Mostrar mensagens com a etiqueta Caderno de Memórias de A. Murta. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Caderno de Memórias de A. Murta. Mostrar todas as mensagens

terça-feira, 15 de março de 2016

Guiné 63/74 - P15859: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (42): Os Designers do desenrascanço

1. Em mensagem do dia 5 de Março de 2016, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos mais uma das suas Memórias.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74

42 - Os Designers do desenrascanço

Há tempos, em conversa com um senhor Tenente-Coronel, Secretário da Direcção do Núcleo da Figueira da Foz da Liga dos Combatentes, falava-lhe das muitas carências por que passaram os combatentes na Guiné, onde ele não esteve. A certa altura a conversa derivou para as acomodações, conforto, mobiliário, etc., das Unidades no mato, assunto, entre outros, pelos quais mostrou curiosidade. Falei-lhe de como, coisas tão simples como sentarmo-nos numa cadeira à mesa para comer, escrever ou abrir um jornal, depois de uma chegada do mato onde se passou a noite, tantas vezes em condições de extrema adversidade, de como, dizia, coisas tão simples podiam dar a sensação de um grande bem-estar, de uma gratificante recompensa pela noite mal passada, pelo patrulhamento esgotante, enfim. Compreendo que quem nunca passou por um cenário de guerra, tendo de viver em condições precárias com carências de toda a ordem, tenha dificuldade em compreender isto, tal como o significado de um simples banho ou o de levar à boca uma garrafa de cerveja gelada. Mas respeito muito quem, não tendo passado por isso, se mostra interessado em saber como era e dá mostras de ter aumentado a admiração pelas nossas tropas naqueles cenários. Falei-lhe, ainda, de como em vários domínios essenciais, a sobrevivência muitas vezes dependia da capacidade de “desenrascanço” de uns quantos. Até o conforto era melhorado por “carpinteiros” geniais que, improvisando, faziam sair do nada, mesas, cadeiras, estantes, arcas e armários. Porque nem todas as Unidades tinham esses bens básicos distribuídos.

Mas quase todas as Unidades tinham nas suas “esplanadas”, à frente das messes e das camaratas, belíssimas cadeiras feitas de aduelas de pipas e barris..., saídas da imaginação e das mãos de designers de alto gabarito. Que não deixaram marca nas suas obras e de quem hoje ninguém se lembra. O Sr. Tenente-Coronel ficou muito surpreendido: “Com aduelas de barris? Gostava de ver. Por acaso não tem alguma fotografia que me possa mostrar?” Prometi-lhe mostrar ou fazer uns desenhos para ele ver melhor. São esses apontamentos desenhados, uma pequena amostra tirada de algumas fotografias, que aqui deixo como lembrança e gratidão a todos os nossos “designers/carpinteiros” da Guiné do tempo da guerra.

Imagem 1 – Cadeira da “esplanada” da messe de oficiais de Nhala. Nela cheguei a fotografar a “Cilinha”, Cecília Supico Pinto, Presidente do Movimento Nacional Feminino.

Imagem 2 – Cadeira desenhada a partir de uma fotografia de um Tabanqueiro recente no nosso Blogue, que esteve em Aldeia Formosa e em Buba.


Imagens 3 e 4 – Cadeiras da “esplanada” da messe de oficiais de Buba.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 8 de março de 2016 Guiné 63/74 - P15833: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (41): Estação de Tomar, 28 de Julho de 1983 e Uma White cansada da guerra

terça-feira, 8 de março de 2016

Guiné 63/74 - P15833: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (41): Estação de Tomar, 28 de Julho de 1983 e Uma White cansada da guerra

1. Em mensagem do dia 5 de Março de 2016, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos mais uma das suas Memórias.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74

41 - Estação de Tomar, 28 de Julho de 1983 – (quinta-feira)

Decorridos 10 anos e cinco meses, revejo hoje o local de embarque, rumo a Lisboa e à África desconhecida, de umas centenas de jovens condenados à guerra colonial, que no RI 15 desta cidade se constituíram como Batalhão. Sento-me numa das enormes esferas de pedra que ornamentam e ladeiam a escadaria de acesso a este terminal ferroviário e por mim passam, indiferentes, em correrias despreocupadas, magotes de jovens que se apressam a ir comprar bilhete para as suas viagens de fim-de-semana. Nos seus semblantes não pairam as nuvens que ensombravam os jovens de há dez anos atrás.

Foto 1 - Estação de Tomar [Foto tirada de gelasbrfotografias, com a devida vénia]

O facto de estar novamente aqui, hoje, faz-me sentir uma estranha serenidade. Vêm-me à memória, com impressionante nitidez, as imagens do meu embarque, aqui mesmo nesta gare. E posso imaginar também como teria sido a enorme confusão do embarque do meu Batalhão, a que eu não assisti por ter partido dois dias antes para Lisboa com a missão de inspeccionar e aceitar o navio que nos levaria para a Guiné. Imagino ainda o movimento das viaturas militares neste largo da estação, as gares a transbordar de jovens angustiados, as vozes de comando, os comboios apinhados a partir. Foi assim que os recebi no Cais da Rocha do Conde de Óbidos em Lisboa umas horas depois.

Para tranquilizar os pais, e num gesto atencioso, o Comandante do Batalhão, Ten-Cor Inf César de Andrade e Sousa, enviou-lhes uma longa carta pouco antes do embarque. Transcrevo algumas partes:

REGIMENTO DE INFANTARIA N.º 15 

Tomar, 27 de Fevereiro de 1973 

Exmo. Senhor, 

Desejaria ter escrito por meu punho e individualmente aos familiares mais próximos e muito particularmente aos Pais, de tantos quantos comigo vão partir para o Ultramar constituindo o Batalhão de Caçadores 4513. (...).

É meu único e firme propósito, dado a vossa qualidade de Pais, tentar minorar-lhes o desgosto da próxima separação do vosso filho, procurando com todos os meios ao meu alcance descansá-los em tudo e em tanto, quanto os meus préstimos possam alcançar e ser-lhes útil. (...). 

Primeiro que tudo e a partir deste preciso instante, podem ficar certos, que neste Batalhão tudo se fará para que o vosso filho se sinta dentro dele como numa sã e autêntica família, que a todo o custo procurará substituir os senhores – os seus próprios PAIS – (...). O vosso filho e meu soldado, será a meus olhos alguém que me diz muito e a quem oferecerei com todo o entusiasmo, o melhor que seja capaz de encontrar em mim, incluindo claro, a minha amizade, a que já tantos direitos tem. (...). 

Outro ponto que desejo focar, é que os Senhores não necessitarão, seja de quem for para saberem ou para que melhor se cuide do vosso filho, pois estarei sempre pronto a atendê-los e servi-los, logo que se me dirijam. Ele próprio lhes dirá como escrever-me para o Ultramar onde ficarei à vossa inteira e absoluta disposição. (...).

Para terminar desejo ainda informá-los que todos os Senhores Oficiais e Sargentos que comigo orientarão a Unidade e as suas Companhias estão animados dos mesmos propósitos, (...), que o vosso filho encontrará sempre à sua volta um grupo de graduados que muito o estimam, e que tudo vão fazer para o devolver ao vosso lar como um homem de carácter, são e brioso, e um SOLDADO que soube servir PORTUGAL honrando o nome que usa e o dos Pais que tão bem o souberam criar e educar. (...). 

Que aos Senhores e ao vosso filho tudo corra bem e que dentro em pouco tempo seja ele próprio que junto de vós comprove tanto quanto acabo de vos afirmar. 

Por Portugal, para todos nós e especialmente para vós, as maiores felicidades. 

O Comandante do Batalhão 
CÉSAR EMÍLIO BRAGA DE ANDRADE E SOUSA 
Tenente-Coronel de Infantaria 
SPM - 7088 

[O Ten-Cor Andrade e Sousa abandonaria a Guiné, por doença, logo no início da comissão, sendo substituído pelo Ten-Cor Carlos Alberto Simões Ramalheira].

 *********

Agora tudo está calmo aqui no largo, nesta quentíssima tarde de Verão. Olho em redor e tudo parece estar rigorosamente na mesma, e está, mas tudo é diferente. O grande relógio no frontispício da estação é o mesmo, marca as mesmas horas, mas de um tempo novo. Na minha frente, no largo fronteiriço, o Monumento à Grande Guerra é o mesmo, mas o soldado que o encima já não é: antes, para os jovens de futuro incerto que passavam a seu lado ao dirigirem-se à Estação, era um marco de pesadelo por representar outras gerações que a guerra ceifou. Era um fantasma e uma premonição. Hoje, embora ainda corcovado sob o peso do equipamento, lembra apenas os que tombaram na Primeira Grande Guerra, sem qualquer outra conotação. Daqui a alguns anos quem se lembrará dos que tombaram na Guerra Colonial?

Foto 2 - Monumento aos Mortos da Primeira Grande Guerra (1914-18), junto à estação de Tomar. [Tirada de olhares.com, com a devida vénia].

*********

Histórias marginais (8): Uma White cansada da guerra

A imagem que sempre me ficou ligada à White, desde que um dia a vi à distância a deslizar de mansinho numa picada com um vulto em pé, foi a de um desfile numa parada com Hitler, hirto nela, de braço estendido. O nosso cérebro tem destas coisas. Ainda mais, um perfeito disparate, porque o Hitler não gostava muito de viaturas americanas. Mas associei-a sempre à Segunda Guerra Mundial, está claro. Porém, quando a conheci mais de perto sem que pudesse disfarçar as suas fraquezas, percebi que estava redondamente enganado. Afinal, devia ter sido numa White, e não a cavalo, que o D. Afonso Henriques em 1169 partiu a sua perna ao passar as portas de Badajoz na sua fuga precipitada. No que resultou ter ficado prisioneiro do seu genro D. Fernando II de Leão. O caso ficou conhecido por desastre de Badajoz, não pela derrota militar ou pela fractura da perna do nosso rei, mas sim porque lhe ficaram com a White, obrigando-o mais tarde a ir a cura de águas nas termas de Lafões sentado numa cadeira de rodas, diminuído e vexado aos sessenta anos de idade.

Isto vem a propósito de uma visita que ela, a White, nos fez em Nhala já muito derreada. Melhor: quem nos visitava eram duas fogosas Chaimites, essas sim, visitas importantes, cabendo-lhe a ela fazer a sua protecção, mas que acabaria por ser o alvo das atenções relegando para segundo plano o resto da Cavalaria e acompanhantes, nada menos que o Comandante do Batalhão Ten-Cor Carlos Ramalheira e o Capitão da CCAV 8350 António dos Santos Vieira que viria a comandar o destacamento de Colibuia e que um dia fora meu instrutor em Mafra com a alcunha de Ferro-bico, por qualquer coisa que tinha a ver com o seu nariz.

Tarde belíssima em Nhala, aproximam-se as visitas e eu corro a buscar a máquina fotográfica, pois não eram todos os dias que a Cavalaria nos visitava com todo o seu esplendor. Passo pelas duas Chaimites já paradas e avanço para ir cumprimentar o pessoal, mas fico de frente para a White que se aproxima na minha direcção. Eis senão quando, estupefacto, vejo sair um dos rodados da frente que, adiantando-se à White, vem oscilando, cai-não-cai, até se encostar mansamente a um poste providencial. A White ainda andou uns metros no encalço da roda rebelde, mas depois estacou e inclinou-se sobre ela numa reverência, parecendo dizer-lhe: “Deixa-te de amuos, rodinha... Volta para o teu lugar”. Fotografei tudo com a frieza possível, para mais tarde digerir o episódio insólito a que acabava de assistir. Muito mais tarde, quando de Espanha me chegaram os slides, não tive dúvidas de que tudo acontecera assim mesmo. A comprovar, deixo a reportagem a seguir.

Foto 3 – Nhala, 1974 – A White e a sua roda rebelde.

Foto 4 – Nhala, 1974 – Militares da Cavalaria (?) avaliam a delicada situação.

Foto 5 – Nhala, 1974 – Dois meninos de Nhala observam à distância a assembleia à volta da White.

Foto 6 – Nhala, 1974 – Enquanto se aguarda a evolução dos acontecimentos, o Alf Mil Murta faz uma pose junto de uma das Chaimites.

Foto 7 – Nhala, 1974 – As visitas, sem outro remédio, aguardam a reparação da White junto à messe de oficiais. Em primeiro plano na foto e fixando-se na objectiva, um militar que não recordo. Por trás dele olhando o chão, é o Alf Mil Tibério Barros de Nhala; no alpendre e de camuflado novo, o Cap. Santos Vieira, tendo à sua esquerda o Cap. Mil Brás Dias de Buba e o Alf Mil Carlos Lopes de Nhala; à direita na foto e de mãos nas ancas, o Cap. Mil Braga da Cruz tendo à sua direita, meio encoberto, o Comandante do BCAÇ 4513, Carlos Ramalheira. Em audiência, um soldado de Nhala com um problema qualquer.

Foto 8 – Nhala, 1974 – Finalmente, a partida dos camaradas da Cavalaria, escolta e ilustres visitas.

Foto 9 – Nhala, 1974 – Grupo de escolta que julgo ser da CCAÇ 18 de Aldeia Formosa. Alguns habitantes da tabanca assistem à partida, talvez decepcionados, creio, a avaliar pela mercadoria no chão que ficou sem boleia desta vez. Não se vislumbra a White nesta partida, mas não recordo se ficou em Nhala, ainda desconseguida de seguir viagem.

(continua)
____________

Nota do editor

Poste anterior de 1 de março de 2016 Guiné 63/74 - P15814: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (40): A moeda relíquia e as mães dos combatentes

terça-feira, 1 de março de 2016

Guiné 63/74 - P15814: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (40): A moeda relíquia e as mães dos combatentes

1. Em mensagem do dia 26 de Fevereiro de 2016, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos mais uma das suas Memórias.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74

40 - A moeda relíquia e as mães dos combatentes

A minha mãe, nos tempos que antecederam o meu embarque para a Guiné, não conseguia esconder o seu enorme sofrimento, causado pela ansiedade e pelo medo. Mas há já vários anos que a ideia do meu embarque a atormentava, descrente de uma reviravolta política que pusesse fim à guerra colonial. Nas vésperas da minha partida, para minha surpresa, entregou-me uma moeda de 10$00 e disse-me que a levasse comigo para a Guiné, mas que tinha de regressar com ela, para lha devolver. Naquele momento não pude evitar rir-me da sua imaginação e do ar solene que emprestou à ocasião. Mas depois, percebendo que ela estava a tomar aquilo muito a sério, prometi-lhe que cumpriria a sua vontade. Longe de imaginar que, num futuro distante, iria valorizar com carinho a lembrança da entrega da moeda e a própria moeda, mesmo se, durante muitos anos, tivesse esquecido tudo nos recônditos da memória.

Um dia, após o seu falecimento em 2001, encontrei entre as suas coisas pessoais um papelinho muito bem dobrado a guardar uma moeda de 10$00. Foi emocionado que li o papelinho, uma pequena folha de agenda de 1965 que, no interior dizia:
“Esta moeda de 10$00 (1971) é uma relíquia. Acompanhou o António à Guiné e voltaram juntos”.

Saberia a minha mãe que outros, em tempos diversos e remotos, também se fizeram acompanhar de relíquias nas suas viagens aventureiras? É que, por absoluta casualidade, há meia dúzia de anos, ao ler uma revista de um semanário qualquer, deparei-me com uma imagem e uma legenda que me deram um sobressalto:
“São Rafael: esta imagem foi à Índia com o Gama e de lá tornou”.
Acudiu-me logo a ideia de juntar esta relíquia à minha. Digitalizei a imagem do São Rafael, procurei a fotografia que tinha feito da minha moeda e juntei as duas, como mostro a seguir.

Relíquias

Ainda guardo a minha moeda religiosamente embrulhada no mesmo papelinho, pelo que significou para a minha mãe, antes e depois do meu regresso. Quanto deve ter sofrido, ela e todas as mães daquela época... Em 1974 tinha-me a mim na Guiné e ao meu irmão José Alberto em Moçambique. Fortuna a dela e nossa que tivéssemos regressado sãos e salvos, sem as tragédias que se abateram sobre tantas famílias daquela década.

************

Mulheres de Buba

Não recordo a data (1973 ou 1974) nem a razão deste evento em Buba, com grande aparato de viaturas, mulheres e militares à mistura, mas garanto que foram momentos de grande descontracção os que nos proporcionaram as mulheres de Buba, com a sua alegria, vitalidade e carácter forte. Reconheço na assistência, soldados do meu grupo de combate e de outro grupo de Nhala. No meio da roda de dançarinas, pode ver-se o Cap. João Brás Dias da 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 de Buba, animando a festa. Na foto 2, estou eu, sentado num Unimog entre as mulheres.
Tudo isto é o pretexto para deixar a seguir um pequeno álbum.











Mulheres de Buba.

Fotos: © António Murta
____________

Nota do editor

Último poste da série de 23 de fevereiro de 2016 Guiné 63/74 - P15784: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (39): De 1 a 24 de Agosto de 1974

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Guiné 63/74 - P15784: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (39): De 1 a 24 de Agosto de 1974

1. Em mensagem do dia 19 de Fevereiro de 2016, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos mais uma das suas Memórias, a 39.ª.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74

39 - De 1 a 24 de Agosto de 1974 (quinta-feira)

Parti finalmente de Bissau rumo à Metrópole e a casa, para gozar umas férias que, de tão merecidas, se prolongaram até à minha passagem à disponibilidade em 28 de Setembro/74, não mais retornando à Guiné.

Ironia das ironias, ao fim de 18 meses de comissão num território em que cada metro quadrado era, potencialmente, um bom lugar para se morrer, foi a caminho de casa que tive o meu último susto de morte. Sem exagero, vi-a mesmo ao lado. O avião em que seguia fez escala na Ilha do Sal em Cabo Verde, como era frequente. Tenho uma vaga lembrança de que estava uma tarde magnífica e de que nos fizemos à pista com aparente normalidade. Contudo, ao poisar na pista, o Boeing fê-lo batendo apenas com o trem de aterragem do lado direito e eu, à janela desse lado, julguei ver o reactor sob a asa que rasava o chão, chispar na pista. Fiquei sem fôlego. Entretanto, ainda em velocidade vertiginosa, o avião aponta a asa ao céu e vejo (vimos todos com terror) o reactor da asa oposta raspar junto ao chão desse lado. Até perder velocidade e estabilizar já próximo das instalações do aeroporto, foi assim a alternância entre as duas asas, e só aos poucos percebemos, com alívio, que era cada vez maior a distância do reactor ao chão. Com o avião parado quase dava para um homem em pé passar sob o reactor...

****** 

Foi indescritível o país que vim encontrar na minha terra, neste mês de Agosto. Tão indescritível que me vou poupar a revelações do que, quase todos conheceram antes de mim, evitando ainda o risco de ser panfletário ou demasiado optimista quanto ao futuro que se avizinhava. Mas para quem como eu, nasceu e cresceu na mais cinzenta das ditaduras, num país amordaçado até ao sufoco, não posso deixar de revelar a mais doce das liberdades com que me deparei: a liberdade de expressão.

“Sei que estás em festa, pá / Fico contente”

****** 

No final deste mês de Agosto/74, no dia 29, destaque para a ratificação do acordo com o PAIGC sobre a independência da Guiné, feita pelo Presidente da República António de Spínola.

Ainda no fim de Agosto e depois de ver gorado o meu regresso à Guiné, como dei conta anteriormente, fiquei algum tempo em estado de choque perante o facto consumado: o meu Batalhão tinha regressado à Metrópole durante o meu período de férias. Passado esse período difícil e arrumadas as diligências que se impunham, aos poucos, virou-se o meu pensamento para aqueles que não voltaria a ver e que me haviam suavizado os dias na Guiné. Ainda não eram as saudades a amolecer-me a alma, como ocorreria mais tarde, mas a lembrança penosa de que não me despedira de quem gostava e a dúvida do que terão ficado a pensar de mim. De facto, embora não houvesse motivos, poderia até parecer que me antecipara de forma calculada à saída da tropa de Nhala. De todos os que deixei sem um abraço, camaradas de armas e habitantes da tabanca de Nhala, ficou-me até hoje uma saudade profunda. Que caminhos terão seguido os meus soldados e os demais camaradas? Que será feito dos meus amigos e amigas da tabanca? É de alguns destes últimos que, com nostalgia, aqui deixo uma breve galeria.

Foto 1 – Nhala, 1973: Eu e o Manel, rapazinho inteligente e muito dedicado à tropa, que passava o dia quase todo no aquartelamento. Tinha uma especial consideração por mim e eu ajudava-o no que podia. 

Foto 2 – Nhala, 1973: Jomel, um caso de excepção na ajuda ao furriel enfermeiro, passava todo o seu tempo na enfermaria. Safado, ria-se quando o confrontávamos com a sua condição de muçulmano que comia do nosso rancho, desde as salsichas até ao pé-de-porco. 

Foto 3 – Nhala, 1973: Jarrai, “a bela”. Provocadora e esquiva, não permitia que lhe tocassem. Se tivesse acontecido haver uma Rainha Jinga na Guiné, seria ela.

Foto 4 – Nhala, 1973: Eu e a Rosa, minha primeira lavadeira. Competente mas trituradora de botões de fardamento, como só ela. 

Foto 5 – Nhala, 1974: A minha segunda e definitiva lavadeira, Fátima. Dedicada e delicada só tinha qualidades. E falava português... 

Foto 6 – Nhala, 1973: Mulheres recolhem água na fonte. 

Foto 7 – Nhala, 1973: Eu, na fonte junto de lavadeiras. 

Foto 8 – Nhala, 1974: Eu, na fonte cumprimentando uma bajuda. 

Foto 9 – Nhala, 1974: O Alf Mil Neto da CCAV 8351, na altura com o seu grupo em Nhala a dar apoio às obras na estrada A. Formosa-Buba. Aqui a dialogar com a Rosa, parece-me.

Foto 10 – Nhala, 1974: Mulheres e bajudas recolhem água e lavam o “corpinho”. 

Junto mais duas imagens que muito me tocam pela nostalgia de um tempo que eu vivi mas que passou à história. Digo-o sem falsos patriotismos e sem ambiguidade quanto ao fim desse tempo que, mais cedo ou mais tarde, teria de ocorrer.

Foto 11 – Nhala, 1973 em dia de coluna, com a bandeira lá no alto. 

Foto 12 – Nhala, 1973: Cerimónia do arrear da bandeira que ainda se repetiria por mais um ano, aproximadamente. Como se pode ver, estava um grupo de combate a entrar, que pára em sentido. Mesmo as mulheres que vinham da fonte com água à cabeça paravam nestas ocasiões, tal como os homens e as crianças. 

****** 

Transcrevo a última parte da HU relativa a acontecimentos que já não testemunhei.

História da Unidade do BCAÇ 4513: 

Período de 01AGO a 20AGO74. [Na verdade, vai até ao dia 24]

AGO74/02 – Com uma cerimónia simples, inaugurou-se um novo campo de jogos de futebol de “cinco” no aquartelamento de A. FORMOSA. Este campo passou a chamar-se “Campo 1.º DE MAIO”.

- Comandante deslocou-se a BISSAU a fim de tratar assuntos relacionados com a desactivação da CCAÇ18 e PEL CAÇ NAT.

- Apresentou-se de licença disciplinar o Exmo. Major DIAS MARQUES, 2.º Comandante do Batalhão.

AGO74/03 – Iniciou-se o levantamento de todos os campos de minas do Subsector de A. FORMOSA.

- A secção do 19.º PEL ART sediado em A. FORMOSA regressou a BUBA. O 14.º PEL ART, sediado em CUMBIJÃ, foi deslocado para A. FORMOSA.

- Comandante regressou de BISSAU.

AGO74/05 – Comandante e 2.º Comandante deslocaram-se a COILBUIA e CUMBIJÃ.

AGO74/07 – Foi desocupado o Destacamento de CUMBIJÃ e entregue ao PAIGC. Da cerimónia constou o arrear da Bandeira Nacional e o hastear da Bandeira da Rep. GUINÉ-BISSAU, com honras prestadas por dois GR COMB da CCAV 8350 e um Bigrupo do PAIGC.

Estiveram presentes além do Comandante, 2.º Comandante, Oficiais, Sargentos e Praças do Batalhão, comissários do PAIGC, Comandante do 3.º CE, Autoridades Gentílicas e população.

AGO74/08 – Estiveram presentes em A. FORMOSA, o Exmo. Comandante do COP-5, acompanhado de alguns elementos do PAIGC entre os quais o Comissário JULINHO.

AGO74/09 – Foi desocupado o Destacamento de COLIBUIA e entregue ao PAIGC. Da cerimónia constou o arrear da Bandeira Nacional e o hastear da Bandeira da Rep. GUINÉ-BISSAU, com honras prestadas por dois GR COMB da CCAV 8350 e um Bigrupo do PAIGC.

Estiveram presentes além do Comandante, 2.º Comandante, Oficiais, Sargentos e Praças do Batalhão, comissários do PAIGC, Comandante do 3.º CE, Autoridades Gentílicas e população.

AGO74/10 – O Exmo. 2.º Comandante deslocou-se a BUBA e NHALA.

AGO74/12 – Por determinação do Comandante Militar deslocou-se para BISSAU, o Comandante deste TEN COR RAMALHEIRA, a fim de assumir novas funções.

Passou a comandar o Batalhão o Major DIAS MARQUES.

- Esteve presente em A. FORMOSA o Exmo. Major VEIGA DA FONSECA, a fim de tratar assuntos relacionados com a desactivação da CCAÇ 18 e PEL CAÇ NAT 55, 68 e 69.

AGO74/13 – Comandante Interino deslocou-se a BUBA, a fim de assistir a embarque de materiais para BISSAU.

AGO74/14 – O OF/OP/INFO deslocou-se a BUBA e NHALA a fim de tratar assuntos relacionados com evacuação de materiais.

AGO74/15 – Comandante Interino deslocou-se a BUBA a fim de assistir a embarque de materiais evacuados do Sector e com destino a BISSAU. - Esteve presente em A. FORMOSA Comandante AZEVEDO COUTINHO da Marinha de Guerra. AGO74/17

- Esteve presente em A. FORMOSA o Cap. FONSECA ALFERES da COM. UN. AFRICANAS a fim de tratar assuntos relacionados com a desactivação das Unidades Africanas do Sector.

AGO74/18 – Com a vinda do Tesoureiro de BISSAU, e em cumprimento da Circular 12/CMD do Comando-Chefe, processou-se à desactivação da CCAÇ18, com entrega de fardamento, armamento, munições e equipamento, recebendo todos os militares todos os seus vencimentos até 31DEZ74. Foram também desactivados nos mesmos moldes o 14.º PEL ART (14) e 2.º PEL BAAA 7040. Todas estas operações decorreram na melhor ordem.

AGO74/19 – Foram desactivados nos moldes da Circular 12/CMD os PEL CAÇ NAT 55, 68 e 69.

- O 1.º PEL/EREC 8840 regressou a BAFATÁ.

- O OF/OPER/INFO deslocou-se a BUBA e NHALA.

AGO74/21 – Foram desocupados e entregues ao PAIGC os Destacamentos da CHAMARRA e PATE EMBALO.

- Comandante Interino deslocou-se a BUBA a fim de assistir à evacuação de materiais para BISSAU.

AGO74/24 – O OF/OPER/INFO deslocou-se a BUBA e NHALA.

****** 

Dado que nada mais consta da História da Unidade do BCAÇ 4513, nem do Resumo dos Factos e Feitos Mais Importantes da mesma Unidade, anoto mais quatro desactivações de aquartelamentos do Sector que aqui importa, transcritos, com a devida vénia, da publicação que fez no nosso Blogue, o Luís Gonçalves Vaz, filho do Cor Cav Henrique Gonçalves Vaz (1922-2001), último Chefe do Estado-Maior do CTIG (1973/74):

MAMPATÁ – 29 de Agosto de 1974;
ALDEIA FORMOSA – 31 de Agosto de 1974;
NHALA – 2 de Setembro de 1974
BUBA – 4 de Setembro de 1974

(continua)
____________

 Nota do editor

Poste anterior da série de 16 de fevereiro de 2016 Guiné 63/74 - P15755: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (38): De 10 a 31 de Julho de 1974

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Guiné 63/74 - P15755: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (38): De 10 a 31 de Julho de 1974

1. Em mensagem do dia 11 de Fevereiro de 2016, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos mais uma das suas Memórias, a 38.ª.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74

38 - De 10 a 31 de Julho de 1974

Da História da Unidade do BCAÇ 4513: 
(continuação)

JUL74/10 – (...). Continua a verificar-se o cessar-fogo tácito em todo o TO. Prossegue a mentalização das populações, militares e milícias africanos, como preparação para a Independência. Continua a notar-se a adesão ao PAIGC da população, especialmente dos mais jovens, notando-se por enquanto nos Homens Grandes uma certa reserva.

JUL74/11 – (...). Após a passagem por A. FORMOSA de um Furriel dos Comandos Africanos, começou a esboçar-se na CCAÇ 18 uma mudança de atitude quanto ao problema da entrega do armamento e passagem à disponibilidade. Embora ainda não tivessem sido recebidas directivas a este respeito, dentro da mentalização que se vem fazendo tem-se de facto notado ultimamente esta mudança de atitude.

JUL74/19 – (dos Factos e Feitos, pág. 31). A fim de assistir a uma reunião no Comando-Chefe, respeitante a contracção do dispositivo das NT e receber directivas, seguiu para BISSAU o Comandante.

Tendo sido recebidas as directivas para desactivação dos Pelotões de Milícias, foram reunidos no Comando do Batalhão, o Comandante do Batalhão, Comandante da Companhia de Milícias, assim como os respectivos Comandantes de Pelotão, a quem foi comunicado, em sequência da mentalização que se vinha fazendo do antecedente, a maneira como iria ser feito o seu desarmamento e as condições em que os referidos milícias continuariam a usufruir das suas regalias.

Após várias trocas de impressões ficou assente que se iniciava o respectivo desarmamento no dia seguinte. Quanto às populações que tinham armamento distribuído para colaborarem nas autodefesas, e para se proceder ao seu desarmamento, foram reunidos neste Comando todos os “Homens Grandes”, entre os quais se encontravam o Régulo IAIA e o CHERNO SECUNA.

JUL74/20 – Iniciou-se sem quaisquer espécies de problemas o desarmamento dos Pelotões de Milícia do Sector S-2.

JUL74/21 – Comandante regressou de BISSAU.


Das minhas memórias: 

21 de Julho de 1974 (domingo). Guerrilheiros do PAIGC em Nhala (novamente). 

[Salto as notas deste dia. Quero realçar a seguir, algumas fotografias que ajudam à compreensão da época que se vivia. (Julgava que já tinha sido claro a esse respeito). Estas fotografias são importantes, na medida em que mostram o contexto em que se faziam certos “disparates” (como vestir uma camisola com a cara do Amílcar Cabral, fazer-se fotografar ao lado do inimigo, etc.) que tanto chocam hoje os veteranos que não viram o fim da guerra. É devido a esse contexto que eu desvalorizo esses disparates e, se os compararmos, por exemplo, com o hastear da bandeira do PAIGC nos quartéis ou nas tabancas, quando Portugal continuava a manter ali a soberania, o que se dirá então? Chocante? Estou convencido que isto estava a acontecer um pouco por todo o lado na Guiné e, o que ontem era chocante, hoje banalizou-se, perdeu importância e não tem retorno].

Nesta data, 21-07-74, chegaram mais uma vez os guerrilheiros. Pediram autorização para dormirem na escola. Aí, hastearam a bandeira do PAIGC e, quando chegou a hora, procederam à cerimónia de arrear a bandeira. O único incidente passou-se comigo. O alferes do PAIGC no fim da cerimónia abordou-me (eu estava a fotografar), para dizer que quando estavam a entrar Nhala e nós procedíamos ao arrear da nossa bandeira, todo o bigrupo parou em sentido, mesmo os que ainda estavam fora do aquartelamento. Agora ali, eu não mandara pôr em sentido os soldados – e eram muitos – que assistiam ao arrear da bandeira deles... Achou que não houve retribuição nas honras à bandeira. Como se as honras devidas à bandeira de um país soberano, fossem as mesmas a prestar à bandeira de um partido que, oficialmente, ainda não passava disso.

[Era este contexto concreto o que se vivia e não outro, como ainda há dois ou três meses atrás. E que adiantava agora lembrarmo-nos que foram eles que feriram e mataram os nossos amigos e companheiros de armas? Tão despropositado como admitir-lhes que entrassem pelo aquartelamento adentro, à procura de quem lhes matou o familiar ou o camarada. Todos sabíamos que o nosso convívio com eles estava por dias apenas e, com maior ou menor frieza e distanciamento, tínhamos de lidar com eles sem conflitos desnecessários, sendo certo que era com eles que seriam tratadas as formalidades da entrega do território. 

Receio que tudo o que ficou dito possa parecer uma grande necessidade de justificação da minha parte. Deixo já claro: não o faria e não voltarei a abordar o assunto. Mas gostava, sinceramente, que quem não viveu aquele período inédito do fim da guerra, pudesse partilhar a minha informação, histórias e fotografias (mais as dos outros que “fecharam” a guerra), sem as tentar compreender à luz de um tempo passado. Mas, até a nós, o tempo novo, de tão novo e tão inédito, todos os dias nos surpreendia: nada estava previsto, pouco se conseguia planear e a maioria das situações eram resolvidas à medida que surgiam. Apenas as directivas superiores, quando chegavam, eram aplicadas sem empenhos imaginativos. 

Nota: As fotografias a cor, derivadas de slides, são minhas. As outras foram-me cedidas pelo meu amigo ex-Furriel Mil Trms José Roque, a quem agradeço]. 

Foto 1 – Nhala, 21-07-1974. Guerrilheiros do PAIGC na tabanca. Sempre muito disciplinados e contidos.

Foto 2 – Nhala, 21-07-1974. O Alferes Mil. Campos Pereira, actualmente Comandante da Companhia, circula pensativo por entre os guerrilheiros.

Foto 3 – Nhala, 21-07-1974. Alferes do PAIGC, Fur Mil Trms J. Roque e um guerrilheiro.

Foto 4 – Nhala, 21-07-1974. Alferes do PAIGC e alguns militares de Nhala trocando impressões.


Fotos 5 e 6 – Nhala, 21-07-1974. Bandeira do PAIGC hasteada junto à escola.

************ 

Notas quase “telegráficas” dos meus últimos dias na Guiné.

20-07-1974 – Ainda não sei se terei de cancelar as férias. Os acontecimentos estão a evoluir rapidamente. (No dia seguinte anotaria que tinha sabido de Bissau que estava tudo pronto para viajar); temos já directrizes sobre a forma de entregarmos as instalações e os equipamentos ao PAIGC; recebemos ordens de desarmar as populações; o nosso armamento está ser limpo e encaixotado; o Comandante do Batalhão foi chamado a Bissau para receber instruções.

22-07-1974 – A Companhia de Mampatá já tem dois grupos em Buba que embarcam amanhã. Os outros dois em Mampatá, (...); continuam a sair companhias do teatro de operações (TO).

28-07-1974 – Sigo amanhã para Bissau. Em 1 de Agosto embarco de férias para a Metrópole; por aqui muita chuva; continuam a sair Unidades.

************ 

Retomo a História da Unidade. 

JUL74/22 – Pelas 10h00 quando o Comandante e o Oficial de Operações se deslocavam para MAMPATÁ contactaram com GR/PAIGC, estimado em 40 elementos armados e que se encontravam estacionados junto do Reordenamento/ÁFIA, e cujo Chefe se encontrava em MAMPATÁ.
Contactado o mesmo neste Destacamento, em conversa cordial disse chamar-se RAYMO CHAMBU e obedecendo a ordens superiores, tinha saído há dois dias de KANSEMBEL para efectuar um patrulhamento a esta região, mas que nesse dia regressaria.

- Procedeu-se em A. FORMOSA à inauguração da Sala do Soldado, que tomou o nome de Sala “25 de Abril”.

JUL74/23 – Completou-se o desarmamento dos Pelotões de Milícia de CUMBIJÃ, A. FORMOSA, COLIBUIA, ÀFIA e MAMPATÁ.

- CART 6250 deixou o Subsector de MAMPATÁ, seguindo para BISSAU, via BUBA, para aguardar embarque para a Metrópole.

- A pedido de duas comissões organizadas por militares da CCAÇ 18, e Milícias, foi pedido a BISSAU autorização para os mesmos se deslocarem ao Comando-Chefe para tratar de diversos assuntos relacionados com o desarmamento dos militares e algumas regalias pecuniárias dos milícias. [Sublinhado meu, tal como seguintes].

- Com o desarmamento dos Pel Mil de BUBA e NHALA, completou-se o desarmamento de todos os pelotões de Milícia do Sector S-2.

JUL74/24As comissões da CCAÇ 18 e Milícias seguiram para BISSAU via fluvial.

(...).

JUL74/28 – Escalou A. FORMOSA o NORD ATLAS. Neste avião regressou a comissão da CCAÇ 18, que em reunião havida neste Comando relatou as suas diligências em BISSAU.

JUL74/29Apesar das diversas reuniões havidas com elementos da CCAÇ 18, estas mostraram-se na disposição de não entregarem o armamento, mesmo aqueles que conforme comunicação da 1.ª Rep/CTIG, acabaram o tempo normal de serviço e têm de passar à disponibilidade.

Presume-se que esta sua atitude esteja relacionada, não só com a vinda do Furriel Comando Africano a A. FORMOSA, como também com atitudes tomadas pelo PAIGC em algumas regiões já sob o seu controle. 

(...).

JUL74/31 – Esteve presente em A. FORMOSA uma delegação da 4.ª Rep/CTIG, chefiada pelos Exmos Majores PIRES AFONSO e COSTA PINTO, que veio tratar de assuntos relacionados com a desactivação de COLIBUIA e CUMBIJÃ em particular e duma maneira geral da desactivação do Sector S-2.

- Acompanhados do Comandante deslocaram-se a COLIBUIA e CUMBIJÃ e acompanhado do Oficial de OP/INF deslocaram-se a BUBA e NHALA.

************ 

Eu já não iria assistir à desactivação de nada. A não ser à desactivação de mim próprio dali a um mês em Lisboa, bilhete na mão a sair de casa da tia no Restelo para o Aeroporto, telefone a tocar, não embarques, já regressaram todos, passou aqui um soldado de Coimbra em casa dos teus pais a avisar, que bom, podes voltar já para casa... [Uns segundos de silêncio, uma coisa a nascer-me no estômago, sem querer acreditar no que ouvia. A seguir, explodi]. Que bom, uma porra! Já pensaste que entregaram aquilo sem eu estar presente, vim sem me despedir de ninguém, vou lá deixar a roupa e o meu dólmen, os livros, os diários, o artesanato, o meu caixote de uísque, a minha pressão de ar 4,5, etc., etc. Que pulhice foi esta? Porque não me chamaram? E agora ainda tenho de pedir à tia que me deixe ficar para amanhã, a ver se descubro onde e quem me desactive de vez.

************ 

Deixo algumas fotografias da viagem de Aldeia Formosa para Bissau, com paragem em Catió. Sem o saber, estava a fotografar aquelas terras pela última vez. Não precisam legendagem.







Fotos 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 13.

(continua)
____________

Nota do editor

Poste anterior da série de 9 de fevereiro de 2016 Guiné 63/74 - P15728: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (37): De 1 a 8 de Julho de 1974