A. Marques Lopes, 2015. Foto: LG
Foi, além disso, um dos nossos mais ativos colaboradores, como autor, nos primeiros anos do blogue. Foi alferes miliciano da CART 1690 (Geba, 1967/68) e CCAÇ 3 (Barro, 1968/69), cor DAF reformado... Vive em Matosinhos, embora seja natural de Lisboa.
Da sua página do Facebook repescámos uma postagem com quase dois anos ( 5 de fevereiro de 2022), sobre o "Natal do Soldado"- Republicamo-la aqui como forma de "prova de vida". Julgamos tratar-se de um excerto do seu livro de memórias, "Cabra Cega" (2015). Não o temos aqui à mão para poder confirmar esaa hipótese. De qualquer modo, aqui vai, com a devida vénia ao autor, e votos de melhor saúde e melhor ano novo de 2024.
E espetava o garfo na massa com grão onde se escondia uma lasca de bacalhau.
Assomaram umas lágrimas aos olhos da mãe.
– A culpa é da guerra, e eu ando apoquentada porque os meus filhos ainda vão lá parar.
O pai ficou sério e baixou a cabeça para meter uma garfada à boca. O irmão não dizia nada, porque sempre que falava era sempre sobre o Tarujense, onde era guarda-redes, ou sobre as partidas de bilhar que disputava no salão do Jardim Cinema. A guerra não lhe dizia nada. Era mais novo dois anos e ainda não lhe dava para pensar nisso.
– Felizmente o Antero já está livre disso.
A irmã não sorriu mas tinha os olhos brilhantes de satisfação. Era verdade que o namorado dela, mais velho que eu uns três anos, já tinha feito a tropa como escriturário no Batalhão de Sapadores de Caminhos de Ferro, em Campo de Ourique. Já saíra sem ir para o Ultramar.
– Não sei, rapariga, não sei.
Ela ficou séria e os olhos sem brilho:
– O que é que o pai quer dizer com isso?
– Sabes lá ele se não vai lá parar. Se esta porra continuar vai como os outros. A miséria já existia antes da guerra e a guerra é para a miséria continuar porque interessa aos ricos. Eles é que mandam e querem que ela continue.
– Credo, homem, não digas isso que ainda me afliges mais.
Mas ele não ligou.
– Mas agora estamos melhor, até temos uma casa só para nós.
– Uma casa uma merda. Nem a porra duma retrete temos quando nos vamos agachar. E estás aqui porque tu e os teus irmãos trabalham em vez de andarem na escola, e eu nunca tive férias porque vou no verão trabalhar com tractores lá prós montes daquele cabrão de Ervidel. Se não fosse isso ainda estavas numa parte de casa. (...)
O Natal do Soldado
por A. Marques Lopes
Vi na televisão o “Natal do Soldado” e achei ridícula a repetição do “nós por cá todos bem” e “um ano novo cheio de prosperidades”, até me deu para rir com os que queriam um ano cheio de propriedades. Riram todos lá em casa também.
O pai garantia que os que regressavam da guerra diziam que não tinham tido lá Natal nenhum, que as gajas do Movimento Nacional Feminino é que vinham com essa treta.
No Natal, diziam-no os que tinham lá estado, recebiam um maço de cigarros, uma carteira de plástico, das de vinte e cinco tostões, e uma ou duas sandes. Para tanto folclore era ridículo, de facto. Mas essas gajas e os mandões todos andam à grande e à francesa de automóvel, explicava o pai. Pensei que havia de ter tempo para saber se era assim.
O pai, por estar já há muitos anos em Lisboa, perdeu um bocado do sotaque alentejano mas usava as mesmas expressões lá da terra e eu achava-lhe piada por isso.
– Esses filhos dum cabrão deviam era ver esta miséria que a gente come.
– Esses filhos dum cabrão deviam era ver esta miséria que a gente come.
E espetava o garfo na massa com grão onde se escondia uma lasca de bacalhau.
Assomaram umas lágrimas aos olhos da mãe.
– A culpa é da guerra, e eu ando apoquentada porque os meus filhos ainda vão lá parar.
O pai ficou sério e baixou a cabeça para meter uma garfada à boca. O irmão não dizia nada, porque sempre que falava era sempre sobre o Tarujense, onde era guarda-redes, ou sobre as partidas de bilhar que disputava no salão do Jardim Cinema. A guerra não lhe dizia nada. Era mais novo dois anos e ainda não lhe dava para pensar nisso.
– Felizmente o Antero já está livre disso.
A irmã não sorriu mas tinha os olhos brilhantes de satisfação. Era verdade que o namorado dela, mais velho que eu uns três anos, já tinha feito a tropa como escriturário no Batalhão de Sapadores de Caminhos de Ferro, em Campo de Ourique. Já saíra sem ir para o Ultramar.
O pai abanou a cabeça.
– Não sei, rapariga, não sei.
Ela ficou séria e os olhos sem brilho:
– O que é que o pai quer dizer com isso?
– Sabes lá ele se não vai lá parar. Se esta porra continuar vai como os outros. A miséria já existia antes da guerra e a guerra é para a miséria continuar porque interessa aos ricos. Eles é que mandam e querem que ela continue.
A mãe pôs as mãos ao peito.
– Credo, homem, não digas isso que ainda me afliges mais.
Mas ele não ligou.
– Vocês já são crescidos mas parece que não se lembram da miséria que têm passado desde que nasceram.
– Mas agora estamos melhor, até temos uma casa só para nós.
O meu irmão abrira o bico, mas levou logo.
– Uma casa uma merda. Nem a porra duma retrete temos quando nos vamos agachar. E estás aqui porque tu e os teus irmãos trabalham em vez de andarem na escola, e eu nunca tive férias porque vou no verão trabalhar com tractores lá prós montes daquele cabrão de Ervidel. Se não fosse isso ainda estavas numa parte de casa. (...)
Capa do livro "Cabra-cega: do seminário para a guerra colonial", de João Gaspar Carrasqueira (pseudónimo do nosso camarada A. Marques Lopes) (Lisboa, Chiado Editora, 2015, 582 pp. ISBN: 978-989-51-3510-3, Colecção: Bíos, Género: Biografia).
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Nota do editor:
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