Na região do Oeste, na Estremadura da minha infância, na altura uma das regiões do país com mais produção vitivinícola (até aos anos 60), vinham ranchos de homens e mulheres das Beiras, os "ratinhos" ou "bimbos", vindimar os milhares de hectares de vinha no tempo em que o vinho, dizia a propaganda nacional, dava de comer a um milhão de portugueses.... Era também um conde lho de muitas "caldeiras" (destilarias) onde se "queimava vinho" para a produção de aguardente vínica com destino à região demarcada do Douro.
Deslocavam-se os ranchos beirões, em grupos com um capataz, e dormiam nos palheiros, como animais... Depois, os homens foram para a guerra ou a salto para França, arrancaram-se as vinhas, mecanizou-se a agricultura, a vinha e o trigo deu lugar a outras culturas mais rentáveis, primeiro os pomares de pera rocha e depois as hortícolas, hoje as estufas, a batata, as abóboras, etc.
Mais tarde, a partir de 1975, descobri a região do vinho verde, e ainda a tempo de "apanhar em andamento o passado", a vinha de enforcado, as latadas, o milho, os engenhos (moinhos a água), as histórias do linho e das desfolhadas, as tradições comunitárias como as "serviçadas", a matança do porco, os carros de bois "a chiar pelos montes acima ou abaixo", a parceria agrícola e pecuária (formas pré-capitalistas de produção) , as feiras de gado, as romarias, os bailes mandados, etc.... E, pela primeira vez (e única) na minha vida também ajudei a pisar a uva (tinta) no lagar...
2. Estas e outras tradições, ligadas a uma economia agrícola fracamente monetarizada, e ainda em grande parte de autossubsistência (como aquela que se praticava até aos anos 50/60 em Entre Douro e Minho), hoje já se perderam, embora perdurando na memória dos "antigos"...
Voltei a encontrá-las (e a saboreá-las) no livro do António Carvalho, "Um caminho de quatro passos". Achei que havia similitudes entre Medas (Gondomar) e Candoz (Marco de Canaveses), afinal estamos a escassos 60 quilómetros de distância, na mesma região, a de Entre Douro e Minho. E até com algumas das recordações da minhas idas à aldeia dos meus avós e tios.
A primeira parte do livro (e nomeadamente a reconstituição do quotiano da vida rural em Medas, Gondomar, até aos anos 60 do séc. XX) tem inegável interesse documental (e até etnográfico).
E, mais, tem interesse sociológico: muitos dos homens e mulheres da nossa geração ( que fez guerra colonial / guerra do ultramar, 1961/74) conheceram a dureza da vida no campo e do trabalho agrícola, e, em muitos casos, foi vítima, "avant la lettre", da exploração do trabalho infantil.
Para além da riqueza das observações sobre as culturas e as atividades agrícolas, os apontamentos que o autor nos deixa sobre a sua infância são saborosos pelos regionalismos ou provincianismos usados, parte dos quais continuam por grafar nos nossos dicionários ou então são deconhecidos de muitos falantes da língua portuguesa, a começar pelos citadinos e pelos mais novos.
Há uma subcultura camponesa do Norte que está em extinção. Na realidade:
- quem sabe o que é uma "pipa" e a sua equivalência em litros ?
- e menos ainda o significado de "desarroar as pipas" (tirar o sarro);
- "canastro" (ou espigueiro) também é um vocábulo estranho a um lisboeta;
- tal como "canistrel" (pequeno cesto de vime);
- ou como "calda bordalesa", "pingue de porco", "queiró, carqueja e tojo", "pisa", "desfolhada", etc.
A "ajuda rogada" é uma expressão idiomática que me parece muito mais nortenha do que sulista. Ou mesmo se pode dizer de "carro de milho" como medida, ou o "almude" ou a "talha de barro almudeira" (onde se guardava o azeite)...
Embora o sistema métrico tenha entrado em vigor em Portugal, por volta de 1860, com a intenção de se uniformizae o sistema de pesos e medidas (mudança fundamental para a criação de um verdadeiro mercado e, portanto, para o desenvolvimento da economia capitalista, a par das estradas, do caminho de ferro, da máquina a vapor, do código comercial, etc.), persiste até hoje, no campo, o uso das antigas unidade de medidas portuguesas, como por exemplo, moio, alqueire, quarta, oitava, maquia , etc. (medidas de capacidade para secos); ou tonel, pipa, almude,pote, canada, quartilho, etc. (medidas de capacidade para líquidos).
Há, no livro do António Carvalho, expressões deliciosas, castiças, e outras de que lembro de ler e ouvir no Norte, como:
- "à medida que crescíamos e íamos cabendo no lagar";
- "tanger os bois";
- "guiar à soga";
- "o moleiro que arrochava os sacos de farinho sobre o dorso das mulas";
- "os dois porcos grandes, que se queriam gordos";
- "um terço de despacho (desembaraço)";
- "com a sua licença, o porco";
- "apercar";
- "freima";
- "aneira";
- "anos minguados"
- "barco rabão";
- "sortes" ...
Enfim, vocábuos e expressões, de sabor castiço, camiliano, que enriquecem a língua portuguesa, embora tendam a desparecer ou sejam cada mais de uso local ou restrito, face ao "rolo compressor" dos mídia, da televisão, das redes sociais, da globalização, etc..
Por isso, volta aqui a reproduzir-se alguns excertos das primeiras páginas do livro do António Carvalho (pp. 15-19), com a amável condescendência do autor, e como contributo para a nova série que temos em curso, "Coisas & loisas do nosso tempo de menino e moço", onde a sua participação (para mais, agora às voltas com a gestação de um novo livro) é absolutamente obrigatória (*), a par de outros camaradas como o transmontanto Francisco Baptista, por exemplo. (Temos de recuperar alguns dos seus escritos sobre Brunhoso.)