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quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27278: Memórias dos últimos soldados do império (7): os "últimos moicanos" - Parte IV: "Já na estrada do aeroporto, olhei para trás. Duas lágrimas saltaram-me dos olhos, recordando o sangue português derramado naquelas paragens. Era estrangeiro numa nova nação." (Albano Mendes de Matos, ex-ten SGE, GA/ e QG/CTIG,1972/74, hoje ten cor ref e escritor)




O então tenente SGE em Bissau, no QG/CTIG, c. 1972/74

Foto (e legenda): © Albano Mendes de Matos (2008). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Albano Mendes de Matos:

(i)  nasceu em Castelo Novo, Fundão, em 1932;

(ii)  é tenente-coronel do Exército na reforma;

(iii) há muito que, infelizmente, não temos notícias dele;

(iv) é membro da Tabanca desde 2008 (nº 652, ao lado do Silvério Dias), tendo 25 referências no nosso blogue;

(v) fez  2 comissões em Angola como sargento (em 1961/63 e em 1965/68), tendo  frequentado depois a  antiga Escola Central de Sargentos, em Águeda;

(vi) esteve no CTIG, já como tenente SGE (GA 7 e QG/CTIG - Secção de Milicias e Chefe de Contabilidade, 1972/74);

(vii) na Guiné, a par das tarefas militares, organizou festivais de poesia e representações teatrais, bem como os «Cadernos de Poesias POILÃO», com autores guineenses, cabo -verdianos e portugueses da metrópole;

(Viii) já em Angola, havia publicado,  em 1973, o caderno de contos africanos «O Jangadeiro», dos quais foram apreendidos 300 exemplares pela PIDE/DGS;

(ix) é  também licenciado em Antropologia Cultural e Social e mestre em Ciências Antropológicas;

(x) foi professor na Universidade Moderna;

(xi) estreou-se no romance em 2008, com a obra «A Casa Grande» (Prémio Literário Aquilino Ribeiro);


 
1. Os nossos "cronistas" do "fim do império", no nosso blogue, são:

  • o Eduardo Magalhães Ribeiro (nosso coeditor) (ex-fur mil OE, CCS / BCaç 4612/74, Cumeré, Mansoa e Brá; seguiu para a Guiné já depois do 25 de Abril, tendo regressado na última viagem, no T/T Uíge, em 15/10/74; de alcunha, "o pira de Mansoa);
  • o Abílio Magro, ex-fur mil amanuense, Chefia do Serviço de Justiça e Disciplina (CSJD), QG/CTIG, março 1973/ setembro 1974);
  • o Albano Mendes de Matos, entáo tenente SGE, GA/ e QG/CTIG - Secçáo de Milícias e Chefe de Contabilidade, 1972/74, hoje ren.cor ref; natural do Fundão, vive em Oeiras,.

Também não  podemos esquecer o valioso contributo  do nosso amigo  Luís Gonçalves Vaz,  membro da nossa Tabanca Grande (nº 530)  e filho do cor cav CEM Henrique Gonçalves Vaz (último Chefe do Estado-Maior do CTIG - 1973/74) (que deixou Bissau, às 2h30 do dia 14 de outubro de 1974, tendo viajado nos TAM com o brigadeiro graduado Carlos Fabião e restantes militares 


; tinha 13 anos e estava em Bissau quando se deu o 25 de Abril; teve acesso privilegiado a documentos classificados dessa época bem como ao diário do seu pai). Já não estva lá em 14 de outubro de 1974 (o pai recambiou a família para a metrópole, na devida altura...) mas traz-nos  também , para o blogue, fotos e outras recordaões do seu primo Manuel Aurélio de Araújo Beleza Ferraz,  ex-Marinheiro Radiotelegrafista  812/70, membroda guarnição da LFG "Lira", preciosa  testemunha da Missão “Retirada Final” em 14/10/1974... Vamos ter oprotunidade de repubicar esse poste, P16461 (*). 

A NRP "Lira" foi uma das unidades que fez a segurança de retaguarda, durante o embarque dos últimos militares portugueses na Guiné.

A qualquer deles, incluindo o Manuel Belexa Ferraz, se aplica a expressão " o último dos moicanos" (leia-se: soldados do império): o Abílio Mgro, rgressado a casa em fins de setembro, nos TAM; o Albano Mendes Matos, a 14, também de de avião; e o Eduardo, a 15, no T/T Uíge.

O texto que republicamos a seguir, agora nesta sérien (*), é um dos textos mais pungentes que eu já li sobre sobre a saída das NT. Escrito com rigor jornalístico, mas também grande sensibilidade, ou não fora o autor um escritor de talento



Memórias dos últimos soldados do império (6): os "últimos moicanos" - Parte III:  "Já na estrada do aeroporto, olhei para trás. Duas lágrimas saltaram-me dos olhos, recordando o sangue português derramado naquelas paragens. Era estrangeiro numa nova nação." 

por Albano Mendes de Matos



Foi um momento emocionante o meu último dia na Guiné-Bissau, em 13 de outubro de 1974.

O pessoal que restava do meu serviço, Contabilidade, saiu para o aeroporto de Bissalanca, logo pela manhã, como quase todos os militares que ainda lá se encontravam. Levaram rações de combate para as refeições. Creio que com receio de algum acontecimento. 

Permaneci no local do meu serviço, para entregar as instalações e materiais às tropas do PAIGC, com guias de entrega e tudo, como estava combinado.

Fiquei apenas com um jipe e um condutor, militar português, para me transportar  do Quartel-General de Santa Luzia (QG/CTIG) para Bissau e, depois, para o aeroporto.

Cerca das 11 horas, chegaram 6 negros, escoltados por uma secção das tropas do PAIGC, a pedirem os vencimentos a que tinham direito, porque tinham sido soldados portugueses. Tinham direito aos vencimentos de abril a dezembro de 1974, como fora acordado. 

Os ex-soldados portugueses tinham fugido para o Senegal após o 25 de Abril, porque tinham receio que os prendessem ou fuzilassem.

As famílias avisaram esses ex-soldados para se deslocarem a Bissau, para exigirem o pagamento. Eu tinha pedido à Emissora da Guiné para avisar todas as pessoas, militares e civis, e as empresas que tivessem a receber alguma coisa do Exército Português, que o comunicassem até, creio, ao dia 10 de outubro [de 1974].

Interessante foi o caso de uma Casa de Instrumentos Musicais pedir o pagamento de 6 clarins que tinham sido fornecidos ao Comando Militar da Guiné... em 1940.

Disse aos ex-soldados que já não havia dinheiro e o tesoureiro já se encontrava em Portugal.

Responderam-me que eu queria era ir para Portugal gozar com o dinheiro deles. Levei-os à tesouraria e mostrei-lhes os cofres abertos, sem dinheiro.

Disse-lhes que poderia promover o envio do dinheiro, quando chegasse a Portugal, para a Embaixada na Guiné. Tomei nota dos números, nomes e da Unidade a que pertenceram. Entreguei-lhes uma declaração assinada por mim e pelo comandante da secção militar do PAIGC.

Em novembro/dezembro [de 1974] enviei o dinheiro devido ao 6 militares, não tendo conhecimento se o receberam.

Chegadas as 13 horas, sem que tivesse aparecido qualquer elemento do PAIGC, nem o meu condutor, como lhe havia dito, para me conduzir a casa de um locutor da Emissora, português que ficou na Guiné, para almoçar. [Tratava-se do 1º srgt Silvério Dias, ex-locutor do PIFAS, nosso grão -tabanqueiro nº 651]. 

Com uma pequena mala, resolvi ir, a pé, para o forte da Amura, junto ao Cais do Pindjiguiti, onde tinha a minha bagagem.

Quando, na estrada, me preparava para caminhar, surgiu um jipe com um militar do PAIGC, mulato, de meia-idade, que me disse:

 −  Camarada, para onde vai?

Contei-lhe o sucedido e logo se prontificou levar-me à Amura, mas que lhe ensinasse o caminho, porque só tinha ido a Bissau, durante a guerrilha, uma vez, de noite, ao cinema na UDIB (União Desportiva Internacional de Bissau). 

Perguntando-lhe quem era, respondeu que era um comandante do Exército do PAIGC, que fora ver as instalações do Comando do Quartel-General, onde se iria instalar, ainda nesse dia.

Conduziu-me no jipe,  não à Amura, mas a um restaurante de um primo do meu condutor, português a quem o Governo da Guiné pediu para não sair, porque era o chefe da fábrica de descasque de arroz, situada numa ilhota, no rio Geba, em frente de Bissau  [, o ilhéu do Rei ].

 Lá encontrei o meu condutor com uma grande bebedeira, não podendo conduzir o jipe. Disse-lhe que não se embebedasse mais, porque às 11 horas da noite tinha que estar junto do jipe, em frente do restaurante do primo, para irmos para o aeroporto.

Almocei e jantei na casa do referido locutor [o Silvério Dias].  e andei pelas ruas e pelos bares de Bissau. Só encontrava guineenses que me cumprimentavam e desejavam boa viagem e muita sorte.

Dei por mim a olhar para as memórias portuguesas que ficavam por aquelas paragens: edifícios, estátuas, toponímia. E a recordar a história que me tinham ensinado, com navegadores, guerreiros, missionários e pacificadores. Imaginei os primeiros portugueses a chegar àquelas terras. E eu, agora, o último a passear pelas ruas de Bissau, no fim do Império.

Estavam lá mais portugueses, o Governador e alguns militares, mas não saíam à rua.  Às 23 horas  [do dia 13 de outubro de 1974, domingo ]. , foram sob escolta para o aeroporto. 

Também estava um navio com um Batalhão nas proximidades do porto  [aliás dois, o T/T Niassa e o T/T Uíge]. , para zarpar quando o último avião da Guiné estivesse no ar, para a última viagem aérea de uma parte do Império.

Um pouco depois das 11 horas da noite, dirigi-me para o jipe. O condutor estava melhor da bebedeira. Com ele estava o primo. Alguns negros param a olhar para nós. Aproximaram-se. O jipe arrancou. Os guineenses ficaram a acenar, de braços levantados. Descemos pela avenida principal, subimos pelo lado do campo de futebol.

Sentia uma sensação estranha. Já na estrada do aeroporto, olhei para trás. Duas lágrimas saltaram-me dos olhos, recordando o sangue português derramado naquelas paragens. Era estrangeiro numa nova nação.

Já perto do aeroporto, o condutor perguntou-me:

   Meu tenente, onde deixo o jipe?

 Atira-o para uma barreira!

Parámos à entrada do parque do aeroporto. Desci com a pequena mala. O condutor colocou uma sacola no chão, subiu para o jipe e conduziu-o até uma pequena ladeira, ao lado da estrada, um pouco antes do aeroporto, para onde o encaminhou com um pequeno empurrão.

No aeroporto, para entrarem no último avião da Guiné, estavam o Governador, o Comandante Militar, alguns militares coadjuvantes, oficiais, sargentos e meia dúzia de soldados.

Para apresentarem cumprimentos de despedida, chegaram alguns chefes militares do Exército do PAIGC e o Presidente da Câmara Municipal de Bissau.

Era o fim da colónia ou província portuguesa da Guiné, já independente desde o mês de Agosto.


Albano Mendes de Matos

(Revisao / fixação de texto, título: VB/LG)
__________

Notas do editor LG:



(*) Último poste da série > 2 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27277: Memórias dos últimos soldados do império (6): os "últimos moicanos" - Parte III: a viagem Bissau-Lisboa, a bordo do T/T Uíge, em 15 de outubro de 1974 (Eduardo Magalhães Ribeiro / Luís Graça)

 Vd. postes anteriores:



Guiné 61/74 - P27277: Memórias dos últimos soldados do império (6): os "últimos moicanos" - Parte III: a viagem Bissau-Lisboa, a bordo do T/T Uíge, em 15 de outubro de 1974 (Eduardo Magalhães Ribeiro / Luís Graça)

 




Documento nº 1 


Documento nº 1A


Documento nº 1B



Documento nº 2




Documento nº 3



Documento nº 4

T/T Uíge, viagem Bissau - Lisboa, de 15 a 20 de outubro de 1974. Documentação distribuída a bordo.



Fotos (e legendas): © Eduardo Magalhães Ribeiro (2014). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Sabemos que esta foi a última viagem do T/T Uíge, de Bissau a Lisboa, ao serviço do Exército. Oficialmente... 

Levou os "últimos soldados do império". O nosso amigo e camarada Eduardo Magalhães Ribeiro, coeditor do blogue, foi um dos passageiros da "classe turística", reservada aos sargentos. E guardou, no seu baú, esta documentação preciosa, respeitante a essa viagem histórica.

Ao que se sabe (mas não por esta documentação),  o navio, T/T Uíge, que estava ao largo (houve outro, o T/T Niassa, que também zarpou de Bissau nesse dia),  deixou a zona às 10h00 do dia 15 de outubro.

Não sabemos quantos militares levava (e de que unidades). O T/T Niassa, por exemplo,  transportou pessoal da 2ª Companhia do BCAV 8320/73. 

Boa parte do pessoal que foi no T/T Uíge deviam ser militares do QG/CTIG (Santa Luzia) e do QG/CCFAG (Amura), as últimas instalações das NT a serem entregues ao PAIGC, os "novos senhores da guerra". 

Deduz-de que o T/T Uíge ia a "rebentar pelas costuras". Havia 4 refeições a bordo (para oficiais e sargentos), em horários diferidos:

  • 08h30 | 13h00 | 17h00 | 20h00 (para os oficiais, que eram em menor número)
  • 07h30 | 11h30 | 16h00 | 19h30 (para os sargentos, que eram em maior número)

As praças, que iam no porão, comiam por turnos: havia 4 mesas... Os horários iam das o7h00 (pequeno almoço) (1ª mesa) às 20h15 (jantar) (4ª mesa), com intervalos de 30 m (pequeno-almoço) e 45 m (almoço e jantar)... A 1ª mesa jantava às 18h00, a última às 20h15...

O consumo de água (banhos, lavagens...)  e a barbearia também tinham horários estipulados, de acordo com o documento nº 4. Em suma, logística complicada. 

O capitão de bandeira era o cap-ten Alexandre de Carvalho Wandschneider.

Mas tudo correu bem (serviços a bordo e comportamentos dos militares), a avaliar pelo teor da mensagem de despedida, com data de 20 de outubro de 1974, à chegada a Lisboa, assinada pelo comandante militar de bordo, o cor António A. Marques Lopes (documentos  nº 2 e 3).

Dito por si:
No dia 15, na classe turística sabemos que foi servido ao almoço (documento nº 1): 

(i) sopa de coentros; (ii) peixe: bacalhau à Gomes de Sá; (iii) entrada: fígado com arroz de manteiga | pastelão à portugesa; (iv) queijo, fruta, chá, café, leite... 

Nada mau, para desenjoar da comida da tropa, do rancho, da ração de combate...

A vida a bordo também foi  "animada" nesse dia da partida: no bar da classe turística, às 16h30 havia jogo do loto... E à noite, às 21h30, "cinema ao ar livre"...

O filme em cartaz, "As 4 chaves" (documento nº 1B)... Erro tipográfico:  devia ser o filme brasileiro de 1971, "As Quatro Chaves Mágicas", do realizador Alberto Salvá.  Filme do género aventura & fantasia,  "é uma recriação do conto de fadas João e Maria, dos Irmãos Grimm"...

E assim tudo acabou: a guerra, a Guiné ("verde-rubra"), o Império, o Uíge, o Niassa... E nós, também estamos a acabar, nós, a geração dos últimos soldados do império, os "últimos moicanos"...

2. Comentário do editor LG:

Em 2/2/1974. o N/M Uíge passou a pertencer à CMT - Companhia Portuguesa de Transportes Marítimos SARL, por fusão da CCN - Companhia Colonial de Navegação (criada em 1922) com a Empresa Insulana de Navegação (mais antiga, de 1871).  

Fez 4 viagens às Ilhas em 1974, e ainda em junho de 1975 a única que realizou a Moçambique (fretado pelo Exército, para transporte de tropas). 

Em 23/11/1975 fez também a última viagem a Angola, a  sua ultima também como T/T, ao serviço do Exército. 

Ainda fará 3  viagens a Cabo Verde para repatriamento de cidadãos portugueses, cabo-verdianos, também fretado pelo Exército. 

Ao fim de 2 dezenas de anos (tinha sido lançado ao mar em 1954), tem o destino cruel de todos os navios: em 1976 fica imobilizado no Mar da Palha, no estuário do Tejo...Será desmantelado no Cais Novo de Alhos Vedros, em 1979/80...
__________________

Nota do editor LG:

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27227: Memórias dos últimos soldados do império (5): os "últimos moicanos" - Parte II (Abílio Magro, ex-fur mil amanuense, CSJD/QG/CTIG, Bissau, mar 1973/ set 74)

 


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Contuboel > CCAÇ 2479 (1968/69) (futrura CART 11) > Centro de Instrução Militar (CIM) > Um instruendo, de etnia fula, cuja identificação se desconhece... (mas bem podia  ter sido o Djassi desta história...).

 Foto (e legenda) : © Renato Monteiro (2007). Todo os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2025)


1.   "Djassi, o ordenança", da autoria do Abílio Magro,  é outro testemunho sobre os últimos dias da nossa presença na Guiné. Faz parte da série "Um amanuense em terras de Kako Baldé" (de que se  publicaram  15 postes entre  janeiro de 2013 e março de  2016, e que estamos agora a revisitar). 

O título não deixa perceber, de imediato,  o drama, pungente,  relatado na segunda parte: o dos soldados do recrutamento local que foram abandonados à sua sorte. Como o Djassi, antigo operacional, que acabou a sua "carreira militar", incapacitado, nos serviços auxiliares,  como "ordenança" na CSJD/QG/CTIG.  E que  a partir de agosto fora obrigado a passar à "peluda"...

A cena passa-se em Bissau, já na segunda quinzena de setembro de 1974. Mas antes vamos ver o Abílio Magro, com "outro moicano", na azáfama, febril e ciclópica, de manhã à noite, de queimar todos os papéis (sensíveis) do seu serviço, em troca da vaga promessa do chefe, um tenente-coronel, de conseguirem chegar a casa uns dias mais cedo... 


Abílio Magro, ex-fur mil amanuense, CSJD/QG/CTIG (Bissasu 1973/74)



Os "últimos moicanos" - Parte II

por Abílio Magro


Recorde-se que havia dois QG (Quartéis Generais) em Bissau;

  • QG/CTIG (Comando Territorial Independente da Guiné), instalado em  Santa Luzia,
  •  QG/CCFAG (Comando Chefe das Forças Armadas da Guiné), na fortaleza da Amura.
Eu prestei serviço na CSJD (Chefia do Serviço de Justiça e Disciplina) do QG/CTIG, em Santa Luzia.
 
No tempo em que por ali andei (1973/74), o primeiro era comandado pelo brigadeiro Alberto da Silva Banazol e depois pelo brigadeiro Galvão de Figueiredo; o segundo pelo general Spínola e depois pelo general Bettencourt Rodrigues.

Em agosto de 1974 na CSJD tínhamos um ordenança, o Djassi, soldado nativo que aparentava ter já ultrapassado os 30 anos de idade e que, enquanto operacional, fora gravemente ferido, tendo-lhe sido retirado um pulmão e integrado nos serviços auxiliares. Estava ali colocado para efectuar pequenas tarefas relacionados com aquele Serviço.

O Djassi apresentava invariavelmente um semblante carregado e raramente esboçava qualquer sorriso, denotando, porventura, algum sofrimento pelo seu débil estado de saúde, mas era um indivíduo afável, educado, disciplinado e prestável. Dava gosto lidar com ele. Nunca o vi aceitar com azedume qualquer tarefa, oficial ou particular, que se lhe solicitasse.

Nessa altura, agosto de 1974, já muitas companhias tinham abandonado os seus quartéis no mato e regressado à Metrópole, e outras encontravam-se estacionadas em Bissau a aguardar igual destino.

Por essa razão, estavamos assoberbados com papelada decorrente do "fecho de contas" daquelas companhias,  o que indiciava que nós, os do "ar condicionado", seríamos talvez os últimos a "abandonar o barco".
 
A situação era confusa. Sabíamos que iríamos abandonar a Guiné, mas não sabíamos como, nem se o faríamos definitivamente, nem quando.

Começou a correr a informação de que a partir de finais de agosto não seriam autorizadas férias a ninguém. Ora, eu e o meu camarada Silva,  do Barreiro, nessa altura já os mais "velhinhos" da CSJD, com excepção do tenente-coronel e  do major, estávamos há já mais de um ano sem gozar férias e começámos logo a tratar da papelada para o efeito.
 
Lá viemos de férias em meados de agosto e, entretanto, o "êxodo" continuava e com maior cadência.

Findas as férias, regressámos à Guiné dois dias  depois da data em que foi reconhecida a independência por parte de Portugal - 10 de setembro de 1974.

As patrulhas na cidade eram efetuadas pela PM (Polícia Militar),  conjuntamente com elementos do PAIGC, muitos estabelecimentos tinham encerrado, a tropa que ainda restava era composta de "piras" (ou "piriquitos"), oriundos das companhias mais recentemente chegadas à Guiné.

Na CSJD só o tenente-coronel e o major não tinham ainda sido substituídos, os bens escasseavam, na messe de sargentos só se encontravam "piriquitos", etc., etc.... Ou seja: eu e o Silva estávamos completamente deslocados e, se não tivéssemos tido a estúpida ideia de meter férias naquela altura, teríamos certamente regressado definitivamente, sem necessidade de desembolsar os "pesos" que nos custou a viagem.

Logo tratámos de, junto do tenente-coronel, dar conhecimento da nossa "triste" situação e efetuar o "choradinho" adequado.
 
Fomos então incumbidos de queimar todo o arquivo morto da CSJD que ocupava totalmente uma daquelas pequenas vivendas tipo colonial e que era composto por processos instaurados desde o tempo em que ainda não havia guerra na "Província", após o que poderíamos "meter os papéis" para regressar à Metrópole...

A tarefa impunha alguma responsabilidade e cuidado pois não podia ficar qualquer fração de papel por arder, o que, nos processos mais volumosos, nos obrigava quase a arrancar folha por folha.

Ali estivemos quinze dias a queimar papel que, quando amontoado, nos obrigava a remexê-lo com um pau para que não se apagasse e, no fim de cada dia, só abandonávamos o local quando existissem apenas cinzas.
 
De quando em vez, um ou outro processo despertava a nossa curiosidade pelos objetos de prova que continha e cheguei mesmo à tentação de desviar alguns, mas o desejo de regressar a casa depressa e bem, falava mais alto.

A nossa vontade em terminar a tarefa o mais rapidamente possível era tanta que logo que o sol dava sinais de vida, lá íamos nós p'ra "incineradora" e um dia tivemos a sorte de nos cruzarmos com o ten-cor que, talvez sensibilizado pela nossa madrugadora atividade, nos mandou chamar para que "metêssemos a papelada para bazar dali".

A tarefa ainda não estava terminada, mas o ten-cor, face à nossa proficiência e empenho, achou por bem mandar para lá alguém mais "piriquito" e nós lá regressámos à Metrópole quinze dias depois de lá termos vindo no final das férias.

E foi numa deslocação a Bissau para, no mercado negro, "despachar" os últimos pesos que tinha comigo (na messe de sargentos de Santa Luzia já nada havia para comprar),  que encontrei o Djassi, já civil, e que me interpelou de uma maneira agressiva como nunca imaginei que fosse capaz, confrontando-me com a situação para a qual o Exército Português o tinha atirado e dando-me a entender que, naquele momento, para ele, eu era o representante daquele Exército e exigia-me explicações que eu não lhe podia dar.

  Furriel, eu fui ensinado a respeitar a bandeira portuguesa desde que nasci, andei muitos anos no mato a lutar por Portugal, fui ferido várias vezes, fiquei sem um pulmão, sou português, sempre me considerei português!
 
E prosseguindo:

E agora, dão-me dinheiro e vão-se todos embora?!... O que vai ser de mim?!... O que é que o PAIGC vai fazer comigo?!

Naquele momento senti-me envergonhado por ainda pertencer ao Exército que abandonara à sua sorte o exemplar militar português que era o Djassi.
 
Emudeci e não me recordo de lhe ter dirigido grandes palavras de conforto para além de um lacónico: 

− Calma, vai correr tudo bem!...

Cabisbaixo e algo deprimido, retirei-me do local, mas confesso que, minutos depois, o egoísmo veio ao de cima e já só pensava nas "voltas" a dar no sentido de embarcar com destino à Metrópole o mais depressa possível.

Quando, tempos depois, já na Metrópole, comecei a ouvir os noticiários sobre os fuzilamentos de antigos militares portugueses da Guiné, muitas vezes me veio à memória (e continua a vir quando se fala no assunto) o exemplar militar Djassi e questiono-me sobre o destino que teria tido e se os capitães de Abril (na altura no poder) não teriam podido fazer mais por aqueles que combateram ao nosso lado.

Há muito que tinha em mente falar sobre o Djassi, ordenança da CSJD/QG/CTIG, mas como tenho o hábito de salpicar a minha "prosa" com tiradas pseudo-humorísticas (está-me no sangue), tenho alguma dificuldade de escrita para assuntos mais sérios como este. 

Dispus-me agora a fazê-lo, reconhecendo, no entanto, que este episódio era merecedor de uma escrita mais adequada ao fim a que me propus: 

− Prestar uma sentida homenagem a todos os "Djassis" da Guiné-Bissau!

(Revisão / fixação de texto, título: LG)
____________

Nota do editor LG:

Último poste da série > 17 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27225: Memórias dos últimos soldados do império (4): os "últimos moicanos" - Parte I (Abílio Magro, ex-fur mil amanuense, CSJD/QG/CTIG, Bissau, mar 1973/ set 74)

quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27225: Memórias dos últimos soldados do império (4): os "últimos moicanos" - Parte I (Abílio Magro, ex-fur mil amanuense, CSJD/QG/CTIG, Bissau, mar 1973/ set 74)





Guiné > Região do Oio > Mansoa >9 de setembro de 1974   > Uma foto para a história: o ex-fur mil op ersp / ranger, Eduardo Magalhães Ribeiro,. hoje nosso coeditor, CCS/BCAÇ 4612/74 (Mansoa, abr - out 1974), a arriar a bandeira verde-rubra, na presença de representantes do PAIGC (incluindo a viúva de Amílcar Cabral) e de autoridades militares do CTIG.


Foto (e legenda): © Eduardo Magalhães Ribeiro (2005). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 

1.   "O Prisioneiro da Ilha das Galinhas", da autoria do Abílio Magro,  é uma das crónicas "divertidas" da série "Um amanuense em terras de Kako Baldé" (de que se  publicaram  15 postes enter janeiro de 2013 e março de publicada em 2016, e que estamos agora a revisitar). 

O título é enganador: o "prisioneiro" personifica aqui, metaforicamente falando, o "último dos moicanos"... 

A cena passa-se em Bissau, em finais de setembro de 1974, com os últimos militares portugueses a fazerem  a "comissão liquidatária" do império (a destruir papéis, a arrumar caixotes, a deitar fora a tralha da guerra, a transferir serviços, a fazer as malas para regressar a casa, a beber as últimas "basucas", etc.).

 Faz sentido republicar agora,  na efenéride dos 51 anos, esta história na série "Memórias dos últimos soldados do império" (*)

A República da Guiné-Bissau já tiha sido reconhecida por Portugal, "de jure et de facto", em 10 de setembro. O brigadeiro graduado Carlos Fabião, último governador e comandante-chefe,  ainda era, até 14 de outubro desse ano, formalmente, o representante do Governo português, do território. 

Sabe-se que  no dia 14 de Outubro, pelas 3 da manhã, o comandante-chefe Carlos Fabião partiu do aeroporto de Bissalanca, juntamente com os comandantes do CTIG, da Zona Aérea, do seu Estado-Maior (onde se encontrava também o seu CEM, Henrique Gonçalves Vaz) e os oficiais da Comissão Coordenadora do MFA na Guiné. Este voo representou o penúltimo contingente das nossas tropas, e não o último. 

No aeroporto encontravam-se representantes do PAIGC em Bissau, nomeadamente Juvêncio Gomes, Vítor Monteiro, Constantino Teixeira, Paulo Correia e Silva Cabral (nome de guerra, "Gazela").

O então comodoro Vicente Manuel de Moura Coutinho de Almeida D´ Eça tinha passado a ser, entretanto,  a partir de 14 de Outubro, à uma hora, o  comandante de todas as forças dos três Ramos presentes no TO da Guiné.  

Na manhã do dia 14 de outubro realizou-se a entrega do Palácio do Governo, tendo assistido a esta cerimónia o comodoro Vicente Almeida d' Éça, em representação do Governo Português (segundo Jorge Sales Golias, este foi o último acto oficial antes da retirada de todas as Forças Portuguesas) (**)

O comandante das Forças Terrestres a embarcar foi o coronel de infantaria António Marques Lopes: este sim o último contingente militar a abandonar o TO da Guiné, no T/T Uíge,  em 15 de outubro (chegado a Lisboa, a 20; nele veio também o nosso coeditor Eduardo Magalhães Ribeiro) (*).


2. Recordemos a cronologia desses últimos dias do Império, no que diz respeito à Guiné... Garantida a independência pela Lei n.º 7/74, o período (de 30 de julho a 15 de outubro de 1974) foi caracterizado por "ausência significativa de pressão política ou militar", destacando-se no entanto, as seguintes acções mais relevantes (estamos a citar a CECA- Comissão para o Estudo das Campanhas de África) (***)

(i) desmobilização, até final de agosto,  das forças de recrutamento local, que lutaram a nosso lado contra o PAIGC, razão pela qual o seu desarmamento e desmobilização constituíram período crítico na fase final da nossa permanência na Guiné;

(ii) a retirada das nossas forças do teatro de guerra, sua concentração em Bissau e transporte das últimas unidades para Lisboa, em 15 de Outubro;

(iii) neste período, o potencial relativo de combate das NT  relativamente às do PAIGC era-nos desfavorável, pelo que se tornou necessário gerir o evoluir da situação com o maior tacto político e militar, garantindo sempre o máximo possível de segurança para as nossas tropas.

Recorde-se as datas-chave:;

  •  26 de agosto, em Argel, assinatura do acordo entre o Governo Português e o PAIGC para a independência da Guiné-Bissau, tendo-se assentado nos seguintes pontos essenciais: (a) independência em 10 de setembro de 1974; (b) retirada das Forças Armadas Portuguesas até 31 de outubro; (c) cessar fogo "de jure" desde a mesma data;
  • de 4 a 9 de setembro, chegada a Bissau de vários membros do Governo e responsáveis do PAIGC; no dia 9, chegou também o primeiro contingente militar do novo Estado;
  • 10 de setembro, em Lisboa, cerimónia formal de reconhecimento da independência da Guiné-Bissau por Portugal;  na mesma data, em Bissau, iniciava-se a transferência dos principais serviços públicos para a responsabilidade da administração do novo Estado;
  • 15 de outubro, retirada dos últimos contingentes das forças militares portuguesas estacionadas em Bissau; regresso nos TAM e no T/T Uíge e navios da marinha;
  • no total, regressaram a Lisboa cerca de 23.800 combatentes do efectivo metropolitano.

  Os nossos "cronistas" desse tempo são o Eduardo Magalhães Ribeiro, o Albano Mendes de Matos e... o Abílio Magro, ex-fur mil amanuense, Chefia do Serviço de Justiça e Disciplina (CSJD),  QG/CTIG, março 1973/ setembro 1974).  

O Abílio Magro também  um dos últimos "moicanos" (leia-se: soldados do império), tendo regressado  a caso em fins de setembro, nos TAM. O ten cor Albano Mendes Matos, a 14, também de de avião. O Eduardo, a 15, no T/T Uíge.

O Abílio Magro é o nosso grão-tabanqueiro nº 600, tendo ingressado formalmente no blogu em 13/1/2013. Tem 73 referências.




Os "últimos moicanos" - Parte I

por Abílio Magro


A azáfama fazia lembrar uma tarde de fim de feira numa qualquer terra do interior de Portugal, onde as embalagens vazias de cartão se amontoam ao lado de cada tenda e os feirantes se apressam a recolher os artefactos e produtos não transacionados para, na madrugada seguinte, regressarem à estrada e ocupar novamente as “montras” numa outra feira qualquer.

Estávamos em finais de setembro de 1974 e o recinto da “feira” era a pequena “parada” defronte do edifício do QG/CTIG.

Com efeito, havia muita movimentação de pessoas e bens e o asseio parecia ter sido algo descurado. Notava-se algum nervosismo e pressa em fazer malas. Lembrava o término de um qualquer período de férias de Agosto no Algarve em que havia necessidade de andar lesto, a fim de se evitar as longas filas de trânsito das estradas algarvias daqueles tempos.

As entradas e saídas do Quartel-General eram constantes e respirava-se, efetivamente, um fim de feira com desfazer de tendas. A grande maioria das Unidades Militares que tinham estado sediadas no interior do território, já tinha regressado à Metrópole e era agora chegado o momento dos últimos “moicanos”, nomeadamente os militares metropolitanos que se encontravam presos na Ilha das Galinhas.

A pequena Ilha das Galinhas, com apenas 50 km² de área,  é uma das oitenta e oito ilhas que compõem o Arquipélago de Bijagós. Durante o período colonial funcionou nesta ilha uma prisão, designada por "Colónia Penal e Agrícola da Ilha das Galinhas".

Esta colónia estava destinada, essencialmente, a presos políticos, incluindo elementos do PAIGC, alguns dos quais ali estariam em trânsito para a prisão do Tarrafal (Ilha de Santiago, Cabo Verde).

Os prisioneiros andavam soltos pela ilha e a maioria trabalhava na bolanha (cultivo de arroz) e nas plantações de ananás e mancarra (amendoim) que havia pelo campo.

Nos finais de setembro de 1974, um desses prisioneiros, militar metropolitano, andava por ali no recinto da “feira” do QG/CTIG a aguardar não se sabia muito bem o quê.

Fazia-se acompanhar por um corpulento macaco-cão que segurava por uma trela de corrente de aço.
Este “prisioneiro à solta” apresentava uma tez bastante avermelhada, indiciando excesso de sol recente (ou algum excesso de aguardente) e trajava de um modo demasiadamente informal para um militar naquele local; camisa, calções e sapatos de ténis militares. Na cabeça, sempre descoberta, ostentava uma farta cabeleira arruivada e encaracolada e, nas pernas e coxas, várias tatuagens “pornográficas” a necessitarem de “bolinha vermelha”.

Era de poucas falas e parecia andar por ali apenas com o intuito de desafiar “altas patentes”, digo eu.

Com efeito, dava-me um certo gozo ver majores, tenentes-coronéis, coronéis, etc., que entravam ou  saíam do QG, depararem-se com aquela figura acompanhada do “seu animalzinho de estimação” e, pasmados, fitando o “moicano”, receberem em troca um olhar ostensivamente desafiador que os desarmava por completo e os “aconselhava” a prosseguir o seu caminho, o que faziam sem pestanejar.

Com muito custo lá conseguimos chegar à fala com o “moicano” e, segundo recordo, ele aguardava autorização para trazer o “companheiro” para a Metrópole, mas, confrontado com a nossa convicção de que isso não seria possível, logo afirmou que “então cortava o pescoço ao símio!”

Eram dias de muita rebaldaria e, lá fora, na estrada que passava em frente ao QG/CTIG, era constante o movimento de negros alombando para suas tabancas “troféus de guerra” diversos, tais como: colchões, frigoríficos, aparelhos de ar condicionado, etc.

Alguns capitães conduziam jipes bastante “mal-tratados” que avariavam constantemente e era vê-los a empurrar a “sucata” com a ajuda de um ou outro militar…

Enfim, imagens vivas do fim do Império Colonial Português!

Uns dias depois é chegada a hora do meu regresso a casa e lá estava no aeroporto de Bissalanca o “moicano”, sem macaco. Viajou connosco e disse-nos que o tinha matado (??).

Abílio Magro

(Revsião / fixação de texto, título: LG)


2. Na altura,  o editor LG tinha deixado o seguinte comentário no  poste P15618;


Há algo de pungente na tua descrição, tão singela, ingénua e ao mesmo tempo tão realista e quase cinematográfica dos últimos dias de Bissau... São pinceladas, são apontamentos, são "flashes", são pequenos detalhes de uma atmosfera, única, a da véspera de se partir, definitivamente, para casa e deixar atrás a tralha da História, e as ruínas de uma guerra, que vai, contudo, continuar a arder em lume brando...

Acho que, quem como tu, foi um dos últimos guerreiros do império, mesmo tendo sido um honestíssimo e patriótico amanuense, não mais poderia esquecer esses últimos dias, essas últimas horas...

O teu "prisioneiro da ilha das Galinhas" é um "boneco" bem apanhado!... Estou a imaginar a cara de desagrado, confusão e impotência dos nossos "maiores" (tenentes coroneis e majores) ao tropeçar, à portas do QG, com o teu "moicanho"... Mas todos foram, "chefes e índios", tristes figurantes do filme em que os "tugas" sairam de cena... daquela parte de África aonde justamente tinham sido os primeiros, dos europeus, a chegar, em meados do séc. XV!...

Obrigado, mano Magro, por mais este delicioso naco de prosa!..

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016 às 22:04:00 WET 
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(...) Fonte: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da actividade operacional: Tomo II - Guiné - Livro III (1.ª edição, Lisboa, 2015), pp. 420/423-

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Guiné 63/74 - P16461: Os nossos últimos seis meses (de 25abr74 a 15out74) (18): A Retirada Final: os últimos militares portugueses a abandonar o TO da Guiné (Luís Gonçalves Vaz / Manuel Beleza Ferraz)



1. Luís Gonçalves Vaz, membro da nossa Tabanca Grande, tem mais de meia centena de referências no nosso blogue. É professor do ensino básico em Vila Verde e é filho do falecido Cor Cav CEM Henrique Gonçalves Vaz (último Chefe do Estado-Maior do CTIG, 1973/74). (tinha 13 anos e vivia em Bissau quando se deu o 25 de abril de 1974). E enviou-nos mais esta achega histórica dos últimos dias do Império.



A Retirada Final: os últimos militares portugueses a abandonar o TO da Guiné (últimas notícias)





Assinaturas do Acordo entre o Governo Português e o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), no âmbito da Descolonização de Cabo Verde (19 de Dezembro de 1974). Documento do Arquivo Nacional Torre do Tombo.

Caros Amigos:

Acabei de ler o  o livro da autoria de Jorge Sales Golias, "A Descolonização Da Guiné-Bissau e o Movimento dos Capitães", que vos aconselho a ler vivamente. 

Neste livro com prefacio de Carlos de Matos Gomes que afirma mesmo que "... é o trabalho sério e rigoroso, pessoal, de colocação no seu devido lugar do que aconteceu na Guiné ...", pude constatar depois de o ler com muita atenção, que apesar de no global, não dizer nenhuma "inverdade" no meu artigo (Retirada Final), já que que os principais acontecimentos históricos, bem como as suas datas coincidem com as apresentadas neste artigo e noutros também da minha autoria, existirá no entanto um erro na "cronologia dos últimos acontecimentos". 

A título de exemplo poderei referir que o pedido do PAIGC  no dia 4 de Outubro de 1974, para que as nossas tropas se retirassem na totalidade da Guiné até 15 de de Outubro, o que invariavelmente obrigou na altura "à revisão total do planeamento de evacuações via aérea e marítima", coincide de facto com os registos do CEM da altura,  pois o coronel Henrique Gonçalves Vaz afirma nos seus registos pessoais a  4 de Outubro de 1974 que:

"...Soubemos hoje que o nosso regresso se efectuaria a 15 deste mês! Novos planos, novas missões e novos aspectos de vários problemas a encarar! ..." 

No entanto, volto a referir que existe neste meu artigo sobre a "Retirada Final" uma incorreção, que gostaria de corrigir com base na Narrativa apresentada neste livro por este oficial do MFA e protagonista muito importante neste processo de descolonização da antiga Província Ultramarina da Guiné, que se relaciona com a (cronologia dos acontecimentos) entrega do último bastião das tropas portuguesas na Guiné, o Forte da Amura, da retirada das últimas forças militares por via marítima e a saída do comandante chefe das tropas portuguesas (Brigadeiro Carlos Fabião), o seu Estado Maior e os oficiais do MFA por via aérea.

 Como tal e segundo li neste livro do sr. coronel Jorge Sales Golias, a cronologia destes mesmos acontecimentos deu-se da seguinte forma, a saber:


Foto: © João Martins  (2012). Todos os direitos reservados. [Edição: L.G.]

 - O último acto oficial do brigadeiro comandante-chefe Carlos Fabião foi a deslocação ao Boé a pedido Comité Central do PAIGC, no dia 12 de Outubro de 1974 (dois dias antes de abandonar a Guiné) onde foi recebido por Luís Cabral;


In: Afonso, A., e Matos Gomes, C. - Guerra colonial: Angol,a Guiné, Moçambique. Lisboa: Diário de Notícias, s/d. , pp. 332 e 335. Autores das fotos: desconhecidos. (Reproduzidas com a devida vénia).
 
No dia 14 de Outubro, pelas 3 da manhã, o comandante-chefe Carlos Fabião partiu do aeroporto de Bissalanca, juntamente com os comandantes do CTIG, da Zona Aérea, do seu Estado-Maior (onde se encontrava também o seu CEM) e os oficiais da Comissão Coordenadora do MFA na Guiné. Este voo representou o penúltimo contingente das nossas tropas, e não o último. No aeroporto encontravam-se representantes do PAIGC em Bissau, nomeadamente Juvêncio Gomes, Vítor Monteiro, Constantino Teixeira, Paulo Correia e o comandante Silva Cabral (o célebre comandante Gazela); 


O Alto Comissário[1] (Vice Almirante Vicente Manuel de Moura e Coutinho Almeida d´Eça) ao lado de Aristides Pereira, futuro presidente da República, na abertura da primeira sessão da Assembleia Representativa do Povo de Cabo Verde.

Documento fotográfico do Arquivo Nacional Torre do Tombo.






[1] Nota: O então Comodoro Vicente Manuel de Moura Coutinho de Almeida D´ Eça, além de ter sido nomeado comandante de todas as forças dos três Ramos presentes no Teatro de Operações da Guiné a partir de 14 de Outubro, posteriormente desempenhou as funções de Governador e Alto-Comissário, de Cabo Verde (Jan75).

- O último comandante das Forças Portuguesas dos três Ramos das Forças Armadas, ainda estacionadas em Bissau, foi o Comodoro Almeida D´ Eça, já que em 7 de outubro o brigadeiro comandante-chefe determinou: "É nomeado comandante de todas as forças dos três Ramos presentes no TO (Teatro de Operações) a partir de 14 de Outubro à uma hora, o Exmo Senhor comodoro Vicente Manuel de Moura e Coutinho Almeida d´Eça com a missão de:

- O comandante das Forças Terrestres a embarcar (este sim o último contingente militar a abandonar o TO da Guiné), foi o coronel de infantaria António Marques Lopes;

- O comandante do destacamento da Força Aérea foi o tenente-coronel piloto aviador, Fernando João de Jesus Vasquez;

- Em 9 de outubro foi emanada pelo comandante-chefe a última diretiva, que detalhava o planeamento da entrega das instalações ao PAIGC (Ordem de Operações nº 1/74);

- Na manhã do dia 14 de outubro realizou-se a entrega do Palácio do Governo, tendo assistido a esta cerimónia o comodoro Vicente Almeida d' Éça em representação do Governo Português (segundo Jorge Sales Golias, este foi o último acto oficial antes da retirada de todas as Forças Portuguesas);

- Segundo o Relatório Final do CDMG (Comando da Defesa Marítima da Guiné),

- Neste mesmo dia e depois da cerimónia do último arriar da Bandeira Nacional, embarcavam as últimas tropas portuguesas (este sim, o último contingente a abandonar o TO da Guiné), para o navio NIASSA, em diversas LDG (Embarque simultâneo em LDG´s entre as 142300 e as 150130 segundo o Programa de embarque das Forças).

Como já disse todas estas informações, são fruto das investigações do sr. coronel Jorge Sales Golias, plasmadas no seu livro "A Descolonização Da Guiné-Bissau e o Movimento dos Capitães", Edições Colibri, com prefácio de Carlos de Matos Gomes. 

Aconselho a sua leitura, pois narra de uma forma sábia o fim do nosso Império nesta antiga Província Portuguesa, mas sempre com uma contextualização dos acontecimentos políticos/militares na Guiné em relação aos acontecimentos políticos que decorriam na "antiga Metrópole", dos encontros de Dakar, de Londres e as negociações/acordos de Argel. Penso que com estas informações terei contribuído para um maior esclarecimento da "Retirada Final da Guiné" no ano de 1974.

Abraço para todos vós
Luís Gonçalves Vaz 


Imagem do Livro do sr. coronel Jorge Sales Golias

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Notas:



(**) Vd. postes de





sábado, 25 de abril de 2015

Guiné 63/74 - P14521: Manuscrito(s) (Luís Graça) (55): I'm sorry!




O Paço da Ribeiro (finais do séc. XV / princípios do séc. XVI) com a Casa da Indía, perpendicular ao Rio Tejo, tendo à sua esquerda a Ribeira das Naus e à direita o Terreiro do Paço. Este conjunto monumental, sede do império, foi completamente  destruído pelo terramoto de 1755. Reprodução de azulejo da Fábrica Santana, Rua do Alecrim, 95, Lisboa, 

Foto (e legenda): © Luís Graça (2014). Todos os direitos reservados


I’m sorry!

por Luís Graça


Não tens boas recordações
do império,
nem da sua praça,
nem do seu paço,
nem do seu terreiro.

Só sabes que não conseguiste defendê-lo,
ao império, e às joias da coroa,
até à última gota do teu sangue,
como deveria ser o teu desidério...

Perguntas, desolado,
em que repartição da pátria
é que tu poderias apresentar
os restos da tua farda de soldado,
com as tuas mil e uma desculpas, esfarrapadas,
o teu  pedido, tardio,  de perdão ?!

Ou até apresentar-te,
de baraço ao pescoço,
qual Egas Moniz dos anos 70 do século vinte ?!

"I' m sorry!",
lamentas tu,
e pedes desculpa,
se houve na altura um erro de casting,
ou se alguém, na tropa,  entrou e saiu,
e te trocou os papéis,
o número mecanográfico,
as botas 
ou as voltas...
ou se o império, 
afinal, 

pura e simplesmente,
nunca existiu.


Lisboa, Terreiro do Paço,fevereiro de 1977

Luís Graça

Última versão, revista, 1/10/2025

________________

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Guiné 63/74 - P12979: Memórias dos últimos soldados do império (3): (Albano Mendes de Matos / Magalhães Ribeiro)



1. O nosso Camarada Albano Mendes de Matos, TCor Art.ª Ref, que esteve no GA 7 e QG/CTIG (Bissau, 1972/74), via e-mail, ajudou-me a ajustar memórias quarentonas e a ultimar a seguinte mensagem. 



2. Com foi dito no comentário final da primeira mensagem desta série “Memórias dos últimos soldados do império”, ficou lançado o desafio ao nosso último grã-tabanqueiro, nº 652 – TCor Albano Mendes de Matos, para abrir o "baú" das suas recordações e continuar a partilhar, connosco histórias e memórias do seu/nosso tempo... 

Recorde-se que ele terá sido o último militar português a vaguear pelas ruas de Bissau, na noite de 13 para 14 de outubro de 1974, antes de apanhar o último avião para Lisboa. 


3. Já eu, eterno "pira de Mansoa", também estou nesta lista dos últimos soldados do império, tendo regressado em 15 de Outubro de 1974, na última viagem do T/T Uíge, com as últimas tropas portuguesas que estiveram no CTIG. Os últimos a embarcar, não tendo deixado essa tarefa para mais ninguém, foram os comandantes e eu um dos penúltimos… nada importante a dizer mais sobre esta matéria! 

4. No entanto, lembrei-me de pedir ao TCOR Albano Matos, que me ajudasse a completar este “puzzle” e, acto que aproveito para agradecer aqui, recebi de imediato a seguinte e prestimosa resposta:

“Caro Amigo Eduardo,

Sobre a data da saída da Guiné, de facto, deixei Bissau antes da meia-noite do dia 14, portanto dia 13, e tomei o último avião militar da Guiné já no dia 14. Um navio estava ao largo para zarpar depois de os últimos militares terem saído de avião. 

Havia militares no forte da Amura, onde tinha a minha bagagem, que saíram de tarde. Fui o último a sair do Quartel-General do CTIG depois do meio-dia do dia 13.  Só encontrei lá um comandante do PAIGC que me levou para a cidade. O meu condutor embebedou-se no restaurante de um primo, que ficou em Bissau, e não pôde ir buscar-me ao QG. 

Almocei e jantei na casa de um antigo militar, que era locutor da Emissora, e ficava na Guiné. Passei o dia e parte da noite em Bissau, pelas ruas e não encontrei qualquer militar além do meu condutor. 

Os militares do QG foram, pela manhã, para a Base Aérea de Bissalanca. O que eu sabia é que estava um navio ao largo para sair logo que todos os militares deixassem o território da Guiné. Portanto, sairia em 14 de Outubro. Saiu em 15. Sempre pensei que tivessem saído em 14. Diziam que esse navio estava em Bissau, para sair com as últimas tropas porque poderia haver algum acontecimento.

É a razão por que eu digo que fui o último a sair das ruas de Bissau. No aeroporto, a despedirem-se de nós, estavam dirigentes do PAIGC e o presidente da Câmara de Bissau.

Eu quis fazer uma reportagem sobre o último avião da Guiné, mas outro antecipou-se. Quando chegou o navio com as últimas tropas, o general Galvão de Figueiredo e alguns oficiais, que vieram no último avião, foram ao desembarque. A notícia dos últimos da Guiné, os que vieram de barco, está nos jornais. Creio que está esclarecido.

Eu vim no último avião, o amigo Magalhães veio no último barco, logo, depois de mim.

Abraço.”

5. Comentário do Magalhães Ribeiro: 

Fui ao meu arquivo da Guiné dar mais umas voltas à papelada e acabei por descobrir, entre vária documentação do resgresso, 3 documentos que me foram entregues no UÍGE, que penso podem ser interessantes para quem gosta destas coisas e que passo a publicar para vosso conhecimento:

Normas internas - 1


Normas internas - 2


 Capa da ementa do dia 15 de Outubro de 1974

 Ementa do dia 15 de Outubro de 1974 - Messe de Sargentos
 
Mensagem de despedida do dia 20 de Outubro de 1974 - Chegada ao cais de Alcântara.

Um abraço Amigo para todos e cada um de vós, 
Magalhães Ribeiro, Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS/BCAÇ 4612/74
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Nota de M.R.:

Último poste desta série em: