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terça-feira, 30 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25792: Contributo para o estudo da participação dos militares de Fafe na Guerra do Ultramar : uma visão pessoal (Excertos) (Jaime Silva) - Parte I: Maçaricos, periquitos, checas...



SILVA, Jaime Bonifácio da - Contributo para o estudo da participação dos militares de Fafe na Guerra do Ultramar : uma visão pessoal- In:  Artur Ferreira Coimbra... [et al.]; "O concelho de Fafe e a Guerra Colonial : 1961-1974 : contributos para a sua história". [Fafe] : Núcleo de Artes e Letras de Fafe, 2014, pp. 23-84.




Fafe > Monumento aos combatentes da guerra colonial, inaugurado em 5 de novembro de 2005. Foto: Artur Coimbra (2012) (*)
   

1. Já reproduzimos, em tempos, o prefácio do Mário Beja Santos a esta obra de autores vários (Artur Coimbra, Artur Magalhães Leite, Daniel Bastos, José Manuel Lajes e Jaime Bonifácio da Silva) e que serviu de base à sua apresentação pública, em Fafe, em 12 de dezembro de 2014 (**).

Uma louvável iniciativa de um concelho onde foram mobilizados cerca de 1500 jovens para a a guerra de África / guerra do ultramar / guerra colonial. E desses perderam a vida 41:  16 em Angola, 14 em Moçambique e 11 na Guiné, segundo as listas publicadas pelo Jaime Silva (Angola, pp. 44/45; Guiné, pp. 58/59; e Moçambique, pp. 62/63).

Vamos reproduzir, por cortesia do autor,  alguns excertos do  extenso estudo do Jaime Silva, na parte sobretudo que diz respeito a: ((i) introdução e contextualização (pp. 25-39); (ii)  mortos do concelho de Fafe, e nomeadamente no TO da Guiné, incluindo alguns testemunhos recolhidos pelo autor  (pp. 39-84).



Jaime Bonifácio Marques da Silva (n. 1946): (i)  foi alf mil paraquedista, BCP 21 (Angola, 1970/72); (ii)  tem uma cruz de guerra por feitos em combate; (iii)  viveu em Angola até 1974; (iv)  licenciatura em Ciências do Desporto (UTL/ISEF) e pós-graduação em Envelhecimento, Atividade Física e Autonomia Funcional (UL/FMH); (v)  professor de educação física reformado, no ensino secundário e no ensino superior ; (vi) autarca em Fafe, em dois mandatos (1987/97), com o pelouro de cultura e desporto; (vii) vive atualmente entre a Lourinhã, donde é natural, e o Norte;  (viii) é membro da nossa Tabanca Grande desde 31/1/2014; (ix) tem 84 referências no nosso blogue.


Contributo para o estudo da participação dos militares de Fafe na Guerra do Ultramar – Uma visão pessoal   Excertos ]  

Parte I: Maçaricos, periquitos, checas... (pp. 25-39)

por  Jaime Silva


1. Resumo


A realização do II Curso Livre de História Local de Fafe, sob a temática “O concelho de Fafe e a Guerra Colonial (1961-1974)”, realizado entre 24 de outubro e 21 de novembro de 2013, foi uma excelente oportunidade para se evocarem os cinquenta anos do início da guerra (4 de fevereiro de 1961) e os quarenta anos da Revolução de Abril de 1974, que lhe colocou um ponto final.

Os jovens de Fafe, como todos os jovens de Portugal, foram, igualmente, obrigados a contribuir para o esforço da Guerra e, alguns deles, doaram à sua Pátria o seu bem supremo: a própria vida. Desde o soldado atirador Artur de Sousa, o primeiro a morrer em Angola, a 3 de junho de 1961, ao 1.º cabo José Pereira Dias, o último a tombar na guerra, a 27 de setembro de 1975, também em Angola, mais de mil e quinhentos jovens de Fafe passaram por um dos três teatros de operações em África.

O objetivo da minha comunicação terá como preocupação prioritária dar a conhecer o enquadramento e as circunstâncias da participação dos militares de Fafe, particularmente dos que morreram no decorrer da sua comissão de serviço em África. 

Para o efeito, fundamentar-me-ei nos processos individuais de alguns deles, que consultei no Arquivo Geral do Exército, no testemunho pessoal de outros combatentes ou de suas famílias e na minha vivência pessoal nesta guerra em Angola, enquadrado nas tropas paraquedistas. [...] 

 
Depois, apresentarei documentos e testemunhos que nos dão a conhecer as diferentes formas de participação de um grupo de militares de Fafe no decorrer da guerra e, finalmente, referir-me-ei às ações desenvolvidas no concelho de Fafe no âmbito da “evocação da memória” da Guerra Colonial.

Agradeço à Direção do NALF (Núcleo de Artes e Letras de Fafe) e à Câmara Municipal de Fafe a oportunidade que me deram de poder contribuir com algumas pistas para aqueles que, melhor do que eu, dominam o conhecimento nesta área, a da História de Portugal, e tenham a intenção de vir a investigar o percurso dos jovens de Fafe que foram obrigados a combater em África, entre 1961 e 1974.


2. Introdução

A Guerra de África, Guerra do Ultramar ou Guerra Colonial   [...]  desenrolou-se entre 1961 e 1974 em África, em três teatros de operações diferentes: Angola (1961), Guiné (1963) e Moçambique (1964).

Estão a decorrer, portanto, os cinquenta anos do início de uma Guerra que entrou pela porta das famílias portuguesas sem ser convidada. Lembro, a este propósito, o comentário feito pelo Dr. José Lino Barros, um dos participantes no Curso de História Local, durante a sessão de 31 de outubro:

 "Na minha casa, como na casa de muitas famílias, rezava-se o terço à noite e evocava-se, em intenção particular, Nossa Senhora, para que livrasse os nossos filhos da guerra do Ultramar. Eu teria talvez sete anos".  [...] 

Do concelho de Fafe perderam a vida durante o conflito 41 jovens: 16 em Angola, 14 em Moçambique e 11 na Guiné.

Poderemos interrogar-nos hoje, meio século volvido após o início da guerra, da oportunidade de resgatar, sob o ponto de vista histórico, a memória daqueles que foram obrigados a fazer a guerra, sacrificando, muitos deles, a sua própria vida em nome de Portugal.

Pensamos e acreditamos que esta evocação histórica tem todo o sentido e justifica-se. Acreditamos que o resgate da memória das causas, consequências e incidências vividas pelos combatentes participantes nesta guerra, e neste caso particular, pelos naturais do concelho de Fafe, é um ato de cidadania e deverá ser uma obrigação das instituições governamentais a nível nacional, regional e local.  [...] 
 
Será este, também, o meu propósito: o de não fazer esquecer as consequências do flagelo da Guerra Colonial e de lutar contra a cultura do esquecimento que se instalou em Portugal após o final da Guerra Colonial contra aqueles a quem Portugal tudo exigiu.


3. Enquadramento da minha intervenção – questão prévia


A “pesquisa histórica” exige rigor e objetividade na análise e descrição dos factos históricos, se queremos conhecer e compreender com objetividade os fatores políticos, sociais, militares, económicos e religiosos, entre outros, que justificaram e suportaram a Guerra Colonial durante catorze anos.

Procurei, por isso, na revisão da literatura algum suporte que sustentasse, orientasse e justificasse o caminho que decidi tomar nesta modesta pesquisa que iniciei há algum tempo para abordar o tema da participação dos militares de Fafe na Guerra do Ultramar.

Segundo o historiador António José Telo (2007, p. 11), a História é uma explicação, e continua, a História nunca está acabada e não existe uma obra definitiva sobre qualquer assunto, tanto mais que, quando fazemos a História de um período recente, ainda “não temos o distanciamento” bastante dos acontecimentos e as fontes disponíveis são muito parciais. (…). Falta outro tipo de fontes essenciais: os estudos e documentos centrais onde a decisão se baseou, que ainda não são públicos; as memórias, testemunhos, sínteses e elaborações posteriores, que demoram anos e décadas a surgirem, se é que surgem.

Face às exigências que o processo de investigação exige nesta área, deparo-me, por isso, com uma dupla dificuldade. 

A primeira será de nível académico. Não sou um investigador na área da História e, sobretudo, não sou um observador neutro da Guerra Colonial, uma vez que participei nela, sempre no “gastalho”, e não é fácil deixar as imagens e as emoções de lado. 

A segunda refere-se às limitações do tempo histórico. Já passaram cinquenta anos do início da guerra e quem testemunha e relata os factos reais vividos já tem dificuldades de memória, emociona-se, ainda tem medo em relatar alguns momentos menos felizes, perdeu ou destruiu os documentos. [...] 

A sustentabilidade dos factos históricos narrados, analisados e inseridos por mim no texto fundamentar-se-á nas seguintes fontes: 

(i) na documentação que consultei no Arquivo Geral do Exército (ao abrigo do Dec. Lei n.º 46/2007 de 24 de agosto; 

(ii) na bibliografia consultada, em suporte papel ou audiovisual;

 (iii) nos testemunhos, relatos e documentos pessoais que muitos dos combatentes de Fafe ou as suas famílias fizeram o favor de me ceder; e

( iv) e na minha participação e vivência durante a comissão de serviço que prestei no Norte e Leste de Angola como comandante do 3.º Pelotão da 1.ª Companhia do BCP21 (Batalhão de Caçadores Paraquedistas N.º 21), sediado em Luanda, entre 8 fevereiro de 1970 e 30 de julho de 1972.


4. A decisão política do Governo de Portugal: “Para Angola, rapidamente e em força”

A documentação disponível permite-nos, hoje, com segurança, perceber algumas das circunstâncias que rodearam e sustentaram a decisão do Governo de Portugal em avançar para a guerra em África, apesar da discordância da corrente dos “militares atlantistas” existente dentro do quadro das Forças Armadas e da pressão da comunidade internacional junto de Salazar, para a evitar. 

Apesar de não ser este o tema do painel em que intervim, gostaria de fazer referência a essas duas questões que considero importantes para melhor se compreender e enquadrar a atividade dos militares portugueses, particularmente dos de Fafe, durante a guerra.

A nível nacional, a documentação comprova que o Governo e os altos comandos militares, no momento em que decidem lançar o país na Guerra, conheciam as reais dificuldades para suportar as duras exigências logísticas para a fazer e para a manter, simultaneamente, em três teatros de operações diferentes, ao nível dos meios humanos, económicos, militares e técnicos.

A nível da comunidade internacional, os documentos dão-nos a conhecer a forma como tentaram convencer e pressionar o Governo de Portugal para avançar com o processo de independência das Províncias Ultramarinas. Na linha da frente estiveram países como a Inglaterra, França, Estados Unidos, bem como a NATO, ONU, OUA, Movimentos Africanos de Libertação (UPA, MPLA, UNITA, FRELIMO, PAIGC), países africanos, asiáticos e a Santa Sé.  [...] 

Pertenço ao grupo daqueles que estão convictos de que os historiadores, em relação à explicação da História da Guerra do Ultramar, poderão, ainda, não ter em seu poder a informação suficiente que lhes permita conhecer, no seu todo, as consequências das estratégias delineadas pelos políticos e Altos Comandos Militares instalados nos gabinetes de Lisboa, Luanda, Lourenço Marques, Beira ou Bissau, mas conhecem, no entanto, com segurança absoluta, dois factos históricos concretos, resultantes da tomada de decisão política de Salazar quando ordena: "Para Angola, rapidamente e em força."

O primeiro facto histórico é que Portugal inicia em 1961 uma guerra em África, cuja decisão política foi da responsabilidade do Presidente da República Almirante Américo Tomás e do governo presidido por Oliveira Salazar, e que este só realizou o reforço da defesa militar das colónias africanas já depois do início dos confrontos, numa defesa tardia, forçada e há muito evitada (Stocker, 2005, p. 254).

O segundo facto histórico, objeto da minha comunicação, é que, a partir de março de 1961, todos os jovens de Portugal chamados a cumprir o serviço militar obrigatório nas fileiras de um dos três ramos das Forças Armadas, e os de Fafe não foram exceção, começaram a ser treinados e mentalizados para cumprirem um único objetivo: fazer a Guerra em África.

Confrontados com esta nova realidade e de acordo com a minha própria experiência na guerra, parece-me muito importante refletir, ainda hoje, sobre o que significou para cada um dos jovens portugueses, que íamos à missa todos os domingos, esta nova experiência de vida: treinar para fazer a Guerra.

Por definição, guerra é um conflito armado cujo objetivo é o esforço dos exércitos em confronto no terreno para conseguir destruir e aniquilar o inimigo. No entanto, a Guerra em África revestiu uma característica especial, uma vez que o Exército português não travou uma Guerra Convencional, mas sim uma Guerra de Guerrilha, caracterizada por uma grande mobilidade das forças, uso de emboscadas, ataques surpresa, ataques rápidos seguidos de fuga, sabotagem e terrorismo, táticas de atrito e confronto indireto (Teixeira, 2010, p. 62).  [...] 
 
Objetivamente, foi para fazer a Guerra (dominar e destruir o inimigo) que o Presidente do Conselho de Ministros António de Oliveira Salazar, dois meses depois dos primeiros incidentes em Angola, a 4 de fevereiro de 1961, ordenou no dia 13 de abril de 1961 aos portugueses: “Para Angola, rapidamente e em força”.

5. O início da Guerra e as consequências imediatas para os jovens portugueses

A realidade, entretanto, já era bem diferente para os militares portugueses:

 "Distante da propaganda oficial, estava a realidade das companhias que seguiam para Angola nesses dias: sem roupas apropriadas para a guerra, com treino ineficaz e armamento ultrapassado, e desconhecedores da realidade da guerra subversiva que os esperava" (Silva, 2011, p. 110).

Teixeira, 2010, p. 21, escreve:

 "No que toca ao armamento utilizado pelos militares as suas características principais são a fraca qualidade e a dispersão de origens, quando não obsoleto. O material bélico português tem basicamente um caráter vetusto e de refugo."   [...] 


Durante catorze anos o fantasma do Ultramar “entranhou-se” nas famílias portuguesas, sem um “ai”, exceto os que deram o “salto”, tal o controlo e a repressão da Polícia Política (PIDE) e da propaganda do regime. 

Nem a vinda dos primeiros estropiados ou dos primeiros mortos foi suficiente para alterar a capacidade de resignação das famílias portuguesas. Povo dócil e subjugado, que atribuía à Providência e à vontade divina o destino dos seus filhos: "Deus mo deu, Deus mo tirou". Paciência. É a sua vontade!

Sobre o soldado português, Teixeira (2010, pp. 26-27), afirma: 

"É um ser pouco marcial, já que treinado à pressa, mal-amanhado, mal armado, mal alimentado e negligenciado pela hierarquia. Obrigado a passar cerca de dois anos e meio, mais do dobro do tempo do soldado norte-americano no Vietname, dentro do arame farpado.

Durante os catorze anos de Guerra Colonial, a rotina para todos os jovens portugueses era sempre a mesma. No ano em que completava 18 anos de idade, devia apresentar-se na Administração do Concelho ou bairro, durante o mês de janeiro, para tratar da sua inscrição no recenseamento militar. 

Depois de “ir às sortes” (junta de recrutamento militar) e uma vez “apurado para todo o serviço militar”, o mancebo era chamado no ano seguinte para “assentar praça”, sendo incorporado numa das unidades pertencentes a um dos três ramos das Forças Armadas (Exército, Marinha ou Força Aérea) e iniciava o seu primeiro período de instrução militar, a recruta. Esta tinha a duração de três meses e, no final, o recruta fazia o “Juramento de Bandeira”. 

Perfilado na parada com os seus camaradas de curso, na posição de sentido, a arma na posição de “ombro arma” e de braço direito estendido, era-lhe solicitado que, bem alto, declarasse: 

"Juro, como português e como militar, guardar e fazer guardar a Constituição e as leis da República, servir as Forças Armadas e cumprir os deveres militares. Juro defender a minha Pátria e estar sempre pronto a lutar pela sua liberdade e independência, mesmo com o sacrifício da própria vida."

Após o Juramento de Bandeira, o soldado iniciava um segundo ciclo de instrução militar específica, designado por “especialidade”. Esta variava de acordo com o ramo das Forças Armadas onde iria prestar serviço: Exército (Infantaria, Cavalaria, Artilharia, Engenharia e Transmissões), Marinha ou Força Aérea. 

Cada ramo dispunha, ao tempo da guerra colonial, de “Forças Especiais”: Companhias de Comandos, no Exército; Regimentos, Batalhões e Companhias de Paraquedistas na FAP;  e Destacamentos de Fuzileiros (equivalentes a Companhias) na Marinha. 

Existiam ainda os vários corpos de Polícias que, no âmbito das Forças Armadas, controlavam o pessoal militar. A PM (Polícia Militar), orgânica da Arma de Cavalaria; a Polícia Naval (PN) constituía a polícia militar da Marinha e organizava-se como Unidade de Polícia Naval (UPN) na dependência do Comando do Corpo de Fuzileiros; e a PA constituía a polícia militar da Força Aérea.

As piores “especialidades” eram as de combate (as que nos atiravam para o mato), sobretudo a de “atirador” (a minha especialidade), e tanto fazia sê-lo de infantaria (a minha arma), como cavalaria ou artilharia .

Às especialidades que não eram de combate, dificilmente os filhos do “zé-povinho” tinham acesso e eram, quase sempre, vocação dos “filhos família” afetos ao regime ou com grande “cunha” (consta que esta área deu azo a um negócio chorudo, aliás, como o “safar” o pessoal da tropa ou do Ultramar).

O objetivo dos dois períodos de instrução a que o mancebo era sujeito, como é evidente, visava dotar os militares de capacidades que lhes permitissem suportar e desempenhar com êxito as missões de combate ou de apoio que lhes seriam conferidas durante a sua Comissão de Serviço em África, ou seja, matar os guerrilheiros que lhes faziam frente e destruir-lhes todos os meios de sobrevivência (acampamentos, culturas, habitações, contactos com as populações dos aldeamentos que os apoiavam, capturar e destruir o armamento, etc.).

Concluída a especialidade, o soldado era dado como “pronto” (“nosso pronto”, era assim designado) e após ser mobilizado para o Ultramar era sujeito, finalmente, a um último “apronto”, recebendo a guia de marcha para Unidade Mobilizadora.

Uma vez nesta e juntamente com os outros militares vindos dos vários centros de instrução, os graduados e os comandantes davam início à formação da sua nova unidade: o seu Batalhão  
 [...]  ou Companhia Independente, aos quais já tinha sido atribuído um número de código. 

Este último período de preparação era designado por IAO (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional) e tinha como objetivo principal organizar a viagem do pessoal para o Ultramar. 

Era a fase de tomar as vacinas, dar os últimos conselhos sobre o que fazer em África para sobreviver, afinar e treinar a especificidade da sua especialidade e das tarefas que cada um iria desempenhar e responsabilizar-se na orgânica do seu Batalhão, Companhia, Pelotão ou Secção durante os dois anos de duração da sua Comissão. 

No final deste período, o militar recebia as últimas vacinas, o camuflado e, por fim, a unidade estava pronta, constituindo esta a sua grande família que o acompanharia durante todo o seu percurso no Ultramar, desde a partida para África ao desembarque, de novo em Lisboa.

Ainda na Unidade Mobilizadora e após chegada a ordem de embarque, o batalhão formava na parada do quartel

O capelão (que entretanto se juntara ao contingente) rezava uma missa campal; o comandante da unidade mobilizadora, um coronel, proferia umas palavras alusivas à missão e entregava o guião ao comandante do batalhão mobilizado, um tenente-coronel, ou então da companhia, um capitão; as tropas desfilavam ao som da música Angola é nossa.

Nesta altura, era concedida a licença de dez dias antes de embarque. O militar ia a casa, despedia-se da família (alguns casados e com filhos), e voltava à Unidade Mobilizadora (alguns não regressavam, porque decidiram dar o “salto”) para daí iniciar verdadeiramente a viagem rumo a África. 

Primeiro, embarcavam nas viaturas militares para a estação de caminho de ferro mais próxima. Na estação, quase sempre de noite, o contingente embarcava num comboio especial em direção a Lisboa. O navio que os iria levar estava atracado e as famílias apinhavam-se nas varandas da gare marítima com lenços de acenar e lágrimas da despedida.

Em direção ao barco, a tropa voltava a desfilar, agora em continência perante um alto representante militar, com as senhoras do Movimento Nacional Feminino e da Cruz Vermelha a distribuírem lembranças. 

Chegava o momento do embarque. Subiam-se as escadas e arrumava-se a bagagem junto ao beliche armado nos porões, transformados em casernas. Depois, voltava-se ao convés e, por volta do meio-dia, o navio recolhia as escadas e os cabos, a sirene apitava, a instalação sonora tocava a marcha intitulada Angola é nossa

O navio afastava-se lentamente, virava a proa à foz do Tejo, passava por baixo da ponte Salazar deslizava diante da Torre de Belém e fazia-se ao mar rumo ao objetivo. [A ponte sobre o Tejo começou a construir-se em 5 de novembro de 1962 e foi inaugurada em 6 de agosto de 1966. (LG)]

Durante a viagem, comia-se a céu aberto sentado no convés, local onde nos dias calmos se jogava às cartas, se recebia alguma instrução sobre o destino, tiravam-se fotografias e procedia-se à cerimónia da praxe, a pretexto da passagem do Equador.

Entretanto, chega-se ao objetivo. Era o tempo de refazer as malas e do desembarque. Nova formatura, agora ao calor desconhecido de África, um desfile e um discurso. 

Depois, a partida para um campo militar, o Grafanil, em Luanda, o Cumeré, em Bissau. Aqueles para quem o Norte de Moçambique era o destino, prosseguiam viagem de Lourenço Marques até à Beira, Nacala ou Porto Amélia.

 A partir daqui, seguiam-se os dois anos da comissão.

Chegados a África, os jovens militares, enquanto não tivessem o seu primeiro batismo de fogo, eram alcunhados pelos “velhinhos” por “maçaricos” (Angola), “periquitos” (Guiné) ou “ checas” em Moçambique e, uma vez instalados na sua nova unidade, situada algures no meio do nada, rapidamente verificavam que a realidade e os factos demonstravam que na Metrópole não tinham sido treinados e mentalizados para fazer ação psicológica junto das populações africanas, como, por exemplo, lançar bombinhas ou balões de S. João, dar santinhos com a figura de Sto. António ou de nossa Senhora de Fátima, andar com os “pretinhos” ao colo ou ensinar-lhes a ler e a escrever Angola é Portugal, mas que tinham sido mentalizados, instruídos e treinados para fazer a guerra  [...] 

(Continua)
_________________

Referência bibliográficas:

Silva, J. (2011). 1961 - O ano que mudou Portugal. Porto Editora. 

Stocker, M. M. (2005). Xeque-Mate a Goa. Ed. Temas e Debates

Teixeira, A., A. (2010). A Guerra de Angola – 1961/1974. Edição Quidnovi.

Telo, A. (2007). História Contemporânea de Portugal. Do 25 de Abril à Actualidade, Vol. I., Editorial Presença.


(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos, parênteses retos com reticências:  LG)


____________

Notas do editor:

(*) Informação reproduzida, com a devida vénia, no blogue de Artur Coimbra, Sala de Visitas do Minho > 3 de julho de 2012 > Viagem pelos Monumentos da cidade de Fafe (VIII) > Monumento aos combatenets da guerra colonial

(...) "Da iniciativa da Delegação de Fafe da Associação Portuguesa dos Veteranos de Guerra, e em especial do activista Jaime Silva, o Monumento aos Combatentes da Guerra Colonial foi inaugurado em 6 de Novembro de 2005.

Localizado no jardim central da Avenida do Brasil, o monumento tem a assinatura da escultora Andreia Couto e consiste numa estátua em bronze, representando um soldado equipado conforme os militares portugueses operavam nas antigas colónias, em cima de um pedestal, de forma quadrangular, nos lados do qual se inscrevem os nomes dos 37 soldados fafenses que morreram na guerra.

O objectivo é exactamente prestar homenagem aos jovens oriundos deste concelho que tombaram para sempre ao serviço da Pátria nos confrontos que decorreram entre 1961 e 1974 nas províncias de Moçambique, Angola e Guiné.

A Câmara de Fafe contribuiu com 15 mil euros para que a associação conseguisse concretizar o sonho – que vinha já de 2001 – de erguer o memorial aos mortos da guerra colonial, orçado em cerca de 20 mil euros. As juntas de freguesia também colaboraram nesta iniciativa". (...)


quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21517: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (10): Relembrando a morte, por acidente com um dilagrama, no CIM de Bolama, em 10/7/1972, do alf mil Carlos Figueiredo


Guiné > Arquipélago dos Bijagós > Bolama >  c. jun/jul 1973 > O jardim colonial,  com a estátua em bronze de Ulysses S. Grant (1822-1885), o presidente norte-americano que em 21 de abril de 1870 resolveu, por sentença arbitral, a questão da soberania de Bolama, disputada entre Portugal e a Grã-Bretanha... 

A estátua em bronze desapareceu em 2007, sendo mais recentemente substituída por uma em cimento, A foto é do nosso camarada Luís Mourato Oliveira, que em meados de 1973 fez um estágio,  de preparação para o comando de subunidades africanas, no Centro de Instrução Militar (CIM)  de Bolama. Um ano antes, estiveram  aqui o Carlos Barros e a sua 2ª CART / BART 6520/72 a fazer a IAO.

 Foto (e legenda): © Luís Mourato Oliveira (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].



Carlos Barros, Esposende


1. Mais uma pequena história do Carlos Barros [, um de "Os Mais de Nova Sintra", 2ª C/BART 6520/72 (Bolama, Bissau, Tite, Nova Sintra, Gampará, 1972/74), os últimos a ocupar o aquartelamento de Nova Sintra antes da sua transferência para o PAIGC em 17/7/1974; membro da Tabanca Grande nº 815; vive em Esposende, é professor reformado]

Recorde-se que o BART 6520/72 foi mobilizado pelo RAL 5 (Penafiel), tendo embarcado em 23 de junho de 1972 (Cmd, CCS e 2ª Companhia )... Após a realização da IAO, com as suas companhias, de 30 de junho de 1972 a 26 de julho de 19l72, no CIM, em Bolama, seguiu, em 28 de julho de 1972 ara o sector de Tite, a fim de efectuar o treino operacional e a sobreposição com o BArt 2924.

Em 20 de agosto de 1972, assumiu a responsabilidade do Sector SI, com sede em Tite e englobando os subsectores de Tite, Jabadá, Nova Sintra e Fulacunda, este até 4 de janeiro de 1973, por transferência para a zona de acção do COP 7. Em 19 de junho de 1973, por extinção do COP 7, a zona de acção do batalhão foi alargada com os subsectores de Fulacunda e Ganjauará.

Desenvolveu intensa actividade operacional, orientada para a realização de patrulhamentos, emboscadas, reconhecimentos ofensivos e acções sobre os grupos inimigos instalados na área, além de garantir a segurança e protecção das populações e a reacção contra flagelações efectuadas sobre os aquartelamentos e aldeamentos.

Dentre o material capturado mais significativo destacam-se: 1 metralhadora ligeira, 2 pistolas-metralhadoras, 8 espingardas, 1 lança-granadas foguete e a detecção e levantamento de 38 minas.

Após ter coordenado a desactivação e entrega do subsector de Nova Sintra ao PAIGC, em 17 de julho de 1974, recolheu em 20 de agisto de 1074 a Bissau, a fim de efectuar o embarque de regresso, tendo as subunidades dos restantes subsectores assumido a responsabilidade das medidas de desactivação e entrega dos aquartelamentos respectivos: Jabadá (1º Companhia), Nova Sintra (2ª Companhia) e Fulacunda (3ª) Companhia.
 

Relembrando a morte, por acidente com  um dilagrama, no CIM de Bolama, em  10/7/1972, do alf mil Carlos Figueiredo  (CCS/BART 652o/72)

 por Carlos Barros (**)


Em Bolama, quando os militares da 2ª CART/BART 6520/72 estavam a fazer a IAO, uma pré –preparação militar para nos ambientar à guerra, a carreira de tiro era o local onde treinávamos com o material de guerra: G3, bazucas, dilagramas, morteiros 60...

Foi um mês [. junho / julho de 1972,] de intenso treino com “fogo real”…

O furriel Barros tinha estado, no quartel,
perto do rio Geba, não longe do destacamento dos dos fuzileiros, com o seu amigo, alferes Carlos [Manuel Moreira de Almeida]  Figueiredo, da CCS [, natural de São Pedro do Sul,] e, numa conversa amena, este tinha-lhe confessado que estava farto da carreira de tiro e que ia pedir ao comandante para o deixar descansar.

O Barros ouviu o seu desabafo do seu amigo e concordou com a ideia do Alferes, seu amigo, porque não era fácil ouvir tanto tiro, tanto rebentamento, durante semanas “a fio”!

No dia seguinte, o pelotão do Barros estava no mato em exercícios militares e vê uma urna a ser transportada numa viatura militar. Perguntou a si mesmo, o que teria acontecido? ...

Naquele momento, uma grande e mortífera cobra passou por ele... O Barros não fez qualquer movimento e ela seguiu o seu caminho…

Em pleno treino, na carreira de tiro, no lançamento de um dilagrama, com defeito de fabrico, uma granada deflagrou-se inesperadamente, e atingiu mortalmente um cabo de outra companhia (talvez de Empada) e o Alferes Figueiredo, ficando os dois irreconhecíveis.

À noite, o Barros e outros camaradas foram jantar num designado Hotel, mas não conseguiram jantar, e os pratos encheram-se de lágrimas de dor!

Perdeu-se um amigo num insólito acidente e  o Barros pensava:

Ao fim de quinze dias de  Guiné, já temos dois mortos!...

Foram noites sem dormir, e foi este o primeiro “banho de tragédia e sofrimento” que ele sentiu.

Meus Deus, dizia ele para os botões do seu camuflado:

 Irei resistir a isto?

Com muita sorte, o pessoal da companhia resistiu em 24 meses e 48 dias de guerra, tendo regressado à Metrópole, no dia 10 de agosto,

 Talvez o dia mais feliz da minha vida!...− exclamou ele.

Carlos Barros

Furriel Miliciano

Guiné 1972/74

Nova Sintra, 26 de junho de 1973 
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28 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21398: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (8): os meus livros de bolso, da RTP, oferecidos pelo MNF, em 25/1/1973, deixei-os a alguns guerrilheiros do PAIGC, em 17/7/1974... E comigo trouxe "farrapos" da nossa bandeira, e ainda os guardo, como símbolo do nosso sofrimento e coragem

19 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21371: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (7): os craques da bola...

14 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21358: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (6): a evaporação das cervejas

12 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21349: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (5): A visita da Cilinha ao destacamento de Nova Sintra, em 1973...

7 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21332: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (4): A cabrinha Inha...

4 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21325: Guiné 61/74 - P21319: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (3): As ratazanas (e o PAIGC) ao ataque em Gampará

3 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21319: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (2): A fuga da 'beijuda

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15614: Álbum fotográfico de Armando Costa, ex-fur mil mec auto, CCAV 3366 / BCAÇ 3846 (Susana, 1917/73): Parte II: Chegada a Bissau e ao Cumeré


Foto nº 1 >  Guiné > Bissau > A zona portuária vista do convés do T/T Angra do Heroísmo, à chegada da em 9/3/1971 (1)


Foto nº 2 > Guiné > Bissau > A zona portuária vista do convés do T/T Angra do Heroísmo, à chegada, em 9/3/1971 (2)


Foto nº 3 > Guiné > Bissau > A zona portuária vista do convés do T/T Angra do Heroísmo, à chegada da em 9/3/1971 (3)


Foto nº 4 > Guiné > Bissau > Abril de 1971 > Avenida marginal


Foto nº 5 > [Sem indicação de fonte, não sendo do autor, trata-se de um bilhete postaol:] Guiné > Vista aérea parcial e Ilhéu do Rei. Bilhete Postal, Colecção "Guiné Portuguesa, 142". (Edição Foto Serra, C.P. 239 Bissau. Impresso em Portugal, Imprimarte - Publicações e Artes Gráficas, SARL).




Foto no 6 > Guiné > Bissau > Cumeré > Abril de 1971 > A CCAV 3366 fez aqui a IAO (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional).

Fotos (e legendas): © Armando Costa (2016). Todos os direitos reservados.



1. Segunda parte da publicação de fotos do álbum do Armando Costa, ex-fur mil mec auto, CCAV 3366 / BCAV 3846, Susana, 1971/73) (*) [, foto atual à direita[.


Recorde-se que ele partiu para a Guiné em 3 de março de 1971,  num navio da carreira Lisboa-Madeira-Açores, o Angra do Heroísmo, fretado ao Exército para transporte de tropas e material.

O BCAV 3846, além da CCAV 3366 (Susana, Cumeré), era composta pelas CCAV 3364 (Ingoré, Cumeré) e CCAV 3365 (S. Domingos, Cumeré),

A unidade mobilizadora foi o RC 3. O Comando e a CCS ficara m em Ingoré; o comandante do Batalhão era ten cor cav António Lobato de Oliveira Guimarães.

O pessoal deste Batalhão regressou a casa em 8/3/1973, exceto o da CCAV 3365 que embarcou mais tarde (17/3/1973).

Não sabemos quanto tempo a CCAV 3386 esteve no Cumeré. Provavelmente só de passagem, ou pelo menos até abril de 1971 (fotos nº 4 e 6). Fez aqui a IAO (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional). Em junho de 1971 já há fotos de Susana e Varela,. no álbum do nosso camarada Armando Costa, membro nº 707 da Tabanca Grande.

2. Comentário dos editores:

Armando: começámos a publicar as tuas fotos... É pena terem pouca "resolução"...Tivemos que as ampliar para o dobro (200%). As próximas que mandares vê se as podes mandar com pelo menos 300/400 Kb, as que mandaste têm à volta de 30/40 kb... Estes parâmetros têm que ser definidos na digitalização... De qualquer modo, o nosso muito obrigado. Manda sempre as legendas.


Guiné > Mapa geral da província (1961) > Escala 1/ 500 mil > Posição relativa do Cumeré, a nordeste de Bissau, abaixo de Nhacra, ma margem direita do estuário do Rio Geba.

Infogravura: Blogue Luís Grça & Camaradas da Guiné (2016)

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Nota do editor:

(*) Vd. poste anterior  da série > 11 de janeiro de  2016 > Guiné 63/74 - P15607: Álbum fotográfico de Armando Costa, ex-fur mil mec auto, CCAV 3366 / BCAÇ 3846 (Susana, 1917/73): Parte I: A caminho de CTIG, de 3 a 9/4/1971, no navio "insular" Angra do Heroísmo, fretado nesse ano ao Exército para transporte de tropas

terça-feira, 12 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14603: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (4): Segunda semana de campo

1. Em mensagem do dia 28 de Abril de 2015, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos mais uma página do seu Caderno de Memórias.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74

[Recapitulando o anterior poste: 27-03-1973 – Reunião de graduados com o Gen. Spínola; 09-04-1973: Início da 1ª semana de campo; 15-04-1973: Fim-de-semana em Bolama]

4 - 2.ª SEMANA DE CAMPO

16 de Abril de 1973 (segunda-feira) – 2.ª semana de campo 

Desta vez deslocámo-nos para uma zona do interior mais próxima da cidade de Bolama, mas menos aprazível que a anterior. Montaram-se as tendas bem dentro da mata agreste, não muito longe da picada, mas ficámos amontoados. Demasiada tropa para a área designada. Isso fez-se sentir no ambiente, mais tenso e opressivo, muito diferente do primeiro acampamento. Constante, como antes, foi a mosquitada e a mosquinha do capim. Prosseguiram as manobras militares nas manhãs frias e tardes tórridas. Logo na primeira noite deu-se um caso insólito: todo o acampamento dormia em aparente tranquilidade e eis que, aos berros e em pânico, um soldado pôs fora das tendas a maioria do pessoal, de armas aperradas mas sem entender os porquês nem os azimutes da hipotética ameaça. Ainda mais, em completa escuridão. Confuso, passou-me pela cabeça que alguém tinha sido apanhado à mão... Entretanto, alguns correram para a tenda do aflito e saíram depois a explicar que não havia ameaça nenhuma, não era nada: o pobre do soldado, muito perturbado, sonhara com uma cobra!...

Foi durante a estadia neste acampamento que, num dia de descanso, fiz com o meu amigo Furriel J. R. uma deslocação à anterior povoação à procura das nossas saudosas bajudas da fonte, caso que aflorei no poste anterior e que descrevo agora, assumindo o risco de me expor desnecessariamente, e de maçar quem me leia. Só pelo grotesco da situação...

Estávamos de descanso e enfadados daquela pequena clareira no meio do mato. Pedimos autorização ao Comandante de Companhia para sair, com o pretexto de fazermos uma visita aos camaradas que ocupavam agora o nosso primeiro acampamento. Autorizados, fizemos uma longa caminhada a pé e armados de G3. Passámos pelo referido acampamento (não recordo se contactámos alguém) e descemos para a fonte. Cumpríamos a nossa palavra de que voltaríamos para fazer felizes as nossas bajudas. E elas prometeram-nos o céu, muito divertidas com as expectativas. Pelo menos era o que nos parecia. Estivemos com elas muito tempo e, como sempre, ajudámos nas suas higienes. Encheram os alguidares de água e disseram-nos que teriam primeiro de levar a água e as pequenas bajudas à tabanca, depois voltariam sós, que aguardássemos...

Pessoalmente arrefeci logo um pouco, céptico. Esperámos. Voltámos a esperar.
- Ó J. R., chega! Vamos embora.
- É pá, espera aí, aguentamos mais dez minutos!.

Apetecia-me concordar com ele, mas começava a fazer-se tarde e tínhamos um longo caminho para o regresso. De passo acelerado metemos pela estrada de terra batida a caminho do acampamento, dizendo mal da vida e de tanta parvoeira. Íamos alvitrando impedimentos para o regresso das bajudas, que nos salvasse a face, enfim..., entrámos numa recta longa e com declive que nos ajudou a estugar o passo. Arborizada de ambos os lados, a estrada tinha do lado direito uma pequena rampa depois da berma, talvez com metro e meio. Caminhávamos desse lado. No fundo da recta, de uma curva que surgia à esquerda, apareceu, quase indistinto, um jipe militar. Demos um salto para a valeta e ficámos breves instantes a observar, indecisos quanto à atitude a tomar.
- Só nos faltava mais esta... É, quase de certeza, o jipe do Comando - disse eu, já a preparar-me para grandes justificações.

O J. R., sem hesitar, sobe a rampa a partir da valeta e diz-me lá de cima:
- Não nos viram. Sobe aí, rápido!
- Não faças isso! Não nos reconheceram, mas viram-nos de certeza. Vai dar merda, porque fugir é pior.

Tudo se passou muito de repente e, enquanto o jipe tardava em se aproximar, o J.R. dá uma corrida e mete-se na mata densa. Fiquei numa situação ainda mais delicada pois, ficando na estrada, para além de ter de justificar a nossa presença ali, ainda tinha de explicar a atitude dele. Se entrasse na mata e fossemos apanhados, criava uma situação deveras grave. Vinha ainda a meio da recta o jipe, saltei a lomba e corri também para a mata, furioso e desapontado com o J. R.
Mesmo em situações limite sempre assumi as minhas atitudes de cara levantada. Ficámos a aguardar uns instantes, pois já se ouvia o motor do jipe e disse eu para o J. R.:
- Se pararem, saímos imediatamente para eu explicar tudo! - E teria de ser eu a explicar, por ser o mais graduado.
- Não saímos nada! Metemo-nos por aí a baixo a corta-mato! - respondeu-me ele com ligeireza e nada assustado.
- Não, não! Já fiz mal em seguir-te e como sou eu a ter de assumir esta garotice, agora és tu que fazes como te estou a dizer!.

Entretanto já se ouvia o jipe em marcha lenta – vinham à procura das nossas pegadas – até que parou mesmo frente ao sítio por onde nos metemos. Mal parou, ainda antes de desligarem o motor, em passadas largas apareci ao cimo da lomba da berma e, fingindo surpresa, exclamei:
- Oh! É o nosso Major!

Na verdade não estava certo de quem fosse -, ele olhou para cima e só então percebi que também ele desconhecia que se tratava de mim. Desci para a berma com o J. R. atrás de mim, fizemos a continência devida. O Major D. M. estava na nossa frente sem sinais de exaltação e, sentado no jipe, assistindo, o Cap. J.A.C. (Oficial de Operações).

Antecipando-me à primeira reacção do Major pedi desculpa pela atitude de sair da estrada, mas que a primeira coisa que nos ocorreu à vista do jipe, é que fosse alguém do Comando da Unidade de Bolama, que talvez não aceitasse as razões da nossa estada ali, etc. etc.
O Major nem olhava para mim, concentrado a olhar o chão com as mãos na cintura. Depois disse:
- Se fôssemos turras, vocês estavam apanhados, porque bastava pôr os olhos nas marcas que vocês deixaram no chão!
- Tem razão, meu Major. Foi de facto uma precipitação irresponsável que nunca aconteceria se imaginássemos que era alguém do nosso Comando - menti.

Perguntou, ainda, o que fazíamos por ali estando a nossa Companhia lá em baixo, respondi-lhe com a história da nossa visita aos camaradas de cima, enfim..., foi entrando no jipe e dizendo:
- Quando chegarmos a Bolama, apresente-se no meu gabinete.

Partiram, estrada acima. Nunca tinha passado por um vexame assim.
- Ora aí tens o resultado da tua atitude! - disse eu para o J. R. que caminhava a meu lado sem abrir a boca.

Apesar da minha apreensão, nunca ouvi comentários a este respeito, nem a camaradas nem ao Capitão da nossa Companhia que nos autorizou a saída e que podia muito bem ter sido abordado pelo Major. A verdade é que chegados a Bolama me apresentei no seu gabinete e, com toda a sinceridade, expliquei melhor a situação, reconheci a minha inqualificável falta, pedi desculpa e submeti-me ao seu julgamento. Ouviu-me com atenção e depois mandou-me embora em paz, sem qualquer comentário que eu tivesse retido. Ao longo da comissão outras situações surgiram entre nós, do foro militar, mas todas se resolveram sem problemas. Parecia-me que lhe merecia uma consideração especial, mas nunca entendi porquê. Na verdade, eu tentava corresponder com igual consideração.

As novidades que nos vão chegando do desenrolar da guerra no interior da Guiné não são nada animadoras. Mesmo na cidade de Bolama é possível ouvir o ribombar dos canhões lá longe, fala-se em Guilege e Gadamel, bem no sul da colónia. Os “velhinhos” do quartel de Bolama dizem “a embrulharem”! Guilege está a “embrulhar”! Gadamael está “a embrulhar!”
Vou tomando nota.


21-04-1973 – (sábado) – Primeiras mortes. 

Soube hoje – fim da 2.ª semana de campo – que um alferes que viajou comigo no Uíge, mas que não recordo, e que estava a fazer a IAO no interior da província e não em Bolama, morreu acidentalmente com uma rajada na cabeça. Era de noite e levantou-se para ir urinar. Ao regressar, uma das sentinelas, seu soldado, não o reconheceu. É a versão que corre. Ontem, aqui no porto de Bolama, estava também num caixão, dentro de um barco da Marinha, o corpo de um rapaz que morreu nas mesmas circunstâncias. É o medo e a inexperiência a fazerem das suas.

Aqui em Bolama continuamos a estranhar a ausência de um ataque com mísseis do PAIGC a partir de S. João, ali no continente, mesmo em frente a esta parte da ilha. Todos os Batalhões que nos antecederam foram atacados, quase sempre logo após a chegada, com objectivos evidentes. [Viria a saber, mais tarde, que também o Batalhão que nos sucedeu foi atacado, tendo havido várias vítimas]. Talvez gostem de nós... Há oito dias foram presos aqui em Bolama nove elementos do PAIGC e devem ter informado os seus camaradas a nosso respeito. (Sabem sempre quando parte um Batalhão e chega outro, e também sabem o efeito que tem nos novatos um susto logo nos primeiros dias, marca a fogo que não os vai largar mais). Eram indivíduos que nos viam diariamente. Já tinha ouvido falar que aqui numa tipografia local havia elementos suspeitos, mas a PIDE, que obviamente nunca vi nem sei onde tem a sua sede, não deixa “passar” nada.

Quase no fim da IAO tivemos ainda uma tarde de manobras com helicópteros, (durante a espera destes ocorreu o “meu” incidente dos cajueiros que talvez calhe, lá para a frente, relatar), e a visita do Alf. Marcelino da Mata com alguns homens do seu Grupo para uma demonstração de fogo com armas do PAIGC.


Bolama, Abril de 1973 – Capitão B. D. (1.ª CCAÇ do BCAÇ 4513) observa uma granada de RPG 7 (ou 3?). A seu lado, um dos elementos do Grupo de Combate do Marcelino da Mata.


Creio que esta demonstração se desenrolou na pista de aviação de Bolama. Uma das acções que mais me impressionou foi o Marcelino ter feito um disparo com RPG apontado para o chão a pouco mais de dez metros da nossa posição. Fê-lo de pé, com o tubo à altura da cintura e demonstrando total confiança. Deduzi que estas granadas, tal como as nossas anticarro da bazuca, só podiam ser de carga-de-efeito-dirigido, portanto, perfurantes. Caso contrário, ter-nos-iam atingido na retaguarda do impacto. Contudo, lançadas sobre o pessoal, são muito perigosas por se desintegrarem em pequenas lâminas cortantes.


27-04-1973 – (sexta-feira) – Calha a todos

Faz hoje um ano e dois dias que entrei para a tropa. Hoje entra o meu irmão Zé, exactamente mais novo que eu um ano e dois dias.

(continua)

Texto e foto: © António Murta
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Nota do editor

Último poste da série de 5 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14570: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (3): Reunião com o Gen Spínola e início do IAO em Bolama

terça-feira, 5 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14570: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (3): Reunião com o Gen Spínola e início do IAO em Bolama

1. Mensagem do nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), com data de 28 de Abril de 2015:

Luís Graça e Carlos Vinhal, Camaradas amigos.
Antes de mais, quero felicitar-vos pelo sucesso do X Encontro em Monte Real. Com muito mérito vosso e dos demais organizadores, acho que esteve à altura da dimensão e prestígio da Tabanca Grande. Então, pode dizer-se que todos estamos de parabéns.
Junto em anexo mais um texto das minhas memórias. Noutro mail que enviarei já de seguida, segue novo texto.

Um abraço fraterno para ambos,
A. Murta


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74

[Recapitulando o anterior poste: 23-03-1973 – Chegada a Bolama; 1ªs impressões; Início da IAO; Boas vindas do Gen. Spínola ao Batalhão 4513; Desfile das tropas perante o CMDT-Chefe e demais individualidades].


3 - REUNIÃO DE GRADUADOS COM O GEN. SPÍNOLA

Concluídas as cerimónias, enquanto a maioria debandava, todos os oficiais e sargentos estavam convocados para uma reunião com o General num salão do Hotel Turismo, actual messe de oficiais. Durou duas horas, esta reunião.

(Do que se passou naquela sala soturna e constrangida, creio que já em tempos aflorei (ou dei mesmo conta?) no nosso blogue. Na dúvida, e por uma questão prática transcrevo do meu diário):
Acomodados todos os presentes, fixaram-se as atenções na mesa presidida pelo Gen. Spínola, ladeado por todo o Comando do Batalhão e outros oficiais da sua comitiva. Era notória a frieza do General para com o Comandante do Batalhão, votado ao ostracismo e visivelmente incomodado.

O General, depois de palestrar para todos sobre o retrato da situação na Guiné e do papel que nos cabia a nós no evoluir dessa situação, deu por encerrada a primeira parte da reunião e convidou os sargentos e furriéis a saírem. Prosseguiu de imediato a reunião apenas com os oficiais. Estava muito interessado em saber o que pensávamos nós sobre aquela guerra e sobre a nossa acção nela e junto das populações.

Para meu azar, aponta-me o dedo e diz:
- O nosso alferes que pensa de tudo o que já aqui foi exposto?

Surpreso, levantei-me com todas as atenções concentradas em mim e, num ápice, percebi que não iria falar apenas para ele, tendo de decidir rapidamente que versão escolheria entre várias hipóteses a considerar. Então, muito contrafeito e cobardemente, (sensatamente?), recitei-lhe a cartilha oficial, a que me ensinaram, sem introduzir originalidades nem virtuosismos, enfim, pensando que era o que ele queria ouvir (e não era), mesmo se o meu pensamento estava nos antípodas do que lhe dizia, devido à minha formação política, muito anterior à entrada para o Exército. O General ouviu-me em silêncio e depois mandou-me sentar. E eu a ler-lhe o pensamento: Mais um idiota!
Depois interpelou o Alf. Capelão com a mesma questão.

Quando este começou a falar, sem tibiezas e com uma audácia a roçar o desaforo, para as circunstâncias e para a época, eu não sabia onde me havia de enfiar... Foi então que o Gen. Spínola o interrompeu para o pôr à vontade, dizendo-lhe:
- O nosso Alferes pode falar à vontade, dizer o que pensa, porque daquela porta - e apontou - não sairá uma palavra. (O Comandante do Batalhão, enfiado, transpirava e bufava...).

E ele continuou, pondo em dúvida o colonialismo e a legitimidade de tudo aquilo que a maioria entende por legítimo, natural, a ordem das coisas..., mas também questionando o estado social da colónia, em pleno século XX, depois de 500 anos de colonização. Falou bastante tempo sem ser interrompido. Era um valente. (E não apenas intelectualmente: vi-lhe dar um murro nos queixos a um soldado que apalpou o rabo a uma adolescente estudante de Bolama que seguia à nossa frente no passeio, que ele até voou! Éramos amigos e com muito respeito mútuo: ele era padre católico e eu ateu empedernido. Desapareceu depois de uma distribuição clandestina de panfletos à tropa sobre, creio, a má alimentação que era distribuída aos soldados, - ou a toda a tropa?).

O General pareceu ter gostado do que ouviu ao Alferes Capelão e disse para o seu Ajudante-de-Campo tomar nota de que lhe devia enviar, de oferta, o seu livro “Portugal e o Futuro”, ainda não publicado. (Só mais tarde, quando o livro saiu, e com a polémica à sua volta, percebi o seu interesse em auscultar os militares a propósito da situação na Guiné e do seu desfecho político e militar, pois que ele preconizava uma solução diferente para a colónia. Adquiri o livro muitos anos depois).


9 de Abril de 1973 – (segunda-feira) – Início da 1ª semana de campo no interior de Bolama

Deslocámo-nos muito para o interior da ilha e acampámos numa zona elevada e, de certo modo, aprazível. Na nossa frente e em baixo podia ver-se o mar, ainda que a grande distância. Na verdade é o canal marítimo entre a ilha de Bolama e o continente. Próximo deste local fica uma pequena tabanca de etnia Mancanha ou Brames, não recordo, mas são as etnias maioritárias em Bolama. Da Guiné que eu conheci, foi o único local em que vi as mulheres usarem uma tanguinha de palha de arroz sem mais nada sobre o corpo. Excepção para a cidade de Bolama e, aqui na tabanca, num caso ou outro. Parece que é comum esta forma de “vestir” em todo o arquipélago dos Bijagós.

Pouco depois da nossa chegada fiz uma visita à tabanca e fiquei encantado, embora visse nos homens-grandes alguma desconfiança e agressividade. Talvez tenham razões para isso: já por aqui passaram muitos tropas e, por certo, nem todos respeitadores. Mas as bajudas e as crianças são adoráveis: à noite, quando acendemos fogueiras no acampamento para afastar os mosquitos e a horrível – e chata! – mosquinha do capim, aparecem de mansinho algumas bajudas e, pasme-se!, sentam-se no chão como nós, no meio das nossas pernas, encostadas a nós e viradas para a fogueira. Imagine-se, vestidas só de tanguinha e de um sorriso doce..., mas sem qualquer maldade. Perante este afecto e inocência, também da nossa parte estava fora de questão qualquer maldade. São miúdas com idades, talvez, a partir dos 13, 14 e 17 no máximo. Falam um português razoável, mercê, talvez, da proximidade da cidade de Bolama e, quem sabe, do já longo contacto com a tropa.

As mais velhitas não costumam aparecer à noite mas vamos encontrá-las de dia na fonte. Eu e o meu amigo J. R. já tínhamos bajudas “dedicadas”... A fonte era uma espécie de centro de convívio, (felizmente não era hábito aparecerem outros camaradas), para onde nos escapávamos nos tempos livres e aí íamos encontrar também as mulheres-grandes, sisudas e desconfiadas.

Quando abalavam, carregadas de cabaças e alguidares com água à cabeça, as bajudas mais velhitas começavam as suas higienes, largavam as tangas e pegavam no sabão e nas “esponjas” feitas de raízes secas e muito finas. Ensaboavam-se até onde chegavam e depois estendiam-nos as “esponjas” para que as lavássemos por trás. Aí, a nossa lascívia misturava-se com a falsa naturalidade e, era certo, com uma grande dose de maldade. Elas correspondiam com risadas e sensualidade, mas não se passava dali. Até que um dia... (talvez, de caminho, venha a contar um episódio lamentável, fruto da nossa ousadia e irresponsabilidade, mas que agora não cabe aqui).

Fiz junto desta população amizades fortes, especialmente com as crianças: um rapazito e três bajudinhas de uma doçura enorme. Quando chegou a hora de os deixarmos de vez, no momento da despedida até me beijaram. Só tive um caso em que me zanguei deveras: foi com um velho que não falava bem o português e que embeiçou com a minha faca de mato. Só quando lha passei para as mãos percebi que queria ficar com ela. Foi um problema para a reaver e receei ter que usar a força.

Havia na ilha, (na pequena parcela que me foi dado conhecer), outros encantos e outros prazeres. Um deles, era cruzar-me a meio da manhã, numa picada exuberante, com um vendedor de vinho de palma em marcha acelerada rumo à cidade. Distinguia-se ao longe, bamboleante, com a sua carga suspensa da vara que carregava ao ombro: de cada extremidade da vara pendia um grande garrafão. Parava, satisfeito, e nós enchíamos os cantis daquele líquido aromático e fresco, que se bebia de um fôlego, até se aprender como era enganadora aquela suave frescura... O homenzinho partia de novo na sua marcha, mais aliviado da carga que, a partir de agora, carregaria a nossa cabeça... Cabeça-grande, já se vê.

O treino militar propriamente dito, e era para isso que ali estávamos, foi muito desagradável. Não se esperava que fosse agradável, mas foi difícil a adaptação àquelas condições: manhãs muito frias, zonas de capim orvalhado e muito alto, (mais alto que um homem), e infestado de uma mosquinha minúscula que nos envolvia, metendo-se nas narinas, nos ouvidos, enfim... era com este incómodo e com os camuflados encharcados que fazíamos as emboscadas, os golpes de mão e as restantes peripécias do treino, incluindo ser-mos abatidos pelo “IN” num meio tão adverso. Mas já dava para antecipar o que nos esperava no cenário real da nossa futura actividade. Se este treino tinha como objectivo preparar-nos melhor para ela e compensar a deficiente preparação da Metrópole, então havia que aguentar e aproveitar ao máximo, sendo certo que não iria resolver o desnível da preparação dos graduados em relação aos soldados. Imaginava já os custos altos com que, gradualmente no mato ganhariam a prática que agora lhes faltava, frente a um inimigo experimentado e motivado. Não devia valer. Estava a chegar ao fim a primeira semana de campo.


15 de Abril de 1973 (Domingo) – Fim-de-semana em Bolama

Fomos passar o fim-de-semana a Bolama. Nesta data já sabia que em 24 de Abril partiria para Nhala, uma pequena povoação no interior e a sul da Guiné. Sem mais pormenores. Será aí que, finalmente, ficaremos a cumprir a comissão.

Foi um fim-de-semana em cheio. Retemperar forças, fazer higienes adequadas mas, principalmente, comer bem. Havia que aproveitar os derradeiros dias de relativa tranquilidade. Avizinhavam-se tempos difíceis e incertos. Nesta quase noite de domingo, foi um “fartar vilanagem”! Fomos à Pensão do Zeca, um tipo de Coimbra aqui radicado há 25 anos. Ostras! Queríamos ostras! Era uma mesa enorme bem composta de comensais. Eu estava sentado ao lado Alferes Capelão que, enquanto esperávamos pelo pitéu, se pegou com o camarada da frente por este, com simulacros de mau gosto, o ter provocado. Acho que era o Alferes M., sempre muito divertido mas que teve a ideia peregrina de fazer hóstias com miolo de pão e pôr-se para lá a benzê-las à frente do Capelão. A coisa esteve mesmo para azedar... Comemos, pois, muitas ostras. Mas no fim o estômago ainda reclamava. Mandaram-se fazer omeletes de carne com batatas fritas e, parecia, tudo se recompunha em definitivo. Mas, aproximava-se a hora do jantar (!) e já dali não saímos: aguardava-nos um leitão que havíamos encomendado com antecedência e ele chegou mesmo na hora.

(continua)

Texto: © António Murta
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Nota do editor

Poste anterior da série de 8 de abril de 2015 > Guiné 63/74 - P14446: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (2): Partida para Bolama, IAO e visita do General Spínola

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Guiné 63/74 - P14446: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (2): Partida para Bolama, IAO e visita do General Spínola

1. Mensagem do nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), com data de 25 de Março de 2015:

Olá camaradas amigos Carlos Vinhal e Luís Graça.
Em anexo segue mais uma parte das minhas memórias no seguimento do anterior texto, e 2 fotografias.
Para quando der jeito publicar se assim o entenderem.

Abraço fraterno
António Murta


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA - GUINÉ, 1973-74

[Recapitulando: 16-03-1973 – Partida de Lisboa; 22-03-1973 – Chegada a Bissau, pequena incursão na baixa da cidade à noite, primeiras decepções, regresso ao Uíge].


2 - PARTIDA PARA BOLAMA

Deitei-me à 1h30 da madrugada (última noite no navio), para me levantar às 3 horas e preparar a saída para Bolama, com os soldados de duas Companhias, a bordo de uma LDG da Marinha. Pelo menos outra se lhe seguiria com o resto das tropas. Saímos de Bissau às 5 horas da madrugada e chegámos a Bolama às 10 horas. Era uma sexta-feira, 23 de Março de 1973.

[Lamentavelmente não tenho notas nem memória para descrever a viagem que deve ter sido uma experiência única. Pela mesma razão ficará sem registo o desembarque que, para a grande maioria, foi a primeira vez que pisaram solo africano].

Não recordo se a LDG ficou ao largo, se atracou no cais. Essas situações dependiam sempre do estado das marés que, em toda a costa da Guiné, e pelo seu interior adentro, é sempre de alguns metros de altura. O que recordo foi a recepção que nos fizeram dezenas de crianças e algumas mulheres, habituadas que estavam a que à sua terra estivessem sempre a chegar novos contingentes, à medida que outros saíam. E zumbiam à volta dos tropas a oferecer os préstimos das lavadeiras que, sabiam, poucos iriam dispensar. Pediam também dinheiro (patacão) de mão estendida. Eram uns safados e umas safadas, muito batidos naqueles contactos, mas muito bonitos e gentis. Foi o primeiro contacto com o calor humano local, a suavizar angústias, medos indefinidos e dúvidas sobre o futuro.

Faltava instalarmo-nos e fazer o reconhecimento da cidade. Um espanto! Como fora possível que uma cidade daquelas, tão pequena e desprezada, tenha sido a capital da Guiné? Só estou a ver uma explicação: em toda a Guiné não havia outra com melhores condições e infra-estruturas para ser a capital da colónia. Até ao desenvolvimento de Bissau. (Ou seria por estar a bom recato das beligerâncias do interior da colónia? Ou para evitar novas ocupações estrangeiras? Em termos de história, isso foi anteontem, em quinhentos anos de presença portuguesa...). Ainda assim, uma avenida – não asfaltada – leva-nos, subindo, a um grande jardim público abandonado, no topo do qual se apresenta o imponente edifício que fora a Administração da colónia. Lateralmente e não muito distante havia o Hotel Turismo, pequeno mas com alguma nobreza, que fora a filial do Banco Nacional Ultramarino inaugurado em 1903 e que, agora, era a Messe de Oficiais.

Para além dos quartéis, havia as escolas, a igreja, a tipografia, o Clube dos Bombeiros com os seus matraquilhos, ping-pong e bar, onde íamos à civil beber uns copos e observar as senhoras brancas, mulheres dos outros oficiais. Junto ao cais, na baixa, havia uma piscina que só utilizei uma vez por receio daquelas águas. Melhor que tudo era o restaurante de portugueses onde, quando era possível, tirávamos a barriga e a alma de misérias.

Esta pequena urbe empoeirada e quente não é nada do que tinha imaginado mas, nas horas amenas dos fins de tarde, dava-me imenso prazer deambular pelas suas ruas quase desertas, apreciando as suas casas coloniais, muito abandonadas, com as sua varandas típicas, e ir descendo até ao cais onde me sentava sozinho a assistir ao pôr-do-sol, imaginando as praias da minha Figueira da Foz. Depois, lembrava-me que estava sentado ao contrário, virado para o canal de Bolama e para o continente, e que à minha esquerda tinha o norte e não o sul, e levantava-me irritado e virava costas. Para mais, dali de frente, de S. João, é que têm partido os mísseis do PAIGC nos ataques à cidade, segundo nos dizem, para susto dos periquitos. Mas, quando podia, voltava lá.

Nesses entardeceres cálidos e perfumados mas cheios de luz, era um espectáculo apreciar os bandos de morcegos, aos milhares, num esvoaçar barulhento e nervoso. Tudo era novidade. E os abutres (jagudis) com o seu ar decrépito nos ramos secos das árvores? Quando escurecia continuavam a ver-se as suas silhuetas, atentas e diligentes, para bem da salubridade da cidade.

O que para mim foi mais desagradável, quase chocante, foi o primeiro contacto com os habitantes da periferia na zona ribeirinha da cidade, na quase totalidade de confissão muçulmana. Numa das minhas deambulações, passei frente às suas modestas moradias e pude ver como me olhavam quase com hostilidade, tal como em Bissau à chegada, enfiados nas suas enormes roupas brancas, barretes da mesma cor, sentados às portas (parece que nunca tinham nada para fazer...), a mascar qualquer coisa (coca?) e a cuspir para o chão. Quase que não vi mulheres (estariam a trabalhar?) mas tinham que ser muitas, já que cada homem podia ter duas, três, quatro ou mais, segundo a suas posses!... Além disso havia muitas crianças. Pude ver, ainda, nos que caminhavam, como eram muito magros e, alguns, bem altos. Outros, mais jovens, passeavam-se aos pares agarrados pelo dedo mindinho. Se fosse na Metrópole seria um escândalo, mas ali era normal e não tinha nada a ver com o que parecia.

Apesar do registo de algumas notas mais cinzentas, não fora o objectivo que ali nos tinha levado, e poderia dizer que era bom estar em Bolama. De bom grado aqui passaria a comissão, mesmo se o preço fosse ficar sem saber como era o resto da Guiné.


26 de Março a 22 de Abril de 1973 – IAO (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional)

Relata a história do meu Batalhão: «A IAO teve lugar na ilha de Bolama de 26MAR73 a 22ABR73. Foi um período duro de instrução, em que o esforço despendido, não terá talvez correspondido totalmente aos resultados obtidos, mas melhorou substancialmente a sua preparação».

Realmente, ainda antes de irmos para o interior da ilha, ali bem junto da cidade começaram exercícios bem duros, como atravessar na maré baixa zonas de lodo a dar pela cintura, com armas às costas e demais equipamentos. Era até desfalecer. Tive o privilégio de me poupar a parte destes exercícios por ter iniciado um período de aperfeiçoamento da prática com minas e explosivos, a minha especialidade.

Ainda na cidade de Bolama, um dia marcou de forma diferente a rotina dos afazeres da preparação militar. Foi a chegada do General Spínola (Caco-Baldé, como era conhecido), para dar as boas vindas ao Batalhão.


27 de Março de 1973 – (terça-feira)[ou dia 28?] – Chegada do General Spínola

Há muito que todo o Batalhão se encontrava em formatura frente ao edifício da Administração, no topo do grande jardim central de Bolama, aguardando a chegada do General. A meio da manhã já a temperatura começava a tornar-se insuportável, e a exposição ao sol e a quase imobilidade, não tardaria a fazer as primeiras vítimas de insolação. Finalmente ouve-se um helicóptero e não muito depois surgiu o General com o seu séquito. Aguardavam-no individualidades militares e os chefes nativos das tabancas locais. Provavelmente também representantes da Igreja, não recordo.

Enfim, toda a escadaria do edifício da Administração estava repleta de individualidades para assistir à cerimónia que não passava de uma rotina para a maioria deles. Essa rotina compreendia a apresentação do Batalhão a sua Excelência, a passagem de revista às tropas, o discurso de boas vindas e o desfile em parada. Tudo muito solene e rígido como convinha, porque sua Excelência era o Comandante-Chefe de toda a tropa na Guiné e o Governador da Província Ultramarina da Guiné. Todos estavam suspensos dos seus gestos, das suas palavras e do fuzilamento dos seus olhares. Éramos muitos, já enervados, para um só actor: autoritário, arrogante e vaidoso.

Bolama, 27 de Março de 1973 – Desfile perante o General Spínola, da 2.ª CCAÇ do BCAÇ 4513

4.º Grupo de Combate comigo à frente seguido dos dois Furriéis do Grupo

E as coisas começaram a não correr muito bem logo no início, na apresentação do Batalhão. Como era da praxe, o Comandante do Batalhão, TCor C. A. S., colocado na frente das tropas, em continência, apresentou o Batalhão. Para surpresa de todos, com um berro, o General disse:

- Centre-se em relação ao Batalhão!.

Desprevenido, o Tenente Coronel, olhou à esquerda, olhou à direita e deu uns passos laterais tentando centrar-se melhor. Repetiu a continência, repetiu o pedido de apresentação e, o General, no mesmo tom de voz, repetiu a ordem para que centrasse em relação ao Batalhão. Parecia demais para ser verdade, mas era o que estava a acontecer. Puro e gratuito achincalhamento na presença de todos os subordinados de um militar que fora o Comandante do Regimento de Infantaria das Caldas da Rainha, (meu comandante aí), entidade militar de respeito naquela Unidade e em todos os actos públicos da referida cidade, enfim, ali reduzido a um militarzeco desautorizado perante todos os homens que era suposto vir a comandar. (Talvez por isto não tenha comandado nada, porque logo após o final da IAO, mas já em Aldeia Formosa, foi evacuado para a Metrópole por motivo de doença em que nunca acreditei).

Como me tinham prevenido os “velhinhos” de Bolama, com ar de gozo, o discurso que o General faria às tropas, começaria assim: «Conheço-vos a todos! É como se tivesse vindo convosco no barco. Etc., etc.» 

E o General disse-nos do alto da escadaria: «Conheço-vos a todos! É como se tivesse vindo convosco no barco. Também eu sou um soldado como vocês! Etc. etc.». (Por sermos assim uns soldados tão iguais, é que ele tratou o Tenente Coronel daquela maneira...). 

Prosseguiu o discurso e, no final deste, (penso que foi por esta ordem), desceu das alturas e passou em revista as tropas. Também neste caso os “velhinhos” tinham prevenido: «Ele vai deslizar na vossa frente em passo curto e não vai tirar os olhos das vossas caras. A espaços, pára, e fixa com tal profundidade os olhos de quem tem na frente que, não raro, o coitado desmaia e cai-lhe aos pés... Especial atenção aos Alferes!, diziam ainda».

E assim foi. Não recordo se alguém desmaiou, mas foi como me tinham dito. Claro que o estado de quase insolação também ajudava. Por acaso também parou na minha frente, com o caco a brilhar de um lado e do outro lado o olho a vazar-me profundamente, as comissuras dos lábios torcidas para baixo e um semblante tétrico. Não era mais alto do que eu. Mantive-me firme olhando-o com a mesma intensidade, mas evitando ares de desafio que poderiam deixar-me marcado na sua memória. Mas é verdade que me incomodou.
(...)

[A este propósito, talvez venha a calhar um dia, tecer alguns comentários sobre a minha inadequação (intrínseca) ao serviço militar e à sua hierarquia, apesar do respeito que me merecem aqueles que seguem esse modo de vida. Pode ser que até dê uma boa polémica...].

Acabado o discurso seguiu-se o desfile das tropas. Junto uma fotografia e um corte da mesma com o Grupo de Combate a desfilar.

(continua)

Texto e fotos: © António Murta
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Nota do editor

Primeiro poste da série de 16 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14373: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (1): Embarque para a Guiné, 16 de Março de 1973