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domingo, 30 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23749: (Ex)citações (419): O termo "Brassa" como os Balantas se auto-denominam, na verdade, trata-se da denominação histórica de uma grande área geográfica que correspondia à província mandinga de Braço, B'raço ou Brassu (Cherno Baldé)

1. Comentário de Chermo Baldé, nosso colaborador permanente, assessor para as questões etnolinguísticas, e que vive em Bissau, ao poste P23736  (*):

Caros amigos,
Este testemunho de um guerrilheiro que participou na batalha de Como ajuda-nos a compreender um pouco como as coisas se passaram, visto do outro lado, mesmo se ainda continua coberto com uma pequena áurea da mitologia de glorificação das suas acções com que o PAIGC quis cobrir estes acontecimentos do início da guerra na Guiné que foi, de facto, nada mais nada menos que uma das maiores operações militares da chamada guerra do Ultramar português.

De certa forma está pequena crónica simboliza uma justa e sentida homenagem ao enorme sacrifício consentido pelo povo Balanta (Brassa) que, de forma insensata foi quase que empurrada para os braços do PAIGC pelo comportamento pouco prudente das chefias militares portuguesas presentes no terreno nos primeiros anos da guerra aqui contados pelo veterano CMD Amadú Bailo Djaló no seu livro aquando da sua passagem por Bedanda que não souberam gerir da melhor forma os dilemas e as relutâncias em que viviam estas comunidades, apanhadas entre dois fogos.

No mesmo período, no Norte e Nordeste, também acontecia a mesma coisa, com a diferença de que, também os guerrilheiros, perante a recusa de adesão da população à sua causa, sobretudo do povo Fula, estando posicionados maioritariamente do lado português, eram vítimas de actos semelhantes, quando não era a tropa a roubar e matar o gado encontrado no mato.

Quanto ao termo "Brassa" como os Balantas se auto-denominam, na verdade, trata-se da denominação histórica de uma grande área geográfica que correspondia à província mandinga de Braço, B'raço ou Brassu. Ao império mandinga de Kaabu ou Gabú correspondiam duas províncias ou Farinados governados por um Farim (donde vem a designação da cidade de mesmo nome no rio Cacheu): A de Gabú (Farin-Kabu) e a de (Farin-B'rassu). Dito isso, não é de estranhar que hajam outros povos que viviam na mesma área geográfica também se considerarem como sendo de "B'rassu" ou, como dizem os nossos irmãos Balanta "Brassa". Assim, durante muito tempo, no império mandinga de Gabú, os residentes da província de Gabú eram os chamados "Kaabunkês" e da outra província de "B'rassunkês", termo que assim designava não um grupo étnico em si, mas todos os grupos ali residentes sem excepção, de tal maneira que dentro dos grandes grupos étnicos existiam estas divisões consagradas inclusive numa certa forma de falar (sotaque) que se distinguia claramente da outra província (línguas regionais). No caso do grupo Fula essa distinção ainda hoje é vivida em forma gracejos. Portanto, para dizer aos nossos irmãos Balanta, também nós somos "B'rassa" no sentido geográfico e étno-linguistico.

E eu, toda a nossa família assim como o regulado de Sancorla que constitui a herança de muitas gerações dos nossos antepassados que conviveram e trabalharam sob a dominação imperial dos Farinados mandingas do histórico Braço ou B'rassu, território que se estendia desde o rio Cacheu até às margens do rio Gâmbia, são B'rassunkês ou se quiserem "Brassas".

O nome do meu pai é Tambá que ele herdou do passado e que hoje, na Guiné-Bissau, é reconhecido como um nome tipicamente Balanta, mas que, na verdade, é de raízes mais profundas ou seja do grupo Banhum (em francês Baynunk) que, antes dos mandingas, dominava toda esta área geográfica e grande parte do espaço territorial entre a actual GBissau, a região de Casamansa no Senegal e a Gâmbia.

Tudo isso para dizer que na África Ocidental, a mestiçagem era uma prática corrente e tudo girava a volta do poder e de quem a controlava em benefício de todas as comunidades. No grande Braço ou B'rassu conviviam diferentes comunidades. A par dos mandingas que, na altura, detinham o poder, viviam Banhuns, Padjadincas, Kocolis, Balantas, Biafadas, Fulas, entre outros que, necessariamente, interagiam em diferentes domínios, inclusive no das relações matrimoniais e de consanguinidade.

Convinha a eles e a todos nós guineenses, que pesquisássemos mais ao fundo e assim trazer ao de cima os aspectos que nos uniam no passado e desta forma melhorarmos a nossa convivência actual a fim de construirmos um país onde todos possam viver e trabalhar em paz em vez de criarmos guetos tribais que perpetuam as nossas diferenças e as nossas querelas nos períodos mais recentes.

A este propósito e nesta mesma senda, propunha a mudança da designação do Blogue "Intelectuais Balantas na diáspora..." Para Blogue dos "Intelectuais Guineenses na diáspora..." que, no fundo, é a mesma coisa, mas seria mais abrangente, podendo incluir outras visões e ideários sobre o mesmo país e outras verdades que, também, não deixam de o ser.

Bem hajam
Cherno Baldé


********************

A quem se interessar uma leitura ou pesquisa mais profunda e bem elaborada sobre este assunto da mestiçagem no espaço da Senegâmbia, pode procurar as obras do investigador guineense de Conacry e especialista sobre o império mandinga de Kaabu (Gabau), Djibril Tamsir Niane de quem tenho várias citações e referências na monografia que estou a preparar, há bastane tempo, sobre a minha terra (Fajonquito), donde vos extraio este pequeno excerto para dar uma amostra:

ORIGEM E SIGNIFICADO DO NOME SANCORLA

"(...) Tudo leva a pensar que o nome Sancorla (da grafia portuguesa) vem da palavra Soncoya ou Sonkoya que significa terra dos Sonco ou Sonko. Segundo Djibril Tamsir Niane (Guiné-Concri), investigador e especialista do império mandinga de Gabu, na origem, Sancorla podia ser Sonkolla, quer dizer, terra ou território pertencente à dinastia dos “Sonco/Sonko”, príncipes de origem diversa mas assimilados à cultura mandinga que governavam esta Província mestiça de Birassu/ B’rassu (para mandingas e fulas), Brassá/Brazza (para os balantas) no período áureo do império de Gabú ou Káabu. Ainda, segundo Djibril Tamsir Niane a Provincia de Sonkolla era o domínio do clã Sonko, originários de uma miscigenação de autóctones Banhuns mandiguizados com grupos de fulas pastores vindos de Mali (Macina) e de Boundu (Senegal) que, em ligação com as províncias mandingas iniciais de Gabu - (províncias Nanthiôs de Pathiana/Propana, Djimara e Sama/Manna), formaram as províncias designadas pelo termo mandinga de Kôring (ou seja de origem não mandinga) de Birassu/Brassu (Farin-Ba) de que a região de Sonkolla seria parte integrante, se não mesmo o seu centro. Ainda segundo Tamsir Niane (citando Sekéné Mody Cissoko), o nome de “Farinsangul” na historiografia portuguesa (reinado de D. Joao I), seria a deformação de Farin-Sonkolla, em referência ao poderoso governador de Soncolla em Berécolon.

No séc. XV, os chefes (Farins) de Sonkolla, província habitada por uma população mista e belicosa, se extenderam a Oeste e fundaram muitas aldeias entre as quais Salikénie (situado na fronteira entre o Sénégal e a Guiné-Bissau perto de Cambaju) , Solikoo (em português Solucocum, também na linha da fronteira entre Cambaju e Sitatô), Bantadjam (Bantandjan) e Kagnamina (Canhámina, actual capital do Régulado de Sancorla).**

A capital da província, Bérécolong (Berecolón), situada a norte da actual vila de Fajonquito, onde residiam os chefes da província (Farim) e que desempenhavam um papel preponderante nas relações entre o poder central do império de Mali e o reino de Portugal em meados dos séc. XIV/XV, é uma localidade tão antiga como a velha Kansala, capital do império mandinga de Kaabu, diz-nos Tamsir Niane."


Com um braço amigo,
Cherno Baldé

____________

(*) - Vd poste de 25 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23736: Casos: a verdade sobre... (31): Pansau Na Isna, o "herói do Como" (1938 - 1970), entre o mito e a realidade - Parte II: Visto do lado de lá

Último poste da série de 25 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23738: (Ex)citações (418): Os Consulados da Guiné, a Preparação Militar e a tarimba dos "velhos" (Victor Costa, ex-Fur Mil, At Inf, CCAÇ 4541/72, Safim, 1974)

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20205: Notas de leitura (1223): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (26) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Maio de 2019:

Queridos amigos,
A BVAC 490 retirou da ilha do Como, vem bastante mal tratada, fica em Bissau até partir para Farim e redondezas, em maio.
Era incontornável a referência a Armor Pires Mota, um diarista do Como, a ele nos iremos socorrer nas etapas seguintes.
Mas ao sair do Sul havia uma referência, brejeira e burlesca, inescapável, saída da pena de um grande escritor, José Martins Garcia, aquele alferes miliciano que deixou um romance brilhante "Lugar de massacre", continuamente a ser estudado em instâncias universitárias.
Tudo se passa entre Catió e o Cachil, e por vezes as fraquezas dos homens até permitem ir à procura de um responsável inexistente...

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (26)

Beja Santos

“Todo o pessoal louvado,
pouco tempo descansámos.
Noutra saída, novamente
para Farim abalámos.

De novo metidos ao mar
no Vouga, Lanchas e Dragão,
todo o nosso Batalhão
irá ao cais atracar.
Vamos nós aquartelar
no quartel amuralhado.
Onde o Batalhão é formado, havendo grande reunião
e pelo Comandante da operação
todo o pessoal é louvado.

Em Bissau a passear,
para ver as matulonas
mas elas são tão mazonas
que à tropa não querem ligar.
Levando o tempo a andar,
as solas dos sapatos estragamos.
Muitas vezes chegámos
a faltar à comida.
Com esta tão boa vida,
pouco tempo descansámos.

Os médicos inspeccionaram
para ver os que estavam capazes.
Tivemos muitos rapazes
que para a guerra não abalaram.
Eu fui um dos que cá ficaram
junto a quem estava doente,
pois ficou cá muita gente,
que estava muito mal,
mas quase todo o pessoal
noutra saída, novamente.

Ao mês de Maio se chegou
e os batelões foram carregar.
Com os rebocadores a puxar,
pelo mar se navegou.
Muitos dias se demorou
porque grande carrada levámos.
Para muito tempo nos destinamos,
enfrentando sempre a morte,
e ansiosos por melhor sorte,
para Farim abalámos.”

********************

Vamos despedir-nos em grande dessa batalha do Como, temos um vate, um cronista, um diarista que por ali andou e deixou páginas de indelével impressão. Trata-se do “Tarrafo”, de Armor Pires Mota. Logo no Como, em 15 de janeiro:  
“Quando o sol, suavemente, se aconchegou vermelho no seio verde e agitado das ondas do mar, a distância que nos separava da ilha tão falada, era pouca, a indispensável para não quebrar a surpresa. E o barco ancorou, durante a noite estrelada, ao sul. Em cada rosto, em cada palavra, havia a incerteza do dia seguinte e o perigo do desembarque, pois há tempos que a tropa não punha ali os pés (…). E fez-se a noite do primeiro dia, escura e cheia de medos e fantasmas. Qualquer folha ou fruto caindo das árvores ou bulindo no chão, qualquer sapo saltitando, caindo no abrigo, lembrava um passo estranho que arrepiava. Em frente, na mata, separada de nós por uma pequena bolanha encharcada, duas ou três fogueiras crepitavam cinicamente.”

No mês seguinte, 8 de fevereiro, deixa estas considerações no seu diário: 
“A manhã correra bem. Os bandidos foram levados de rompão na tabanca grande de Cauane. E de lá trouxemos um crucifixo, cujo Cristo tinha um braço despregado. Uma explosão súbita de granada atroou os ares. Que seria, que não seria? Mas, logo, gritos de dor magoaram os ouvidos. Era o Quítalo que, alucinado, corria, a manquejar, gemendo, rosto mascarado de sangue e lama, peito ensanguentado e sem uma das mãos, enquanto a outra apresentava apenas dois dedos esfacelados. Correram a ampará-lo. Parecia uma visão terrível, um homem de calvário. A armadilha, que ele costumava montar todas as tardes para os terroristas, hoje, traiu-o, disparando-se-lhe nas mãos. Junto do buraco aberto pela explosão, pedaços de carne, terra avermelhada de sangue, uma alpercata desfeita, e, mais ao largo, o barrete e farrapos da farda”.

Armor Pires Mota
Estamos a 24 de fevereiro, regista o seguinte queixume:
“Há quarenta dias que o mundo para nós é incerteza da hora seguinte a devorar-nos a fronte atormentada. O mundo para nós é de luta, uma terra de sangue e fogo. Há refeições em branco, porque nada apetece senão a paz, o regresso. Há pesadelos e estonteamentos, cansaço. Uma grande parte da tropa está já inoperacional”.

O último texto do Como data de 15 de março:  
“A guerra esconde-nos as estrelas e faz-nos selvagens. Um tecto feito de troncos de palmeira, coberto de meio metro de terra, pesa, dói-me e sinto-me um condenado num exílio. Enfim, um abrigo à prova de morteiro, porque, de vez em quando, eles nos pregam uns sustos valentes. Tem 60 dias o meu abrigo. Da seteira larga olho, apreensivo, o dia seguinte, a mata densa e cheia de segredos”.
Nesse domingo houvera missa ao cair da noite, e ele despede-se dizendo: “Deus desceu à guerra para a paz”.
Só retomará o seu diário no mês de maio.

É importante voltar à história da unidade, sabemos que o BCAV 490 veio do Como em muito mau estado, estadeou em Bissau, cabe-lhe a partir de maio, com sede em Farim, proteger eixos como Cambajú – Sitató – Cuntima ou Canhamina – Canjabari – Junbembem. As atividades do PAIGC tinham-se alargado, excediam largamente o Oio. Ao BCAV 490 caberá a ocupação territorial da área da sua responsabilidade, irá mover-se entre Barro – Bigene – Farim – Cuntima, ocupando posições em Jumbembem e Cuntima, Binta, Bigene, Barro e Guidage. A seu tempo voltaremos a “Tarrafo”, de Armor Pires Mota. Iremos é despedir-nos da região Sul e nomeadamente de Cachil, o tal aquartelamento onde se posicionaram forças portuguesas depois da batalha do Como.

Temos à nossa disposição um importante escritor, José Martins Garcia, de um dos contos de “Morrer devagar”, de 1979, há para ali notáveis parágrafos brejeiros, onde o vitríolo mais mordaz é prática frequente:
“Na vila de Catió, lá para o Sul, onde a mosquitagem crescia delirante na estação das chuvas, o Batalhão de Caçadores tinha agora novo comandante, o Tenente-Coronel Galvão, um ser tratável, quase bondoso, um tanto sentimental, um tudo-nada neurasténico antes de se lançar nos uísques. O antigo comandante, o insuportável Tenente-Coronel Barradas, cuja paranoia crescera na proporção directa do entupimento dos tímpanos, havia sido afastado do activo, finalmente. E não deixara saudades aos militares nem aos civis respeitáveis do burgo.
Respeitáveis civis em escasso número, acrescente-se. Havia um comerciante transmontano, o único civil português totalmente branco da vila, o Barreiros, pequenino e rijo como um ouriço, que vendia arroz, aliás vianda, e amendoim, aliás mancarra, mais peixe seco e pano para blusas, saias e calções, e também vinho, aguardente e mistelas exóticas. (…) Os Fulas viviam quase todos em Priame, a um quilómetro de distância, sob autoridade feudal de João Bacar Jaló, Alferes de segunda linha do Exército Português. Os Nalus haviam desertado na totalidade. Só os Balantas adornavam as tardes rápidas de Catió, caindo bêbados de aguardente de cana e elevando ao crepúsculo uns risos lamentosos que os cães vadios, sarnosos, chagados, seguiam uivando horas a fio.

José Martins Garcia
No começo da guerra, em 1963, ordens e contraordens haviam produzido em Catió desusados movimentos de ida e volta. Um estratega iluminado decidira-se pela ocupação minuciosa das redondezas, fragmentando o batalhão, dispersando as companhias, fragmentando companhias, dispersando os pelotões, fragmentando pelotões, dispersando secções. O resultado foi desastroso, pois todas as ligações se mostravam extremamente complicadas, tanto por via rádio, como por via terrestre ou marítima, sucedendo-se às minas as emboscadas e às emboscadas as flagelações, com abundantes morteiradas alta noite. Confirmada a inoperância do iluminado estratega, logo lhe sucedeu um comandante de ideias diametralmente opostas, o qual, para demonstrar que a união faz a força, mandou recolher a Catió, com armas e bagagens, o batalhão que o antecessor havia disseminado. (…) Em Catió, onde os ataques nocturnos foram, por alguns anos, relativamente escassos, ouviam-se muito bem os rebentamentos das morteiradas vizinhas, desferidas contra Bedanda, Cachil, Ganjola e, mais raramente, Priame, ali mesmo ao fim da recta de um quilómetro, onde João Bacar Jaló, senhor de muita mancarra e de sete mulheres, valia, com a milícia Fula, por um exército inteiro. (…) O ataque à ilha de Como, onde posteriormente se instalaria a chamada Companhia do Cachil, nunca foi registado por cronistas. (…) O Cachil erguera-se, porém, nas imaginações. No passado recente, quando o surdo Tenente-Coronel Barreiros comandava o batalhão de Catió, a ameaça que mais insistentemente se lhe desprendia da boca era:
- Olha lá, ó militar! Queres ir prò Cachil?... 
Depois, quando o convivente Tenente-Coronel Galvão tomou conta daquela recalcada guarnição, logo um problema bicudo lhe veio pousar sobre a secretária: o Capitão Lourenço, comandante da companhia do Cachil, fora declarado incapaz para qualquer serviço militar, por conjugação de questões pulmonares com uma psicose verdadeiramente depressiva. (…)

Do Cachil não vinham nem bons ventos nem bons hóspedes, nem sequer boas notícias. A última irregularidade cometida por essas bandas rezava da alquimia operada no interior de um barril, cujo conteúdo vínico se revelara água, diante dos olhos crédulos e incrédulos. O comandante Galvão abominava as pequenas trapaças. E, por pensar em reabastecimentos, fez-lhe espécie, pela primeira vez, o facto de o Capitão Clemente, oficial de cavalaria, se ter enconchado na manutenção, superintendendo na batata, no vinho, no arroz, no bacalhau, como se fosse um desses da Administração, um ‘padeiro’. O Capitão Clemente empalideceu quando soube da decisão do Tenente-Coronel Galvão: mandá-lo para o Cachil, na qualidade de comandante interino da companhia, encarregando-o, ao mesmo tempo, mui honrosamente, de apurar a verdade acerca da transformação do vinho em água, alquimia tanto mais escandalosa quanto invertia a regra dos Evangelhos.

- Mas, meu comandante – gaguejou o Capitão Clemente – , logo agora, que a minha mulher veio para cá…
- Mas você fica lá só uns dias, homem! Há meses que não se ouve um tiro para aquelas bandas…
O Capitão Clemente partiu desmoralizado e começou a portar-se mal diante da escolta que o acompanhou ao cais, chegando ao ponto de gemer de voz embargada:
- Agora é que não torno a ver a minha mulher nem os meus filhos.

(…) O jantar foi servido ao ar livre, sob um poilão gigantesco. As escassas lâmpadas, tão débeis como o rumorejar irregular da geradora eléctrica, mais concentravam do que dispersavam os temores. (…) Mais tarde, quando deu as boas noites aos alferes e se fechou no quarto, voltaram-lhe à memória as fábulas incertas, tão incertas quanto divulgadas em terras da Guiné: dezenas de mortos e feridos, a cavalaria a atolar-se, a artilharia a esquivar-se, a infantaria a imolar-se. Tudo por uma questão de estratégia, ou por falta dela, na sinistra ilha do Como. (…) O Capitão Clemente começou a sentir dores de barriga. Tinha medo, é certo; mas a causa daquelas cólicas devia ser o mau estado do jantar: uns feijões embrulhados em farrapos de carne duvidosa… E era evidentemente um atentado à dignidade de um capitão não terem construído uma retrete, que diabo!, ali ao lado, uma retrete privativa, porque, se não há distinção entre o comandante e os subordinados, está em crise a hierarquia, a autoridade, a civilização…
O capitão Clemente dormiu pessimamente, revolvendo-se na cama dura, sentindo-se atolar na água negra do canal. Muito cedo, a passarada desatou a chilrear. O Sol, finalmente, viria trazer-lhe um pouco de alento, depois do horrível negrume daquela noite memorável.
O capitão Clemente espreitou por uma nesga da porta e avistou a sentinela. Com um berro indignado, onde perpassavam a aspereza e o peso do comando, mandou que o militar se aproximasse: - Entra, que temos de conversar!
O soldado mal abria os olhinhos atordoados, pois acabara de render um camarada:
- Estás a ver aquilo, pá!
Hirto, solene, o Capitão Clemente apontava um canto do quarto onde alguns cagalhões se cavalgavam.
- Põe-te em sentido! – uivou a indignação do bravo Capitão Clemente.
O soldado obedeceu, boquiaberto.
- E agora – rematou o bravo capitão, mais que fera – responde! Quem foi o filho da puta que fez uma coisa destas?”.

(continua)
____________

Notas do editor

Poste anterior de 27 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20183: Notas de leitura (1221): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (25) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 30 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20190: Notas de leitura (1222): História das Tropas Pára-Quedistas Volume IV, é dedicado à Guiné e tem como título História do Batalhão de Caçadores Paraquedistas n.º 12; responsável pela redação e pesquisa Tenente-Coronel Luís António Martinho Grão; edição do Corpo de Tropas Paraquedistas, 1987 (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20145: Notas de leitura (1217): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (23) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Maio de 2019:

Queridos amigos,
Fica-se com a convicção de que o bardo foi profundamente tocado pela sorte dos seus camaradas que experimentaram toda a casta de dificuldades naqueles 71 dias do Como. Reserva-nos ainda mais estrofes, deixará a contabilidade em dia antes de regressar ao continente. Aqui se destaca um linguajar propagandístico do PAIGC, uma torrente demencial de mentiras, propagou centenas de mortos, forças portuguesas a fugir, em debandada, nem uma só palavra sobre as enrascadas de Nino, as suas muitas baixas, foi um delírio propagandístico que ainda, mesmo episodicamente, vejo escrito. E aqui se volta a prestar homenagem a Armor Pires Mota, o BCAV 490 andara por Mansabá e vai sediar-se em Farim, há muito ainda para contar, ao homenageado, aqui se destacam alguns parágrafos da sua obra-prima "Estranha Noiva de Guerra".

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (23)

Beja Santos

“Para Curcô reforçar
Hermenegildo e Ribeira.
Granadas de morteiro rebentaram
ao pé de Jacinto Pereira.

Um grande ataque se dava
um dia já à noitinha.
O pelotão do amigo Farinha
muito fogo atirava,
e granadas de morteiro jogava
algumas de incendiar.
O 467, a falar,
homens em socorro pedia
para seguirem no outro dia
para Curcô reforçar.

O pelotão que calhou
foi o de Manuel Sobral,
a 1 de Março, às 5 e tal,
para o mato ele avançou.
O sr. Alf. Saraiva os acompanhou
com os seus homens em fileira
houve um ataque de uma maneira,
que o fogo não aguentaram
e juntos a todos recuaram
Hermenegildo e Ribeira.

Nestes arredores patrulhou
o pelotão do sr. Alf. Segura
que mostrando a sua bravura
um letreiro no mato deixou:
os bandidos desafiou
e eles pouco demoraram.
Logo nessa noite atacaram
e a coisa esteve bem torta,
a um metro de José Horta
granadas de morteiro rebentaram.

Quando o ataque principiou,
foi logo com as granadas.
Em seguida houve rajadas
que o pessoal desorientou.
O Fernando Paulino pensou
em salvar-se, de qualquer maneira,
e jogou-se ao rio mais o Teixeira
onde perigo não havia.
E no abrigo Joaquim Maria
ao pé de Jacinto Pereira.”

********************

Neste aceso de avanços e contactos brutais na batalha do Como, ocorre bater à porta do contraditório, ver o tratamento que Basil Davidson, com os préstimos de Amílcar Cabral, deu aos acontecimentos do Como. O jornalista britânico nunca escondeu que estava ali em missão propagandística, a dar vencimento às proezas independentistas a desbaratar colonialistas. Afirma perentoriamente que em 1 de junho de 1963 a ilha do Como estava libertada depois de ter sido bombardeada e atacada pelas forças coloniais.
Vejamos o que ele escreve:
“As tropas portuguesas foram desbaratadas no porto de Cachil pelas forças nacionalistas sob o comando de Agostinho de Sá. Este foi ferido, mas as tropas inimigas foram forçadas a retirar-se e refugiar-se em Bolama”.

Davidson recolheu do próprio Cabral um relato circunstanciado dos factos desta batalha do Como e diz que se limita aqui a fazer um simples esboço de uma batalha que para o PAIGC teve importância histórica:
“Como foi a primeira porção de território nacional a ser libertada pelas nossas forças, a reconquista de Como tornou-se para os portugueses, nesses primeiros dias de 1964, uma questão de necessidade básica, e mesmo vital, para a sua estratégia militar e política. Isto porque, se os portugueses queriam controlar eficazmente as zonas que libertámos no Sul, Como constituía uma plataforma estratégica indispensável; e ainda por causa das consequências políticas que para eles poderiam advir da reconquista da ilha, já que o povo de Como é bem conhecido em todo o país pela sua entrega feroz à nossa luta e pelo apoio leal que sempre deu ao nosso Partido.
Usando todos os meios militares à sua disposição, com um efectivo total de 3000 homens bem equipados, incluindo 2000 soldados e oficiais escolhidos transferidos de Angola, os portugueses lançaram a sua ofensiva sobre o Como em Janeiro de 1964 com a firme decisão de arrancar a ilha das nossas mãos. Oficiais do Estado-Maior foram transferidos de Lisboa para Bissau para daí seguirem mais de perto as operações.

Depois de uma batalha que durou 75 dias, as nossas forças empurraram o inimigo para a linha de costa, infligindo-lhe pesadas baixas – foi a pior derrota de sempre em toda a história do colonialismo português. Calculamos as baixas do inimigo em cerca de 650 homens. Desertores portugueses, incluindo alguns que tomaram parte nessa batalha, viriam a dizer-nos que pelo menos 900 colegas seus tinham sido mortos nessa batalha ou teriam morrido depois em consequência de ferimentos ali recebidos.
A batalha do Como foi um teste para os portugueses, mas foi-o ainda mais para nós. Na verdade, ajudou-nos a formar um juízo mais rigoroso acerca das nossas próprias forças. Aprendemos ali a verdadeira capacidade dos nossos combatentes e do nosso povo quando confrontado com as situações mais difíceis; apercebemo-nos do moral e por conseguinte da fraqueza do nosso inimigo; verificámos o alto grau de consciência política e a feroz determinação da população civil das zonas libertadas – agora definitivamente libertadas – não voltarem a cair sobre a dominação portuguesa”.

Ao que se sabe, jamais em tempo algum a mentira foi tão descarada, acrescendo que, conforme observa Carlos Matos Gomes e Aniceto Afonso, rapidamente a ocupação do Como passou para nível secundário, o PAIGC conquistou posições na região Sul estrategicamente mais influentes, Como tornava-se um símbolo, uma bandeira. E para as forças portuguesas aprendia-se que um objetivo de guerrilha carece de uma resposta de contraguerrilha, deu-se como desproporcionado o efetivo e o tempo que demorou a ocupação da ilha. Em breve, Salazar iria tomar uma medida radical, substituiu Vasco Rodrigues e Louro de Sousa, militares em permanente contencioso, por Arnaldo Schulz, foi logo em maio de 1964.

Aqui se inicia uma transição, o bardo ainda tem umas estrofes para contar o que se passou no Como, mas é bom não esquecer que vai haver mudança de itinerário, o batalhão irá sediar-se em Farim, ver-se-á envolvido em muita atividade operacional. É justo aqui trazermos à colação quem fez páginas de diário na ilha de Como e muitos anos mais tarde, em meados da década de 1990, dará à estampa uma obra-prima do romance com o título “Estranha Noiva de Guerra”, falamos obviamente de Armor Pires Mota.
Oiçamos o que ele nos diz sobre essa atividade que prossegue a que viveram no Como:
“Muito antes de Cai, ainda a companhia completa, o resmalhar do capim começou a acordar os bichos, as aves. Sobretudo, os macacos. Isso inquietava. Feria o cérebro. Quando, aqui e ali, as palmeiras novas entrechocavam os seus ramos, havia um estremecimento súbito, um medo geral. Os menos afoitos aguçavam o ouvido. Seria mentira até se não se dissesse que se pressentia um silencioso ranger de dentes e de pragas escorrendo do território inconquistável. Muitos dos nossos começavam a acariciar as patilhas da G3. Ou o coração áspero das granadas. Arrepiados de dúvidas e talvez tocados de maus presságios, seguíamos, atentos e pressurosos, na árdua tarefa que nos coubera. (…) Às 22 horas estoirou uma granada do lado sul, prova de que o IN se acercava da posição que era vulnerável. O silêncio era a única voz a gritar alto naquela escuridão aventesma. Só quem, um dia, andou de canhota no mato. Todos apalpavam as armas, as granadas, quase sempre o coração, às vezes a alma.

Esfregavam os olhos até doer. Dormir era um risco. Ninguém queria entrar na eternidade de olhos fechados, por um tiro no coração, esborrachado por uma granada. (…) As balas, assobiando, constituíam uma perigosa muralha de aço, difícil de transpor. A luta não deixava ninguém de fora. Depois, do outro lado, os gritos começavam a dizer que o sangue havia rebentado como um vulcão em chamas. Era uma onda quente inundando o capim, metendo medo ao anúncio da madrugada. O IN tentava, a todo o transe, evitar a aproximação da tropa do santuário de Malimorés. Ainda ouvi o alferes Costa a gritar: vamos a eles! A seguir devo ter perdido os sentidos, porque não me lembrava de mais nada”.

Vale a pena insistir que este romance é de uma enorme expressão metafórica, trata-se de uma via-sacra, o herói é José Joaquim Bravo Elias, ali bem perto de si morre um extremoso camarada (“Júlio Perdiz tinha na cabeça um arrepio intranquilo de sangue e nenhum relincho era capaz de acordá-lo”), vai começar uma viagem delirante, Bravo Elias arrasta o corpo do camarada Perdiz, experimentará todas as provações, assaltarão a sua memória as mais insólitas e aparentemente despropositadas recordações, haverá uma noiva de guerra, encontros insólitos, haverá uma flagelação cataclísmica sobre Mansabá, quem vinha da via-sacra presenceia um mundo de destroços.
Um belo romance, mas Armor Pires Mota vai-nos contar ainda mais coisas depois da batalha do Como.

(continua)

Página do jornal do BCAV 490, gentilmente cedida pelo confrade Carlos Silva, um investigador infatigável a quem devo muitas atenções.
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Notas do editor

Poste anterior de 6 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20127: Notas de leitura (1215): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (22) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 9 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20137: Notas de leitura (1216): “Por uma reinvenção da governabilidade e do equilíbrio do poder na Guiné-Bissau”, por Luís Barbosa Vicente; Edições Corubal, 2014 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20127: Notas de leitura (1215): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (22) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Abril de 2019:

Queridos amigos,
O bardo continua na ilha do Como, chora amargamente os camaradas que partiram e que ficarão no cemitério de Bissau. É o momento propício para dar um pano de fundo da Frente Norte, já se falou de Mansabá e Bissorã, a seguir à batalha do Como o destino será Farim, importa esclarecer o que na região aconteceu ao longo de 1963, aí se passarão muitas coisas que o bardo a seguir irá contar.
Feitas as contas, a batalha do Como assegurou uma retirada estratégica dos elementos do PAIGC, não podiam resistir ao potencial de fogo e à capacidade ofensiva das forças portuguesas. Só que o Como acabou por deixar de ter interesse estratégico, o PAIGC ganhou posições no Sul muito mais influentes. O mesmo PAIGC que usou o Como como arma de arremesso propagandístico, mentiu até dizer basta.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (22)

Beja Santos

“Ao virem para o Ultramar
seus paizinhos abraçaram.
Grande azar os perseguia,
ao Continente não voltaram.

O 820 falou
pouco antes de morrer
dizendo: - “é má de vencer
a força que nos enfrentou”.
Com coragem rastejou,
para conseguir escapar.
Ele e o 311 com azar
levaram muita rajada,
tinham a vida determinada
ao virem para o Ultramar.

Acabaram sua lida.
Aqui a lutar na guerra
ficaram debaixo da terra
tão longe da família querida.
Já não gozam mais na vida,
a mocidade deixaram,
pela nossa Pátria lutaram
com prazer e com orgulho.
Em 63, no mês de Julho
seus paizinhos abraçaram.

Ao abraçarem seus pais
foi uma coisa amargurada.
Na hora da abalada
deram suspiros e ais.
Já não tornam a ver mais
quem os trouxe à luz do dia.
Foi tão grande a agonia
quando este caso se deu.
Pinto e o condutor: morreu
grande azar os perseguia.

Na Província da Guiné
foi este acidente passado,
o condutor era Soldado
e o 1.º Cabo Henrique José.
Foi na mata de Uncomené,
que as amarguras passaram.
Para Bissau se evacuaram
onde foram enterrados.
E assim, estes malfadados,
ao continente não voltaram.”

********************

Enquanto o bardo exprime a sua dor pela morte dos camaradas, penso que chegou o momento azado de introduzir duas obras como pano de fundo para este PAIGC que desencadeara uma luta armada consequente logo no início de 1963 e ouvir um ponto de vista sobre a utilidade desta batalha do Como, do lado de investigadores portugueses, deixando para mais adiante a opinião de Basil Davidson, num trabalho panegírico sobre a libertação da Guiné.

Em “Os Anos da Guerra Colonial”, Carlos Matos Gomes e Aniceto Afonso, a propósito da expansão da guerra, lembram que em junho de 1963 o PAIGC instalava-se na região que liga o Morés à fronteira norte, e escrevem:
“O comando militar português não esperava que essa actuação fosse desencadeada com tanta agressividade, nem que os grupos guerrilheiros do PAIGC dispusessem de armamento tão aperfeiçoado e em tal quantidade. A seguir a esta acção sucedem-se várias outras, reveladoras do potencial de combate e das capacidades militares do PAIGC”.
E vem um rol de datas com eventos: viaturas alvejadas entre Binta e Farim; grupos guerrilheiros a tentar destruir com explosivos diversas pontes e pontões nas estradas Olossato-Farim, Olossato-Mansabá e Mansoa-Nhacra; ataques a Binar e Olossato, aqui saquearam-se casas comerciais; emboscada a uma força militar de Mansabá; ataque a Encheia.
E os autores comentam:
“Era evidente que a atuação do PAIGC obedecia a um plano bem definido. A PIDE de Bissau tinha informações de um plano para o desencadeamento de acções armadas na zona norte da Guiné e de que as acções seriam desencadeadas por guineenses residentes no Senegal. O PAIGC contava nessa altura, na região de Zinguinchor, com perto de 300 elementos em Samine, e a PIDE estimava existirem no interior do território cerca de 6500 elementos treinados para a luta. Era ainda conhecida a existência de um depósito de armamento em Biambe, concelho de Bissau, e que estavam a aguardar mais material para distribuir nas áreas de Bula e Canchungo, onde, em princípio, pensavam desencadear as ações militares. O plano do PAIGC que a PIDE descobriu incluía ainda sabotagem de aviões e barcos".

Voltemos ao Morés, onde o PAIGC estimava poder manter no centro do Oio um quartel-general. Em poucas semanas, todas as pontes da região circundante do Morés foram destruídas e as estradas cortadas com abatises, em especial a de Bissorã-Mansabá. O PAIGC pretendeu inutilizar eixos rodoviários de interesse económico, o principal dos quais era a estrada Mansoa-Mansabá-Bafatá, por onde se escoava boa parte da mancarra produzida no leste da Guiné.
E adiantam os autores:
No final de agosto de 1963, a situação na região-chave que abrangia Bissorã, Binar, Encheia, Mansoa, Mansabá e Olossato era idêntica à de grande parte do sul da Província: populações fugidas, tabancas abandonadas ou destruídas, estradas obstruídas, a vida administrativa e a atividade comercial profundamente afectadas.
Amílcar Cabral emitiu um comunicado difundido em Agosto pelas emissoras de Dacar e de Conacri sobre este alastramento da actividade militar, confirmou que a luta estava a ser intensificada para tornar mais sólidas as suas posições no sul da Guiné ao mesmo tempo que se estendia a acção armada ao centro e ao norte.
A intensificação da luta, anunciada por Amílcar Cabral, correspondeu à realidade. No sul, o PAIGC, além de continuar a obstruir as estradas com abatises ou vales, aumentou o número de acções contra aquartelamentos militares, tendo sido especialmente visados os de Fulacunda, Catió, Buba, Cacine, Chugué, Empada e Bedanda. Estas acções foram quase sempre realizadas de noite e com maior ou menor violência. Para responder a esta situação de grande violência, as Forças Armadas deslocaram para a Guiné cerca de 5 mil homens durante o ano de 1963.”

O bardo e camaradas a caminho da Ilha do Como.

E chegamos agora à batalha do Como, evento militar maior, quase coincidente com o congresso do PAIGC em Cassacá. O PAIGC ocupava desde fevereiro de 1963 as ilhas de Como, Catunco e Caiar, ilhas estrategicamente importantes, a sua posse pela guerrilha dificultava a navegação pelo sul e facilitava-lhe ataques ao lado continental da colónia. Os autores de “Os Anos da Guerra Colonial” descrevem a Operação Tridente, a retirada de todo o contingente do PAIGC em que as suas bases foram destruídas após 71 dias de operação. Foi posteriormente construído um aquartelamento em Cachil onde ficou instalada uma companhia, com o objetivo de assegurar o controlo da ilha. Como seria de esperar, o PAIGC regressou à ilha e não deu vida fácil a quem estava em Cachil. Só que o Como acabou por perder a importância estratégica na justa medida em que a guerrilha se consolidou em vários locais do continente. Feitas as contas à batalha do Como, do lado português pôde dizer-se que os guerrilheiros resistiram e depois fugiram e a propaganda do PAIGC usou a batalha como uma grande vitória, falando sem pudor de centenas de mortes do lado português e de uma retirada das forças portuguesas perseguidas pelo PAIGC.

Se demos um pano de fundo sobre os acontecimentos da abertura da Frente Norte é para enquadrar o que, depois da batalha do Como, se irá passar com a atividade operacional do BCAV 490. E referir o livro “A libertação da Guiné”, por Basil Davidson, que teve a sua edição original em 1969 e edição portuguesa em 1975 é para ter uma imagem da profunda admiração sentida pelo jornalista e escritor britânico pelo pensamento e ação de Amílcar Cabral e como ele fez eco da batalha do Como. Prefaciou o livro Amílcar Cabral, fica demonstrada a conivência, a afinidade ideológica entre ambos, começara em 1960, quando Cabral se deslocou a Londres para pedir apoios políticos, deixando ali um importante documento.

Basil Davidson caminha no interior da Guiné ao lado de Cabral, fala-se da história da colónia, das bombas de napalm, colhe testemunhos de guerrilheiros, regista as tiradas tribunícias proferidas por Cabral junto das populações afetas, visita a região do Boé, descreve os princípios políticos do PAIGC: “É um movimento revolucionário que se baseia numa análise marxista da realidade social”. Dá como adquirido que organização política é uma democracia participativa, o PAIGC aceita apoio militar, formação profissional, nomeadamente na área da saúde e cita Cabral, a propósito do apoio internacional: “Não queremos voluntários. Conselheiros militares ou comandantes ou qualquer outro pessoal estrangeiro seria a última coisa que aceitaremos. Roubariam ao meu povo a sua única oportunidade de conquistar significado histórico pelos seus próprios meios, de reafirmar a sua própria história, de recapturar a sua identidade própria”. Mais adiante descreve a evolução dos meios militares sem antes, porém, enunciar as diligências perpetradas por Cabral para tentar negociar um processo de independência com o Governo Português. E assim chegamos à batalha do Como.

(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 30 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20109: Notas de leitura (1213): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (21) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 2 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20116: Notas de leitura (1214): Descrição da Serra Leoa e dos Rios da Guiné de Cabo Verde (1627), por André Donelha, Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1977, prefácio de Avelino Teixeira da Mota (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 12 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19972: Notas de leitura (1197): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (14) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Março de 2019:

Queridos amigos,
Santos Andrade nunca escondeu que não procurava fazer poesia mas simplesmente narrar ou fazer crónica. Estou a tomá-lo a sério, em breve a história do BCAV 490, que o nosso confrade Carlos Silva tão amavelmente me emprestou, virá à baila, será companhia até final do relato.
Na batalha do Como serão convocados Armor Pires Mota e Alpoim Calvão, temos textos de altíssima qualidade. Por essa altura, se acaso este modo de abordar as coisas for aliciante para a nossa sala de conversa, já muita gente entrou em cena, com depoimentos, fotografias, comentários alusivos à crónica do nosso bardo. Oxalá que assim seja, tanto pelo dever de memória como pelo vigor da recordação dos vivos, que aqui estamos a homenagear.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (14)

Beja Santos

“A missão continuou
sofrendo-se grande emboscada.
A Companhia do Ventura
foi muitas vezes atacada.

A 3.ª Companhia
à meia-noite saiu
e de manhã cedo se viu
um bando cheio de rebeldia.
O Moita fogo fazia
e um terrorista tombou
uma arma lhe apanhou
e os enfermeiros dele trataram
e como prisioneiro o levaram.
A missão continuou.

Por um carreiro tudo caminhava
e chegou-se a uma povoação
que só tinha habitação
quando a noite chegava.
De dia só quem lá estava
era uma velha de pele enrugada.
Foi por nós interrogada,
mas pouco descobriu,
e para a mata connosco seguiu,
sofrendo-se grande emboscada.

Na mata o ataque se deu
às 3 horas do dia.
Houve 11 feridos na Cavalaria,
incluindo o que morreu.
O Joaquim da Costa muito sofreu
precisamente nesta altura.
Também sofreu muita amargura
o amigo José Revez
pois atacada em Morés
a Companhia do Ventura.

Não tinham água para beber
e já havia poucas munições.
Por intermédio das transmissões
veio a avioneta abastecer
onde trouxe também comer
porque não tínhamos nada.
Uma coisa tão amargurada
não esperavam de passar.
E a 489 com azar
foi muitas vezes atacada.”

********************

O bardo não esconde as agruras da vida operacional, ora encetada, o Morés era o osso mais duro de roer. E viaja a recordação para outro livro de Cristóvão de Aguiar, de nome “Ciclone de Setembro”, com primeira edição em dezembro de 1985, três partes com títulos saborosos: "Terra de Ventos"; "Os Ventos da Guerra" e "O Futuro de Ventos". Obra da qual mais tarde o escritor açoriano irá buscar o barro para o livro “Braço Tatuado”.
Logo um texto de enorme ferocidade, tem a ver com o drama de um guia prisioneiro:
“O prisioneiro está sentado num abatis. Continua algemado e assim ficará para todo o sempre. Guarda-o o soldado Capitão Castelar. Segura-lhe a ponta da corda amarrada à cintura. Daqui a pouco vai morrer. A este nem lhe dão tempo sequer de regressar ao aquartelamento.
O furriel enfermeiro, criatura a quem a guerra apurou os sentimentos humanitários, e outros, lembrou-se de ir dar de comer ao guia algemado. Leva-lhe o comer à boca. Tem a ração de combate aberta sobre um corpo decepado. Volta-se, tira uma garfada de atum, corta um pedacito de bolacha, e deposita tudo na boca do prisioneiro. À ilharga do indígena, o soldado-sentinela não está gostando da brincadeira. Nota-se-lhe o enfado na cara. E a revolta. Sempre que o enfermeiro se volta para se fornecer de alimento, aproveita o soldado a ocasião para calcar os pés do indígena com as botifarras, às vezes com a coronha da G3. Da boca do guia nem um ai se ouve, sorri apenas.
Vejo a cena, vou-me aproximando. Continua o soldado, mesmo verificado que o encaro com acinte e raiva, pisando os pés do prisioneiro. Estão já em sangue. O furriel, embebido no que está fazendo, não dá por nada. Ao abeirar-me da sentinela, não em contenho e dou-lhe uma funda bofetada. Tenta ripostar-me. Não lhe dou tempo e prego-lhe outra ainda mais rija e ameaço-o com a Parabellum: Se continuas a fazer tal filhadaputice, ponho-te em sangue, meu cabrão nojento.
Ele nem tentou reagir, mas disse-me: O meu alferes é tão turra como ele, se não o fosse, não me tinha batido, ameaçado com a Parabellum e escarrado na cara; é por causa deles e de outros como ele que andamos neste martírio; o meu alferes vai-me pagar”.

É nestas andanças que o horror muda de figura, aqueles militares ficam horrorizados com a tragédia que houve na frente da coluna:
“De súbito, um forte estrondo na direcção em que seguiram as duas viaturas. O nosso Capitão Farias fica lívido e ordena-me: Ó Mendonça, siga você com o seu grupo de combate nas respectivas viaturas e veja-me o que sucedeu. Arranco com o meu pelotão, vamos todos sem pinga de sangue, em silêncio. Nunca mais se escutou qualquer outro rebentamento nem tiroteio de resposta. Os Unimogs voam aos solavancos pela picada adiante. Ao longe, muito ao longe, principiamos a divisar as duas viaturas. Estão imobilizadas. Cada vez nos vamos aproximando mais. Alguns soldados descem dos Unimogs em andamento. Querem, à fina força, ser os primeiros a chegar ao pé das outras viaturas para darem a notícia. E ela vem de imediato: Meu alferes, estão todos mortos na primeira viatura; na segunda não há ninguém, nem rasto de sangue, foram, com toda a certeza, todos apanhados à unha e levados pelos turras.
Tenho a bússola dos sentidos desorientada. Não sei para que lado me hei-de virar. Os mortos já não precisam de auxílio, estão como hão-de ir. O pior são os outros, os da viatura rebocada. Será que fugiram? Será que foram feitos prisioneiros? Os pensamentos atravessam-me a cabeça em farrapos.
Todo eu sou aliás um farrapo. Chega o capitão com o resto da coluna. Vem pálido mas aprumado. Desce do jipão e vai de imediato espreitar os estragos. Após curta vistoria, vira-se para mim e ordena: Alferes Mendonça, nomeie meia dúzia de voluntários para ir para dentro da viatura dos mortos; quero os cadáveres alinhados no estrado da carroçaria. 
Chegámos a Piche à boca da noite. Os outros dez já lá estavam há muito. Fizeram cerca de vinte quilómetros em pouco mais de hora e meia. Alguns iam feridos com estilhaços das granadas que os guerrilheiros lançaram para dentro da primeira viatura. O Pombal, soldado condutor da segunda viatura, foi o primeiro a lá chegar. Ao entrar dentro do arame farpado que rodeava o aquartelamento de Piche, caiu redondo no meio do chão. E só deu acordo de si muito depois de termos lá chegado”.

É a hora da despedida de Cristóvão de Aguiar, com outra recordação deste mesmo livro, uma consideração bem difundida sobre as atribuídas valentias do soldado português, sabemos bem o porquê de tal exaltação, uma forma de anfetamina que procurava resultados, e que alguns deu:
“Em campanha, disse-me um dia o segundo-comandante do Batalhão, o nosso soldado é o melhor do mundo. Desde que tenha vinho e correio, nenhuma chatice entra com ele. Veja, nosso alferes, quem são as pessoas que se abalam por problemas psicológicos e têm, na sua maioria, de ser evacuados para a psiquiatria: alguns furriéis milicianos e uma chusma de oficiais do quadro complementar, sobretudo os provenientes das universidades, abarrotados de filosofices políticas e antipatrióticas. O mesmo já não acontece, por exemplo, aos graduados vindos da Academia e dos seminários. Esses são compenetrados de dever e resignação, habituados à dureza e à disciplina da vida, formados no amor à Pátria. Mas é no nosso soldado, bronco e simples, que se encontra o nosso melhor material humano e logístico. Vê na tropa um súbito céu de fartura. Por isso, nosso alferes, nunca viu nenhum soldadinho sofrendo da caixa dos pirolitos. Logo que se lhe dê vinho, rancho e correio a tempo e horas, nada o derrubará”.

O bardo fez recruta e especialidade, que formou Batalhão e rumou para a Guiné, conta as horas difíceis vividas em Bissorã e nos arredores, afinal há temíveis emboscadas, mas nada comparado com o que dentro de alguns meses irá ficar conhecido pelo nome da Batalha do Como.

(continua)
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Nota do editor

Poste anterior de 5 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19949: Notas de leitura (1193): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (13) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 11 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19969: Notas de leitura (1196): "SE SENTES NÃO HESITES", por Manuel Clemente; alma dos livros, 2019 (Mário Migueis da Silva)

quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Guiné 61/74 - P17765: (In)citações (111): Lembrando Setembro, o mês comemorável da Guiné, a sua Libertação, que intrujou todo o mundo e todo o mundo se deixou intrujar e os seus improváveis heróis (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav da CCAV 703)

Nuno Tristão
Com a devida vénia a AdBissau.Org

1. Em mensagem datada de 13 de Setembro de 2017, o nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil da CCAV 703/BCAV 705, BissauCufar e Buruntuma, 1964/66) enviou-nos este artigo de opinião para publicação:


Lembrando Setembro, o mês comemorável da Guiné, a sua Libertação, que intrujou todo o mundo e todo o mundo se deixou intrujar e os seus improváveis heróis

Por Manuel Luís Lomba

A minha memória da Guerra da Guiné anda associada à lembrança das suas “mentiras revolucionárias” e das duas utopias, responsáveis directas e indirectas, da imolação dos seus milhares de vítimas - homens, mulheres e crianças: a de que a Guiné continuaria a ser dos portugueses, de um lado; e a de que os guineenses empreendiam a sua libertação, do outro. Um chamamento do além, à evocação se “valeu a pena?” ou ao piedoso respeito pelos que derramaram o seu sangue por ela?

A Guerra da Libertação da Guiné foi o meu (nosso) passado de mocidade, o nosso futuro próximo é estarmos todos mortos e, neste mês de Setembro, efeméride da Declaração unilateral da independência e do seu reconhecimento por Portugal, seja-me permitido evocar alguns dos seus acontecimentos e evidências.

Nuno Tristão chegado à Guiné, diz o cronista que na missão da “busca certa de informação e sabedoria daquelas partes” e foi morto pelos Mandingas pré-cabralinos, em Setembro; o reconhecimento da posse exclusiva da Guiné, pelos Reis Católicos da Espanha e pelo Papa de Roma, foi em Setembro; Amílcar Cabral nasceu em Setembro; o PAIGC foi fundado em Setembro; Amílcar Cabral fez a parceria do PAIGC com a União Soviética, em Setembro; as acções de sabotagem pelo PAIGC, adventícias da guerra da Guiné, tiveram início em Setembro; a declaração unilateral da sua independência, “nas colinas do Boé”, foi em Setembro; a demissão do general Spínola, que levantou e reforçou o moral combativo ao PAIGC, foi em Setembro; a fundação do MFA, a substância activa do PAIGC replicada nas Forças Armadas Portuguesas, foi na Guiné e em Setembro; a formação da Comissão Coordenadora do MFA, o mais eficiente “comité libertador” da Guiné, foi em Setembro; e o reconhecimento da independência da Guiné por Portugal, foi em Setembro; etc.

O apoio da Oposição sistemática ao regime do Estado Novo, o fenómeno eleitoral Humberto Delgado - a Guiné votou-o a PR - e aquele “massacre” no cais do Pidjiquiti, estereótipo das consequências das greves musculadas, foram o lastro para Amílcar Cabral começar a Guerra da Guiné. Mal começara o aliciamento de combatentes e já os apoios morais e materiais de todo o mundo lhe abundavam. Grande era o efeito multiplicador das adesões, com a sua eficiência subversiva, no desempenho de alto funcionário do governo colonial e pelo poder da mensagem que dirigia aos contactados, de que transformaria a Guiné, de pobre e atrasada colónia portuguesa, na Suíça da África; e, a seu exemplo, o seu núcleo duro de combatentes foi formado por soldados e graduados da guarnição militar da Guiné, no activo e na disponibilidade.

Levou com ele os primeiros 30 a tirocinar na China, devolvidos com os cérebros lavados e como operacionais preparados para a guerra de guerrilhas. E foi essa malta, iniciada na arte militar nos quartéis da guarnição da Guiné que, ao longo de 11 anos, saberá comer as papas na cabeça (falta-me expressão mais erudita) aos militares formada nos quartéis, nas Escolas Práticas, nas Academias e nos Altos Estudos Militares das FA de Portugal!
Para desconforto dos tabus do lado deles e das más-línguas do nosso lado, segundo as quais a longevidade da Guerra da Guiné aconteceu por interesses carreiristas e pelos estipêndios da quase generalidade dos militares profissionais, não me permito a omitir que os principais comandantes do PAIGC não só eram bem pagos (em escudos, dólares ou coroas suecas?) e bem prendados, relógios de ouro Rolex inclusive, mas também, sem qualquer preparação, se alcandoraram aos altos cargos do novel Estado da Guiné-Bissau!
Isso pela unidade e luta ou a génese da corrupção, responsável pelo falhanço da Guiné-Bissau como Estado?

A partir de 1961, os dirigentes de Lisboa viraram-se para Angola “é nossa” e o PAIGC foi-se instituindo e instalando no arquipélago do Como, formado por três ilhas, separadas entre si apenas na maré alta, onde foi crescendo, em subversão, orgânica e como base de guerra, posto em sossego, pela cumplicidade da autoridade colonial de Catió, desempenhada por um militante. De feudo do colono Manuel Pinho Brandão e por bravata de Nino Vieira, aquele arquipélago passou a República Independente do Como, com a capital na tabanca de Cachil, a rádio Brazzaville deu a notícia e a PIDE de Angola alertou as autoridades de Bissau e Lisboa. Naquele tempo, o efectivo paigcista naquele arquipélago seria inferior a 400 combatentes e o efectivo da guarnição militar da Guiné era de cerca de 1800 homens, metropolitanos e naturais, distribuídos pelos três ramos das Forças Armadas.

Tendo partido da base-mãe de Koundara (para não contrariar Skou Touré), 30 km além fronteira, em Janeiro de 1963, um grupo de guerreiros, comandado por um puto guineense de 20 anos, que atendia pelo nome de Arafan Mané, veio fazer o baptismo de fogo, dele e do PAIGC, numa tentativa falhada de assalto ao quartel militar de Tite. O Estado-Maior de Bissau convenceu-se de que as três ilhas eram a mãe dessa guerra, a aviação de Bissalanca passou a bombardear regularmente as copas das suas árvores e um bombardeiro T6, abalroado pela sua parelha, fez uma aterragem de emergência.
A Guerra da Guiné entrava nos seus primórdios e já Amílcar Cabral se antecipava ao seu evoluir e desfecho, a percorrer as arenas internacionais e as chancelarias de Estados, numa diplomacia de propaganda e triunfalista, exibindo o mapa com 2/3 da Guiné libertada, a autoridade colonial circunscrita a Bissau e Safim, provas de aviões abatidos e um piloto de combate aprisionado.

Arvorado em líder dum Partido-armado e de uma guerra política, de efeito dirigido à Comunidade internacional, era mister a Amílcar Cabral formalizá-lo em assembleia constitucional; e, em finais de Dezembro de 1963, marcou o I Congresso do PAIGC para a tabanca de Cassacá, implantada numa densa mata, cercada de bolanhas, quais fossos naturais de fortaleza inacessível, na “área libertada" da ilha do Como, que o seu caudilho dava por inexpugnável.
Nessa mesma altura e dispondo do reforço de meios, vindos da Metrópole e de Angola, o Comandante-Chefe das FA da Guiné, por ordem directa de Salazar, emitiu a directiva da organização e da manobra de uma operação de grande envergadura sobre aquele arquipélago, com a missão de liquidar a situação e a sua causa. Por ironia do destino, os dois eventos decorrerão paralelamente e em proximidade, que só a realidade geográfica da Guiné poderia permitir, primeiro por casualidade e, depois, pela tradicional resiliência cabralina.

Eis dois comandantes-chefes e a sua circunstância – ambos antagónicos ao ditador, ambos favoráveis à negociação e não à guerra: o eng.º agrónomo Amílcar Cabral, ex-alferes miliciano do Exército Português, que havia deixado o emprego para se tirocinar na guerra subversiva na Academia Militar de Pequim, arvorado em líder da guerra independentista da sua terra natal, sustentado pelo ordenado da sua mulher, a eng.ª flaviense Maria Helena Ataíde; e o brigadeiro Louro de Sousa, oficial-general do Exército Português e Comandante-Chefe das FA da Guiné.

Então, em princípios de Janeiro de 1964, o arquipélago do Como foi o objectivo de uma invasão anfíbia, de metodologia semelhança à invasão da Normandia, com o código de “Operação Tridente”, envolvendo o efectivo de cerca de 1200 homens e a panóplia do armamento dos três ramos das FA – Exército, Marinha e Força Aérea. Com os seus escrúpulos de poupar as populações a sobreporem-se ao efeito da surpresa, o Comandante-Chefe mandou que a invasão fosse precedida de dois aviões Dornier de reconhecimento a lançar panfletos sobre o arquipélago, a avisar a metralha que lhes viria da terra, mar e ar.
Assim prevenidos, os cerca de 400 guerreiros nacionalistas do arquipélago do Como, encabeçados por três comandantes, de que apenas sobreviverá Agostinho de Sá, supervisionados pelo felino Nino Viera, estavam para as suas populações “como o peixe para a água”, prepararam-se para festa da recepção. Acontecerá uma metralhada infernal, combates renhidos, sem quartel, e dois aviões de combates derrubados por antiaéreas de grande calibre. Muita bravura e muitos sacrifícios humanos - a bravura mais da parte dos guerrilheiros, os muitos sacrifícios mais da parte da tropa, por maioria de razão.

Na sua consciência de que a fortaleza do Como não passava de quimera revolucionária, a tropa ocupara Cachil e circulava por Cassacá, Amílcar Cabral protelou o congresso, em data a indicar apenas na antevéspera. Atravessou a Guiné com o aludido Arafan Mané, ora seu guarda-costas e manteve a face, confirmando o congresso em Cassacá, não a do Como, mas a do Cubisseco, na península do Cantanhês e mandou Nino Vieira desmobilizar a resistência no Como; e, durante 4 dias, de 13 a 17 de Fevereiro, numa reunião, mais de quadros político-militares que assembleia de massas, estabeleceu orgânicas, ditou directivas e lavrou sentenças de morte. E o PAIGC não deixará de cumprir uma dessas directivas – a execução sumaríssima dos guineenses com ligações à tropa, caídos nas suas garras, assim como dos oposicionistas ou dos que desalinhassem do PAIGC.

Guiné > Região de Tombali > Carta de Cacine (1960) > Escala 1/50.000 > Posição relativa de Cassacá, a 15 km a sul de Cacine, região também como conhecida como Quitafine.

A resistência do Como feneceu, os guerrilheiros sobrevivos esconderam o armamento pesado e dispersaram-se pelo Cantanhês e Cufar, coisa que a guerrilha sabia fazer e a tropa não (veja-se o acontecido em Tancos…) e, ao fim de 71 dias, as forças invasoras retiraram para Bissau. De tão grandiosa, a “Operação Tridente” não passará de solução de continuidade: a Guerra da Guiné continuou em crescimento, em efectivos, armamento e intensidade.

Passados 10 anos, o então Major Otelo Saraiva de Carvalho e o então Capitão Vasco Lourenço, “rapazes” do General Spínola na Guerra da Guiné, descobriram a sua vocação libertadora, naquela madrugada em que se entreajudavam a mudar uma roda do carro em que regressavam de Santarém, qual sua “estrada de Damasco”, de um churrasco desabafo-conspirativo na casa do Capitão Salgueiro Maia, outro “rapaz” da mesma guerra, que aquele general havia injustamente sacrificado e à sua companhia, na batalha de Guidaje, no auge da crise dos “3 G´s” - o contexto gerador da formação do MFA. O Major Otelo receberá a unção dos seus pares, para planear e desencadear a “Operação Mudança de Regime”; e o seu sucesso culminante foi a conclusão da “Operação Tridente”, pela resolução da problemática da Guiné. Foi no dia 25 de Abril de 1974, o Terreiro do Paço, as suas acessibilidades e o Largo Carmo foram os seus palcos principais; parecerá heresia, mas o seu desfecho vitorioso poderá ser creditado ao discernimento e à coragem moral do Coronel Romeiras Júnior, que fora o 2.º Comandante Operacional da “Operação Tridente”, então comandante do RC 7, posicionado no campo contrário. Qual teria sido o desfecho da “Operação Mudança de Regime” se ele, desobedecendo abertamente ao Brigadeiro Junqueira, não tivesse usado os seus galões para impedir que os poderosos canhões dos seus tanques M44 Paton, vindos da Calçada da Ajuda, dizimassem os conjurados Tenente Assunção, Major Jaime Neves, Capitão Salgueiro Maia, os seus subordinados e as suas Chaimite ocupantes do Terreiro do Paço, desprovidas de armamento para se bater com eles.

Em Setembro de 1974, após o reconhecimento por Portugal da independência da Guiné, consumando a sua proclamação pelo PAIGC, no inóspito lugarejo de Lugajole, deu-se a emergência da substância paigcista do MFA – a sua deriva para um PREC (Processo Revolucionário em Curso), réplica do terceiro-mundismo ou de república das bananas, tentativa para que o “Fim do Regime” fizesse um caminho no sentido único de outra dinastia ditatorial, um delírio indigno e que indignou o país: além da sua honrosa história, os portugueses eram de maior idade desde 1128 e Portugal era o segundo país mais antigo da Europa e o terceiro mais antigo do Mundo!
No contexto desse paigcismo, os subsistentes da “Operação Tridente”, actores do dia 25 de Abril e do seu dia seguinte – Brigadeiro Louro de Sousa, Comodoro Paulo Costa Santos, Coronel Fernando Cavaleiro, etc. foram metidos na cadeia; e outros, como os Comandantes Alpoim Calvão, Benjamim Abreu, etc. passaram a foragidos.
Não será politicamente correcto; mas eles foram uns heróis, improváveis, da independência da Guiné.
E assim começou o futuro da República da Guiné-Bissau.
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Nota do editor

Último poste da série de 12 de agosto de 2017 > Guiné 61/74 - P17666: (In)citações (110): À procura de… Luís Vassalo Rosa, arquiteto e comandante da CART 1661 (Mário Beja Santos)

terça-feira, 7 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14845: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (IV Parte): Comandos do CTIG

1. Parte IV de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 2 de Julho de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489 (Cuntima), e Comando do 2.º curso de Comandos do CTIG (Brá), CMDT do Grupo Diabólicos (1965/67).


GUINÉ, IR E VOLTAR - IV

Comandos do CTIG1

As chefias militares da Guiné cedo se aperceberam que havia necessidade de se dispor de uma tropa diferente, uma tropa que fosse capaz de fazer a contraguerrilha, móvel, aligeirada, com pequenos efectivos, autónoma e agressiva. Uma tropa que, aliás, já tinha dado boas indicações em Angola. Em Quibala, no norte de Angola, já tinham sido preparados os primeiros grupos de comandos.

Em Julho de 1963, o Comando-Chefe da Guiné solicitou à Região Militar de Angola que recebesse e formasse um pequeno grupo de militares. Na mesma altura, foi enviada uma circular para todos os batalhões estacionados na Guiné, convidando oficiais e sargentos a oferecerem-se como voluntários para os comandos.

Muita gente se ofereceu. Depois das selecções foram escolhidos o major Correia Dinis, os alferes Maurício Saraiva e Justino Godinho, os sargentos e irmãos, Roseira Dias e os furriéis Vassalo Miranda e o Artur Pires. E ainda, o Adulai Queta Jamanca e o Adulai Jaló, naturais da Guiné.


Fur. Artur Pires, Sold. Adulai Jaló e Alf. Godinho, atrás do Sargento Mário Dias, no aeroporto de Luanda à espera de transporte para o QG. 


© Foto cedida por Vassalo Miranda, ex-Fur. Mil. Gr. Cmds ‘Panteras’.

“A cerimónia de apresentação teve lugar no gabinete do Chefe do Estado-Maior. Fomos recebidos pelo Major chefe da 2.ª Rep, que fez votos para que, da nossa estadia em Angola, tirássemos o máximo proveito. Pôs em evidência os inconvenientes da nossa vinda naquela altura, pois tinha terminado um curso e não se sabia ainda quando teria início o próximo. Deste desencontro de datas, resultariam, naturalmente, limitações à nossa instrução.

Na manhã seguinte foi-nos exposta, com algum pormenor, a situação actual na Região Militar de Angola. Foram-nos indicadas as zonas consideradas activas, semi-activas e as pacificadas.
Cabinda, devido à localização e ao reduzido efectivo das NT e um triângulo com um vértice em Bessa Monteiro e base na região dos Dembos (Nambuangongo, Zala, Beira Baixa, etc.), eram as zonas com maiores preocupações. Considerava esta última mais difícil, porque os grupos IN tinham mais experiência e mostravam-se aguerridos.

As alterações ao programa da nossa visita começaram aqui e mantiveram-se sempre, até ao fim da nossa estadia.

Tivemos uma palestra de um capitão, instrutor dos comandos. Começou por abordar a questão da disciplina. Nada de tolerâncias. Que os comandos falam sempre em sentido. Que o mínimo desleixo, dos superiores ou dos inferiores, não pode passar em claro. Que a mentalização era a menina dos olhos dos cursos de comandos. Um comando luta para matar e não para não morrer. Indicou-nos os processos e as técnicas que utilizam para a mentalização.

Slogans, dísticos humorísticos nas paredes, nos lavabos, em todo o lado, até dentro do pão.
Uma aparelhagem sonora nas casernas e nos quartos de sargentos e oficiais.

Alocuções de mensagens gravadas, para ouvirem sempre que estejam a descansar. Devem ser feitos testes para avaliar o grau de assimilação.

Emulação entre os instruendos, entre as equipas e entre os grupos. Cerimónias com aparato para realçar as qualidades e os méritos dos indivíduos que mais se destaquem.

Abordou o conceito da parelha, da equipa e do grupo. Numa primeira fase, deve dar-se aos instruendos a liberdade para se agregarem como entenderem, depois as relações tendem para alguma estabilidade. Reforçar essas amizades, estimulá-los a comerem na mesma mesa, participarem nos mesmos jogos, fazerem os mesmos serviços.

Falou depois na constituição do grupo:

1. O indivíduo que concorre aos comandos tem que estar situado entre os 20 a 30% melhores do contingente donde é originário.

2. Os comandantes dos grupos e os chefes das equipas devem situar-se entre os 10% melhores do contingente de quadros.

3. A selecção é a operação mais importante na formação dos comandos.

4. A instrução deve assumir um carácter selectivo.

5. Sendo o tiro um aspecto muito sensível, não deve haver restrições nesta instrução.

6. Todos os elementos devem ser especialistas no tiro de precisão e no tiro instintivo e todos devem estar aptos na utilização de lança-rockets.

No dia 26 de Outubro partimos para o quartel de Quibala, onde estivemos 6 dias em contacto com os 3 grupos de comandos recentemente chegados de uma operação. O tenente Abreu Cardoso deu-nos explicações pormenorizadas sobre a mesma.

Regressámos a Luanda e ficámos a aguardar o início da operação que deveria ter lugar nas margens do M’Bridge. Patrulhar as margens do rio entre as picadas de Evange e Quiaia. Uma operação de rotina.

Na 2.ª operação fomos integrados no grupo de comandos do batalhão de artilharia. Montámos a emboscada nas margens do rio Loge. 3 dias.(...)

Se deste estágio na Região Militar de Angola não tirámos o máximo proveito, ele foi, pelo menos, muito útil. Útil porque das lições dos instrutores ficámos com a cabeça mais arrumada, com muitos ensinamentos que nos serão úteis se um dia viermos a ser instrutores de comandos. Útil ainda, porque do contacto que mantivemos com os grupos em operações, adquirimos experiência, vimos como aquela tropa se comporta no mato e as situações que vivemos serão para nós motivos de ensinamento.

Resta acrescentar que os oficiais da R. M. de Angola estiveram sempre ao nosso dispor e se mais não fizeram, foi, de facto, devido à nossa visita ter sido efectuada numa altura pouco conveniente."


Furriel Vassalo Miranda e Alferes Maurício Saraiva em Angola. 

© Foto cedida por Vassalo Miranda.

Considerandos, directivas e orientações. Mais de cinquenta páginas do bloco de apontamentos do estágio na R. M. de Angola do alferes Justino Godinho, um dos voluntários da Guiné.

Depois de regressarem do estágio operacional em Angola, o Comandante-Chefe da Guiné pensou em aproveitar esses militares e integrá-los nas forças que iriam executar a operação "Tridente", marcada para o início do ano de 1964. A ideia, quando foi apresentada pelo Brigadeiro Louro de Sousa, então o Comandante-Chefe do CTIG, pareceu algo controversa, pelo menos no espírito de alguns oficiais do QG.

Não seria um risco desnecessário? Tão pouca gente e todos os quadros, o futuro embrião dos comandos na Guiné? Sem organização própria para os apoiar, não obstante a vontade que manifestavam em integrar os efectivos da operação? Seria mesmo de arriscar? Não seria a morte à nascença do projecto dos Comandos do CTIG?

O Comandante-Chefe decidiu. Vão participar e tratem de organizar o grupo de forma a torná-lo operacional. Aliás, vai ser um bom teste.

Assim foi. Aproveitaram os elementos que, anteriormente, tinham respondido ao apelo de 'voluntários precisam-se para os comandos', a maioria pertencente ao BCav 490, a unidade base que iria executar a operação ao Como, sob o comando do TCor. F. Cavaleiro, comandante do Batalhão.

Havia a necessidade de reforçar os efectivos do GrCmds. Para isso, sob a orientação dos comandos regressados de Angola, os que se ofereceram iniciaram um curto período de instrução operacional com vista à participação na referida operação.

Constituiu-se assim o grupo que interveio na operação “Tridente”, de 14 de Janeiro a 24 de Março, nas ilhas do Como, Caiar e Catunco, integrados nas forças à disposição do Batalhão de Cavalaria 490.

O comando do grupo foi entregue ao alferes Saraiva e, ao alferes Godinho, aos furriéis Mário Dias, Artur e Miranda, a chefia das equipas.

Mário Dias, um dos participantes na operação, esclarece as razões da operação: 

"Na ilha não existia qualquer autoridade administrativa nem força militar pelo que o PAIGC a ocupou (não conquistou) sem qualquer dificuldade em 1963. As tabancas existentes eram relativamente pequenas e muito dispersas. Possuía numerosos arrozais, o que convinha aos guerrilheiros pois aí tinham uma bela fonte de abastecimento, acrescido do factor estratégico da proximidade com a fronteira marítima sul e o estabelecimento de uma base num local que facilitava a penetração na península de Tombali e daí poderia ir progredindo para Norte.

Não tinha estradas. Apenas existia uma picada que ligava as instalações do comerciante de arroz, Manuel Pinho Brandão (na prática, o dono da ilha) a Cachil. A partir desta localidade o acesso ao continente (Catió) era feito de canoa ou em outra qualquer embarcação. A casa deste comerciante era, se não estou em erro, a única construída de cimento e coberta a telha.

Portugal não exercia, de facto, qualquer espécie de soberania sobre a ilha. Tornava-se imperiosa a recuperação do Como. Foi então planeada pelo Comando-Chefe a Operação ‘Tridente’ na qual foram envolvidos numerosos efectivos, divididos em 4 agrupamentos, num total de cerca de 1200 homens".

No dia 14 de Janeiro de 1964, cerca de 1200 homens repartiram-se pela fragata “Nuno Tristão”, por lanchas de desembarque, vedetas e diversos barcos de apoio.

No dia seguinte, a CCav 488 pôs o pé em Catabão, onde abarracou e o 7.º Destacamento de Fuzileiros e a CCav 487 desembarcaram em Caiar. Estes avançaram em direcção a Catabão, enquanto os “comandos” e um pelotão de caçadores ocuparam Caiar. O 8.º Destacamento de Fuzileiros e a CCav 489 ocuparam Cametonco. Fecharam o cerco e o inimigo não teve outro remédio senão ir para as matas.

Caiar, base logística da op. “Tridente”. 

© Com a devida vénia ao pessoal do BCav 490.

O quartel-general das operações abarracou na praia de Caiar. Daqui, dois canhões 8.8 batiam as zonas inimigas e a Força Aérea, sempre que solicitada, avançava com os F-86 e os T6.

O Furriel Miranda, chefe de uma das equipas do grupo de “comandos”, relata: “Uma secção do 8.º Destacamento2, tinha ficado isolada, já tinham um morto, a situação não estava nada boa. Tiveram que pedir o apoio dos “comandos”.

Em pouco tempo, um furriel nosso correu para o corpo do camarada, caído em cima da MG-423. Quando regressavam à posição anterior com o ferido numa padiola, viram mais um fuzileiro a contorcer-se no chão. Outra vez, um dos nossos correu para o ferido, tal como o primeiro atingido com uma bala na cabeça. Quando regressava, o furriel dos “comandos” sentiu o zunir de uma bala. Espera aí, deve ter dito para ele, tudo balas para a cabeça. Escondido, começou a passar os olhos árvore por árvore até ver de onde vinham os tiros.”

E continua A. Vassalo, autor da BD "Operação Gata Brava":

"7 de Fevereiro na mata do Cachil, junto à tabanca de Cachida. Comandos e páras tinham acabado de ocupar a aldeia quando foram chamados para apoiar o 7.º Destacamento dos Fuzileiros, que se digladiava com o IN, ali perto.

Numa pequena clareira foram atacados violentamente. Os efectivos dos guerrilheiros eram superiores e estavam bem organizados no terreno. Um pára é atingido mortalmente. E logo ali, começou outra guerra, a disputa pelo corpo.

Na clareira, os “comandos” conseguiram escapar sem uma beliscadura e encontraram o 7.º Destacamento exausto pelo longo combate travado antes.

A disputa pelo pára-quedista morto não parava. A luta pelo troféu e a momentânea quebra do poder de fogo das NT acicatava o IN e de que maneira!

E outro pára é atingido com um projéctil que lhe partiu a coluna.

Outra vez os “comandos” ao palco. Correram por ali fora e conseguiram sacar o bravo pára."

***

"Numa daquelas tardes, preparávamo-nos para arrancar. As nossas tropas ainda não tinham conseguido entrar nas defesas do IN, junto a Cauane. A única vez que o tinham tentado fazer, o 8.º Destacamento dos fuzos4 teve 3 mortos.

A passagem do tarrafo, junto à estrada que atravessava a ilha, era uma extensão à volta de 400 metros, cerca de 100 dos quais entrava numa meia-lua de mata, onde o IN estava entrincheirado. A meio do tarrafo havia uma vala de irrigação e o ourique que a atravessava perpendicularmente tinha uma prancha a servir de ponte.

Até àquele sítio o IN deixava, depois não, não havia outro remédio senão voltar para trás. Pela nossa parte, durante cerca de 15 dias, à razão de 2 vezes por dia, tentámos entrar na mata por aquela passagem. Éramos corridos à bala, e a coisa não tinha tido outras consequências porque para além de Deus Nosso Senhor ir também connosco, tomávamos as providências indispensáveis, colados ao chão, bem distanciados uns dos outros. Mas era mesmo um sarilho dos diabos, estávamos sempre a pensar que tantas vezes vamos lá que um dia esta merda acaba para qualquer um, pelo menos.

A primeira equipa a progredir era a minha e naquela tarde tínhamos três T65 a apoiar-nos. Em fila de pirilau6 chegámos à tal prancha. A equipa passou-a sem problemas, e isso deixou-nos um tanto admirados. Mudaram de táctica, os gajos?

Desconfiados com tanta fartura, continuámos a avançar. Ouvia-se o roncar dos T6 e o silêncio da mata. O resto do grupo permaneceu lá atrás, protegidos pelo ourique, a ver como paravam as modas. Senti-me só, confesso. Se rebenta a bernarda em cima de nós cinco, como vai ser? Saímos do ourique e formámos uma linha no tarrafo. Avançámos mais uns metros, até a meia-lua de floresta nos envolver. Pronto, cá estamos, bem dentro do alcance das armas dos gajos, que era o que nós queríamos, ou não?

E, claro, não demorou muito, ficámos em maus lençóis. Batidos de frente e dos dois lados num autêntico tiro ao alvo. O que nos estava a valer é que a pontaria dos gajos estava um pouco levantada, só às vezes, uma ou outra rajada, levantava a terra do ourique.

E, a propósito, os nossos, de que é que estão à espera, que merda? Bem lhes fazia sinais para abrirem outra linha, mas qual quê, nada. Assim, não podíamos continuar ali, estávamos totalmente à mercê e o 5.º elemento estava muito perto da orla da mata. Voltei-me para ele, pá, salta para o outro lado do ourique. Qual salta, qual carapuça, o gajo estava com as calças em baixo, isso mesmo, estava a arriar o calhau.

Coitado, deu-lhe a volta ao intestino, pensei. Insisto com o gajo, ó pá, és parvo ou quê, e não é que vejo na mão do gajo um papel, àquela distância até me parecia um aerograma. Não me digam que aquele sacana está a ler a correspondência. Ó pá, que merda é essa? E o gajo grita-me, no intervalo dos pau pau, se tiver que morrer, meu furriel, quero ir aliviado e com notícias frescas da famelga.
Meu grande filho da mãe, ou puxas as calças para cima, ou sou eu que vou aí puxar-tas, ouviste? Pronto, meu furriel, estou pronto, respondeu-me, momentos depois.

Quando ele e a parelha passaram de cócoras à minha beira, caiu-nos uma descarga de balázios, parecia que tinham posto o dedo em tudo que fosse gatilho. Metidos pelo chão, escondidos atrás de frágeis espaldões, nenhum de nós pensava sequer em levantar a cabeça, quanto mais outra coisa.
Lá atrás o alferes Saraiva chama os T6 para o barulho, e aí vieram os gajos a fazer um chavascal danado, um a fazer fogo de metralhadora, outro a lançar rockets e o terceiro a largar umas bombinhas. Até seguimos a coisa com interesse, os T6 picavam, os gajos calavam-se, os T6 levantavam, fogo outra vez para cima de nós.

Entretanto, os fuzos já vinham a caminho com o objectivo de nos retirarem daquele poço. Outra vez os aviões a picarem e os gajos calados, a última bomba rebentava e lá estavam outra vez os gajos a tentarem acertar-nos.

Um T6 deslocou-se numa linda manobra para a orla da mata e subitamente picou sobre eles, o outro sobre a meia-lua, o terceiro vinha um pouco atrás para varrer a metralha a orla da mata.
Mata calada e é nesta altura que arrancámos com toda a força que tínhamos, comandos ao ataque, um grito que até eles devem ter ouvido!

Electrizados é o termo, o Marcelino, o Godinho, o Joel, o outro das calças e eu, que nem umas balas em direcção à mata, para aí a 70 ou 80 metros. É agora, comandos!

Bombas a rebentarem outra vez, os nossos camuflados enfunados com os sopros dos rebentamentos, os quicos saltaram-nos das cabeças e puseram-se a voar, estávamos tão perto que os T6 tiveram que parar o fogo e ficaram-se por ali em cima durante uns minutos. Mas já estávamos dentro da floresta, em igualdade de circunstâncias. Vimos três gajos a fugirem de uma casa de mato, e parece que não foram muito longe.

Animados tentámos avançar. Qual quê, fogo cerrado em cima de nós, as palmeiras a abanarem, folhas a caírem-nos em cima, bom sinal, os gajos continuam com a pontaria alta. Furriel, estou quase sem munições, eu também e pronto, tínhamos mesmo que ficar por ali.

Esta cena foi filmada pelo Raimundo, o cabo do Destacamento de Foto-cine do QG, que nos estava a acompanhar. Estávamos com poucas munições e encurralados junto à estrada e ainda distantes da bolanha. Como é que vamos sair daqui? Mas quem disse que vamos sair? Os T6 também estavam sem combustível e tiveram que retirar não sem um resolver fazer uma última passagem sobre a posição de uma Degtyarev7 montada numa plataforma.

Como o Furriel Miranda viu lá de baixo as manobras dos T6.
© Desenho de A. Vassalo.

Correu mal o picanço do T6, a Degtyarev ficou com ele na mira, depois foi só carregar no gatilho, e o aviãozinho ficou furado do nariz ao rabo. Quando passou por nós, aí a uns escassos 20 a 30 metros, já ia ferido de morte. Motor lancinante, fumo por todos os lados, voo incerto e em perda, espatifou-se atrás das nossas linhas com um estouro ensurdecedor e uma labareda enorme por ali acima.


De costas, junto à primeira palmeira, quico à legionário na cabeça, o Furriel Miranda contempla os destroços e o cadáver do piloto. 


© In “Operação Gata Brava”, Autor A. Vassalo.

Contentes com o abate, até palmas parece que ouvimos, o IN esqueceu-se de nós, e nós, oportunistas, cavámos dali. Rapidamente vencemos a distância que nos separava do ourique e foi então que eles deram por ela, mas já era tarde demais.

No fim daqueles setenta e tal dias, a resistência abrandou8 e, numa prova de que se podia voltar a andar livremente, o TCoronel Cavaleiro com um pequeno grupo de homens passeou-se pelo interior da ilha. Foi o sinal de que a operação “Tridente” estava no fim.

Deixámos uma guarnição em Cachil pequeno (da CCaç 557), o Batalhão de Cavalaria 490 foi para Farim, os comandos para o interior treinar milícias indígenas e os fuzos e os páras para as suas missões tradicionais.


Furriel Miranda, de lança-rockets e alferes Saraiva de chapéu, o cabo Raimundo do destacamento Foto-Cine com a máquina na mão esquerda, entre outros elementos do grupo de “comandos “da operação no Como. 


© Foto cedida por Vassalo Miranda.

Baixas? 9 mortos e 47 feridos e um avião abatido, do nosso lado. 76 mortos, entre os quais alguns chefes da guerrilha, mais de 100 feridos confirmados e 9 prisioneiros, do lado da guerrilha.
Apesar de todas os problemas por que passámos, foi um prazer e uma honra também, lutar com aqueles Inimigos, que tal como nós estavam a combater por uma causa em que acreditavam.”
A. Vassalo, Autor da BD "Op. Gata Brava".

Publicamente reconhecida a contribuição que deram para o sucesso da operação, os comandos receberam os crachás em cerimónia pública realizada em Bissau em 29 de Abril de 1964.
Em finais de Julho e com a duração de 4 semanas deram início à escola de quadros.

Entre 30 de Setembro e 17 de Novembro de 1964, realizou-se em Brá o 1.º Curso de Comandos da Guiné9. Começaram cerca de 200, terminaram 78. Fantasmas, Panteras e Camaleões foram os nomes que escolheram para os grupos que saíram dessa formação.


"Fantasmas", "Panteras" e "Camaleões", no dia em que receberam os crachás. À frente dos grupos, o então tenente Jaime Cardoso dos Comandos de Angola, director do 1.º curso de Comandos na Guiné. Brá, Novembro de 1964.


© Foto de Mário Dias.


Os grupos em Bissau apresentam-se ao Governador-Geral, Brigadeiro Arnaldo Schulz.

© Foto de Mário Dias.

E em Dezembro de 196410, o Boletim de Informação do Estado Maior do Exército, relatava oficialmente as primeiras acções desses grupos: "A actividade desenvolvida pelos grupos de comandos conduziu a resultados muito remuneradores. Prova-se deste modo a necessidade de se poder dispor de uma tropa com instrução especializada, apta a desempenhar missões que, pelas suas características, estão fora das capacidades das unidades normais.

Um grupo em actuação em Canjambari efectuou uma acção de muito interesse sobre um bando de terroristas instalado a coberto do rio. Apoiados por um pelotão de auto-metralhadoras, os comandos transpuseram o rio e lançaram-se ao assalto do IN, bem instalado no terreno e com bom e numeroso armamento. O IN foi desalojado, tendo deixado várias baixas no local.

Outro grupo efectuou uma emboscada na mesma região causando ao IN 2 mortos e vários feridos, tendo sido capturadas várias espingardas, pistolas-metralhadoras e granadas de mão.
Na zona de Tite, outro grupo realizou um golpe de mão a NE daquela povoação.
Capturadas 8 espingardas, 1 pistola-metralhadora e várias granadas de mão”.

Nesse mês de Dezembro, numa reunião em Brá com os comandantes dos grupos, o Major Correia Dinis preocupado com a aproximação das datas dos fins das comissões dos militares dos comandos, relia-lhes uma nota que endereçara ao Comandante Militar da Guiné:

"Exmo. Senhor,

Por determinação de S. Ex.ª o General Venâncio Deslandes, apresentei-me na véspera do meu embarque de fim de licença na Defesa Nacional a fim de ser ouvido por aquele Exmo. Senhor.
A conversa baseou-se única e exclusivamente na organização de grupos de comandos, seu interesse e modalidades de acção.

Para terminar, Sua Ex.ª o General mostrou-se interessado na organização de mais grupos de comandos no CTIG.

Informei que essa organização dependia não só do Centro Nacional de Instrução de Comandos em Angola, presentemente em organização, como também do necessário pessoal que deveria vir da metrópole para substituição, nos Batalhões, dos voluntários para os comandos.
Quanto a este segundo condicionamento, Sua Ex.ª esclareceu que o CTIG poderia pedir o envio desse pessoal.

No meu entender, a organização de novos grupos de comandos é da maior utilidade, tanto mais que a partir de Abril de 1965 os três grupos existentes começarão a ficar desfalcados com as desmobilizações.

Há que atender porém ao trabalho que o Centro Nacional de Comandos vai produzir na formação de novos grupos.

Estarão esses grupos prontos num futuro próximo e poderá o CTIG aproveitá-los em breve ou a formação desses grupos demorará ainda o bastante, que justifique como emergência, a formação de novos Grupos neste CTIG?

Assim, proponho:

1.º - Que com a necessária urgência se procure obter da Região Militar de Angola as seguintes informações:

a) Qual o número de grupos de comandos que em 1.ª prioridade serão atribuídos ao CTIG? Ainda se mantém a Companhia como foi pedido?
b) Qual a data provável da sua apresentação neste CTIG?

2.º - Em face da resposta obtida poderá então este CTIG pensar na formação ou não de novos grupos.

Em Brá, 26 de Novembro de 1964 

O Comandante do Centro de Comandos, 
Correia Dinis, 
Major."

Qual a resposta? Temos ainda algum tempo à nossa frente. Abril não vem longe, mas mesmo assim, também não é demasiado tarde ainda. Leu-lhes outra, que acabara de receber, a felicitá-los pela forma como elaboraram os programas do curso:

"Comando Territorial Independente da Guiné, Quartel-General, 3ª Repartição, ao Sr. Director do CI de Comandos, Brá.

Encarrega-me Sua Ex.ª o Brigadeiro Comandante Militar de informar V. Ex.ª que aprovou os programas da Instrução de Comandos que acompanharam a nota em referência e manifestar o seu agrado pelo cuidado feito pelo Director de Instrução na elaboração dos respectivos programas.
O Chefe do Estado-Maior, 
sarrabiscos miúdos, o nome de guerra por extenso, 

Tenente-Coronel do CEM".

E uma cópia de uma outra que o Comandante Militar dirigira aos Comandos dos Batalhões:

"Por determinação do Comandante Militar, os comandantes dos batalhões em quadrícula devem não só prestar todo o apoio que lhes for pedido como também, eles próprios, devem proceder à escolha de voluntários, os quais devem dar garantias de permanência na Província pelo menos de 1 ano. Os comandos não fazem qualquer outro serviço, actuam, em regra, durante 3 a 5 dias, e descansam dois ou três.

Trabalham, normalmente, em benefício dos Batalhões mas quando o CTIG o entender podem ser accionados directamente por este. (...) 

sarrabiscos iguais aos anteriores, o mesmo nome por extenso. 
Execute-se."

Entretanto os grupos foram-se mantendo em actividade, infundindo respeito sobretudo ao inimigo, conforme atestam as numerosas citações de que foram alvo, apesar de actuarem com efectivos progressivamente mais reduzidos.

Claro que tiveram os seus fracassos que isto de ir à guerra é já uma coisa muito antiga. Levantaram-se sempre quando foram ao tapete.

Para recordar os 9 camaradas mortos que tiveram numa tarde na zona de Madina do Boé, logo na semana seguinte os 12 comandos sobreviventes foram nomadizar para a zona do Oio.
E terminaram em 6 de Maio de 1965, no sul, em Catunco, no acampamento chefiado pelo Pansau Na Isna, guerrilheiro do PAIGC que se tornou lendário.

Foi um golpe de mão como deve ser, entraram pelas barracas com eles a dormirem e, como era de esperar, acordaram-nos. Retiraram eufóricos, um sucesso para finalizar a guerra. No regresso alguém perguntou quem trazia a metralhadora-pesada do inimigo. Ninguém a trazia, ninguém a vira! Duas equipas, metade do grupo, receberam ordem para a ir buscar. Voltaram para trás, ao acampamento que momentos antes tinham incendiado. Iluminados pelas labaredas, apareceram bem recortados aos olhos de alguns guerrilheiros, refugiados nas proximidades, que não tiveram dificuldade em mandar para o meio deles uma roquetada. Todos atingidos, um morto e nove feridos foi o saldo do regresso ao acampamento. A operação tinha recebido o nome de código “Ciao”.

Em Junho de 1965 começou o 2.º curso de comandos na Guiné.11

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Notas:

1 - Comando Territorial Independente da Guiné
2 - Fuzileiros Navais. Naqueles anos, actuavam quase sempre ao nível de destacamento, uma formidável força armada.
3 - MG 42: Espingarda-metralhadora, de origem alemã usada pelas NT.
4 - Fuzileiros.
5 - Avião bombardeiro, monomotor podendo ser armado com lança-roquetes, metralhadora e bombas.
6 - Coluna por um.
7 - Degtyarev-Shpagim: Metralhadora pesada 12,7 mm, de origem soviética utilizada pelo IN
8 - Teor de mensagem de Nino Vieira para a direcção do PAIGC, em poder de um guerrilheiro capturado: "Hoje faz 48 dias que os nossos camaradas estão enfrentando corajosamente as forças inimigas. Camaradas, tenham paciência, porque não tenho outra safa senão o vosso auxílio. As tropas estão a aumentar cada vez mais as suas forças (...) camaradas, não tenho mais nada a dizer-vos, somente posso dizer-vos que de um dia para o outro vamos ficar sem a população e sem os nossos guerrilheiros. Já estamos a contar com as baixas de 23 camaradas (...) do vosso camarada, Marga-Nino."
9 - 23/7/64: início das actividades do Centro de Instrução Comandos em Brá.
03/8/64: início da Escola Preparatória de Quadros.
24/8 a 17/10/64: 1.º Curso de formação dos GrsCmds (Camaleões, Fantasmas e Panteras), com o apoio de instrutores e monitores do CI 25/RMA e do GCmds "Gatos"/BArt 400/R. M. Angola, que sob o comando do alferes Horácio Valente (morto mais tarde em Moçambique) permaneceu na Guiné entre 22 de Setembro e 28 de Dezembro de 1964, participando em três operações no sector do Batalhão de Artilharia 645.
10 - De 20/10/64 a Junho de 1965: actividade operacional dos Grs. Comandos
11 - Em meados de 1965 o Major Correia Diniz terminou a sua comissão tendo sido substituído pelo seu Adjunto, Capitão Varela Rubim. Nesta altura o QG decidiu extinguir o Centro de Instrução de Comandos e criar a Companhia de Comandos do CTIG com data de 1 de Julho.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14827: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (III Parte): Morreu-me um gajo ontem