Tuteio ou tratamento por tu
por Luís Graça
Aos nossos pais, nossos velhos, nossos camaradas...
Fiquei com pena da fräulein Tina Kramer, antropóloga,
entretanto entronizada como nossa tabanqueira,
a quem, chegada da austera e luterana Germânia,
lhe impuseram o tratamento por tu,
como se fora uma praxe de gangue.
Depois desta receção da Tabanca Grande,
ela deve ter ficado confusa, quiçá perturbada e até intimidada,
ao pensar que os camaradas da Guiné,
antigos combatentes,
são todos uma cambada de velhos malucos
a quem saltou a caixa dos pirolitos...
"Portugueses, pocos, pero locos"
(diria ela se fosse uma altiva castelhana,
daquelas que vinham casar com príncipes portugueses,
futuros donos de Portugal, dos Algarves e de além-mar em África,
na mira de acertar em cheio no jackpot)...
Tu próprio detestavas a palavra fräulein,
nunca trataste nenhuma colega ou amiga alemã por fräulein...
Podes a estar a ser injusto, mas tem, para ti,
uma conotação pejorativa, prussiana, militarista...
Como teria se tu a tratasses por menina Tina Kramer,
como nos bons velhos tempos do Portugal dos nossos pais e avós
Ao menos, tratemo-la, não por miss (cheira-te a babydoll)
mas por bajuda,
que é mais doce, mais crioulo, mais luso-tropical…
E tu Zé Belo, luso-lapão, agora "amaricano", sujeito a ser deportado pelo Tio Sam,
tuga da diáspora outrora na terra
onde o cidadão tratava o cidadão por tu....
bem sabes que não foi preciso fazermos uma revolução
à moda dos sovietes de Petrogrado,
nem do Grande Irmão Urso Sueco,
nem dos Camaradas (salvo seja!) do PAIGC, do MPLA ou da FRELIMO...
(Lembram-se das milhares de anedotas
que se contavam do camarada, salvo seja!, Machel,
e da sua mania de reeducar e recuperar o diabo branco colonialista
com o trabalho manual na machamba?!)...
Com o 25 de Abril,
a distância social e afetiva,
a começar na família, entre pais e filhos,
foi encurtada,
e o tratamento por tu impôs-se sem ser por decreto...
Com tanta naturalidade (ou só aparente ?)
que a gente nem sequer se questiona hoje
sobre o quando, o como e o porquê...
(Alguns questionam-se, e têm toda a liberdade para o fazer,
viva a liberdade que só pode ser livre.)
Em contrapartida, foi retomado
(ou nem sequer foi interrompido)
o tratamento, tradicional,
aparentemente mais distante e formal, de você,
de pais para filhos,
de esposa para esposo,
em certas famílias,
em certos meios sociais
(que tu não vais adjectivar,
porque não gostas de adjetivar os outros,
e fazes um esforço por respeitar todas as diferenças,
mesmo as mais difíceis de engolir).
O tecido social é isso mesmo,
é um pano, de trapos, de linho, de algodão, de serapilheira, de seda,
que se puxa conforme o frio, as pernas e as mãos,
as chagas, as misérias e as grandezas de cada um…
Os nossos filhos, pelo menos os teus, tratam-nos por tu,
mas tu tratavas os teus pais à moda antiga...
quando eles ainda eram vivos.
Ainda eras do tempo do respeitinho-que-era-muito-bonito!
Há algum mal nisso,
nessa coisa dos filhos tratarem agora os pais por tu ?
São apenas mudanças de paradigma
na convivialidade sociofamiliar,
diria o sociólogo de serviço, que já não há,
descartado pela mãe de todas as crises...
Tu, o Hélder Sousa, o Nelson Herbert,
o Luís Días, o Augusto Silva Santos,
foram capazes de tratar os vossos velhos,
o Luís Henriques (1920-2012),
o Ângelo Ferreira de Sousa (1921-2001),
o Armando Lopes (1920-2018),
o Porfírio Dias (1919-1988),
o Feliciano Delfim Santos (1922-1989),
veteranos da II Guerra Mundial,
expedicionários em Cabo Verde,
com a ternura da expressão
“Meu pai, meu velho, meu camarada”…
Liberdades ou libertinagens bloguísticas, dirão os sisudos dos críticos…
Daqui a uns anos
(esperas bem que não, cruzes canhoto!...)
voltaremos a tratar-nos com distância e reverência,
quiçá por Vossa Senhoria,
meu fidalgo, meu amo,
como no tempo da(s) outra(s) senhora(s)…
Tu sabes que o tratamento por tu,
republicano, económico, frugal, com duas letrinhas apenas,
o tratamento à romana na Tabanca Grande,
nem sempre era fácil nem natural, em 2004/2005,
quando começámos a blogar
para mais num país, ainda bastante estratificado,
em que se continuava a usar e a abusar dos títulos,
nomeadamente no Estado, nas empresas e demais organizações,
onde o trabalho era pouco e a distância grande,
tão grande como a rede clientelar:
senhor presidente, senhor doutor, senhor engenheiro, senhor prior...
Nunca foi nem o é ainda hoje:
tiveste a prova disso, há uns anos atrás,
numa das memoráveis quartas feiras
do almoço semanal da Tabanca de Matosinhos,
quando cumprimentaste um a um a meia centena de convivas...
Boa parte, já teus velhos conhecidos e amigos...
mas ainda havia gente que se retraía,
invocando a educação que tiveram,
o desconhecimento do outro,
a falta de intimidade e de convívio,
a distância física (sempre são 300 km entre Lisboa,
a capital do reino,
onde o Paço tem Terreiro,
e o Porto é a capital do trabalho,
onde o povo tem o São João e o alho porro)...
Quando impuseste (passe o termo...)
o tratamento por tu no blogue,
entre camaradas da Guiné,
quiseste deliberadamente fazer o curto-circuito
entre as distâncias militares, hierárquicas, do passado
e as eventuais distâncias sociais e profissionais, do presente...
Hoje consideras uma honra poder ser tratado por tu
por um camarada da Guiné,
independentemente do antigo posto,
da idade, da naturalidade, da nacionalidade, da cor da pele,
ou da atual posição na sociedade portuguesa...
E vice versa:
consideras um privilégio poder tratar por tu
um homem ou uma mulher
que aceitam os valores e as regras do jogo do nosso blogue...
Há sobretudo uma cumplicidade (saudável) entre nós,
que não seria possível se aqui, no blogue
e nos convívios da Tabanca Grande,
e das demais tabancas que entretanto foram aparecendo,
se a gente continuasse a tratar-se
como em casa, na escola, na tropa, no parlamento:
"Sua benção, meu pai, meu amo...
"Dá-me licença, vossa senhoria, meu capitão ?...
"Como vai, senhor Doutor ?...
"Vossa Excelência, senhor engenheiro,
permite-me que eu discorde da sua douta opinião ?
"O meu furriel é que sabe,
mas o vagomestre é que dormia com a mulher… do Baldé
quando o Baldé ia para a Ponte do Rio Udunduma...
"E, você, nosso instruendo, ó sua besta quadrada,
não sabe que a Pátria é hermafrodita,
é pai e mãe ?
"Ó meu tenente,
é mais do que isso, é Pátria, é Mátria, é Frátia!"...
Para que o tu continue a escrever-se com duas letrinhas apenas,
o tu de pai, de tuga, portuga, irmão, cidadão…
o tu de companheiro, camarada, amigo,
O tu do abraço, do alfabravo, do quebra-costelas,
o tu de Tango Uniform...
e não se torne o tu
de intumescência, da tumefacção,
da turbulência, da estupidez, da intolerância…
nestes dias de Charlie Romeo India Sierra Echo,
da CRISE que continua dentro de momentos...
© Luís Graça (2012). (**)
Revisto em 19/3/2025, dia do Pai...
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