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segunda-feira, 2 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14314: Efemérides (181): Recordando o dia 2 de Março de 1974, dia de horror, impotência e luto em Cufar (Armando Faria)

1. A propósito do dia de hoje que lembra o rebentamento de duas minas em Cufar de que resultaram baixas civis e militares, recebemos do nosso camarada Armando Faria (ex-Fur Mil Inf Minas e Armadilhas da CCAÇ 4740, Cufar, 1972/74) a seguinte mensagem:

Bom dias camaradas 
Porque há coisas que a memória não esquece, hoje é um daqueles dias. 
Se acharem por bem coloquem para que se HONRE a memória daqueles nossos companheiros.

Um abraço 
Armando Faria, 
Fur. Mil. 
CCAÇ 4740


Os dias sucedem-se num “correr” sem fim e deles nem tudo a memória regista, mas…
Ficam-nos momentos inolvidáveis que a gente se deleita em recordar…
Outros que nós desejaríamos apagar para sempre…
Mas foram esses dias e são essas memórias que nos construíram…
Hoje recordamos o dia 02 Março de 1974 e fazemos memória daqueles que dali partiram do nosso convívio.


“DITOSOS OS DIGNOS DE MEMÓRIA”

Guiné - Região de Tombali - Cufar - Horror, impotência e luto. 
Foto: © António Graça de Abreu (2009). Todos os direitos reservados.

“A 02 Março, pelas 16h30, é accionada uma mina anticarro no percurso de acesso ao porto de Cufar-Rio Manterunga pelo jeep do Pelotão de Intendência 9288.

O jeep “voou”, os corpos dos seus cinco ocupantes ficaram espalhados em redor num cenário dantesco tal foi a violência da carga explosiva que o atingiu.
A cratera aberta no solo ficou com um diâmetro de cerca de 2 metros por quase outros tantos de profundidade, pude confirmar como especialista de MA, fiz o reconhecimento ao local nos minutos que se seguiram.

Ali de imediato foi ceifada a vida de 4 homens, o soldado caixeiro RODRIGO OLIVEIRA SANTOS, natural de Romariz, Santa Maria Da Feira, onde está sepultado, mais 3 estivadores africanos que foram sepultados no cemitério de Cufar.

A registar mais 01 ferido grave, o Fur. Mil. CARLOS ALBERTO PITA DA SILVA, que face à gravidade dos ferimentos sofridos veio a falecer no HM 241 a 17 Março.
Era natural do Monte, Funchal,  e está sepultado no cemitério das Angústias.

Guiné - Região de Tombali - Cufar - Porto do rio Manterunga - 2 de março de 1974 - Batelão ao serviço do BINT (Batalhão da Intendência, de Bissau), em chamas, depois de ter accionado uma mina. 
Foto: © António Graça de Abreu (2009). Todos os direitos reservados.

Pelas 22h00, com o baixar da maré dá-se novo rebentamento, agora é uma mina que estava colocada no leito do Rio Manterunga, foi accionada pelos barcos que estavam a ser descarregados no porto, tendo originado a morte de mais 3 civis estivadores e ferido 13 que são recolhidos, há ainda a registar 18 civis considerados mortos, carbonizados ou desaparecidos".

Muitos de nós estávamos lá!

Armando Faria,
Fur. Mil.
C CAÇ 4740
____________

Nota do editor

Último poste da série de 10 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14002: Efemérides (180): A grande invasão a Conakry foi há 44 anos - Artigo da autoria de Luís Alberto Bettencourt publicado no "Açoriano Oriental" (Luís Paulino)

domingo, 2 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12787: Efemérides (150): Cufar, 2 de março de 1974: Horror, impotência, luto... (Armando Faria, ex-fur mil, MA, CCAÇ 4740, Cufar, 1972/74)

Guiné > Região de Tombali > Cufar >  Horror, impotência e luto.  
Foto obtida de sides do António Graça de Abreu, autor de Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura (2007)...

Guiné > Região de Tombali > Cufar > Porto do rio Manterunga > 2 de março de 1974 > Batelão ao serviço do BINT (Batalhão da Intendência, de Bissau), em chamas, depois de ter accionado uma mina.

Fotos: © António Graça de Abreu (2009). Todos os direitos reservados.


1. Mensagem do Armando Faria [ex-Fur Mil, MA, CCAÇ 4740, Cufar1972/74]

Assunto: 2 de março de 1974

Camarigo amigo.
Que a saúde seja vossa companheira nestes DIAS que temos.

Por estes dias, ao "mexer" nas memórias, para escrever um resumo da história da minha companhia, a CCAÇ 4740, dos acontecimentos que então vivi na companhia de todos os que como eu passaram por Cufar- de Julho de 1972 a Julho de 1974, revivi o dia mais negro por lá passado.

Foi a 2 Março que em Cufar se viveu um dia trágico e só o acaso o não fez mais negro. Não queria deixar de partilhar, em memória dos que então ai deixaram a vida, o que então vivi. (*)

Um abraço solidário a quantos partilham esta espaço e a todos quantos o visitam,
Armando Silva Faria,
Ex-Fur Mil MA,
CCAÇ 4740, Cufar 72/74


2. Cufar, Guiné, 2 Março de 1974, 16H30 

Quarenta anos se passaram no calendário que governa o tempo…

Para quem, por desdita, fado ou má sorte estava lá nesse dia, foi Ontem que tudo isto se passou…

Hoje refaço a memória do tempo, em singela homenagem àqueles a quem coube o destino ou má sorte de ali entregar a alma ao Criador.

Aqueles que, como eu, assistiram a todo este cenário, que viveram e conviveram com esses homens, mantêm-nos presentes nas suas lembranças. Teremos para sempre esse dia a habitar-nos a alma e o coração. Será esquecido, apenas quando a "tumba" nos der repouso.

A 2 Março de 1974, pelas 16H30, o jipe do Pelotão de  Intendência 9288,  ao dirigir-se ao porto interior de Cufar, no rio Manterunga, acciona uma mina anticarro. O jipe voou, tal foi a violência da carga explosiva utilizada que o atingiu, a cratera aberta no solo, pelo seu diâmetro de cerca de 2 metros de largo por outros tantos de profundidade, assim podia testemunhar. (**)

Como especialista de MA [, Minas e Armadilhas,]  fiz o reconhecimento ao local nos minutos que se seguiram.

Os corpos dos cinco ocupantes ficaram espalhados em redor num senário dantesco.

Ali de imediato tinha sido ceifada a vida a 4 homens, o Soldado Caixeiro Rodrigo Oliveira Santos, mais 3 estivadores africanos e 1 ferido grave, o Fur Mil Carlos Alberto Pita da Silva que, em consequência da gravidade dos ferimentos sofridos, veio a falecer no Hospital Militar de Bissau, a 17 Março.

Mas se esta tragédia é demasiado pesada e deixa já profundas marcas em todo o pessoal, o pior ainda estava à nossa espera, pelas 22H00 com o baixar da maré ocorreu um novo rebentamento de uma mina, agora accionada pelos barcos que estavam a ser descarregados no porto, tendo originado a morte de mais 3 civis estivadores e ferido 13, estes foram localizados nos momentos que se seguiram, havendo ainda a registar 18 civis considerados mortos, carbonizados ou desaparecidos.

A imagem que retenho daquilo que vi destes homens recolhidos no posto médico, escuso-me comentar, tal foi o cenário vivido nesse dia.

Honra e Glória aos amigos que vimos partir e, neles, a todos quantos um dia com seu sangue regaram esses espaços…

Pedroso, 2 Março 2014

Armando Silva Faria,
Ex-Fur Mil MA
CCAÇ 4740, Cufar 72/74

Guiné > Região de Tombali > Mapa de Bedanda (1961) (Escala 1/50 mil) > Posição relativa de Cufar e do porto do rio Manterunga, afluente do Rio Cumbijã

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné
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Notas do editor:


quarta-feira, 22 de maio de 2013

Guiné 63/74 - P11610: Efemérides (126): "O dia em que Satanás andou à solta"! Cufar, 2 de Março de 1974 (António P. Almeida, Pel Rec Fox, 8870/72)


Guiné > Região de Tombali > Cufar >  Porto do rio Manterunga > 2 de março de 1974 > Batelão ao serviço do BINT (Batalhão da Intendência, de Bissau), em chamas, depois de ter accionado uma mina.

Foto: © António Graça de Abreu (2009). Todos os direitos reservados.


1.  Mensagem do nosso leitor (e camarada) António P. Almeida, a quem convidamos para integrar a nossa Tabanca Grande. [Foto à esquerda, cortesia do blogue do Pel Rec Fox 8870/72]

De: António Almeida
Data: 21 de Maio de 2013 às 23:51
Assunto: Cufar, 2 de Março de 1974. "O dia em que Satanás andou à solta"!

"Os homens ardiam como tochas, gritavam, vinham direitos a mim. O inferno deve se um lugar bem mais agradável do que aquelas dezenas de metros de picada com pessoas a serem consumidas pelas chamas, o ar, o escuro da noite empestado por um horrível, um nauseabundo cheiro a carne humana queimada. Despi a minha camisa e com ela tentei apagar restos do fogo que cobria aqueles homens. Meti quatro negros no carro, dei a volta com o jipe e subi, acelerando em direcção a Cufar. Uma viatura blindada Fox descia a picada com os faróis e as metralhadoras apontadas para nós.

"Eram os primeiros militares que acorriam à explosão dos barcos. Gritei-lhes para pararem. Ficaram espantadíssimos por encontrarem ali o alferes Abreu em tronco nu com homens todos queimados dentro do jipe. Rodeei a Fox com dificuldade – ocupava quase toda a picada, – e em segundos cheguei com os desgraçados à enfermaria de Cufar. Foram deitados em macas e regados com água. Dois grupos de combate da 4740, bem armados, desciam entretanto para o porto interior e havia mais pessoas atingidas pela gasolina a arder, a caminho. Não era mais comigo." (*)


Camarada Graça de Abreu.
Boa noite.
Para além do texto bem escrito, documentas fielmente o que se passou nesse dia tenebroso. A Fox era conduzida pelo José Almeida Barbosa, de Suzão, Valongo,  e por mim, António Almeida, como manuseador do armamento da viatura.

Recordo-me desses momentos dantescos, agora ainda mais, avivados pelas tuas palavras.

Estávamos de reforço ali bem perto do início da picada e dos batelões. Depois da primeira explosão e da autorização dada pelo alferes Fernando Faria, comandante da Fox, para sairmos do local onde estávamos estacionados, saímos para prestar auxílio.

Foi quando passaram quatro ou cinco africanos pelo lado esquerdo da Fox a gritar, com a roupa a arder no corpo. Situação indescritível, horrorosa, mais parecida com um filme de terror, produzida por uma qualquer empresa de cinema de Hollywood.

Mais tarde, a proteção e iluminação da pista de Cufar pela Fox e por vários elementos da  CCAÇ 4740, para a evacuação dos feridos e que documentas tão bem no vosso blogue.

Falta acrescentar o local e da maneira como foram sepultados, os que pereceram nos batelões.

Histórias de Guerra que não podemos esquecer e que fazemos votos que não voltem a repetir-se. (**)

Calorosas saudações.
António Pereira de Almeida

[Ex-Pelotão Reconhecimento Fox, 8870/72,
que tem um blogue aqui]
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 12 de novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5258: A tragédia de Cufar, sábado, dia do Diabo, 2 de Março de 1974 (António Graça de Abreu)

Vd. também poste de 21 de outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8933: Memória dos lugares (158): Cufar e o porto do rio Manterunga, extensão do inferno na terra : 2 de Março de 1974 (António Graça de Abreu)

(**) Último poste da série > 25 de abril de 2013 > Guiné 63/74 - P11471: Efemérides (125): No passado dia 20 de Abril fez 43 anos que foram assassinados os Majores Passos Ramos, Magalhães Osório e Pereira da Silva, O Alferes João Mosca, dois Condutores e um tradutor (Manuel Resende)

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Guiné 63/74 - P8933: Memória dos lugares (158): Cufar e o porto do rio Manterunga, extensão do inferno na terra : 2 de Março de 1974 (António Graça de Abreu)



Guiné > Região de Tombali > Cufar >   Sábado, dia 2 de Março de 1974, "dia do diabo"   

Entre Cufar e o porto do rio Manterunga, afluente do Rio Cumbijã, numa picada que não teria mais de cem metros, batida milhares de vezes pelos jipes e demais viaturas militares,  o IN deixou lá  uma potente brinquedo de morte: uma vulgar mina anti-carro, reforçada por uma bomba de um Fiat que não tinha explodido...

Um jipe do pelotão da Intendência, o PINT 9288, anteriormente comandado pelo Alf Mil João Lourenço (membro da nossa Tabanca Grande), acionou o engenho, a meio da tarde. Os cinco ocupantes, dois militares, brancos (o Fur Mil Pita e o Sold Santos, de alcunha O Jeová), e três civis, estivadores, guineenses, encontraram aqui a morte...

Mais à frente, outra mina, enterrada no lodo do rio, provocou ao fim da tarde a explosão, em cadeia, de batelões atracados ao cais e carregados de bidões de gasolina... 

Mais dezasseis estivadores guineenses,  civis, perderam a vida, num cenário dantesco de horror..."Vi coisas nunca vistas e que nunca mais quero ver", escreveu o António Graça de Abreu no seu Diário da Guiné...

(...) "O rio Cumbijã passa a dois quilómetros de Cufar, mas existe o rio Manterunga, um pequeno afluente, melhor um braço de rio que chega quase até à nossa povoação. A quinhentos metros daqui construiu-se um pequeno pontão, um cais de abicagem noManterunga.

"É aquilo a que chamamos o 'porto interior', utilizado por barcos de pouco calado que chegam carregados de Bissau e descarregam neste porto. Quando a maré está cheia, os batelões sobem o rio e ficam ancorados lá em baixo. A maré desce e os barcos pousam em cima do lodo do leito do rio que é mole e não lhes danifica o casco. Voltam a aproveitar uma maré-cheia para regressar a Bissau. São batelões pequenos, uma espécie de barcaças com motor que trazem para aqui muitos produtos de que necessitamos todos os dias, sobretudo gasolina para abastecer os aviões e helicópteros.

"Entre Cufar e o porto do rio Manterunga existe uma picada de terra batida com umas centenas de metros. Até ontem circulava-se nessa estradinha com o maior à vontade, considerava-se a estrada como fazendo parte dos caminhos de Cufar. Já passei por lá dezenas de vezes conduzindo os jipes e é um dos trajectos que costumo utilizar nos meus crosses" (...).


Fotos: © António Graça de Abreu (2011). Todos os direitos reservados.
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Nota do editor:

Último poste da série > 19 de Outubro de 2011 >  Guiné 63/74 - P8925: Memória dos lugares (157): Empada, região de Quínara, by air (António Graça de Abreu)

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5258: A tragédia de Cufar, sábado, dia do Diabo, 2 de Março de 1974 (António Graça de Abreu)







Guiné > Região de Tombali > Cufar > Fotos obtidas de slides do António Graça de Abreu, autor de Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura (2007)... São fotos, carregadas de horror, impotência e luto.

Nas páginas 200-2003 do citado livro, pode ler-se o seguinte (resumo):
Foi no dia 2 de Março de 1974, sábado, um "dia do diabo" (sic)... Entre Cufar e o porto do rio Manterunga, numa picada que não teria mais de cem metros, batida milhares de vezes pelos jipes e demais viaturas militares, os guerrilheiros do PAIGC lembraram-se de lá deixar uma brinquedo de morte: uma vulgar mina anti-carro, reforçada por uma bomba de um Fiat (!) que não tinha explodido... Um jipe do pelotão da Intendência, o PINT 9288, comandado pelo Alf Mil João Lourenço (membro da nossa Tabanca Grande) (*), accionou o engenho. Os cinco ocupantes, dois militares, brancos (o Fur Mil Pita e o Sold Santos, o Jeová), e três civis, estivadores, guineenses, encontraram aqui a morte...

Mais à frente, outra mina, enterrada no lodo do rio, provocou a explosão, em cadeia, de batelões atracados ao cais e carregados de bidões de gasolina... Cerca de duas dezenas de estivadores perderam a vida, num cenário dantesco..."Vi coisas nunca vistas e que nunca mais quero ver", escreveu o António...

Fotos: © António Graça de Abreu (2009). Direitos reservados.


1. Mensagem de 5 do corrente, remetida pelo António Graça de Abreu :

Meus caros Luís, Vinhal e Magalhães Ribeiro:

Peço-vos que publiquem este texto que está no meu Diário da Guiné, nas paginas 200-203. Creio ser valioso porque agora o posso acompanhar com os slides que fiz na altura e só a semana passada consegui digitalizar. É um documento importante a mês e meio do fim da guerra na Guiné [, a duas semanas do 16 de Março de 1974, nas Caldas da Raínha]. Estas duas minas, na picada e no lodo, provocaram 19 mortos, em Cufar. Algumas fotografias são cruéis, mas não há muitas imagens como estas. Deixo ao vosso arbítrio a sua publicação.

Um abraço forte do

António Graça de Abreu


Cufar, 3 de Março de 1974

Hoje é domingo, dia do Senhor, o nosso Deus salvador do mundo. Ontem foi dia do Diabo, Santanás andou por aqui à solta. Ignoro se o Céu existe, mas sei que ontem viajei pelos caminhos do Inferno.

Tudo começou às quatro da tarde com um rebentamento fortíssimo a quatrocentos metros do quarto onde eu dormia uma sossegada sesta. Acordei sobressaltado, vesti-me rapidamente. Lá fora já havia gente a correr e a gritar.

O rio Cumbijã passa a dois quilómetros de Cufar, mas existe o rio Manterunga, um pequeno afluente, melhor um braço de rio que chega quase até à nossa povoação. A quinhentos metros daqui construiu-se um pequeno pontão, um cais de abicagem no
Manterunga.

É aquilo a que chamamos o “porto interior”, utilizado por barcos de pouco calado que chegam carregados de Bissau e descarregam neste porto. Quando a maré está cheia, os batelões sobem o rio e ficam ancorados lá em baixo. A maré desce e os barcos pousam em cima do lodo do leito do rio que é mole e não lhes danifica o casco. Voltam a aproveitar uma maré-cheia para regressar a Bissau. São batelões pequenos, uma espécie de barcaças com motor que trazem para aqui muitos produtos de que necessitamos todos os dias, sobretudo gasolina para abastecer os aviões e helicópteros.

Entre Cufar e o porto do rio Manterunga existe uma picada de terra batida com umas centenas de metros. Até ontem circulava-se nessa estradinha com o maior à vontade, considerava-se a estrada como fazendo parte dos caminhos de Cufar. Já passei por lá dezenas de vezes conduzindo os jipes e é um dos trajectos que costumo utilizar nos meus crosses.

Os guerrilheiros não andam longe e conhecem bem estes lugares, estão em casa. Na picada, a cinquenta metros do porto interior resolveram colocar uma mina anti-carro reforçada por uma bomba dos nossos Fiats que não havia explodido. A mina foi accionada pelo jipe do pelotão de Intendência, até há uns tempos atrás comandado pelo [João] Lourenço (*), meu ex-companheiro de quarto. Foi o estouro monumental, o rebentamento desta mina que me acordou. Iam cinco homens no jipe, dois brancos, um furriel da Intendência[, o Pita e] o Santos, Jeová, mais três negros estivadores dos batelões de Bissau. Quatro deles morrerem logo, os corpos voaram e caíram desfeitos a mais de cinquenta metros do local da mina, o jipe também voou e poisou de rodado para o ar, completamente destruído a vinte metros da estrada. Sobreviveu o furriel Pita, mas dizem-me agora que morreu no hospital de Bissau.

Às sete e meia da tarde, já noite escura, ouviu-se novo rebentamento. Ataque?!... Houve logo gente a saltar para as valas. Eu estava no meu gabinete e percebi que não se tratava de um ataque. Para os lados do porto interior cresciam chamas enormes. Peguei num jipe e avancei pela picada a grande velocidade em direcção ao porto. Um soldado quis vir comigo mas quando me viu a acelerar por ali abaixo, saltou do jipe e deixou-me sozinho. Em menos de um minuto estava junto do buracão feito pela mina anti-carro da tarde e não podia avançar mais. Logo ali, diante de mim ardiam os batelões com labaredas que subiam a mais de quinze metros. Iluminei o caminho com os faróis do meu jipe. Na minha direcção corriam meia dúzia de homens com o corpo em chamas, e gritos atrozes, lancinantes.

Os batelões transportavam umas dezenas largas de bidões de gasolina. Ora os guerrilheiros haviam deixado outra mina anti-carro enterrada no lodo do rio Manterunga. Quando a maré desceu, o fundo de um dos barcos tocou na mina que rebentou perfurando-lhe o casco. De imediato, a gasolina pegou fogo. Começaram a rebentar bidões e num ápice os três batelões que estavam juntos começaram a arder, um incêndio colossal. Os homens da tripulação e os estivadores que jantavam dentro dos barcos foram regados com gasolina, alguns deles, com os rebentamentos, foram projectados em todas as direcções.

Os homens ardiam como tochas, gritavam, vinham direitos a mim. O inferno deve se um lugar bem mais agradável do que aquelas dezenas de metros de picada com pessoas a serem consumidas pelas chamas, o ar, o escuro da noite empestado por um horrível, um nauseabundo cheiro a carne humana queimada. Despi a minha camisa e com ela tentei apagar restos do fogo que cobria aqueles homens. Meti quatro negros no carro, dei a volta com o jipe e subi, acelerando em direcção a Cufar. Uma viatura blindada Fox descia a picada com os faróis e as metralhadoras apontadas para nós.

Eram os primeiros militares que acorriam à explosão dos barcos. Gritei-lhes para pararem. Ficaram espantadíssimos por encontrarem ali o alferes Abreu em tronco nu com homens todos queimados dentro do jipe. Rodeei a Fox com dificuldade – ocupava quase toda a picada, – e em segundos cheguei com os desgraçados à enfermaria de Cufar. Foram deitados em macas e regados com água. Dois grupos de combate da 4740, bem armados, desciam entretanto para o porto interior e havia mais pessoas atingidas pela gasolina a arder, a caminho. Não era mais comigo.

Hora e meia mais tarde, com a pista iluminada pelas garrafinhas com petróleo veio o Nordatlas que transportou quase uma dezena de homens horrorosamente queimados para o hospital de Bissau. O Bastos, o médico, disse-me que apenas três tinham hipóteses de sobreviver.

Faltava alguma tripulação e estivadores. Hoje, de manhã cedo, o espectáculo era ainda tenebroso, dantesco. Os batelões continuavam em chamas e no lodo do rio Manterunga havia sete corpos carbonizados, espalhados em volta dos barcos. Os homens a arder saltaram para o lodo e morreram ali, meio enterrados na lama cinzenta. Faltavam corpos que não foram encontrados, caíram ao rio e quando a maré subiu devem ter sido levados pela corrente. Apareceu um último cadáver todo esventrado, comido pelos abutres.

Vi coisas nunca vistas e que nunca mais quero ver.

Os homens que morreram queimados ou desapareceram eram todos africanos, o que provocou algum alívio entre a tropa branca. Apenas o Jeová e o furriel Pita da Intendência eram nossos, nossos amigos.[1]

*************

[1] O soldado Rodrigo Oliveira Santos, Jeová, era natural da freguesia de Romariz, Vila da Feira; o furriel miliciano Pita da Silva nasceu no Funchal, Madeira.

[ Revisão / fixação de texto / legenda / bold a cor / título: L.G.]
__________________

Nota de L.G.:

(*) Vd. postes de:
17 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4366: Tabanca Grande (144): João Lourenço, ex-Alf Mil, PINT 9288, Cufar (1973/74)

16 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1284: A Intendência também foi à guerra (Fernando Franco / António Baia)

domingo, 17 de maio de 2009

Guiné 63/74 - P4366: Tabanca Grande (144): João Lourenço, ex-Alf Mil, PINT 9288, Cufar (1973/74)

Guiné > Região de Tombali > Cufar > Foto (obtida por Luís Graça) de um slide do António Graça de Abreu, apresentado no dia 2 de Outubro de 2008, na Biblioteca-Museu República e Resistência / Espaço Grandella, por ocasião da conferência do nosso amigo e camarada sobre o seu livro Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura (2007), no âmbito do ciclo de conferências "Memórias literárias da guerra colonial" (I Série, 2008)...

Essa foto, carregada de luto, impotência e dramatismo, foi reproduzida no seu livro, página 201, com a seguinte legenda: "Buraco de mina-anticarro, na picada de Cufar para o porto interior"... Foi no dia 2 de Março de 1974, sábado, um "dia do diabo" (sic)...

Entre Cufar e o porto do rio Manterunga, numa picada que não teria mais de cem metros, batida milhares de vezes pelos jipes e demais viaturas militares, os guerrilheiros do PAIGC lembraram-se de lá deixar uma brinquedo de morte: uma vulgar mina anti-carro, reforçada por uma bomba de um Fiat (!) que não tinha explodido... Um jipe do pelotão da Intendência, o PINT 9288, comandado pelo Alf Mil Lourenço, accionou o engenho.

Os cinco ocupantes, dois militares, brancos (O Fur Mil Pina e o Sold Jeová), e três civis, estivadores, guineenses, encontraram aqui a morte (*)...

Mais à frente, outra mina, enterrada no lodo do rio, provocou a explosão, em cadeia, de batelões atracados ao cais e carregados de bidões de gasolina... Cerca de duas dezenas de estivadores perderam a vida... Um espectáculo dantesco, escreveu o António..."Vi coisas nunca vistas e que nunca mais quero ver"...

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2008). Direitos reservados.


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1. Mensagem, de hoje, de João Lourenço:

Meu caro Luís,
"Tropecei" no teu blogue e gostava não só de me encontrar com o pessoal das nossas "férias tropicais" como de pertencer ao grupo e ir ao almoço de dia 20.

Fui o 1º Comandante do PINT 9288, estive lá em Cufar até ao terrível dia da morte do meu Furriel Pita e do Jeová no mesmo Jipe que eu próprio tinha conduzido na estrada para o porto interior nesse dia de manhã cedo, antes de ir em serviço a Bissau chamado pelo Cap Manuel Duran Clemente, meu 2º Comandante.

Estive no Hospital com o Pita o pouco tempo em que o coração dele resistiu ao destino que era inevitável. Hoje resta apenas a memória gravada no monumento em Belém de homenagem a todos os que deram a vida. Tal como a maioria, nunca soube o nome do Jeová, penso que estará homenageado no mesmo monumento.

Convivi com a CCaç 4740, o CAOP 1, ainda me lembro de alguns, poucos, bons momentos, como a célebre recepção aos piras em que lhes demos arroz com marmelada..., antes de vir a nossa janta reforçada, etc.

Lembro-me bem do Baía e de mais alguns, havia o Furriel Cardoso, um moço do Norte que era Bate-chapas... um 1º Cabo que ficou no BINT de Bissau, que era aqui da Figueira onde habito agora e que gostava de voltar a encontrar,etc.

Não percebo muito de informática mas tenho ajuda em casa, contacta-me logo que possível. 

Um abraço
Cumprimentos
João Lourenço
(Ex Alferes Miliciano Lourenço)

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2. Comentário de L.G.:

João: 
Sê bem vindo. Sabes que a "malta da bianda" nos era muito querida... Além disso vejo que és da Figueira: Temos vários camaradas daí, que já pertencem à nossa Tabanca Grande (António Pimentel, Vasco da Gama, Artur Soares, etc. - cito de cor). Vou tomar boa nota do teu pedido, incluindo a a inscrição no nosso encontro, a 20 de Junho. Vou publicar a tua mensagem, na série Tabanca Grande... Do CAOP 1, do teu tempo de Cufar, tens cá o António Graça de Abreu. E do BINT, o Baía (aqui na foto, à direita) bem como o Franco (que estava em Bissau).

Se tiveres, duas fotos digitalizadas (uma antiga e outra actual), seria óptimo. Se não, mandas mais tarde. Boa saúde para ti.

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3. Eis como o António Graça de Abreu saudou a entrada do novo membro da nossa Tabanca Grande:

Meu caro Luís:
Tu mereces uma estátua! Agora, graças a ti, descubro o Lourenço.
Junto cópia do mail que lhe enviei para teu conhecimento.

Vou para Macau 6º. feira, dia 22 de Maio. Regresso de Macau dia 5 de Junho. Lá vai ser lançado o meu último livro, Poemas de Han Shan. Han Shan é um homem fabuloso, meio budismo zen, meio quase tudo.

Claro que estarei no nosso encontro na Ortigosa, dia 20. Dia 3 de Julho parto para Xangai com os meus filhos (a minha mulher já lá estará) e só regresso de Xangai no dia 3 de Setembro. Não viajo para a China há quatro anos, vou-me reciclar.

Estarei sempre atento ao blogue e tenho quase toda escrita uma longa Carta Aberta a Salazar e a Marcelo Caetano que depois peço para tu publicares.

Obrigado pelo teu infatigável labor por todos nós.
Um abraço,
António Graça de Abreu

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4. Mail enviado pelo Graça de Abreu ao João:

Lourenço, caríssimo:
És um dos que faltava na minha lista de gente importante de Cufar. A companhia 4740 (os açorianos, o cap, Dias da Silva, etc.) já está, fui a dois convívios desses homens que foram nossos companheiros em Cufar.

Sou o alf mil António Abreu do CAOP 1. Vivemos no mesmo quarto durante uns meses, Junho a Novembro de 1973, creio. Fazíamos lá uns jantares meio-escondidos com frangos assados roubados do teu pelotão de intendência. Conto tudo isso no meu Diário da Guiné que quero que leias.

Depois de Cufar, foste para Bambadinca e Bissau.

Na altura eu escrevi um diário de guerra. Foi publicado em 2007, com o título Diário da Guiné. Lama, sangue e água pura [vd. capa, foto à esquerda].

Tu, Lourenço, entras no livro, até transcrevo na íntegra um aerograma que me enviaste de Bambadinca. Há dois anos não te pedi autorização para o publicar porque ignorava por completo o teu paradeiro.

Vou mandar-te o livro pelo correio, dá-me-me a tua morada e, se vais ao encontro do blogue Luís Graça e Amigos na Ortigosa, dia 20 de Junho, encontramo-nos lá. Faremos contas do livro e um esfuziante balanço das nossas vidas. Podes também telefonar-me.

Um abraço e até breve.
António Graça de Abreu

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5. Resposta do L.G. ao António:

António:
A estátua, não, muito obrigado. Mas a tua amizade, sim, acho que a mereço... Ainda bem que o 'puzzle' vai-se completando, ainda bem que tu encontraste mais um camarada de Cufar...Tens alguma foto do Lourenço? Podes mandar-me o aerograma digitalizada, que ele te mandou de Bambadinca?... Vou ver, agora com outros olhos, o teu Diário...

Quanto à viagem à China... Sabes o que se passou em Macau durante a Revolução Cultural? Se souberes algo sobre isso, escreve... Teve, de certo, influência na 'nossa' guerra... Que seja uma bela jornada para todos vós, a viagem à China... 
Luís

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6. Segunda mensagem do dia, enviada pelo João Lourenço:

Meu caro Luís, 
Vou precisar de mais informações, morada, para ir ter com o pessoal da "bianda" no dia 20 [de Junho, à Ortigosa]. Já entrei em contacto com o Abreu... um espectáculo. Sabes alguma coisa do pessoal dos outros PINT, o 9286, 9287 e 9285?

A única notícia que tive em muitos anos foi o falecimento precoce, por doença, do meu colega do PINT de Farim, que era do Porto, o Alferes Lima. Nada sei do Luís Beiroco, de Buba, nem do Carlos Mota, de Bambadinca.

Tinhamos no Pint 9288 um rapaz aqui da Figueira que era o nosso Cabo cortador/magarefe, ficou em Bissau sempre, talvez o Franco ou o Martins se lembrem e saibam dele. Se souberem avisem.

Um abraço
João Lourenço
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Nota de L.G.:

(*) Sobre a Intendência e sobre este dia negro para o BINT, em Cufar, vd. postes de:

23 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3229: História resumida da Companhia de Terminal e do Batalhão de Intendência (José Martins)

12 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3196: Em busca de...(39): Companhia Terminal (Bissau, 1973/74) (Daniel Vieira)

20 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2462: Convívios (38): Minitertúlia da Intendência / Administração Militar, Belém, Lisboa, 18 de Janeiro de 2008 (Fernando Franco)

16 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1284: A Intendência também foi à guerra (Fernando Franco / António Baia)

20 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1195: Ameira: O nosso encontro fez-me bem à alma (Fernando Franco)

quinta-feira, 16 de novembro de 2006

Guiné 63/74 - P1284: A Intendência também foi à guerra (Fernando Franco / António Baia)







Guiné > Região de Tombali (Catió) > Cufar > Rio Cumbijã >1973 > Três fotos que documentam as brutais consequências do accionamento de duas minas, colocadas pela guerrilha do PAIGC junto ao cais acostável de Cufar e ao destacamento do PINT (Pelotão de Intendência) 9288 (1)... A viatura, onde seguia o Fur Mil Pita da Silva e mais militares (dois morreram), ficou completamente desfeita, tendo sido projectada a 100/150 metros...

O 1º Cabo Enfermeiro assistiu a esta tragédia... Numa das fotos pode ver-se a cratera originada pela explosão... O Fernado Franco não sabe se os dois soldados do seu pelotão que morreram, vieram ou não para Continente, ams ele fez Guarda de Honra aos seus restos mortais, "até Hospital de Brá"...

Um outra mina, escondida no lodo, foi accionada por um barco, ao atracar ao cais. O barco, que levava carga da Intendência, pegou fogo e ficou destruído...

Às vezes esquecemo-nos destes valorosos camaradas da Intendência que, à parte roubarem-nos uma ou outra caixa de uísque ou de cerveja, também corriam riscos de vida nos seus destacamentos e nas viagens que faziam pelas rios e braços de mar da Guiné, acompanhando as colunas logísticas...

Fonte de informação: Fernando Franco & António Baia, entrevistados na Ameira, em 14 de Outubro de 2006... (LG)

Foto: © Fernando Franco (2006). Direitos reservados.
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Nota de L. G.:

(1) Vd. post anterior, com data de hoje > Guiné 63/74 - P1283: Os nossos intendentes, os homens da bianda (Fernando Franco / António Baia)