1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Outubro de 2019:
Queridos amigos,
O bardo despede-se da guerra, seguir-se-ão duas alusões sentimentais, é um dedilhar da guitarra com acordes de saudade, recorda a Mãe e canta o fado do regresso.
Impossível não se comentar aqui o que de mais relevante aconteceu no teatro de operações neste último ano da comissão do BCAV 490. Coisa curiosa, é manuseando estes diferentes volumes que a "Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África", dedicados à Guiné, que se atina na verdadeira dimensão da atividade operacional, nas melhorias instaladas no campo das infraestruturas, no apoio às populações. Há muito caminho ainda a desbravar para que fique convenientemente iluminado todo este contexto em que germinou e se desenvolveu a guerra da Guiné, nestes anos correspondentes à presença do BCAV 490, de 1963 a 1965, trabalho de investigação em arquivos onde jazem papéis decisivos para a compreensão da atuação tanto do Brigadeiro Louro de Sousa como do General Arnaldo Schulz. Para acabar de vez com a crítica infundamentada de que estes dois oficiais-generais não foram altamente competentes, resolutos e determinados, e que não estiveram à altura da situação crítica que viveram, houvera que depositar todas as esperanças num salvador que chegou à Guiné em maio de 1968.
Um abraço do
Mário
Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (49)
Beja Santos
“Fui à Guiné, fiquei maravilhado
ao ver os batuques a tocar
com os africanos a dançar,
eu fiquei entusiasmado.
Voltava-me para qualquer lado
via grupos dançando contentes,
diversas raças patentes
rolavam uns baixos outros de pé.
Vi na Província da Guiné
coisas bárbaras, transcendentes.
Outros costumes, outras gentes
nesta Província vim ver.
Fiquei também a conhecer
o que foi pisado pelos antecedentes.
Tivemos homens valentes
que deixaram nome gravado.
Actualmente no mato cerrado
ainda se distinguem muitos companheiros
contra o grupo de bandoleiros
do povo negro esturrado.
Vi homens de cornos armados
a imitarem bois guerreando
e outros com caraças também imitando
diversas feras e veados.
Alguns de flechas formados
mantinham-se muito prudentes.
Estavam equipados como os combatentes
de há séculos atrasados
de quando se faziam bravados
a desafiar espaços, continentes.
Vi mulheres nuas, peitos pendentes
e coisas de diversos aspectos.
Vi os filhos dos insurrectos
rasgados, descalços e inocentes.
Aqueles homens divergentes
se nos tornam endiabrados
por eles somos espiados
a qualquer hora do dia.
Mas só têm cobardia
os rebeldes famintos, esfarrapados.
O tempo está acabado,
vou fechar as poesias.
Despeço-me de todas as Companhias
que eu tenho aqui publicado.
Este tempo foi passado
com grande descontracção.
No resumo do Batalhão
passaram-se muitas amarguras
e houve muitas aventuras,
amigos do coração”.
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Confesso que me toca muito este derradeiro abraço em que o bardo envolve os seus camaradas. Estamos em 1965, impõe-se apresentar algumas notas sobre o pano de fundo daquela guerra, e o que se previa para o ano vindouro. Consta na “Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África, 6.º volume, Aspectos da Actividade Operacional, Tomo II, Guiné”, 2014, que o ano de 1965 foi dominado por uma evolução da organização das FARP – Forças Armadas Revolucionárias Populares, o movimento das unidades das forças portuguesas foi enorme. Em 12 de agosto, partiu o BCAV 490 com as CCAV 487, 488 e 489, além do BCAÇ 512 e 513, dias depois regressava também à metrópole o BCAÇ 600. Iluda-se quem continue a supor que este período da governação de Arnaldo Schulz teve quebras na dinâmica ofensiva e esclerosamento na quadrícula. Estão descritas operações em Bula, Mansoa, Farim, Tite, Buba, Catió, por toda a colónia, e com grande regularidade. O PAIGC ripostava, sobretudo no Sul e no Centro-Norte. Na época ainda havia operações que levavam à destruição de várias tabancas em pontos dados de acesso extremamente difícil, caso das tabancas de Chinchim Dari, Salancaur Fula, Salancaur Jate e outras próximas. Sucedem-se as Diretivas do Comandante-Chefe, mostra-se polarizado por desarticular o inimigo na região do Oio (quadrilátero Mansoa-Bissorã-Olossato-Mansabá), havia indícios no seu reforço nos últimos tempos; sabia-se claramente que a região da margem direita do Corubal, situada entre Ponta do Inglês e a povoação do Xitole, continuava a ser peça fundamental da linha de comunicações. Havia a pretensão de dificultar a utilização da região de Ponta do Inglês – Xitole como base intermediária da linha de comunicações do inimigo, foram previstas várias operações, ia-se às bases, destruíam-se acampamentos, eles iriam ressurgir ali bem perto. Centrou-se igualmente a atenção na região entre o rio Canjambari e a estrada de Banjara – Mansabá, sabia-se que era uma passagem obrigatória da guerrilha. Tomaram-se medidas para um melhor controlo e defesa de Bissau. Propuseram-se novas medidas de ação psicológica. No final do ano, através da sua Directiva n.º 26/C, Schulz dá conta da situação da guerra, escreve obviamente para que o governo em Lisboa tire as suas elações, a pretexto de a Directiva ser canalizada para os três ramos das Forças Armadas na Guiné.
É uma narrativa sem ilusões, seria impossível não tirar dela conclusões merecedoras de grande preocupação:
“Apesar dos golpes sofridos no decurso dos últimos anos, a virulência político-militar do inimigo não tem diminuído. O inimigo conta com o apoio decidido dos países do bloco comunista, da generalidade dos países da OUA e de alguns países ‘não alinhados’. Um factor novo relativamente recente – o aparecimento de brancos, em especial cubanos, como instrutores, conselheiros ou especialistas – vem demonstrar a extensão deste apoio.
No aspecto exterior, as facilidades cada vez maiores que vêm sempre concedidas pelo Senegal ao PAIGC, as quais foram objecto de acordo formal entre o Governo Senegalês e aquele agrupamento subversivo e estão-se traduzindo, designadamente, no estabelecimento progressivo de grupos armados ao longo de toda a fronteira norte da Província, na organização de bases fronteiriças de certo valor, em liberdade condicionada de trânsito de pessoal, armamento e abastecimentos”.
Volumes da “Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África” referentes à atividade operacional da Guiné.
O documento enfatiza o aperfeiçoamento da propaganda do PAIGC, a melhoria dos seus quadros políticos, técnicos e militares, o aperfeiçoamento da organização e apetrechamento de militares quanto a equipamento, transmissões, fardamento e apoio sanitário; era dado como seguro que melhorara substancialmente o controlo do PAIGC sobre os núcleos populacionais, com destaque no Sul. E detalha-se igualmente os termos como se estava a processar a expansão do PAIGC pelo Interior. Considerava-se que a partir de setembro de 1965 o PAIGC progredia para a região dos Manjacos; havia uma notória acumulação de meios inimigos ao longo da fronteira do Senegal, desde Saré Bacar até Susana, por enquanto não havia motivo de séria preocupação, mas não se excluía, a prazo, a tentativa de reforçar os meios existentes no interior da Província com a finalidade de envolver Bissau. E escreve: “Atribuo uma grande importância à possibilidade de ataque súbito e maciço a algumas das nossas posições fronteiriças que pode ter lugar em prazos muito curtos que dificultem grandemente o ocorrer, em tempo oportuno, das nossas reservas”.
A sul do Geba e a oeste do Corubal, a organização político-militar do inimigo estendia-se um pouco por toda a parte e mostrava-se particularmente evoluída nas regiões de Quitafine, Cantanhez e Como. A ligação técnica, política e económica entre as diversas zonas controladas pelo inimigo faz-se com relativa facilidade. “Considera-se, no entanto, que os principais núcleos inimigos não têm possibilidade de evitar uma desorganização sensível das suas estruturas, se atacados sistematicamente e com decisão com meios de fogos terrestres, navais e aéreos e sujeitos com frequência a acções terrestres, anfíbias ou aerotransportadas de objecto limitado. É admissível que Schulz apelava para uma continuação da guerra subversiva em moldes mais ofensivos, a que o governo de Lisboa multiplicasse efetivos e recursos de toda a ordem, era impossível fechar o corredor de Guileje, a riqueza agrícola do Sul garantia a subsistência dos efetivos do PAIGC na região, aliás, previa-se uma maior agressividade das forças do PAIGC nos nossos aquartelamentos e sobre a zona do Forreá. E advertia: “Admito que o inimigo poderá tentar uma ou mais acções de surpresa lançadas a partir de território estrangeiro, do Cantanhez ou de Quitafine, sobre algumas das nossas posições mais expostas, em especial Guileje, Gadamael, Cacoca e Cameconde”.
Imagem retirada do Arquivo do Correio da Manhã, com a devida vénia.
O Leste continuava a resistir à subversão, houvera que evacuar populações de certas zonas transfronteiriças, mas no Boé intensificara-se a presença do PAIGC.
É prematuro, até porque não está estudado o acervo documental entre o Comandante-Chefe e os Ministérios da Defesa Nacional e do Ultramar, dizer abertamente que Schulz, chegado em maio de 1964 à Guiné, e que a encontrou em perfeito tumulto, porque era completamente incerto por onde o PAIGC procurava consolidar-se e irradiar, havendo milhares de guineenses em fuga para as regiões fronteiriças do Senegal e da República da Guiné, povoações queimadas, inúmeras populações sujeitos a duplo controlo, com o esforço de guerra centrado em apagar fogos e espalhar os efetivos militares, e tudo o mais que se sabe, atribuir-lhe responsabilidades na condução da ofensiva contra a luta armada. Naquele período, o PAIGC consolidara-se, expandira-se, posicionara-se estrategicamente em pontos de dificílima acessibilidade, gozava progressivamente de apoio internacional, o seu armamento, inicialmente tão precário e antiquado, melhorara substancialmente.
Schulz obtivera a garantia de apoios, iniciara a africanização da guerra, instituíam-se aldeamentos, os bombardeamentos eram incessantes, as lanchas da Marinha patrulhavam os cursos de água; recebeu algum dinheiro para fazer infraestruturas, melhorou bairros, deu-se ênfase à educação e às infraestruturas de saúde. Proteger as populações, procurar subtraí-las ao duplo controlo, significava derramar os efetivos militares em destacamentos, com todos os riscos inerentes e as exigências de patrulhamentos, com a realização de operações que demoravam escassos dias, queimar um acampamento de guerrilha, capturar população e trazer material tinha que se fazer em curtíssimo espaço de tempo, o inimigo estava já preparado para reagir, emboscando nos pontos mais imprevistos.
Amílcar Cabral com o lendário comandante “Manecas” dos Santos, algures na Guiné, enquadrados pela Segurança que os acompanhava pela Guiné, imagem retirada do blogue Notícias da Guerra, com a devida vénia.
Em 1965, Amílcar Cabral é já um líder altamente cotado na esfera internacional, é o ideólogo de proa das colónias africanas de língua portuguesa; a colaboração cubana ainda é ténue, será muito maior quanto Fidel Castro lhe der um impulso, no ano seguinte; os quadros combatentes, como Nino, Osvaldo Vieira, Domingos Ramos, Rui Djassi, e muitos mais, revelam motivação, conhecimento do terreno, são de uma enorme fidelidade ao líder fundador.
O quadro de fundo antevisto por Schulz para o ano de 1966 conhecerá mudanças sensíveis com o apoio externo, com o desenvolvimento da propaganda do PAIGC. Nota curiosa, basta ler a “Resenha Histórico-Militar” referente a esse ano, 1966 salda-se num tempo de equilíbrio precário, o PAIGC irá acomodar-se a uma toada ofensiva marcada pelas forças especiais, é ano de contenção, de compasso de espera.
(continua)
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Nota do editor
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Último poste da série de 9 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20716: Notas de leitura (1271): “Bacomé Sambu”, por Afonso Correia; edição de autor, Lisboa, 1931 (Mário Beja Santos)