1. Em mensagem do dia 27 de Outubro de 2020, o nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil Cav da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma,
1964/66, autor do livro "Guerra da Guiné: a Batalha de Cufar Nalu") enviou-nos um texto a que deu o título: "Crónica da Guerra da
Guiné, segundo um seu Veterano", do qual publicamos hoje a II Parte.
Crónica da Guerra da Guiné, segundo um seu Veterano - Parte II
Manuel Luís Lomba
Esse I Congresso de Cassacá constitui referência da evolução para a segunda fase da sua guerra revolucionária, e, também, marco organização e estruturante do PAIGC, estereótipo de Partido-estado-armado. Entre outras providências, Amílcar Cabral dividiu os combatentes em milícias guerrilheiras e em exército revolucionário (as FARP), o seu armamento e orgânica à imagem e semelhança dos regimes ditatoriais comunistas (oficiais executivos e oficiais comissários políticos), o seu núcleo duro enformado por ex-praças e ex-sargentos do Exército Português, na disponibilidade e desertores, formados no quartel de Santa Luzia, em Bissau, e no CIM, em Bolama, que mandara tirocinar na China, Rússia e Checo-Eslováquia, reorganizou o seu dispositivo territorial, explicitou um Código de Justiça Militar, a legalizar a pena capital, para eliminar as diferenças (dissidentes e desalinhados) e visando os seus compatriotas que se distinguissem ou tivessem distinguido ao serviço das forças militares e militarizadas portuguesas, já praticada na eliminação dos feiticeiros e noutros fatalidades, concluiu-o a presidir ao julgamento, a condenar e a mandar fuzilar alguns dos seus subordinados, acusados de comportamentos desviantes.
Localização de Cassacá, na Região de Cacine, onde decorreu o I Congresso do PAIGC
© Luís Graça & Camaradas da Guiné - Infogravura da Carta de Cacine 1:50.000 Amílcar Cabral ”libertara” tanta área, no entanto a “sua” capital esteve sempre instalada em Conacry), aqui redigiu um comunicado de guerra triunfalista da batalha do Como, que só a agência noticiosa France Press aceitou difundir (a Comunicação social francesa foi o grande porta-voz do PAIGC, talvez efeito da afinidade) ter causado 600 baixas aos actores da “Operação Tridente” e valorizou esse alarde com uma exposição de alguns despojos de material de guerra e de logística, focada nos destroços de 20 aviões abatidos.
Sem correspondência com a verdade.
Essa “Operação Tridente” decorreu durante 72 dias, o Comando militar investiu nela 1150 homens e os três Ramos, houve 9 mortos, 15 feridos graves, 32 feridos ligeiros em combate e apenas um avião foi abatido, o bombardeiro T6, pilotado pelo Alferes José Manuel Pité; o PAIGC investiu 400 combatentes guineenses, um número não apurado de cooperantes estrangeiros, sofreu mais de 100 baixas, incluindo 3 comandantes, entre mortos, prisioneiros e feridos graves, tendo a tropa socorrido e evacuado 9 destes para o Hospital Militar de Bissau…
Os destroços mais atractivos patentes nessa exposição eram de dois aviões T6, caídos muito antes dessa operação, por sinistro em manobra e não por danos em combate, um pilotado pelo Furriel Eduardo Casals, que não sobreviveu, outro pilotado pelo então Sargento-Ajudante Sousa Lobato, que foi capturado, levado prisioneiro para Conacry e libertado pela “Operação Mar Verde”. Os destroços pertencentes ao T6 do Alferes Pité não seriam apelativos, por Alpoim Galvão e os seus fuzileiros os terem deixado escaqueirados a trotil.
Os bissau-guineenses continuam a pagar a factura das meias verdades e das grandes mentiras do PAIGC daquele tempo.
Em alinhamento com o “politicamente correcto” e descartando a verdade dos factos e a multiplicidade de relatos na primeira pessoa dos actores “Operação Tridente” e de toda aquela guerra ultramarina, a generalidade da nossa Comunicação social, os autores domésticos, os militares da nova geração e os seus institutos perfilham as narrativas do PAIGC. Ou história contada por outros, versus parcialidade.
As FARP criadas no I Congresso de Cassacá, infernizaram a vida e não raro superaram as clássicas e formais FA portuguesas em mobilidade táctica, em agilidade em eficiência, foram fazendo o seu caminho evolutivo e até as superaram na qualidade do armamento. O PAIGC aplicava esse Código de Justiça Militar, desde Janeiro de 1964, fuzilando opositores políticos e militares naturais capturados.
Ao ignorá-lo, o MFA não terá cuidado de salvaguardar os mais de 60 000 naturais guineenses, militares e militarizados, voluntários ou recrutados ao serviço das FA portuguesas. Foram deixados para traz – uma traição a eles e uma indecência (no mínimo) para com os mais de 100 000 dos veteranos da Guerra da Guiné, para com os seus 2 500 mortos, para com os seus 4 000 feridos, a maioria no grau de deficiente e para com cerca de 20 000 pacientes de stresse pós traumático.
O seu irmão e sucessor Luís Cabral, começou a aplicá-lo logo no após o cessar-fogo, e, diz-se que, entre 1974 e até 1976, sancionou com o fuzilamento, sem qualquer julgamento, mesmo sumário, diz-se que cerca de 11 000 guineenses, somando militares, militarizados portugueses e oposicionistas políticos ao regime do PAIGC.
Parafraseando o Padre António Vieira, o povo português em armas fez o preciso e a sua República fez o costume.
Enquanto subvencionava a novel classe política, pelos seus mandatos, abrangente a refractários e desertores, a República Portuguesa ignorava e ostracizava o povo que deixou tudo, não negou o sacrifício das próprias vidas ao país, foi carne para canhão na Guerra do Ultramar, em cumprimento do seu dever de cidadania, `os nossos governantes demoraram mais de 40 anos, até à chegada do jornalista Paulo Portas a Ministro da Defesa, que, sem sequer ter assentado praça, conseguiu um “suplemento de reforma” de 130 € anuais para os combatentes europeus.
Enquanto a República da Guiné-Bissau criou um Ministério dos Combatentes da Pátria, a República Portuguesa nem uma Direcção Geral. Por ironia das suas ironias, o destino uniu os ex-inimigos terríveis Alpoim Calvão, então empresário em Bolama e Nino Vieira, então PR da Guiné-Bissau, em defesa da extensão do direito ao subsídio de reforma dos bissau-guineenses, que serviram Portugal, como militares ou militarizados.
A propósito da sua condecoração, o 1.º Cabo Auxiliar de Enfermeiro José Soares Biscaia era um moço aprumado, competente e muito humano, partilhamos todas as operações de “intervenção” da CCav 703, excluindo a “Operação Tornado”, ao Cantanhez, e incluindo o sangrento evento de combate, cuja prestação lhe mereceu essa condecoração.
A Companhia colocou rapidamente duas fiadas de arame farpado, escavou trincheiras e abrigos no perímetro interior do estacionamento.
Ao princípio da madrugada de 25 de Janeiro de 1965, o “nosso” Capitão Fernando Lacerda delegou o comando do estacionamento ao Alferes Nuno Bigotes, Comandante do 1.º Pelotão, de que eu fazia parte, saiu ao comando do grupo de combate, formado pelo 2.º e 3.º Pelotões, como parceiro da CCaç 617, do Grupo de Comandos "Os Fantasmas" e do Grupo de Milícias de Catió na “Operação Alicate”.
No dia anterior (soubemos mais tarde), Nino Vieira havia saído do seu santuário (em Quitafine?) no santuário do PAIGC no Cantanhez, com um bi-grupo a reunir-se na base de Cufar Nalu, comandada por Manuel Saturnino da Costa, outro tirocinado na China e um peso pesado da luta do PAIGC.
Em Cufar Nalu formou um Corpo de Exército (efectivo equivalente a uma Companhia do Exército Portiguês, mas portador de maior potencial de fogo), manobrou-o à maneira de exército clássico, montou o cerco em meia-lua a essa nossa morada nas ruinas da fábrica de descasque de arroz, lançou dois ataques, tentou o assalto no segundo, decidido à nossa expulsão e captura.
Porquê a prioridade de fazer prisioneiros? Amílcar Cabral fizera a cabeça dos seus comandantes de que a grandeza da vitória não era matar, era capturar e fazer prisioneiros e de que exército que mata prisioneiros perderá a guerra.
Localização de Cufar e Cufar Nalu.
© Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné - Infografia da Carta de Bedanda 1:50.000
Estava o nosso grupo de combate na sua progressão em “bicha de pirilau” e em “passo fantasma” por esse laranjal, fronteiro à testa da pista de aviação e de uma laranjeira caiu um vulto sobre o Tenente Capelão Lavajo Simões, que integrava a coluna a seguir ao Capitão Fernando Lacerda (rectifico o erro meu), disparou um tiro de pistola, este voltou-se e ferrou um tabefe naquele “coirão” que quebrara a surpresa da operação: não era um soldado seu, era um vigia da vanguarda do inimigo. E logo rebentaram um medonho tiroteio e explosões de armas ligeiras e pesadas, de tiro tenso e de tiro curvo.
Pela seteira do meu abrigo via a saída de múltiplas faíscas dos canos das armas, lembraram-me os pirilampos numa noite de Junho, a referência do posicionamento dos nossos e do inimigo, estimei em 50 metros o distanciamento entre nós e entre eles, abri a nossa hostilidade com uma rajada de G3, logo secundada pela nossa metralha, o inimigo passou a dirigir o seu fogo em duas frentes, para o laranjal e para as ruínas da fábrica, a nossa metralhadora Breda, a bazuca e o morteiro activaram-se, pela minha “banana” (emissor/receptor HVS) informei o Alferes Bigotes desse cálculo. O abrigo do comando ficava no lado oposto ao meu e seguiu-se o lançamento de granadas do nosso morteiro de 81.
O estacionamento tinha sido implantado em círculo, conforme as NEP, dividido em dois meios círculos, de um lado referenciado pelo caminho de acesso à pista de aviação, de outro pelo caminho de acesso ao cais do rio Meterunga.
Eu pertencia a esse 1.º Pelotão, a minha e as outras duas Secções ficaram desde o início posicionadas em frente ao alçado principal das ruínas da fábrica, separados da orla da mata de Cufat Nalu por um campo aberto de pouco mais de 1 km, o Alferes Bigotes mudou-se para o posto de comando, passei a substituí-lo nessa frente e a segundo mais graduado operacional do estacionamento, porque o Alferes João Sequeira era médico.
O Furriel Santos Oliveira, nosso camarada tabanqueiro, viera trazer-nos adidos um morteiro de 81 e a sua Esquadra, do seu Pelotão de Morteiros 912, batalhador na ilha do Como e em Jabadá, situara o seu espaldão junto ao Posto de Comando, e, nessa circunstância, a defesa dessa frente foi cometida aos cozinheiros, padeiro, faxinas, escriturário, enfermeiro, maqueiros, mecânicos, transmissões, condutores e desempanadores, o comando directo exercido pelo Furriel O´Connor Shirley da CCS, um sapador adido a nós.
Passado algum tempo, tiroteio e rebentamentos passaram a intermitentes, entendeu-se que retirada do inimigo, a “banana” avisou-me que o grupo combate do laranjal rastejava de regresso, cumpriu-me rastejar de abrigo em aviso a espalhar esse aviso e postar-me junto ao cavalo de frisa, para trocar o “santo e a senha” com a sua vanguarda, calculei e indiquei duas das mais prováveis rotas de retirada do inimigo aos briosos apontadores dos morteiros e da bazuca, que logo diligenciaram o lançamento de granadas, para lhes “acelerar o passo”.
Estava a malta a rastejar do laranjal para chegar ao cavalo de frisa, o inimigo retomou os rebentamentos e tiroteio, ora posicionado em meia-lua no lado do alçado posterior dos edifícios em ruínas e as suas RPG puseram logo fora de combate o nosso morteiro de 81 e a sua Esquadra, com as suas granadas foguete. O 1.º Cabo Auxiliar de Enfermeiro José Biscaia deixou o abrigo, percorreu o campo aberto, indiferente a projécteis e rebentamentos, começou por carregar o 1.º Cabo Gregório da Silva Lopes, já cadáver, seguiram-se os três municiadores gravemente feridos, um a um, deixou-os na tenda enfermaria, aos cuidados do Alferes Médico Dr. João Sequeira, regressando ou ao seu posto de combate todo ensanguentado.
O inimigo ousou cortar primeira fiada de arame farpado, iniciou a tentativa de assalto, e ele, o Furriel Shirley e outros saltaram para os tectos de cibes dos seus abrigos, estiraram-se a disparar, o Alferes Bigotes (também condecorado) a exercer o seu comando, com a sua habitual calma olímpica. A malta do laranjal começou a retomar suas posições e o inimigo foi rechaçado pelo novo potencial de fogo.
O objectivo do inimigo era ocupar o nosso lugar, o seu comando apercebera-se da fragilidade de defesa daquele lado e da eficiência do morteiro de 81 – a nossa única arma pesada de tiro curvo (éramos atacados com dois de 82) – e o abrandamento e a intermitência do seu fogo não fora indicador de retirada mas da sua rotação para essa posição.
Não tivemos acesso ao plano e à ordem dessa “Operação Alicate”. O certo é que a CCaç 617, o Grupo de Milícias de Catió e o Grupo de Comandos "Os Fantasmas" montaram emboscadas nos três eixos de retirada dos nossos atacantes, um bi-grupo (talvez o comandado pelo Manuel Saturnino da Costa) caiu na emboscada dos Comandos – e 8 deles ficaram na “zona de morte”, não regressaram vivos às bases da mata de Cufar Nalú ou de Quitafine.
Sofremos um morto, sete feridos graves e mais alguns ligeiros. Ao primeiro clarear da manhã, o chão do estacionamento apresentava-se pejado de covões dos rebentamentos proliferavam pelo estacionamento, os cozinheiros fizeram e distribuíram um caldeiro de café, o ar fatigado e silêncio da tristeza imperavam, o Furriel Manuel Simas saiu com um grupo de combate a fazer o reconhecimento, deu contas de manchas de sangue e de grande quantidade de invólucros de calibres 7,62, 9 e 12,7 mm. Fomos cercados e atacados por cerca de 70 combatentes e alvos de impactos de PPSH (costureirinhas),de Kalash´s, de duas RPG, de 2 morteiros de 82 e de 2 super-metralhadoras. Tínhamos vivido uma eternidade de 2 horas sob o fogo dos infernos.
O mesmo grupo de combate foi fazer a segurança à pista, eliminou um espião, e, ao fim da manhã e pela primeira vez, desde a sua construção, em 1955, um Dakota aterrou na pista de Cufar, com reabastecimentos da intendência, de munições e para evacuar o morto e os feridos.
O Grupo de Comandos Os Fantasmas e o Grupo de Milícias de Catió vieram partilhar o rancho do almoço connosco, oportunidade de conhecer os lendários Tenente Maurício Saraiva, o Marcelino da Mata, os malogrados Alferes de segunda linha João Bacar e Teófilo Sayeg (futuro capitão do futuro MFA, que o PAIGC fuzilará) e abraçar o amigo, camarada e tabanqueiro João Parreira, amizade nascida no Café Bento e consolidada à mesa Restaurante Tropical, com os pés debaixo da mesa…
Dos protagonistas de Cufar, do nosso lado faço a evocação da memória de Nuno Bigotes, Manuel Simas, José Biscaia, Maurício Saraiva, João Bacar e Teófilo Sayeg, já não estão entre nós; do lado do PAIGC apenas o Manuel Saturnino da Costa será vivo.
Tivemos algo de responsabilidade pelo durante da guerra; nada tivemos de responsabilidade pelo seu finalmente.
Camaradas da “Operação Tridente” e da saga de Cufar houve desenvoltos na arte da guerra e da pena, combatentes e plumitivos, cito de memória Armor Pires Mota, Mário Fitas e António de Graça Abreu (os omissos que me desculpem), e permitam-me não dar o ponto sem nó: envio o meu livro "Guerra da Guiné: a Batalha de Cufar Nalu", ao preço de 13 €, os portes (e autógrafo) incluídos, basta encomendar para a: manuelluislomba@gmail.com
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Nota do editor
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Guiné 61/74 - P21492: (In)citações (172): Crónica da Guerra da Guiné, segundo um seu Veterano - Parte I (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav da CCAV 703)