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sexta-feira, 13 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26917: Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) - X (e última) Parte : a guerra de nervos nos últimos seis meses




Guiné > Bissau > c- 1973/74 > Messe de Oficiais no QG/CTIG em Santa Luzia > "Eu, na messe e piscina em Santa Luzia;  ao fundo vê-se o ecrã de cinema, que funcionava à noite...Os sargentos podiam frequentar a piscina aos sábados, o cinema era acessível a oficiais e sargentos. 


Foto (e legenda): © Carlos Filipe Gonçalves (2025). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


O "senhor rádio", o Carlos Filipe Gonçalves (Kalu Nhô Roque (como consta na sua página no facebook):

(i) nasceu em 1950, no Mindelo, ilha de São Vicente, Cabo Verde;

(ii) foi fur mil amanuense, QG/CTIG, Bissau, 1973/74;

(iii) ficou em Bissau até 1975;

(iv) músico, radialista, jornalista, historiógrafo da música da sua terra, escritor, vive na Praia;

(v) membro da nossa Tabanca Grande desde 14 de maio de 2019, nº 790;

(vi) tem 28 referências no nosso blogue.
(*)


Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) 

IX (e última) Parte : a guerra de nervos nos seis últimos meses


Publico hoje os últimos extractos da 1.ª Parte do livro "Recordações de um Furriel Miliciano, Guiné 1973/74" (*)


Depois das férias em Cabo Verde na Ilha de S. Vicente, regresso a Bissau, no início de novembro  [de 1973], continuava a paranóia latente de guerrilha urbana. Uma situação que vinha de anos anteriores, mas era minimizada… existia, mas não se acreditava que existia! 

No bairro Cupelon e outros a explosão de granadas foi passando de ocasional a frequente, há confusões por tudo e por nada. Lembro-me da mãe de uma funcionária do “ChefInt” que morreu devido à explosão de uma granada! 

Ela estava numa festa, às tantas, um desconhecido foi impedido de entrar, por não ser convidado… momentos depois, ele lançou uma granada para o telhado! Bum! A estrutura do tecto descambou, um pau de cibe acertou no peito da infeliz, que estava sentada num canto. O autor deste acto… despareceu na escuridão!
 
Acontecimentos do género eram corriqueiros! (…).Nelson Herbert (citado anteriormente) que na época era um adolescente, recorda acontecimentos ocorridos desde 1972:

“Ataques atribuídos as células clandestinas dos nacionalistas do PAIGC em Bissau. Um engenho deflagra-se na viatura de um funcionário da PIDE-DGS estacionado junto a sede/cinema do Clube Desportivo, UDIB.” 

Manuel Amante também se lembra, ficou-lhe na memória o caso de “uma bomba que foi metida debaixo do carro de um graduado da polícia, que até era, mau! Não é? Tinha um Mercedes, na altura ele pavoneava-se com aquele Mercedes amarelo, tinha-o parado à porta da UDIB e foi colocada uma bomba que tinha sido transportada numa caixa de sapatos… (#)
 
No final de 1973 a situação em Bissau é extremamente tensa, todo o mundo está alerta e com medo. O ex-militar Abílio Magro e meu colega no QG fez o seguinte comentário:

 “Face ao crescente temor de que um dia a 'coisa' ia chegar a Bissau, o pessoal andava algo receoso e muito nervoso.” 

Nelson Herbert
recordou que “a tal distante guerra, travada contra os «homens do mato» (…) rompe o bloqueio da nossa ingenuidade e chega finalmente ao coração da capital provincial.” (…)

O fim-do-ano de 1973 para 74 passamo-lo de serviço, fechados no quartel! Dias antes do Natal tinha chegado uma ordem para colocar cortinas pretas em todas as janelas; logo depois, foram colocadas em todas as janelas. Dizia-se, era para evitar a localização dos edifícios através da luz, porque temia-se um ataque aéreo nocturno com aviões MiG que os turras tinham recebido em Conacri! 

Circulava no seio da tropa que a “ (…) Direcção Geral de Segurança (PIDE/DGS) na Guiné recolhera informações, dando conta que a guerrilha tem intenção, durante o Natal e o Ano Novo, de usar os MiG em bombardeamentos contra alguns aquartelamentos portugueses.”  (##)
 
Então, a malta preparou-se para o fim-de-ano… a borga seria nas repartições! As gavetas das secretárias ficaram abarrotadas de comes e bebes, que o pessoal foi comprando na cantina e trazia aos poucos às escondidas! 

No dia 31 de dezembro de 1973 saímos do serviço como sempre às 7 horas da noite, fomos jantar na messe. A partir das 20 horas voltámos ao serviço na repartição. Não havia nada para fazer! (…)

Mas, se em Bissau, a quadra do Natal e Ano Novo foi apenas um susto, no mato, a guerra continuava e estava no auge; o ex-Furriel Miliciano Enfermeiro, Abílio Alberto Tavares Faustino, recorda:

 Naquele mês de dezembro aconteceu o “(…) Não Natal de 73. A malta no Cantanhez , sobretudo, as guarnições de Cadique e Jemberém e mais a sul, a de Gadamael, vivia uma situação de exceção devido à crescente pressão por parte do IN (ou seja o PAIGC), aliada ao peso do factor psicológico e físico, o aumento de emboscadas (3 emboscadas, a 15, 17 e 18 de Dezembro) e flagelações que não deixavam de criar uma situação de insegurança. (…)

E assim, foi a passagem de ano, já estamos em 1974.

A queda de aviões Fiat e da localidade de Guileje, os ataques a Guidage e Gadamael, foram sem dúvida factos marcantes de 1973 que ainda estão na memória de todos; no meio da tropa continua a reinar a ansiedade! Mas, como já estamos acostumados com o clima de tensão, encaramos tudo com naturalidade e sempre numa perspectiva de ultrapassar as dificuldades. 

Assim, um início «atribulado» de Janeiro do novo ano de 1974, não é surpresa, pois a guerra continua. A «guerrilha urbana» não reconhecida como tal, vai estar agora bem visível… Uma realidade, que traz o medo e aumenta o sentimento de insegurança! (…)

Em meados de janeiro  [de 1974] soubemos que tinha sido lançada uma bomba contra um autocarro da Força Aérea… Que susto!"

O ex-militar Abílio Magro, citado anteriormente recorda: 

“Apenas me chegou alguma informação difusa de que teria sido colocada uma bomba no autocarro da Base Aérea, sem grandes consequências pelo facto de aquele se encontrar completamente vazio.” 

Nelson Herbert, citado anteriormente recorda: 

“Havia um muro mesmo defronte a Messe dos Sargentos da Força Aérea na Rua Engenheiro Sá Carneiro (…), esse muro foi armadilhado pelo pessoal da Zona Zero ou da clandestinidade do PAIGC em Bissau e foi parcialmente pelos ares… sem vítimas já que o autocarro por obra de qualquer irã resolveu fazer escala nesse dia, alguns minutos mais cedo! (…)"

Em meados de fevereiro, aconteceu uma explosão no QG. Foi pelas 7 da noite, eu estava de serviço de piquete, já tinha jantado na messe, ia para a formatura, depois deveria apanhar o transporte para o local da ronda. Quando a caminho do QG na rua direita depois da rotunda do poilão, ouvi: Buuummm! O chão tremeu! 

Instintivamente, atirei-me ao chão, resvalei logo ali na vala de escoamento de águas pluviais… seguiu-se o barulho de uma chuva de estilhaços, vidros partidos… etc. Depois, ouço um carro apitando… esperei algum tempo… tudo calmo, espreitei! Mas não vi nada! Levantei-me, olho à volta: reina um absoluto silêncio! O portão está fechado… 

Quando chego à porta de armas, vejo através das barras de ferro do portão, pedregulhos, lascas de parede… pastas de arquivo e papelada, caídos na parada! Não me deixam entrar! Há uma confusão total. Volto à messe, onde ouço bocas sobre o acontecido. Só depois das 8 da noite é que tudo se normaliza, lá fizemos a formatura e partimos para a ronda num bairro de Bissau.



O ex-furriel miliciano Abílio Magro recorda: 

“Encontrando-me eu a convalescer de uma operação às varizes a que tinha sido submetido no HMBIS e bebendo uma 'cervejola' sentado na esplanada da Messe de Sargentos de Santa Luzia, num final de tarde, dá-se semelhante rebentamento por ali perto, que julgo me fez levitar por breves segundos. Segue-se de imediato o buzinar contínuo e enervante da sirene de alarme do QG e a debandada geral, desordenada e atarantada do pessoal que por ali estava. "(…)

As coisas pioram com a explosão de uma bomba no Café Ronda, situado a meio da avenida que vai dar à Praça do Império. Naquele dia, eu estava de serviço de guarda, que habitualmente eu fazia na entrada principal do QG em Santa Luzia. À noite depois das 21 horas chegou notícia através do telefone que havia na porta de entrada e estava sob a responsabilidade da PM: houve uma explosão, na esplanada do Café Ronda que estava cheia de gente a tomar a bica depois do jantar! 

O ex-furriel miliciano Abílio Magro descreveu mais tarde: 

“Eu e mais dois ou três camaradas meus, tomamos o nosso cafezinho no balcão referido (Café Ronda) e seguimos de imediato para o cinema UDIB (um pouco acima na mesma avenida) para assistir à exibição de um qualquer filme que por lá andava. Poucos minutos depois do início da exibição do filme, dá-se um tremendo rebentamento lá fora e, quase de seguida se ouvem diversas viaturas com buzinadelas e sirenes, indiciando haver constante transporte de feridos. É interrompida a exibição do filme e surge uma voz aos altifalantes do cinema, solicitando a todos os médicos que eventualmente por ali se encontrassem, o favor de se dirigirem de imediato ao Hospital Militar". (…) 

No dia seguinte, estava eu, de folga, fui a Bissau, ver os estragos… vi que o telhado de zinco, ficou revirado, dava uma ideia da força da explosão. Um militar que estava no Café Ronda disse anos mais tarde, o que lhe ficou gravado mais profundamente na memória:

Foi “(…) a bomba no Ronda, por dois motivos, por estar bastante perto dela e os mortos e feridos mais graves estarem ao pé de mim, um dos mortos, e único na altura, era o empregado nativo que nos estava a servir, (…)

Há, entretanto, outros acontecimentos domésticos marcaram a tensão em Bissau em Fevereiro daquele ano de 1974. Naquele dia de manhã chegou a informação de que na véspera, a PM prendera um soldado Comando Africano, porque andava sem boina, não respeitou estar fardado conforme o regulamento! 

Os Comandos Africanos, tinham fama de destemidos e combatentes intrépidos, lá onde havia «barulho» estavam eles, logo, achavam-se no direito de ser respeitados, mesmo quando desrespeitavam ninharias como essas “coisas” do RDM (Regulamento de Disciplina Militar) sobre o fardamento! 

47 anos mais tarde, coloco/recordo aquele acontecimento na página “Facebook – Guiné Recordações” e solicito depoimentos aos ex-militares da guerra colonial. 

Fernando Pinto recorda: 

“Estava no BENG (Batalhão de Engenharia) 447 Brá, Bissau, ouvi falar nisso, não sei mais nada!” 

António Almeida diz: 

“Foi verdade, eu na altura era condutor do comandante militar. Todos os grandes ficaram em sentido, fomos para o Q.G até tudo acalmar, com a intervenção do dito capitão. Mas, não foi só dessa vez que a estrada de Santa Luzia pôs tudo em sentido, as coisas eram logo abafadas "(…). 

Refere então a bomba que explodiu no QG:

 “Eu, estava lá e fui de imediato buscar o comandante que ficou ferido!” 

José Carapinha descreve o que viu: 

“Certo é que houve bronca (dos Comandos) e da grossa! Como começou não o sei! O que vi: os Comandos Africanos, desde Oficiais a Soldados armados, nota bem, com mocas e bastões, isso vi, outro tipo de armamento não; tudo isto durante a tarde junto da Amura (Quartel da PM e sede do Comando Chefe). Já pela noite ouvi o «arraial» algures lá para os lados do Alto-Crim!” (…)  (###)

 No seguimento destes acontecimentos, em Bissau, os nervos estão à flor da pele! Já estávamos em março, quando certo dia logo após a minha chegada à repartição contaram-me a bronca da véspera: um sururu no cinema ao ar livre, ao lado da Messe dos Oficiais. Já tinha começado o filme… quando aconteceu um movimento de pânico! Todos a correr e a fugir! 

O ex-furriel miliciano, Abílio Magro que lá estava recorda:

 “De repente vê-se um clarão e a debandada foi geral! Com a confusão, algumas cadeiras «ensarilharam-se» provocando tropeções e quedas e, os que caíam ao chão eram espezinhados pelos outros, como foi o meu caso.” 

Explica então a brincar: 

“A bomba tinha sido uma caixa de fósforos que se incendiara a um soldado, enquanto acendia um cigarro em cima do muro e que se terá desequilibrado!” 

A «paranóia» estava instalada! Mas, com o moral alto e muita esperança, lá vamos passando os dias, trabalhando normalmente. Vamo-nos adaptando ao evoluir da situação… As jantaradas nos restaurantes de Bissau e festas para que sou convidado fazem esquecer… minimizam este ambiente tenso. (…) 

E assim, vou encerrar a publicação dos extractos que dão uma ideia do livro que um dia poderá ser publicado. Extractos dos capítulos seguintes a este foram os primeiros a serem aqui publicados, descrevem o 25 de Abril e a situação que se viveu em Bissau em maio/junho de 1974.

Julgo, fui o único militar da tropa portuguesa (não originário da Guiné) que ficou em Bissau e lá viveu até 1975! Os meus camaradas militares cabo-verdianos todos regressaram. 

Logo, a 2.ª Parte deste livro, é sobre chegada do PAIGC a Bissau, os acontecimentos antes e depois do dia 10 de Setembro de 1974, quando Portugal reconheceu o novo país… Ocorre então uma reviravolta na sociedade, acontecem coisas inimagináveis, reina um clima de incerteza e desconfiança no futuro. 

Se houver um eventual interesse na 2.ª Parte do Livro, da parte dos leitores e da direcção desta página do Facebook "Tabanca Grande Luís Graça» e do blogue "Luís Graça & Camaradas da Guiné",  então poderei iniciar a publicação de mais alguns extractos. 

___________________

Notas do autor:

[#]   No livro consta a entrevista com um dos participantes que explica, como decorreu essa acção; mas tratando-se de extractos, não poderei publicar tudo na integra agora. (….)

[##]  Vários documentos, descrevem o problema de sobrevoos de aviões da Guiné-Conacri desde 1963 e “No dia 2 de Agosto de 1973, o jornal inglês Daily Telegraph dá conta de que o PAIGC está a treinar pilotos na União Soviética para usar aviões MiG, a partir da Guiné-Conakry, em possíveis ataques contra a colónia portuguesa.”

[###]  Há mais depoimentos no livro, de militares e de pessoas que viviam em Bissau sobre este acontecimento. (…)

(Revisão / fixação de texto, itálicos, negritos,título: LG)

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sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25915: Nos...tal...gia(s): há 50 anos entregámos os nossos quartéis ao PAIGC e regressámos a casa (1): Buba, 4/9/1974 (António Alves da Cruz, ex-fur mil at inf, 1ª C/BCAÇ 4513/72, Buba, 1973/74)



Foto nº 1 > A velhinha e ferrugenta LDG 105, NRP Bombarda... um "elo de ligação a Bissau", o que queria a dizer, "do cu de Judas a Bissau, porta de saída para casa", a três horas de avião, ou cinco dias de barco... 

Foto fantástica (de antologia!)  com a malta e a tralha  a acomodar-se e a aprontar-se para partir, enquanto um "djubi" espreita, do pontão de abicagem, aquele monstro de ferro que fez as maravilhas de muitos de nós...  antigos combatentes... Se há viagem que quase ninguém poderá esquecer, mais do que as dos Niassa, dos Uige, dos Ana Malfalda... foram as de LGG e LDM pelos rios da Guiné... (A 6 dias da independêcia do territ6ório, "de jure et de facto", aquele "djubi" não parece nada alvoraçado com a perspetiva galganizante e histórica da chegada dos "libertadores" do PAIGC...Antes, pelo contrário, ele parece querer gritar aos "tugas": "Eh!, nos furié Cruz, leva djubi no barco grandi!).



Foto nº 2 >  Outra fota fabulosa!... Os últimos soldados do império e os seus trastes velhos, amontoados na LDG 105 NRP Bombarda, de saudosa memória para muitos de nõs, com as instalações militares de Buba ao fundo...

Guiné > Região de Quínara> Buba > 1ª C/BCAÇ 4513/72 (Bula, 1973/74)  


Fotos: © António Alves da Cruz (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


António Alves Cruz


1. "Guiné 04/09/74: Faz hoje 50 anos que foi entregue Buba ao PAIGC e o nosso regresso a casa", escreveu o nosso grão-tabanqueiro António Alves da Cruz na sua página do Facebook...   

Não foram tempos fáceis, os dos últimos soldados do império... Como eu entendo o amargo comentário do Cruz: 

"Tanto sofrimento,  para quê ?!,,, A  entrega de Buba ao PAIGC, o arrear da nossa bandeira nacional,  e o hastear da bandeira do PAIGC"...

 António Alves da Cruz (ex-fur mil at inf, 1ª C/BCAÇ 4513/72, Buba, 1973/74) tem, no nosso blogue, o melhor álbum fotográfico sobre a Buba do seu tempo, incluindo a cerimónmia da desativação e entrega do aquartelamento ao PAIGC (*)

O dia 4 de setembro de 1974 foi  o último dia da sua estadia em Buba, na sequência da execução do plano de retracção do dispositivo e a desativação e entrega do aquartelamento ao PAIGC, de acordo com os compromissos assumidos no Acordo de Argel, assinado em 25 de agosto de 1974, e que fixou a independência da Guiné-Bissau em 10 de setembro desse ano.

Dois dias depois, a 6 de setembro de 1974, o António Alves da Cruz estava em casa (regresso de avião, através dos TAM - Transportes Aéreos Militares). Depois da "peluda", trabalhou na Lisnave. Desse tempo tem saudades, não da guerra,  mas dos seus verdes anos...Como todos nós.  E da sua "Lisnave". E do seu gato. E da Guiné só voltou a lembra-se quando se reformou. Como muitos de nós...

Há imagens que valem por mil palavras... Estas duas terão, obrigatoriamente, que figurar no álbum derradeiro da Tabanca Grande, que iremos organizar, quando um dia destes (não sabemos quando, mas esse dia há de chegar...) fecharmos de vez o nosso blogue... (Na realidade, vinte anos a blogar, é um quarto das nossas vidas, dez comissões na Guiné!)

Obrigado, Cruz, estas tuas duas fotos arrasaram-me, emocionalmente falando!... Para mais sempre detestei  o mês de setembro, o fim do verão, o fim das férias grandes, do "docle far niente", da irresponsabilidade, a estação terminal da alolescència,  a antecâmara do pecado, dos amores românticos e breves, das ejaculaçóes precoces, da vida adiada pela tropa e pela guerra, o adeus à casa paterna, a difícil aprendizagem da arte de ser homem, a descoberta da liberdade... 

Em contrapartida, as tuas fotos, a tua/nossa efeméride dos 50 anos das nossas "partidas derradeiras"... não vão para o lixo, para cesta secção do esquecimento... Pelo contrário, vão ser o ponto de partida para uma nova série dedicada à(s)  "Nos...tal...gia(s).  Também temos direito à nostalgia, à saudade, ao exorcismo, à catarse de emoções, sem temermos que nos acusem de... reacionários, saudosistas e outras palavras merdosas com que os portugueses adoram insultar-se uns aos outros, há pelo menos mil anos.
______________

Nota do editor:

(*) Vd. postes de:

29 de novembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24896: Álbum fotográfico do António Alves da Cruz, ex-fur mil at inf, 1ª C/BCAÇ 4513/72 (Buba, 1973/74) (13): cerimónia da desactivação e entrega do aquartelamento ao PAIGC, em 4 de setembro de 1974 - Parte I

30 de novembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24902: Álbum fotográfico do António Alves da Cruz, ex-fur mil at inf, 1ª C/BCAÇ 4513/72 (Buba, 1973/74) (14): Cerimónia da desactivação e entrega do aquartelamento ao PAIGC, em 4 de setembro de 1974 - Parte II

sábado, 3 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25130: A 23ª hora: Memórias do consulado do Gen Bettencourt Rodrigues, Governador e Com-chefe do CTIG (21 de setembro de 1973-26 de abril de 1974) - Parte I: A visita do CEME, Gen Paiva Brandão, em finais de janeiro de 1974


Guiné > s/l > s/d > c- 1973/74 > O gen Bettencourt Rodrigues graduando um milícia  (Fonte: CECA, 2015,  pág. 341)  (imagem reeditada, LG).


Guiné >Região do Gabu > Boé > Madina do Boé > 16 de novembro de 1973 > O jornalista alemão, da Reuters,  Joachim  Raffelberg, e o Gen Bettencourt Rodrigues, governador-geral e com-chefe que, a partir de 21/9/1973, substituiu o carismático Gen António Spínola.

Fonte: página do Facebook do antigo jornalista da agência Reuters, Joachim Raffelberg, chamada Raffelnews, Serviço comunitário, encontrámos esta "preciosidade", que faz parte de um álbum sobre Madina do Boé, com fotos (legendadas em inglês), inseridas em 29 de janeiro de 2018, incluindo recortes de jornais portugueses (Diário de Notícias e Diário de Lisboa) que reproduziram a notícia da agência noticiosa portuguesa, ANI, dando conta de uma visita de jornalistas estrangeiras, de helicóptero, à antiga Madina do Boé, acompanhados do gen Bettencourt Rodrigues, o então novo comandante-chefe do CTIG.
  (*)


Guiné > Bissau > Aeroporto >  28 de janeiro de 1974 > O CEME, Gen Paiva Brandão, recebido com honras militares à sua chegada. Fotograma de vídeo (3' 16'') da
RTP Arquivos 
Sinopse: "Chegada do Chefe do Estado-Maior do Exército à Guiné-Bissau, recebido pelo Governador e Comandante-chefe, e altas individualidades civis e militares; visita ao Quartel-General e reunião de trabalho sobre a situação administrativo-logística do Exército." imagem editada e reproduzida  com a  devida vénia...)


1.  Todas as épocas, todas as guerras, todos os regimes, todos os chefes têm a  sua 23ª hora... Muitos de nós, antigos combatentes, já não estávamos lá no CTIG, quando o gen Spínola bateu com a porta a Marcelo Caetano e foi substituído pelo gen Bethencourt Rodrigues. Este foi o último governador e comandante-chefe do CTIG: a sua história efémera passa-se entre 29 de setembro de 1973 e 26 de abril de 1974. Quem já não estava lá, tem direito a saber como foi a  23ª hora deste militar com carreira brilhante que acabou por fechar um capítulo da história de Portugal com 500 anos. 

Da Carta de Comando do Comandanmte-Chefe das Forças da Guiné, consta o seguinte no que diz respeito ao "cessar das operações": 

 (...), Salvo ordem expressa do Governo da Nação, as operações que houver de executar serão conduzidas até ao completo restabelecimento da ordem, da segurança e, sendo caso disso, da plena soberania em todo o território da Província, se necessário, até ao esgotamento dos meios de combate. (CECA, 2015, pp. 405/406)

Vamos reunir aqui memórias e histórias desse período que culminou com o 25 de Abril de 1974.  

E o primeiro momento que escolhemos foi  o da visita do CEME (Chefe do Estado Maior  do Exército), gen Paiva Brandão em 28/29 de janeiro de 1974, ao CTIG,  e  o da "reunião de trabalho" que se realizou a 29, às 18h30, hora que na Guiné era já da hiena...

É uma reunão algo "surreal" esta em que o gen João de Paiva de Faria Leite Brandão, político do regime (foi deputado na Assenbleia Nacional em 3  legislaturas), de visita ao CTIG, fez uma reunião de trabalho com  o Com-Chefe gen Bethncourt Rodrigues e seus colaboradores mais próximos...  Estamos a menos de 3 meses do 25 de Abril de 1974.

É uma reunão em que o representante do poder político-militar de Lisboa traz uma "mão cheia de nada" face às necessidades do teatro de operaçóes e da adminmistração civil...  Uma reunião em que se discutem "peanuts"...  

Repare-se: não há (ou vai faltar) arroz, gaz butano, ferro e asfalto,,,, mas também pessoal para abrir o CAOP3, bem como muniçóes 8,9 cm (bazuca) e 14 cm (obus)... A África do Sul é agora o nosso "Pai Natal"... Há subunidades sem cobertura legal: caso das africanas CCAÇ 20 e 21,,, O Com-Chefe vai assobiando para o lado e promovendo milícias...

Faz-se vista grossa das tremendas implicaçóes políticas, militares, estratégicas, diplomáticas e legais (face ao direito internacional) da declaraçáo unilateral da independència da Guiné-Bissau, em 24 de setembro de 1973, pelo PAIGC.  

Faz-se tábua rasa do profundo mal-estar que já grassa nas FA, bem como do clima de descontentamento e até conspiração no seio das FA , bem como da escalada militar: o PAIGC dispõe de armamento superior ao  das NT (morteiro 120mm, foguetão 122 mm, peça de artilharia 130 mm, míssil Strela, novas minas A/P e A/C, etc.),

As carèncias de material (e nomeadamente de munições), as dificuldades de transporte marítimo e os constrangimentos orçamentais ficam bem patentes nesta minuta da reunião que agora publicamos, com a devida vénia (CECA, 2015, pp. 482/483),


João de Paiva de Faria Leite, "2º barão de São Lázaro",  nasceu em Guimarães, Polvoreira, na Casa de Carvalho d'Arca, em 19/08/1912 e morreu, aos 85 anos, em 04/12/1997 (Fonte: Geneall)

2. CECA (2015) > Aspetos da atividade operacional: Guiné (1971/74) > Cap IV - 1974

(...) "No final do mês de Janeiro, o Chefe do Estado-Maior do Exército, General
João de Paiva de Faria Leite Brandão, acompanhado de 2 Oficiais do
CEM, visitou o TO da Guiné (...) Em 29 de janeiro realizou-se uma reunião de trabalho
com o Cmdt-Chefe das FAG" (pág. 454)

Não há detalhes da visita. (vd. aqui notícia, na RTP da chegada ao aeroporto de Bissalanca, em 28 de janeiro: vídeo de 3' 16'', infelizmente sem som). A CECA (2015) publicou em anexo (nº 1) a ata da reunião.

Anexo n° 1 - Visita do CEME - Reunião de Trabalho (pp. 482/483)

Datal / Hora: 29 Jan74 18h30

Oficiais presentes:

- Gen Paiva Brandão

- Gen Bethencourt Rodrigues

- Brig Leitão Marques

- Cor CEM Rodrigues Figueira

- Ten-Cor CEM Franco Charais

Assuntos:

a. - Situação de Unidades do TO sem cobertura legal

O Gen B. Rodrigues mais uma vez levantou o problema da existência de Unidades do TO sem cobertura legal, indicando as seguintes unidades:

- CCaç 20 e 21, totalmente africanas;

- Comp. Eventual de Cuntima.

Foi definido não haver encargos de pessoal metropolitano para estas unidades, tratando-se de legalizar a sua constituição e orçamentar a respectiva despesa.

O assunto foi anotado pelo Cor Figueira.

b. - Orçamento para 1975

Seguidamente, o Gen P. Brandão explicou superficialmente o planeamento a efectuar para se definir o Orçamento de Defesa para 1975.

Em março, o SGDN (Secretariado-Geral da Defesa Nacional) solicitará a todos os Comandos-Chefes uma informação sobre as forças atribuídas a cada TO.

Os Comandos-Chefes no período de 1 a 15 de abril informarão quais as forças orçamentadas existentes no TO (Ex., Marinha e FA) e outras necessárias.

No período de 15 a 30  de abril, a Junta de Chefes de Estado-Maior trabalha as respostas recebidas e estabelece um sistema de forças para todo o espaço nacional, o qual é submetido posteriormente à apreciação do Conselho Superior Militar.

O trabalho da Junta de Chefes de Estado-Maior leva em conta as possibilidades orçamentais.

c. Transmissões

Seguidamente o gen B. Rodrigues falou sobre o material de transmissões em aquisição para a Guiné, com base numa informação pessoal do brig S. Grade. Os oficiais de EM presentes disseram já ter recebido indicações no Agr Tm, tendo sido especialmente focado o aspecto de substituição de 60 "AVP-1" por material "ERET", mais adequado ao TO da Guiné.

O assunto vai ser apresentado também em carta pessoal ao brig S. Grade.

d. Substituição do Cmdt CAOP 2

Seguidamente, o gen B. Rodrigues referiu a necessidade urgente de ser nomeado um dos Oficiais propostos (2) para o CAOP 2, em virtude do cor Telo dever recolher à Metrópole até  1 de abril de 74. O assunto foi anotado pelo cor Figueira.

e. Formação do CAOP 3

Seguidamente, o gen B. Rodrigues referiu ser necessário que o CAOP 3, pedido desde nov73, fosse constituído com brevidade e enviado para o TO.

O cor Figueira apresentou a informação da 3ª Rep/EME, da qual consta não ser possível nomear a maioria do pessoal antes de jul74.

Existem também problemas de verbas mas o gen P. Brandão disse serem de fácil solução.

Dado que o prazo de constituição do CAOP 3 em jul74 não satisfaz as necessidades imediatas do TO, foi sugerido que o EME estudasse uma nomeação por fases e enviasse uma proposta para o Cmd-Chefe, a qual seria trabalhada face ao recurso a pessoal já existente em Unidades.

Admitiu-se ser possível arrancar desde já com uma solução de compromisso, a qual seria melhorada até agosto de 74 à medida que fosse nomeado o pessoal em falta.

f. Material a receber no TO

Seguidamente, o ten-or Charais informou;

(i) estar para ser desembarcado do N/M "Cabo Bojador" já em Bissau o seguinte material:

- 4 obuses 14 cm

- 10 morteiros 8, 1 cm

- 20 morteiros 60 mm

(ii) estar para ser remetido no próximo transporte o seguinte material:

- 6 obuses 10,5 cm

- 4 a 7 peças 9,4 cm


g. Aproveitamento de material

Seguidamente, o ten-Cor Charais informou existir disponível em depósito material de 7,5 cm montanha (obuses italianos de montanha), com um lote de 6000 granadas que poderia ser fornecido para o TO. 

Dado o peso deste material e as suas dimensões, este pode ser transportado via aérea para Nova Lamego, Aldeia ormosa, Cufar e talvez Farim, o que dá grande flexibilidade ao seu emprego. O seu alcance permite bater o morteiro 82 mm lN, cobrindo uma lacuna do nosso morteiro 8,1 cm.

O assunto ficou de ser estudado no Cmd-Chefe e CTIG e enviada uma proposta ao EME com as conclusões.

h. Transportes

Seguidamente, o  gen B. Rodrigues focou a carência de transportes marítimo
para a Província
, na qualidade de Governador dizendo que em larga medida as dificuldades existentes resultavam da utilização pelo ME de grande parte da tonelagem disponível nas carreiras periódicas quinzenais, com prejuízo de carga civil (ou por incompatibilidade das cargas ou por insuficiência de tonelagem).

Mais disse, ter apresentado o assunto ao Snr Ministro do Ultramar para solução urgente de transporte para a Província de arroz, gaz butano, ferro e asfalto, necessidades prementes por esgotamento das existências locais.

Foi sugerido que o ME efectuasse o fretamento de 1 navio logístico entre os transportes de tropas, ficando assim a tonelagem das carreiras normais mais liberta para o transporte civil.

O ten-cor Charais disse não conhecer o assunto mas parece-lhe que as verbas disponíveis não comportavam o fretamento de um navio.

Nada ficou decidido. Para ser accionado no âmbito militar terá de haver
uma proposta ao SGDN ou EME.

i. Diversos

Depois da reunião, o ten-cor Charais informou o brig Leitão Marques que:

- a Metrópole não podia produzir em breve prazo granadas 8,9 cm e
teríamos restrições no seu fornecimento;

- as munições de 14 cm disponíveis eram de um lote à ordem do SGDN
e só seriam fornecidas com autorização superior (Lote Can);

- a África do Sul tinha uma encomenda de munições de 14 cm mas 
estas não estarão disponíveis brevemente na Metrópole. [... ]

[ Seleção / adaptação / revisão / fixação de texto / negritos, para efeitos de publicação deste poste no blogue: L.G.]

Fonte: Fonte: Excertos de: Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; Tomo II; Guiné; Livro III; 1.ª Edição; Lisboa (2015), pp. 482/483  (Com a devida vénia...).
__________

Nota do editor:

(*) Vd. poste de 28 fevereiro de  2021 > Guiné 61/74 - P21956: Facebook...ando (60): o gen Bettencourt Rodrigues, em 16 de novembro de 1973, em Madina do Boé, com dois jornalistas alemães, para verem "in loco" o sítio onde o PAIGC teria alegadamente proclamado a independência unilateral

domingo, 14 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25068: Casos: a verdade sobre... (40): "Canquelifá era o seu nome" - Uma batalha de há 50 anos (José Peixoto, ex-1º cabo radiotelegrafista, CCAÇ 3545 / BCAÇ 3883, 1972/74) - Parte III: 21 de março de 1974, Op Neve Gelada, 22 cadáveres de guerrilheiros são trazidos para o quartel, lavados, fotografados e enterrados na pista de aterragem

Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Sector L4 (Piche) > Canquelifá >  CCAÇ 3545 / BCAÇ 3883 (1972/74) > Março de 1974 > O José Marques (presume-se...) junto a um dos morteiros 120 capturados no dia 21 de março de 1974, no decurso da Op Neve Gelada, pelos Comandos Africanos, na zona de Canquelifá, "quando arrumávamos as respectivas granadas" (sic). 

Cortesia de José Marques (natural de Alpalhã, Portalegre, vive Castelo de Vide); tudo indica ter pertencido à CCAÇ 3545 / BCAÇ 3883, Camquelifá, 1972/74; foi já convidado para integrar o blogue, é apenas amigo do Facebook da Tabanca Grande).




Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Sector L4 (Piche) > Canquelifá >  CCAÇ 3545 / BCAÇ 3883 (1972/74) > Foto e legenda do  José Marques, na sua página do Facebook:

Canquelifá em 74. Abrigo 12 visto do campo de futebol, nesse dia 31-03-74, não houve feridos, porque após a morte do furriel Agualusa da Rosa e o abandono da população, todos se abrigavamos no abrigo (vala coberta com troncos e pedra) à esquerda deste abrigo , junto ao tronco do mangueiro.

Canquelifá - 31 março de 74, Ultimo ataque a Canquelifá e destruição do abrigo 12, nós estávamos no abrigo (vala um pouco mais larga) com mais de um metro de troncos, cimento e pedra, à esquerda na parte mais escura, o abrigo chegava a menos de um metro deste.Quando este foi atingido pensámos que era o nosso que se estava a desmoronar.

Fotos (e legendas): © José Marques (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Sector L4 (Piche) > Canquelifá >  CCAÇ 3545 / BCAÇ 3883 (1972/74) > Janeiro de 1974. Explosão de uma bomba durante um ataque do PAIGC ao aquartelamento de Canquelifá: foto do álbum do camarada Pereira, que vive em Almada,  ex-fur mil da CCAÇ 3545, com a devida vénia, cortesia de Jorge Araújo (***)


1. Continuação da narrativa do José Peixoto com as sua memórias sobre a Canquelifá do seu tempo (*). Recorde-se que:

(i) foi 1º cabo radiotelegrafista, CCAÇ 3545 / BCAÇ 3883 (Canquelifá, 1972/74);

(ii) vive no concelho de Vila Nova de Famalicão;

(iii) é membro da Tabanca Grande nº 731, entrado em 30/10/2016.


Deixou-nos um relato memorialistico, dramático, dos últimos tempos da sua comissão, de 12/13 páginas, que foi escrevendo ao longo dos anos, e que intitulou "Arauto da Verdade".

O texto, extenso, foi publicado na íntegra (**). Estamos agora a republicá-lo, em postes por episódios, e cruzá-lo com outros postes que temos publicado sobre Canquelifá, com referênica à situação militar que se agravou, naquele aquartelamento e povoação do nordeste da Guiné, região de Gabu, a partir de agosto de 1973.



Crachá da CCAÇ 3545, "Os Abutres" (Canquelifá e Dunane, 1972/74

(cortesia do José Peixoto)



José Peixoto, Canquelifá, c. 1973


José Peixoto, hoje, inspetor 
da CP, reformado


"Canquelifá era o seu nome" - Parte III:   

Dia 21 março 1974, Op “Neve Gelada”

por José Peixoto


Com base no cansaço, pois o desgaste físico de todos nós era evidente, o inimigo cada vez mais massacrava e incrementava as suas operações a Canquelifá e áreas limítrofes, eis que surge o tão esperado apoio de 3 companhias de comandos africanos com o fim de limpar as áreas afetadas.

Às 13h00 do referido dia 21, entrada pela porta principal, abrigo 1, em coluna apeada.

A primeira companhia dirigiu-se à porta situada no lado da  Mata Sagrada, no sentido de  Chauará, local onde era suposto o IN ter instalado a sua base de lançamento dos mísseis, saindo por esta para o exterior.

A segunda companhia dirigiu-se à porta de acesso à pista junto ao abrigo 5,no  sentido de Sinchã Jidé, local onde era suposto o IN ter instalado o seu poderio dos mosteiros 120 mm, saindo para o exterior.

A terceira companhia ficou instalada junto ao abrigo de transmissões, de reserva, aproveitando a sombra de uma velha e grande laranjeira, cujo fruto não se podia comer, por ser muito amargo.

Volvidas que foram cerca de duas horas após a saída das duas companhias para o exterior de Canquelifá, às 15h00, foi ouvido o rebentar de um tiroteio de armas ligeiras, à mistura com algumas morteiradas. 

Naquele preciso momento encontrava-me a circular sentado na caixa de um Unimog, tendo por companhia o enfermeiro Paiva, de quem eu tinha recebido um convite, apenas com a intenção de curtir, tal como era usual dizer-se. A finalidade era ir a uma tabanca, para o lado do abrigo 2, buscar uma “bajudinha” que se encontrava com o paludismo para ser tratada na enfermaria.

A nossa primeira reação foi a de sempre, saltar da viatura e procurar alguma proteção debaixo da mesma, durante o desencadear do tiroteio, estimado em cerca de 10 a 15 minutos.

A evacuação da “bajudinha” já não foi concretizada, logo retrocedemos no itinerário para o denominado centro do aquartelamento. Nesta fase ainda se ouviam alguns tiros esporádicos.

Dirigi-me ao abrigo de transmissões no qual se encontrava entre outros o então major Raul Folques, procurando junto do militar, responsável pelas transmissões no terreno, inteirar-se efetivamente do que se estava a passar.

A primeira ordem que este Homem de Guerra transmitiu, honra lhe seja feita pelo trabalho coordenado, foi a saída imediata da companhia que se encontrava de reserva junto ao posto de rádio, pela porta de armas de acesso à pista no sentido de Sinchã Jidé.

À medida que o tempo passava, eram recebidas informações via rádio do resultado obtido pelas duas fações, que indicavam um número indeterminado de baixas ao IN, bem assim como material capturado.

Às 17h10, de uma tarde marcante, fazendo paralelo com as fiadas do arame farpado que dividiam o aquartelamento da vegetação, lado do Mata Sagrada, começou-se a avistar a chegada de uma das companhias, trazendo consigo aquilo a que se poderia chamar troféus de guerra, exatamente 22 corpos transportados em cima de macas improvisadas de ramos de árvores.

O estado dos seus corpos era sobretudo confrangedor e arrepiante, membros dependurados, cabeças dilaceradas, uns quantos ainda com parte do uniforme, outros completamente nus.

Chegados às imediações, a população saiu pela porta de armas ao encontro dos militares, pontapeando os corpos. Esta talvez fosse a única forma de vingança pelas mortes causadas aos seus entes queridos, em ataques anteriores.

Quando já dentro do aquartelamento, foi dada ordem para que todos os corpos fossem encaminhados para a Mesquita de Canquelifá, local de culto no qual os homens grandes praticavam as suas orações, virados para Meca.

Para efetuar a segurança durante a noite, foi escalado um pelotão da nossa companhia.

Às 17h30, quando tudo estava aparentemente calmo, eis que surge novo ataque de curta duração, com misseis, procurando assim destruir o pouco que ainda restava, como retaliação pelas suas baixas há duas ou três horas.

Às 18h00, e a pedido do então alferes Fernando de Sousa Henriques, foram reunidos uns quantos militares, de caráter voluntário, para fazer segurança a 3 viaturas (2 Unimogs e 1 Berliet) na ida ao local do confronto para recuperação do material capturado. 

Eu também fiz parte deste grupo de voluntários, à semelhança do nosso presado cantineiro José Esteves, a residir para os lados de Vila Real, que para os amigos reservava sempre,  no canto mais à direita da arca frigorífica, aquela “bazuca” fresquinha.

Ordem de partida foi dada: saída pela porta de armas lado pista de aterragem dos meios aéreos, abrigo 5.

Após progressão na ordem de 1,5 km foi desencadeado novo tiroteio. Toda a coluna parou para se poder proteger, de realçar o facto de já nos encontrarmos perto do local onde se tinha dado o conflito. 

Sem sabermos o que de facto estava a acontecer, procurei estabelecer contacto com o posto de rádio de Canquelifá, o que só foi possível volvido algum tempo, o suficiente para o alferes Henriques se zangar e, num gesto brusco, me retirar o auscultador da mão, aludindo que eu ainda não sabia trabalhar com o rádio, o bem conhecido Racal. (Estas situações são as chamadas incongruências de uma guerra.)

A informação que proveio de Canquelifá, e recebida por este superior, foi exatamente, que o IN voltou ao local na tentativa de recuperar os mortos que,  como atrás referi,  eram 22 corpos.

Na posse destes elementos, e tendo em consideração que as armas se tinham calado, fomos progredindo mais uns metros com toda a serenidade, pois estava na nossa frente posicionada uma companhia formada por elementos cuja maioria era africana, fazendo proteção ao material capturado, embora a informação da nossa aproximação já tivesse fluido antecipadamente.

Foi um tanto quanto arriscada esta operação de encontro, frente a frente de uma força com a outra, tendo culminado com total êxito, pois o local era de vegetação densa.

Feita a inversão das viaturas, procedeu-se ao carregamento do material capturado, constando de cerca de 360 granadas de morteiro 120 mm, 2 morteiros do mesmo calibre completos, montados sobre rodas e outros tantos incompletos, 1 prato, mais 1 tripé.

Tratou-se na realidade de uma operação de muito risco para todos quantos voluntariamente acederam ao pedido do então saudoso alferes 
[Fernando de Sousa] Henriques.

A chegada a Canquelifá já foi tardia, por volta das 23h00, todo o regresso foi feito na escuridão da densa vegetação, apenas a viatura mais da frente acendia esporadicamente os seus mínimos, de salientar o facto de um dos veículos, creio que um Unimog, ter furado um pneu, também não me recordo se à ida, ou no regresso, é facto, assim circulou até à chegada a Canquelifá. Foi uma autêntica odisseia, sem paralelo.

Não posso deixar de realçar uma situação ocorrida já dentro de Canquelifá tendo por protagonistas a minha pessoa, o então carismático furriel mecânico Pais e um militar africano da companhia de Comandos.

Tendo este em seu poder uma pequena arma, que mais se assemelhava à nossa pistola Walter, que procurava vendê-la, alegando tê-la capturado horas antes, na operação, a um elemento feminino do PAIGC, que procurava atingi-lo, protegida por uma árvore, tendo este com a sua perspicácia evitado tal, apontando-lhe a sua G3 e dando-lhe ordem para baixar a arma.

Posteriormente tentou dialogar com ela em várias línguas, sem entendimento possível, tendo finalizado o seu diálogo apontando com a mão esquerda para o seu peito onde sustentava o seu crachá, dizendo-lhe:

−  Comando Africano não perdoa!  
− e utilizando a sua arma G3, fez uma rajada em cruz no peito da mulher, caindo esta junto à árvore.

O corpo dela foi resgatado pelo PAIGC durante o segundo confronto com a companhia dos comandos.

Relativamente à pistola, o negócio estava terminado, cujo valor para mim era de 100 pesos, tendo o Furriel Pais, valorizado para o dobro, não tenho a certeza da concretização da compra por este.

Dando continuidade ao episódio dos 22 corpos que se encontravam a repousar na grande Mesquita de Canquelifá, começaria por realçar o pedido de 2 voluntários pelo Capitão Cristo, cerca das 8h00 já do dia 22 março 1974, com a pretensão de retirarem os corpos para o exterior da mesma, onde previamente tinham sido colocados uma quantidade necessária de bidões vazios,vasilhame chegado, uns com vinho da Manutenção Militar, outros de combustível para a Mecânica, a fim de os corpos serem sentados no chão, encostados aos aludidos bidões.

 De seguida, procederam à lavagem dos seus rostos ensanguentados, recorrendo para o efeito de uma lata com água e uma vassourita de piaçaba.

A dupla de voluntários então surgida era composta pelos:

(i) o nosso Oliveira, mais conhecido pelo “Mata vacas”, pois tratava-se na realidade de um homem de coragem, se bem me recordo retalhava uma vaca, depois de morta, na sua totalidade em cerca de 20 minutos, trabalho que sempre realizou em prol da alimentação da Companhia, em toda a sua comissão, por ser esta a sua profissão na vida à paisana;

-(ii)  segundo voluntário, com alguma margem de incerteza, creio ter sido o carismático “Azambuja”, nome próprio, José Cruz, cozinheiro oficial da CCAÇ 3545, mas que não exerceu.

Realizada operação definida pelo comandante Cristo, cerca das 9h00 chegaram, 1 helitransporte escoltado por 1 helicanhão, para garantir a segurança da sua aterragem. Na placa da pista a segurança era assegurada por um pelotão, como acontecia em situações semelhantes.

Apeados os ocupantes de várias patentes, pertencentes ao Comando Territorial da Guiné, dirigiram-se ao centro, no qual se encontravam os corpos, sendo a primeira missão fotografar individualmente os mesmos por um fotocine vindo de Bissau para o efeito.

De seguida foram transportados num Unimog, também individualmente, sendo-lhes colocado junto ao corpo uma garrafa vazia de cerveja, que continha um ou mais documentos escritos no preciso momento, de conteúdo confidencial.

Reunidos os respetivos requisitos, seguiram destino pista da aviação, onde foram enterrados nos próprios buracos dos foguetões por estes lançados sobre Canquelifá nos dias últimos, não tendo atingido o objetivo por eles planeado.

De realçar o facto de ter sido escalado um pelotão naquele dia e no seguinte, para carga e transporte de terras em Unimog para serem tapados os buracos, entenda-se sepultura dos corpos.

Assim ficou encerrado mais um capítulo de uma guerra subversiva que muitas lágrimas provocaram aos intervenientes de ambas as partes.

(Continua)

(Seleção, revisão / fixação de texto,negritos: LG)



Quartel de Canquelifá >  7Jan1974 > Dois corpos, já cadáveres, de elementos da guerrilha capturados durante a “Acção Minotauro”, levada a cabo por um bigrupo da CCAÇ 21. (***)

Por ausência de identificação, supõe-se que o primeiro elemento, em primeiro plano, seja o Tenente Ramón Maestre Infante (cubano) e, o outro, Jaime Mota (cabo-verdiano). 

Foto do álbum do camarada Pereira, fur mil da CCAÇ 3545, com a devida vénia.  Cortesia do nosso coeditor Jorge Araújo (***)
____________

Notas do editor


(*)  Últimos dois  postes da série > 



Vd. também poste de 10 de janeiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25053: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XLI: Canquelifá, a ferro e fogo, no 1º trimestre de 1974

sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25059: Casos: a verdade sobre... (39): "Canquelifá era o seu nome" - Uma batalha de há 50 anos (José Peixoto, ex-1º cabo radiotelegrafista, CCAÇ 3545 / BCAÇ 3883, 1972/74) - Parte II: o abate do último Fiat G-91 R/4, em 31/1/1974, a recuperação do piloto, ten pilav Victor Manuel Castro Gil



Crachá da CCAÇ 3545, "Os Abutres" (Canquelifá e Dunane, 1972/74

(coretsia do José Peixoto)


1. Continuação da narrativa do José Peixoto com as sua memórias sobre  a Canquelifá do seu tempo (*) 

(i)  foi 1º cabo radiotelegrafista, CCAÇ 3545 / BCAÇ 3883 (Canquelifá, 1972/74);

(ii) vive no concelho de  Vila Nova de Famalicão;

(iii) ele é  membro da Tabanca Grande nº 731, entrado em 30/10/2016.

 Deixou-nos um relato memorialistico, dramático, dos últimos tempos da sua comissão,  de 12/13 páginas, que foi escrevendo ao longo dos anos, e que intitulou "Arauto da Verdade".

O texto, extenso, foi publicado na íntegra (poste P16656). Estamos agora a republicá-lo, em postes  por episódios, e cruzá-lo com outros postes que temos publicado sobre Canquelifá, com referênica à situação militar que se agravou, naquele aquartelamento e povoação do nordeste da Guiné, região de Gabu, a partir de agosto de 1973.




Esperamos, entretanto, poder voltar a ter notícias do José Peixoto (foto acima): 
não  tem página  no Facebook, mas disse-nos que era inspector reformado 
da CP - Caminhos de Ferro de Portugal (desde 2013), vivia nos arredores 
de Vila Nova de Famalicão, era casado, 
tinha dois filhos formados em engenharia. (*)


"Canquelifá era o seu nome" - Parte II:  o abate do Fiat G-91 R/4, em 31/1/1974,  e a recuperação do piloto, ten pilav Castro Gil

por José Peixoto


(...) Ao longo de todo o blogue da guerra na Guiné (belíssimo trabalho realizado), não posso deixar de referir, relativamente aos acontecimentos de Canquelifá, 1972/74, que há efetivamente uma descrição quase real das situações, mesmo tendo em conta que uma grande parte dessas afirmações são feitas por pessoas que ouviram falar ou estiveram perto.  Apenas algumas datas não são muito coincidentes.

No entanto outras,  sim,  marcaram na realidade a nossa mente. Tal como o dia 31 de janeiro de 1974, em que depois de um início de tarde de fortes bombardeamentos a Canquelifá, foi pedido o apoio aéreo a Bissau, tendo  chegado cerca das 17h30 a denominada parelha dos Fiats G-91.

Após o contacto com os pilotos via rádio pelo nosso saudoso capitão Peixinho Cristo, e lhes ter transmitido as coordenadas pretendidas, retiradas do mapa da área de íi“Pachisse” (mapa que se encontrava sempre estendido em cima da mesa do abrigo de transmissões nas alturas de crise), a fim de ser feito o respetivo tiro.

Iniciada a picagem pela primeira aeronave, verificou-se que o objetivo tinha sido alcançado. Para além de se ouvir o rebentamento da bomba, assistiu-se a olho nu ao retomar da altitude da referida aeronave e consequente progressão.

De salientar que esta manobra, um tanto quanto acrobática, se me é permitido esta classificação, estava a ser levada ao8 cabo a uma distância compreendida entre abrigo de transmissões e o local da operação, na ordem de 1,5 a 2,0 km, mais precisamente junto a Sinchã Jidé


Infografi: José Peixoto (2016)   


Eu encontrava-me ao cimo do abrigo de transmissões, acompanhado de 3 ou 4 camaradas também pertencentes aquela arma, a testemunhar o desenrolar dos acontecimentos.

A segunda aeronave aproximou-se do local da coordenada pedida, um pouco mais a norte, (entenda-se mais para a direita, lado do Senegal em relação àóleo  primeira) iniciando a manobra de picagem, não mais sendo vista.

Quem teve a oportunidade de testemunhar no local, deve recordar com certeza, não só o barulho ensurdecedor da explosão, tal como as chamas vivas, à mistura com o fumo negro que pairou durante vário tempo nos céus entre Canquelifá e Sinchã Jidé, tendo como causa a explosão da aeronave (Fiat G91).

Com efeito, de imediato foi comunicado por mim, o que acabara de ser constatado, ao capitão Peixinho Cristo, que se encontrava ao fundo no posto de transmissões a acompanhar as comunicações do momento, estando estas a serem difundidas em canal aberto com outras entidades. 

Este, na posse dos elementos do alfabeto fonético atribuído oficialmente aos intervenientes da operação aérea, chegados em mensagem, e já utilizados aquando da transmissão das coordenadas pretendidas, ou seja de onde provinham as flagelações do PAIGC, efetuou vários chamados via rádio. Em procedimento, não me recordo as letras atribuídas, como será evidente, no entanto a título de exemplo, como é óbvio o diálogo entre o capitão e os pilotos:

Capitão:

− Aqui maior de SIERRA / GOLFE, chama maior de ALFA / BRAVO, escuto!

Piloto:

 − Afirmativo, aqui maior de ALFA BRAVO, escuto!

Realizadas várias chamadas sem obter qualquer resposta (…). Surge o contacto (informação) do piloto da primeira aeronave que já se encontrava a sobrevoar noutra área mais afastada com destino a Bissau!..

− Aqui maior de ????

− Info: maior de ???? foi atingido míssil; conseguiu ejetar-se.

Nada mais transpareceu sobre este dramático acontecimento para além de volvidos que foram alguns minutos, foi recebido uma mensagem do Comando-Chefe de Bissau a corroborar esta afirmação: que a aeronave Fiat G.91 tinha sido atingida por um míssil e que o piloto, Tenente Castro Gil, se tinha ejetado. (#)

A referida mensagem chegou a Canquelifá classificada de “Zulo”, ou seja, grau de urgência máximo em despacho, classificação no exército ao tempo.


Dia 1 de Fevereiro de 1974 

Pelas 06h00 da manhã, aterram na pista de Canquelifá cerca de 8 ou 10 hélis de transporte, trazendo um número indeterminado de tropas (creio paraquedistas e outros) assim como mais 2 helicanhões armados com canhão MG 20mm,  de bala explosiva.

A sua intrusão no interior da mata foi imediata no sentido Sinchã Jidé e Copá. A intenção era localizar o piloto então ejetado naquela aérea no dia anterior (31 de janeiro) de quem nada se sabia.

A progressão no terreno era acompanhada pelos dois helicanhões que não tinham regressado a Nova Lamego, ficando para o efeito.

A transmissão entre a tropa no terreno e o referido apoio aéreo era feito em canal aberto, quero dizer, era audível toda a comunicação entre os intervenientes, no nosso posto de rádio em Canquelifá. 

Cerca das 15h00, uma chamada para a tropa em progressão de um dos pilotos disse:

− Ao descer um pouco mais o héli junto à copa da árvore que se encontra no trajeto à vossa frente, pareceu-me ver algo de estranho!.. Tenham cuidado.

Com esta chamada de atenção do piloto, a tropa acabou por detetar um veículo abandonado, tratando-se de uma ambulância de origem Russa.

Alertado o Comando-Chefe, foi dada ordem a Nova Lamego para fazer seguir para o local pessoal helitransportado,  especializado em minas e armadilhas, com a intenção de analisarem se a mesma estaria armadilhada.

Dado que nada se confirmou sobre a suspeição, foi recebida ordem para seguir com a mesma para Copá
O trajeto foi complicadíssimo, apesar do apoio simultâneo dos hélis na informação da picada a ser seguida, pois poderia haver eventual obstrução da mesma, mais à frente, relativo à densidade de árvores, evitando assim o retroceder do itinerário.

Tudo foi levado a cabo com o maior rigor, sabedoria e abnegação, chegando-se a Copá já altas horas da noite sem qualquer incidente ou acidente.

Mas, o mais importante de todo este desenrolar de cenário de guerra crua ainda não acabou.

Desviei-me um pouco do principal raciocínio que originou a referida operação, que era encontrar o piloto desaparecido no dia anterior, apenas com a intenção de seguir uma cronologia dos acontecimentos.

O facto é que,  enquanto as tropas no terreno se ocupavam em levar a sua operação a bom porto, foi por mim rececionada, cerca das 16h00, quando me encontrava no meu turno de operador de serviço, uma chamada através do AVP-1, na posse da Milícia Africana, que fazia parte do destacamento de Dunane, a seguinte informação: 

Após o OK, foi transmitido: 

 − Está aqui pessoal branco.

Ainda tentei questionar, mas é facto que se encontrava junto o capitão Cristo, pedindo-me para lhe passar o rádio, fazia questão ser ele a entender-se.

Com toda a sua perspicácia de líder de guerra, logo lançou a pergunta:

− O pessoal branco tem boné?...

 −Sim.

 
− Ele que fale ai ao rádio.

 
− Ele não fala, já vai na bicicleta para Piche.

Terminada a transmissão, de imediato foi dado conhecimento ao Comando a Nova Lamego (CAOP2), tendo sido decidido que um dos helicanhões que se encontrava a dar apoio na outra frente às tropas envolvidas naquele momento com a retirada da ambulância, fosse a Dunane confirmar ou não a notícia difundida pelo Milícia.

Confirmado pelo piloto de que se tratava efetivamente do camarada, tentou recolhê-lo em plena picada, pois este já seguia em direção à sede de Batalhão, o BCÇ 3883 (Piche), fazendo-se transportar numa bicicleta, acompanhado de um africano que se posicionava na sua frente, compreenda-se sentado no quadro da bicicleta pertença do mesmo.

De seguida, este piloto, contente por encontrar o seu camarada vivo, passou a informação ao piloto que operava junto às tropas em progressão, confirmando-lhe que era o piloto Castro Gil. Repartindo desta forma o contentamento, deram os dois início a uma canção que presumo ser algum hino de então, da Força Aérea: 

− Oh santa miraculosa, tirai-nos desta merda!!!

Não tive a oportunidade de memorizar o restante da letra, pois ouviu-se logo uma voz poderosa mais parecida com voz de comando (que o era) dizendo:

−  Aqui maior de ?? ??  
− não havendo mais continuidade do diálogo entre os pilotos. 

Posteriormente veio-se a saber, que o piloto Castro Gil, após se ter ejetado, passou toda a noite em cima de uma árvore, e ao nascer do dia passava por ali um Africano de bicicleta, tendo- lhe pedido boleia, o que logo acedeu.

Uma saca de laranjas fazia parte da sua bagagem que também repartiu com o seu novo companheiro de viagem.

Quando da chegada à sede do Batalhão (Piche), depois de uma autêntica odisseia que já durava há vinte e quatro horas, pediu ao então Comandante do Batalhão, tenente-coronel Dantas, a importância de 1000 pesos, entregando-os como recompensa do transporte e partilha das laranjas, ao Africano. (**)

Do assunto nada mais ouvi falar. No entanto as flagelações a Canquelifá continuaram, sem ter havido qualquer apoio aéreo.

Estávamos no mês de fevereiro 1974, que foi marcado por ataques diários.

A intenção de todos os operacionais em abandonar o aquartelamento, cada dia que passava ganhava mais consistência.


Março 1974 - Continuação dos ataques a partir do dia 5 com alguns interregnos.

Dia 17 de março de 1974 - Início das flagelações às 14h00, com incidência de tiro sobretudo para o lado da “Mata Sagrada”.

Cerca das 15h30, destruído o abrigo 12, e morte do Furriel Rosa ao ser atingido pelos estilhaços de uma granada de morteiro 120 mm que rebentou na copa de uma árvore junto ao referido abrigo, quando este se encontrava à porta do mesmo. Desconheço se foi esta mesma granada, ou outra, que provocou a destruição do abrigo.

O furriel Rosa foi trazido do local para a Enfermaria, num Unimog, tendo-lhe sido ministrados os primeiros socorros, e ermanecido em cima de uma maca até à chegada do meio aéreo que aterrou em espaço aberto, mesmo junto à Enfermaria, sendo então evacuado para Bissau. 

(Continua)

(#) Piloto: Ten pilav. Victor Manuel FernandeCastro Gil |  Aeronave: Fiat G.91 R/4 "5437" (Esq. 121, BA 12, Bissalanca | Data_ 31 de janeiro de 1974 | Causa: abate por SAM-7 Grail.
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 11 de janeiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25057: Casos: a verdade sobre... (38): "Canquelifá era o seu nome" - Uma batalha de há 50 anos (José Peixoto, ex-1º cabo radiotelegrafista, CCAÇ 3545 / BCAÇ 3883, 1972/74) - Parte I : os ataques do início de janeiro de 1974 e a morte do fur mil op esp Luís Filipe Soares

(**) Há uma outra versão deste episódio, escrita pelo Fernando Moreira, ex-fur mil trns inf, CCS/BCAÇ 3883 (Piche, 1972/74). Orignalmente publicada no Facebook, está disponível no Blogue Especialists da Base Aérea 12, Guiné 65/74 > domingo, 3 de fevereiro de 2013 > VOO 2688 – 31 Jan. 1974 - Míssil abate avião; eu "estava" lá.

O Fernando Moreira, que era nosso amigo do Facebook,morreu há dois anos, em 12 de dezembro de 2021.Ver aqui a sua página : natural de Mirandela, andou nos Liceus de Bragança e Vila Real, bem como na Escola Agrícola de Coimbra; viva em Vila Real.

Ficámos também a saber que o nosso camarada da FAP, então já com o posto de cap pilav,  Vitor Manuel Fernandes Castro Gil, veio a falecer, em 5 de janeiro de 1979, aos 28 anos na BA 5, Monte Real, num acidente com um T-33. Teria nascido, pois, em 1951.