Guiné > Zona Leste > Geba > CCART 1690 (1967/69): Croqui do monumento erigido, em Geba, aos "mortos que tombaram pela pátria"... Em 1995, a jornalista e realizadora Diana Andringa visitou Geba e escreveu, a propósito deste monumento, semi-destruído, uma peça pungente, no Público,de 10 de Junho de 1995... Terá sido a "pedra de Geba" que motivou a realização do documentário As Duas Faces da Guerra (em co-autoria com o guineense Flora Gomes; filme, em duas partes, disponível no portal A Guerra Colonial).
A esta martirizada companhia pertenceu o nosso querido amigo e camarada A. Marques Lopes.
Foto: © A. Marques Lopes (2005) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.
1. Mensagem de uma nossa leitora, Maria João Rocha, com data de 29 de Outubro último... É mais uma voz no feminino a fazer-se ouvir no espaço aberto, heterogéneo e plural da nossa Tabanca Grande... Sabemos que muita gente, homens e mulheres, nos lê e nos vê, sem dar (nem ter que dar) a cara... Reconforta-nos, anima-nos e motiva-nos saber que o nosso blogue também atinge outros segmentos de público, para além da sua população-alvo, natural, que são os antigos combatentes... Gente do teatro, do cinema, da cultura, das artes, das letras, da ciência...Tratando-se de um mail pessoal, enviado ao editor L.G., transcreve-se apenas o excerto que pode interessar aos amigos e camaradas da Guiné que se sentam sob o poilão da Tabanca Grande e, por extensão, a todos os nossos leitores. Muito obrigado, Maria João. Boa sorte também para os seus projectos (LG) (*)
Caro Luís Graça:
Muitos parabéns pelo seu FANTÁSTICO projecto. Visito-o muitas vezes por curiosidade histórica (sou licenciada em História), por necessidade de relembrar o passado (tenho 60 anos) e também por alguma afinidade com a Guiné, onde estive, em 95, a realizar um documentário da autoria da Diana Andringa. Foi com ela que visitei e filmei o quartel de Geba (já li, neste blog, alguém falar de um texto que ela escreveu sobre isso) e lá me emocionei, não só com o memorial aos mortos mas também com as pinturas murais, com o silêncio que impera no local e com o "peso" da memória colectiva que lá perdura (**).
A passagem por aquele quartel foi um momento impressionante na minha vida. Nunca imaginei que um exército se alojasse em instalações tão pequenas, quase parece uma aldeia com pequenas casinhas. E o estado de degradação é arrepiante... Quantas vidas... Parece um local paradisíaco... (...)
Com os meus melhores cumprimentos.
Maria João Rocha
Lisboa
Nota de L.G.:
(*) Último poste desta série > ;27 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7043: O Nosso Livro de Visitas (101): "O pobre camarada de Crestuma" (José Campos, presidente da Sociedade Filarmónica de Crestuma, Vila Nova de Gaia)
(**) Vd. poste da I Série do nosso blogue > 23 Junho 2005 > Guiné 69/71 - LXXIII: Antologia (4): 'Homenagem aos mortos que tombaram pela pátria': Geba, 1995 [Diana Andringa]
(...) Mortos. Estes nomes não podem ser senão de mortos. Guimarães, ...ndo Fernandes. Carlos A. Peixoto. ...ul C. Ferreira, ...ostinho Câmara, ...o Alves Aguiar, ...ime M.N. Estevão, ...sé A. V. Sousa, ...tónio D. Gomes.
Tudo em redor, aliás, fala de morte. As paredes em derrocada do que terá sido um quartel português. As viaturas a apodrecer sob o intenso sol africano. Os cacos de garrafas de cerveja. (Bebidas para enganar o medo? Suspensas por arame para, tinindo umas contra as outra, despertar os que dormissem ainda?).
E esta pedra caída, tumular.
Vivos, apenas os meninos que se cutucam, sorrindo, a olhar para nós, estranhos fotógrafos deste cemitério de metal e pedra.
A outra pedra, de pé, tem nomes de cidades, vilas, aldeias: Lisboa. S. Tirso. Moçâmedes. Alcobaça. Madeira. (Nas ilhas não haverá também povoações?) Ponte de Lima. Vila Nova de Ourem. Vila Pouca de Aguiar. Bissau. O tempo, ou a guerra, quebrou-lhe a parte de cima, e agora é uma pirâmide truncada, rasgada do lado direito, onde se inscrevem as primeiras letras dos postos, ou dos nomes, dos naturais dessas terras, que presumimos mortos.
De novo a primeira pedra, a que jaz por terra. A frente dos nomes dos que se presumem ter morrido, inscrevem-se o que supomos serem as datas dessas mortes: 1967, 1968. A última, na pedra, não em tempo, sobressalta-me: 21 de Agosto de 1967. Fiz vinte anos nesse dia. Nesse mesmo dia morreu António D. Gomes. Teria feito, sequer, os vinte anos?
Lembro-me de ter feito vinte anos. Das prendas dos meus pais. E pergunto-me como terão os pais do soldado António D. Gomes suportado a morte do seu filho. Se terão chegado um dia a conhecer este local onde uma pedra caída por terra assinala a data em que o perderam.
"Nós enterramos os nossos mortos nas nossas aldeias, ao lado das nossas casas... Os portugueses deveriam ter, também, um lugar para honrar os seus mortos, os que morreram aqui, durante a guerra", dissera-me, algumas horas antes, um antigo adversário. Aqui. Tão longe de casa, tão longe dos seus. Longe de mais para que possam trazer-lhes flores, arranjar-lhes as campas, preservar-lhes a memória.
Olho de novo as pedras, tentando compreender como se juntavam. Será a que jaz por terra a continuação da outra? Releio as terras e os nomes. Câmara pode ser da Madeira... Será mesmo? Sim. Lá estão em frente de Madeira o posto, sold., e as primeiras letras do seu nome: Ag...-
Agora cada morto tem o posto e a terra onde nasceu, excepto o primeiro, que parece ser de Lisboa, mas cujo posto e nome próprio se perderam, e João Alves Aguiar, de Ponte de Lima, a que o tempo corroeu o posto. Dois alferes, um furriel, sete soldados. Em cima, fragmentado, aquilo que parece a indicação do regimento a que pertenciam: ...RAL-1. ...Combate.
Postas assim as duas pedras em conjunto, apercebo-me de que o soldado que morreu no dia dos meus vinte anos era de Bissau, e de certa forma isso tranquiliza-me, porque não está, afinal, tão longe de casa- como se isso tivesse alguma importância depois de se estar morto, como se me tivesse contagiado essa lista de terras inscrita sobre a pedra, ou outras, sobre outras pedras encontradas ao longo da viagem, onde outros soldados, cabos, furriéis, escreveram como se a naturalidade fosse a sua primeira identificação e a mais forte, o nome da terra natal, primeiro, e só depois o posto, o nome, a data em que escreviam, por vezes uma frase de desesperança, algo como "até quando Deus quiser" — como que temendo que esse "até" fosse curtíssimo, coisa de poucas horas, minutos, talvez, e houvesse que inscrever urgentemente, sobre esses caminhos, placas, pontes, esse sinal de vida e de memória. (...)