viver em Vila do Conde, refiormado (foi economista e gestor de empresas) é, dos nossos tabanqueiros,  quem tem mais fotos de Nova Lamego: cerca de 300. (*)

Esteve lá, em Nova Lamego,  entre setembro de 1967 e fevereiro de 1968. Era alf mil SAM,  presidente do Conselho Administrativo do comando do BCAÇ 1933. Esta unidade irá depois para São Domingos, na região do Cacheu, no final de fevereiro de 1968, sendo rendida pelo BCAÇ 2835,

Eis como descreve a Nova Lamego que conheceu no curto período de 5 meses (**):

(...) Também conhecida por Gabu, era uma vila de porte médio, sede de circunscrição, com vártios equipamentos sociais  correios, escola, cinema, igreja,  café, bar), algumas casas de comidas e bebidas, bem como, algumas lojas de comércio.

O concelho do Gabu era governado por um administrador de Circunscrição, com sede na vila,  e um administrador de posto com sede em Piche.

De todas as lojas, a que mais se destacava era a famosa Casa Caeiro, mesmo no centro da cidade. Ali vendia-se de tudo o que precisávamos e mais o que não era preciso para nada.

O Senhor Caeiro, dono da referida casa comercial, tinha uma bela filha, branca. (Fico na dúvida se a família era de origem libanesa, mas não, já me confirmaram que era portuguesa.)  

A Casa Caeiro localizava-se mesmo do outro lado da rua, frente a frente, onde estava o gabinete do Conselho Administrativo, e do respectivo Comando do Batalhão.

Era um edifício tipo colonial, e ficávamos no 1º andar desse edifício, e logo se poderia ver todo o andamento e movimento da loja, a Casa Caeiro, que não era nada pequena, e que era frequentada pelas variadas etnias locais.

De tal modo que era um passatempo, vir para o varandim, e ver as pessoas, locais e outras pessoas,  europeias ou não, com os seus negócios, e acima de tudo, quando a filha do Caeiro saia à rua, logo éramos  alertado por alguém com 'o grito do Ipiranga0, para irmos todos ver a beldade de mulher a sair à rua, com o seu corpo,  formoso para aquelas paragens.

Posto isto, a Casa Caeiro era visitada quase diariamente pela malta nem que fosse para comprar uma caixa de fósforos, ou um abano para o calor.

Era gente simpática, que enas se dedicava ao comércio, não alinhava nem de um lado nem de outro, eram independentes, o que já não era uma tarefa difícil numa zona de guerra, como aquela.

Quanto à filha do Caeiro, apenas falei com ela na loja, cruzávamo-nos na rua, no café ou no pequeno cinema semanal. Não sabia a vida que eles levavam fora das horas de serviço. (...)

(Seleção, revisão / fixação de texto, reedição e numeração das fotos: LG)

2. Em mail que os enviou, em 02/11/2024, 16:27,  o nosso camarada Virgílio Teixeira dá a seguinte lista  de "militares  que viveram com a família fora de Bissau", incluindo Nova Lamego (NL) e São Domingos (SD),  no seu tempo:

  • Capitão médico António Cortez, esteve com a mulher sempre, quer em NL, Bissau, e SD.
  • Capitão Cardoso, comandante da CCS, casou e foi com a noiva viver com o nosso Batalhão em SD, substituindo o antigo que foi para o QG de Bissau;
  • 2º Sargento do quadro, não sei o nome, que esteve em Nova Lamego no Pel Rec Daimler 1143;:
  • Alferes Figueiredo do Pelotão Informações e Operalões etc, que manteve a mulher por vários períodos não seguidos, quer em NL e SD.
  • Major Américo Correia, 2º Comandante do BCAÇ 1933, que esteve com a mulher em períodos curtos, em NL e SD.
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Notas do editor

(*) Último poste da série >4 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26115: As nossas geografias emocionais (28): Gabu, antiga Nova Lamego (Valdemar Queiroz, ex-fur mil at inf, CART 11, 1969/70)

(**) Vd. postes de: