sábado, 25 de junho de 2005

Guiné 63/74 - P81: Cartazes de propaganda dirigidos aos homens do mato (Marques Lopes)

© A. Marques Lopes

1. O Marques Lopes mandou-nos, sob a forma de imagens em format.jpg, uma colecção de sete cartazes, a cores.

Eram os nossos conhecidos cartazes de propaganda que deixávamos no mato, nas clareiras, nos trilhos, nas bolanhas, nas regiões fora do nosso controlo, na esperança de que os guerrileiros do PAIGC, as suas milícias e a sua população se entregassem em massa às nossas autoridades, administrativas e militares...

Nunca cheguei a observar os efeitos práticos e objectivos deste tipo de propaganda. Os "homens do mato" que conheci foram os que fizemos prisioneiros; a população do mato (mulheres, velhos e crianças) que recuperámos foi a que arrancámos, à força, das zonas controladas pela guerrilha.

Achei, no entanto, esse material muito interessante,se bem que revele alguma ingenuidade e uma estética de duvidosa eficácia. E pedi-lhe, ao Marques Lopes, para ver se descobria a origem e o ano ("Quem os produzia, quando, para usar onde"...).

O Marques Lopes respondeu-me que "esses folhetos que enviei tínhamo-los quer em Geba quer em Barro, portanto em 1967 e 1968, para espalhar pelas matas. Nenhum deles tem indicação de autor ou de origem, mas é certo que apareciam em pacotes vindos do Comando Chefe de Bissau". Uma coisa é certa: eram cartazes destinados especificamente ao teatro de operações da Guiné.

O que eu acho interessante é que ele tenha tido a preocupação de os guardar. Julgo que também me passaram pelas mãos alguns desses cartazes, mas não fiquei com nenhum. Na altura o que eu queria mesmo era esquecer a Guiné... para sempre. Esses materiais são hoje valiosos pelo seu interesse iconográfico e historiográfico. Não os encontro, por exemplo, no sítio do Centro de Documentação 25 de Abril nem em qualquer outra parte da Net.

Essas imagens e outras fotos (que eventualmente não venham publicadas, neste blogue nem na página Luís Graça e Camaradas > Subsídios para a História da Guerra colonial > Guiné (1963/74) passam a figurar no meu álbum do Portal Care2.com: Guerra Colonial > Guine-Bissau (1963/74) / Colonial War > Guiena-Bissau (1983/74). Este portal tem a vantagem de permitir a inserção de um número teoricamente ilimitado de fotos.

As imagens originalmente enviadas pelo A. Marques Lopes eram muito pesadas (2 a 3 MB cada uma). O seu tamanho teve que ser reduzido. É natural que percam qualidade.

A colecção (no fundo, é uma sequência de banda desenhada) começa com uma imagem do mapa da Guiné ("Guiné Portuguesa, Guiné Feliz") (Cartaz nº 1).

© A. Marques Lopes

A numeração é da minha única responsabilidade: tem a ver a lógica da sua sequência para efeitos de leitura. É claro que o Cartaz nº 1 ("Guiné Portuguesa, Guiné Feliz") também podia vir no fim.

O segundo cartaz mostra um grupo de guerrilheiros, no mato, feridos e/ou desmoralizados (vd. i,magem no toppo deste post). Os combatentes do PAIGC nunca são tratados como tal, mas simplesmente como "homens do mato" (leia-se: bandidos, indivíduos que estão fora da lei e da ordem). Aliás, no nosso tempo, "ir no mato" era, no falar das gentes da Guiné, juntar-se à guerrilha, fugir das zonas sob administração portuguesa. Portugal, de resto, nunca reconheceu o PAIGC como inimigo, nem a luta contra o terrorismo como uma situação de guerra, face à Convenção de Genebra.

O título do cartaz é:

- No mato, há doença, fome e morte...

A legenda, por sua vez, diz o seguinte:

- O Chefe do Grupo do mato julga que vai morrer. Foi gravemente ferido.

No Cartaz nº 3 vemos o mesmo grupo de "homens do mato" a entregar-se às autoridades militares portuguesas da zona. Depois do Chefe do mato ter ido falar com o "homem grande da tabanca" (que veste à maneira fula, o que está longe de ser inocente, já que os fulas eram os nossos grandes aliados)...Legenda:

- O Homem Grande diz à tropa que estes homens foram enganados, estão arrependidos e fartos da guerra.

No Cartaz nº 4 vemos os "homens do mato, arrependidos" serem bem tratados pelas autoridades portuguesas: (i) são tratados pelos enfermeiros da tropa, (ii) bebem cerveja com soldados africanos...

No Cartaz nº 5 vemos uma tabanca, sob a bandeira portugesa (e, parece-me, ao canto superior direito, descortinar uma inverosímil antena de televisão!). Legenda: "a gente do mato que estava enganada e não vivia na tabanca há muito tempo" abraça a família e os amigos...

© A. Marques Lopes

Por fim, a tropa e os civis ajudam aqueles que se apresentam a reconstruir a sua tabanca (clara referência aos famosos "reordenamentos" ou "aldeias estratégicas" que, no tempo do Spínola, tiveram um grande incremento)(Cartaz nº 6).

O último cartaz (nº 7) tem uma lógica implacável: "Apresenta-te à tropa, levanta os braços"... Mostra dois "homens do mato", de braços levantados, segurando a sua espingarda semi-automática (Simonov ?) por cima da cabeça...

2. Veja-se o que diz o Centro de Documentação 25 de Abril sobre a propaganda, usada durante a guerra colonial, por um lado e outro:

"A acção psicológica destina-se a influenciar as atitudes e o comportamento dos indivíduos. Na guerra subversiva é utilizada para obter o apoio da população, desmoralizar e captar o inimigo e fortalecer o moral das próprias forças, assumindo três aspectos diferentes, embora intimamente relacionados: acção psicológica, acção social, acção de presença.

"Quer as forças portuguesas, quer os movimentos de libertação, usaram intensamente a acção psicológica como arma, integrando-a na panóplia de meios disponíveis para a conquista dos seus objectivos, dentro da ideia que as palavras são os canhões do séc. XX e que, como se ensinava aos futuros chefes da guerrilha na escola de estado-maior da China, na guerra revolucionária deve atacar-se com 70 por cento de propaganda e 30 por cento de esforço militar.

"A acção psicológica exercida sobre a população, o inimigo e as próprias forças foi conduzida através da propaganda, da contrapropaganda e da informação, de acordo com as finalidades de cada uma destas áreas: a primeira, pretendendo impor à opinião pública certas ideias e doutrinas; a segunda, tendo como finalidade neutralizar a propaganda adversa; por último, a informação, fornecendo bases para alicerçar opiniões. Mas, para serem eficazes, os meios de condicionamento psicológico necessitam de encontrar ambiente favorável.

"Quanto às populações, procurou-se criar esse ambiente propício com a acção social, que visava a elevação do seu nível de vida, para as cativar, conquistando-lhes os corações e originando condições mais receptivas à acção psicológica. Esta acção foi desenvolvida sob a forma de assistência sanitária, religiosa, educativa e económica.

"Relativamente ao adversário, a acção psicológica das forças portuguesas era isolar os guerrilheiros das populações, desmoralizá-los e conduzi-los ao descrédito quer na acção, quer na dos seus chefes. Para o efeito utilizaram-se panfletos e cartazes lançados de aviões ou colocados nos trilhos de acesso e nas povoações, emissões de rádio, propaganda sonora directamente a partir de meios aéreos, apelando à sua rendição e entrega às forças militares ou administrativas, garantindo-lhes e explicando-lhes que a participação na guerrilha constituía um logro".

Nota de correcção:

Posteriormente à inserção deste post, recebi em 26 de Junho de 2005 a seguinte mensagem do Marques Lopes: "Peço-te que faças uma correcção a propósito dos cartazes que enviei. Quem tinha esses cartazes em seu poder era o meu amigo alferes Reis, da CART1690, que mos cedeu. Embora eu os conhecesse, como disse, quer em Geba quer em Barro, não tinha nenhum destes em meu poder. Tenho outro, não igual, mas ando ainda à procura dele... deve estar no meio de outros papéis. Quando o encontrar enviá-lo-ei".

Aqui fica a correcção: o seu a seu dono. A autoria das imagens é do Marques Lopes, já que foi ele quem teve o trabalho de as digitalizar e enviar para a nossa tertúlia.

sexta-feira, 24 de junho de 2005

Guiné 63/74 - 80: A cerimónia de despedida no Campo Militar de Santa Margarida (Luís Graça)


Excertos do Diário de um Tuga. L.G.

Campo Militar de Santa Margarida. 24 de Maio de 1969.

Soldado contra a minha própria guerra, parafraseando o Manuel Alegre, a escassos horas de embarcar no Niassa, revejo-me mal no filme de despedida da nossa companhia (menos de meia-companhia, aliás), enquadrada nas restantes forças expedicionárias destinadas ao CTI da Guiné, perfiladas no átrio da capela – ah!, sempre juntos,Deus e a Pátria, a cruz e a espada, ! – do Campo Militar de Santa Margarida.

Cerimónia de opereta que meteu missa campal, benção e entrega de guiões e a que não faltou a fanfarra do Regimento de Abrantes e o discurso de despedida do comandante, que a pompa e as circunstâncias exigiam.

De dentes cerrados e a morte na alma, escutei a lenga-lenga patrioteira do coronel, comandante do CMSM:

“Oficiais, sargentos e praças! Ides em breve partir para a nossa querida província ultramarina da Guiné aonde vos chama o sagrado dever de todo o soldado português – a defesa da Pátria!

“Das dificuldades da vossa missão ninguém tem dúvidas, mas a Nação tem boas razões para confiar em vós. Para além da instrução, intensa e prolongada, a que vós, militares, fostes submetidos desde o primeiro dia nas fileiras do Exército, existem no vosso sangue jovem todas aquelas virtudes ancestrais, recebidas dos vossos pais e avós, que tornaram grandes e inolvidáveis os momentos mais dolorosos e difíceis por que a Pátria passou nos oito séculos da sua existência!...

“A vossa geração, bravos soldados de Portugal, escreve hoje em terras de África páginas das mais gloriosas da nossa gloriosa História! (…)

“O voto que vos deixo, a todos vós, oficiais, sargentos e praças, é que em terras da portuguesíssima Guiné, saibais continuar a gesta lusíada e merecer a confiança que a Nação em vós deposita. E que na alegria do regresso possais gritar bem alto àqueles que no cais vos aguardam: Missão cumprida!”

- Simplesmente pornográfico! Os cabrões podiam mandar-nos para o matadouro e poupar-nos, ao menos, a esta diarreia mental! – comentei eu, entre dentes, recusando, enojado, mas com alguma elegância, o aperto de mão da seráfica e assexuada representante do Movimento Nacional Feminino que, no final, distribuía medalhas de Fátima, tabaco, aerogramas e sorrisos de vaca leiteira.

Esta música eu já a sabia de cor e salteado das Caldas e de Tavira. Recordo-me de um dos meus comandantes de companhia que também tinha muito blá-blá:
- Rapazes, vocês são a fina flor da Nação, o espelho da Pátria! – dizia-nos ele muitas vezes na formatura. E depois tratava-nos abaixo de cão ou autorizava o cão de fila do seu alferes a humilhar-nos e a pôr-nos a rebolar na merda, no campo da feira de Tavira, debaixo da janela da sua amada...

Gabava-se de ser um dos heróis de Nambuangongo e de ter tantos louvores como porradas, razão por que ainda não tinha passado de tenente. Para alguns de nós, e a crer no jornal da caserna, ele não passava de um reles e triste assassino que no Norte de Angola, em 1961/62, andava sempre com cabeças frescas de preto espetadas no capô do jipe.

Post-scriptum -

1. À distância de 36 anos, não quero ferir susceptibilidades nem muitos menos menosprezar os sentimentos patrióticos, actuais ou passados, dos meus ex-camaradas de Guiné, de todos, em geral, e de cada um, em particular. Também não confundo o Exército do Portugal democrático de hoje com o Exército do Portugal colonial-fascista de 1969 (não gosto da adjectivação, mas era assim que os gajos do MRPP e outros comunas nos tratavam: afinal, o Exército Portugês eramos nós...).

Se fui (re)buscar os meus papéis dessa época, foi sobretudo para documentar ou ilustrar o estado de espírito de alguns de nós, que estavam longe de serem representativos dos jovens da sua geração. Mal ou bem, eu considerava-me, na época, um soldado contra a minha guerra... Todavia, não fui refractário nem desertor...

Por outro lado, todos sabemos como os filhos da elite político-militar da época arranjavam maneira de não ir parar a Geba, ao Xime, ao Xitole, a Barro ou a Guileje... Em muitos casos até da tropa se livraram. Na pior das hipóteses fizeram a guerra do ar condicionado (em Bissau, em Luanda, em Lourenço Marques)...


2. Foi no Campo Militar de Santa Margarida (CMSM) que conheci os meus futuros camaradas e amigos da CCAÇ 12 (caso do Humberto Reis e do António Levezinho, que fazem parte da nossa tertúlia de ex-combatentes da Guiné; já agora o boneco da capa da História da CCAÇ 12, que publico em cima, é da autoria do Tony Levezinho; é uma pequena homenagem que lhe faço, esperando poder abraçá-lo em breve, lá para os lados da ponta de Sagres onde ele agora vive).

O CMSM, situado no concelho de Constança, era já, nessa época, uma verdadeira cidade, com milhares de hectares, e centenas de infra-estruturas... Nunca mais lá voltei.

Hoje ao visitar o seu sítio na Internet, vejo com agrado que o CMSM tem preocupações ambientais e tem inclusive uma certificação ambiental. Os meus parabéns ao Exército Português. Aqui fica um destaque sobre este assunto:

"O Sistema de Gestão Ambiental do Campo Militar de Santa Margarida é a partir de agora, Certificado pela Associação Portuguesa de Certificação (APCER), como instituição Certificada segundo as Normas NP EN ISO 14001:1999.

"Esta certificação é sinónimo de uma preocupação louvável no sentido da preservação dos 6.400 hectares do CMSM, onde se inclui uma magnífica mancha florestal e onde se abrigam importantes espécies da fauna cinegética que têm convivido pacificamente com as actividades inerentes ao campo, desde a sua fundação, há precisamente 52 anos.

"O sistema de gestão do ambiente que o CMSM publicamente assume, permite-lhe estabelecer uma política adequada à sua própria realidade, adoptando soluções que visam a redução de custos e de riscos inerentes ao seu funcionamento, evidenciando à sociedade uma melhor imagem da instituição militar, bem como constituindo uma referência de exemplo e incentivo para as restantes unidades do Exército.
6/23/2004".

Fonte: Portal do Exército Português > Campo Militar de Santa Margarida (CMSM)

Guiné 63/74 - P79: Nome di bó? Terça, simplesmente, Terça! (Em Sano, no Senegal) (Marques Lopes)

Os Jagudis, grupo de combate da CCAÇ 3 (Barro, 1968), comandado pelo Alferes Miliciano Lopes. Uma pausa no mato.

© A. Marques Lopes


Texto do Marques Lopes (ex-alferes miliciano da CCAÇ 3, Barro, 1968):

Esta menina estava às costas da mãe quando, em 20 de Agosto de 1968, eu e o meu grupo de combate [os jagudis] investimos contra a tabanca de Sano, já no Senegal.

No meio do tiroteio, provocado pela resistência de alguns elementos do PAIGC que lá se encontravam, a mãe dela abriu o pano com que segurava a filha para melhor poder fugir. E conseguiu fugir... mas deixou a filha a chorar no chão.

Trouxemos a criança para Barro. Tinha um ano e meio, talvez dois anos, não sei. Foi bem tratada, vestida e calçada.
- Nome di bó? - Muita insistência e dificuldade em conseguir-lhe uma palavra.
- Que nome dar-lhe, então?
- Hoje é terça-feira, disse alguém, pode chamar-se Terça-feira - E ficou Terça, para facilitar.

Pois a miúda Terça ficou alguns dias em Barro mas foi na primeira Dornier para Bissau para ser entregue a uma qualquer instituição religiosa.

O Cacuto [Seidi, chefe da tabanca de Barro, e suspeito de ter ligações ao PAIGC] não gostou da ideia, pois era uma bajuda que lhe iria dar proventos quando a casasse...

Lá andará hoje, por Bissau, uma já mulher feita, mãe de filhos, certamente, de nome Terça. O nome não foi totalmente descabido. De facto, em 1998, quando estive na Guiné, o jovem guia que me acompanhava chamava-se Cinq. Só falava francês e crioulo.
- Porquê Cinq? - perguntei-lhe eu.

Estudara no Senegal, daí falar francês, nascera no dia 5 de Maio (5) e os pais deram-lhe o nome de Cinq.

Guiné 63/74 - P78: Ex-guerrilheiros do PAIGC, procuram-se (Luís Graça)

Mandei para o Portal Guine-Bissau.com, para o respectivo livro de visitas, a seguinte mensagem:
________________

Luís Graça, Lisboa, Portugal

18/06/2005

"Represento um grupo de ex-combatentes portugueses que fizeram a guerra colonial na Guiné, entre 1967 e 1974, que são amigos do povo da Guiné, e que estiveram nos mais diversos sítios: Bambadinca, Xime, Mansambo, Xitole, Saltinho, Enxalé, Missirá, Geba, Cantacunda, Banjara, Bafatá, Contuboel, Barro, Bigene, Guidage, etc.

"Gostaríamos de poder encontrar ex-combatentes do PAIGC que tenham estado nessas zonas e nessa época. Temos publicado depoimentos, estórias, documentos, fotos, etc., em:

Luís Graça > Blogue-fora-nada

Luís Graça & Camaradas > Subsídios para história da guerra colonial > Guiné (1963/74)

Amigos e camaradas, contactem connosco!

Luís Graça (ex-furriel miliciano Henriques da CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, 1969/71)

Marques Lopes (ex-alferes miliciano Lopes, da CART 1690, Geba, 1967; e da CCAÇ 3, Barro, 1968; hoje, coronel, DFA, na situação de reforma)

Guiné 63/74 - P77: O que (não) diziam os nossos aerogramas (1) (Marques Lopes)

1. Extractos do que se dizia nos aerogramas. Só algumas coisas, claro, de alguns que consegui recuperar. 

Abraço.
Marques Lopes

Geba. 3.5.67

" (...) Por cá tenho andado. Tenho andado muito pelo mato. Tem de ser assim, já estive quase um dia inteiro emboscado no mato. A vida aqui é muito dura, pior que tudo é que um indivíduo pode dar em chalado. Agora é que eu vejo como é fácil dar em maluco. Por um lado, o clima já não ajuda muito, por outro há muitos problemas e muitas situações difíceis que nos fazem perder a cabeça. Há dais emq ue quase se anda à porrada (...)".

2. Resposta ao Marques Lopes:
Ora aí está um material que tem sido pouco ou nada explorado… Eu não tenho nem um dos meus… Escrevia pouco, não tinha madrinhas de guerra… E receava estar a ser vigiado pela PIDE/DGS… Escrevi cartas só para o meu diário… Cartas a amigos que nunca cheguei a pôr no correio… Patético!

Em contrapartida tinha acesso, mais tarde, uma colecção de cartas e aerogramas, recebidos pela minha mulher, como madrinha de guerra; e outra, dos recebidos e enviados por um cunhado meu... Há alguns documentos interessantes.

Talvez valesse a pena pedirmos à nossa tertúlia de ex-combatentes da Guiné para recuperar e divulgar alguns dos aerogramas, recebidos ou enviados, com notícias, apontamentos, estados de alma, etc., que traduzissem de certo modo a época, as alegrias e as tristezas dos combatentes, as preocupações da população na rectaguarda, a milhares de quilómetros de distância...

Já escrevi sobre este assunto, em post de 23 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - I: Saudosa(s) madrinha(s) de guerra.

A maioria dos soldados correspondia-se, em média, com uma meia dúzia de madrinhas de guerra, para além dos seus familiares e amigos. Em treze anos de guerra, cerca de um milhão soldados terá escrito perto mais de 500 milhões de cartas e aerogramas erecebido outro tanto.

Lemrbo que, no nosso tempo, o aerograma também era conhecido por corta-capim, já que o correio era, muitas vezes distribuído em cima de uma viatura, e o aerograma lançado por cima das cabeças dos soldados, à maneira de um boomerang. Os aerogramas foram uma criação do Movimento Nacional Feminino, dirigida pela célebre Cecília Supico Pinto desde 1961, e o seu transporte era assegurado pela TAP ("uma oferta da TAP aos soldados de Portugal").

Os aerogramas também foram usados na guerra da propaganda do regime, ostentando carimbos de correio com dizeres como "Povo unido, paz e progresso", "Povo português, povo africano", "Os inimigos da Pátria renunciarão" ou "Muitas raças, uma Nação, Portugal" (vd. Graça, L. - Memória da guerra colonial: querida madrinha. O Jornal. 15 de Maio de 1981).

Luís Graça.

3. Resposta do Marques Lopes:

Esses que vos enviei são alguns que consegui recuperar, tinha-os enviado à minha irmã.

Também não enviei muitos, porque não tinha nada mais que contar a não ser aquela desgraçada vida do nosso dia-a-dia de guerreiros. Enviei mais a uma madrinha de guerra, que acabou por ser minha mulher, mais tarde. Só que, quando nos divorciámos há vinta anos, ela deitou tudo ao lixo. Com muita pena minha, porque é verdade que muita da minha vivência na guerra foi expressa nesses aerogramas, muitos dos meus sentimentos e medos foram neles retratados, muitos desejos de fim para aquilo tudo eu pus naqueles papéis.

De acordo que os nossos tertuliantes vasculhem esse material, documentos importantes para o retrato da nossa vida naquele período.

A Diana Andringa mostrou-se interessada em conhecer o blogue. Já lhe dei as indicações para o fazer.

4. Comentário de L.G.:

Meu caro António: A vida não foi fácil para nós, que fomos apanhados na rede… como um cão (é uma imagem, obsessiva, do meu diário). É uma geração, a nossa, marcada a ferro e fogo, na carne e na alma. Por isso é bom podermos escrever e falar… em voz alta. Já ninguém nos entende, a não ser nós próprios…

Nos aerogramas não dizíamos nada, ou quase nada. Ficava muita coisa por dizer... Ou então escrevíamaos nas entrelinhas... Quando eu escrevia (basicamente è família, aos meus pais, às minhas irmãs…), fazia-o com irregularidade. Nunca lhes transmiti sentimentos negativos. Nunca lhes disse a verdade. E as fotos, que seguiam em anexo, procuravam sobretudo ser tranquilizantes: Estou vivo, estou bem, graças a Deus... Não se preocupem comigo!

Mas, tirando as nossas famílias, quem mais se preocupava connosco ? A guerra era bem lá longe, mesmo para os filhos da puta dos tugas (grndes colonos, grandes comerciantes, administradores, políticos, generais…) que gozavam as delícias do sistema em Bissau, em Luanda, em Lourenço Marques… Um dia destes temos que revisitar (e reler) esses aerogramas. A minha colecção (umas centenas) está no sótão (...).

PS – A Dina será bem vinda à nossa tertúlia…

5. Ao convite e o desafio para recuperar os nossos velhos aerogramas aqui ficam, endereçados a todo o pessoal da tertúlia de ex-combatentes da Guiné.

quinta-feira, 23 de junho de 2005

Guiné 63/74 - P76: (i) A bordo do Niassa; (ii) Chegada a Bissau (Luís Graça)

[Um sargento e vários furriéis milicianos da CCAÇ 12, à mesa de jantar, a bordo do Niassa. © Luís Graça ]

Excertos do Diário de um tuga. Luis Graça (ex-furriel miliciano Henriques CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, 1969/71).
A bordo do Niassa. 28 de Maio de 1969
Eis-nos nos tristes trópicos (1). Atravessámos hoje o Trópico de Câncer, com peixes voadores e alguns tubarões a acompanhar-nos. Lembrei-me do meu pai, que esteve em Cabo Verde, na Ilha de São Vicente (2), como 1º cabo, em plena II Guerra Mundial. E das histórias de tubarões que me contava. Das suas fotos amareladas de barcos e de tubarões.

Alguém se lembrou de abrir uma garrafa de champagne como se tivéssemos atravessado o Equador em alegre cruzeiro pelo Atlântico Sul. Com um sorriso amarelo, também participei neste ritual de iniciação e ergui a minha taça:
- Afinal, estamos todos no mesmo barco!, - pensei.

De resto, come-se e bebe-se o dia todo para matar o tédio da vida a bordo. Há os viciados da lerpa. Os oficiais superiores, esses, divertem-se com o tiro ao alvo na popa do navio, enquanto a malta da turística (3) escreve cartas, aos pais, namoradas, noivas e mulheres, cartas que eu imagino já molhadas de lágrimas salgadas e de saudades. As praças, essas, vomitam nos porões. Todo o navio fede e no meio do cheiro nauseabundo há um desgraçado de um desertor que vai a ferros.

Dentro de um dia desembarcamos nesse Continente que antevejo verde como a esperança e que reinicia agora o seu movimento de translação na História…

Dentro de um dia desembarcaremos na Guiné da qual espantosamente não sei nada a não ser aquilo que me impingiram nos bancos da escola:

“Descoberta pelo navegador português Nuno Tristão, que viria a ser morto pelos indígenas ao tentar desembarcar numa das ilhas do arquipélago dos Bijagós, a Guiné tem cerca de 2/5 da superfície de Portugal Continental.

“O clima é tropical húmido, e o território muito plano e baixo, com vastas regiões alagadiças e pantanosas, o que torna difícil a adaptação do europeu. Quanto à vegetação, predomina a floresta tropical e a savana arbustiva. A população – um pouco mais de meio milhão de almas – divide-se por uma grande variedade de grupos da raça negra, sendo os mais importantes os balantas, animistas, e os fulas, islamizados.

“As principais exportações são o amendoim, o coconote, as madeiras exóticas e o óleo de palma. A capital e a residência do Governador é Bisssau”.

Desde que deixámos as Canárias, não suporto este calor pegajoso, esta angústia difusa que destilo através dos poros da pele. Tenho sintomas de febre e já não sei onde acaba a realidade e começa o delírio. Ontem à noite, dei comigo, sozinho, face ás estrelas e à imensidão da noite confundida com o mar, vomitando no convés e perguntando-me quem eu era, onde estava, para onde me levavam…

De facto tudo tinha sido tão brutal: (i) a ordem de mobilização recebida em Castelo Branco; (ii) a ressaca dos primeiros copos na noite do tremor de terra; (iii) a apresentação em Santa Margarida, a Escola Preparatória de Quadros e a Instrução de Aperfeiçoamento Operacional com os rocambolescos assaltos nocturnos aos bivaques do inimigo para sacar tudo o que fosse bebível e comestível; (iv) os breves dias, tristes, de licença antes do embarque; (v) a viagem directa, nocturna, quase clandestina, em comboio especial até ao cais de embarque, no porto de Lisboa; (vi) os capacetes brancos dos polícias militares, os nossos familiares e amigos de rosto tenso, alguns de gravata preta; (vii) as gaivotas estranhamente pousadas nos mastros; (viii) os guindastes, o Tejo, a ponte que eu vi elevar-se das águas nos primeiros anos de 60; (ix) o Cristo-Rei, de braços abertos como um espanta-pardais numa tela de Dali; (x) o apito breve mas pungente do navio, breve como um tiro, pungente como o sentimento indefinível de quem em Lisboa parte e de quem em Lisboa fica; (xi) o marinheiro que solta as amarras, um vulto, uma mão, um lenço…

E, já no mar alto, ao largo dos Açores, eu próprio tive a sensação de ter atravessado o pórtico do tempo e entrado num barco-fantasma, sobrevivente da odisseia dos antigos nautas, à deriva nos medonhos mares de que nos falavam as velhas histórias trágico-marítimas…

Que fazia eu, que fazíamos nós, centenas e centenas de homens acondicionados como gado em porões nauseabundos, ali naquele barco da carreira colonial, vogando fora do tempo e do espaço, como se Gil Eanes nunca tivesse dobrado o temido Cabo Bojador, desfeito as lendas do Mar Tenebroso e assim aberto o caminho marítimo para o longínquo sul, para o fim do mundo e para os eldorados que havia por achar?!...

- Duplamente embarcado, meu velho. É isso! – disse para mim próprio, ao avistar-se ao longe a luz trémula do farol da Ilha dos Pássaros, à entrada do Porto de Bissau, e ao ouvir-se pela primeira vez uma tempestade tropical que, no meio do alvoroço provocado pelo grito Terra à Vista!, alguém confundira com o tão temido ribombar dos canhões.

- Embarcados na grande aventura colonial, para representarmos o terceiro (e último) acto dum grande tragicomédia, com um falso passaporte que não tem o visto da História! Mas um dia teremos vergonha das mentiras que ouvimos (e deixámos) dizer em nosso nome!...

[ Em homenagem ao meu velhote que aqui vemos, expedicionário, em Cabo Verde, na Ilha de São Vicente, em Julho de 1942, com 21 anos... É o primeiro do lado direito, e pousa para a foto com um tubaraão que acabara de ser apanhado: "Rra novo mas já era bastante grande", escreveu ele nas costas da foto. © Luís Graça ]
_________

(1) Título de um livro, do antropólogo francês Lévi-Strauss, que fazia parte da pequena biblioteca que levei comigo para a Guiné, convencido que iria ter algum tempo para ler.

(2) Vd. post de 26 de Junho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXVI: Antologia (11): Cabo Verde (1941/1943)

(3) Reservada aos sargentos. Na 1ª classe iam os oficiais. O resto era mercadoria, gado humano…

Bissau. 29 de Maio de 1969
Desembarcamos numa cidadezinha térrea, de casas de adobe, rachas de cibe e chapas de zinco, com quintais cheios de mangueiras, e onde em dois ou três quarteirões, feitos a régua e esquadro, se concentram a administração e o comércio.

Nas ruas, sujas das primeiras enxurradas de Maio, djubis vendem mancarra (começo a aprender as minhas primeiras palavras de creoulo). Gilas, de balandrau branco, óculos de sol e transistor a tiracolo, mercadejam bugigangas de contrabando (1). Os sons, os sabores e as cores de África baralham-me os sentidos e as emoções.

A esta hora da manhã, já as esplanadas estão cheias de tropa à civil, beberricando cerveja, enquanto no mastro da fortaleza oitocentista da Amura flutua uma descolorida bandeira verde-rubra. Indiferente aos velhos canhões de bronze, uma mulher passa com o filho às costas e um balaio à cabeça.

Canoas talhadas em grossos troncos de poilão partem do mítico cais do Pijiguiti (2), sulcando as águas lamacentas da Ria, em busca de mafé. Ronceiros aviões levantam voo de Bissalanca e, no meio da praça do Império, em cima de um Unimog, de pé e de braços abertos, alguém de nós, exclama:
- Camaradas, cinco séculos de história vos contemplam!

Post- scriptum - Três dias depois iriam dar-nos uma G-3, novinha em folha, e uma ração de combate, para de seguida nos porem no fundo duma LDG, a caminho do Leste, Rio Geba acima, escoltados por uma secção de fuzileiros navais que, à medida que o rio estreitava, batiam com fogo de morteirete a cerrada vegetação das margens (o tarrafe) até às proximidades do Xime… “Como um cão apanhado na rede”, resmungava eu sentado na capota de uma Berliet, no fundo da LDG Bombarda…
_______

(1) Balaio=cesto grande; cibe=palmeira; djubis= miúdos; gilas= vendedores ambulantes; mafé= peixe; mancarra=amendoim.

(2) Para o PAIGC, o massacre dos marinheiros e trabalhadores portuários do Cais do Pijiguiti, a 3 de Agosto de 1959, é uma data histórica.

Cronologia do 1º semestre de 1969 (Janeiro-Junho):

(i) Recorde-se que, em 2 de Maio de 1968, é nomeado António de Spínola para os cargos de governador-geral e comandante-chefe da Guiné. Tomada de posse a 20 de Maio desse ano.

(ii) Recorde-se ainda que em 23 de Setembro desse mesmo ano, Marcelo Caetano toma posse como Presidente do Conselho de Ministros: o seu governo inicía funções em 17 de Novembro.

(iii) E , por fim, cite-se a conclusão de Spínola, em documento oficial, sobre a situação da Guiné, segundo a qual se vivia uma "triste realidade", na Guiné, tanto sob o ponto de vista militar como sócio-económico (Outubro de 1968).

Janeiro

1 - (i) Marcelo Caetano dá início às "Conversas em família", na RTP. (ii) Um grupo de católicos, em vigília na igreja de S. Domingos, condena a política africana do governo, e divulga um documento manifestando o seu empenho na obtenção de uma solução pacifica para a questão colonial.

18. Início da Conferência de Cartum. Constituição do Comité de Mobilziação e Apoio aos Povos das Colónias Portuguesas.

Fevereiro

(i) Durante Fevereiro e Março realizam-se grandes operações na Guiné, procuranbdo o IN nos seus próprios santuários (por ex., Op Lança Fiada, na Zona leste; Op Vulcano, na região de Quitafine/Cassebache).

(ii) Em Bigene,a s NT fazem grandes apreensões de armamento.

(iii) Em contrapartida, Guilege sofre, em Fevereiro, um grande ataque, com grande precisão, por parte do PAIGC.

(iv) Ainda em Fevereiro, Leopold Senghor, o presidente do Senegal, apresenta um plano para a independência da Guiné no quadro de uma comunidade luso-africana.

3 - Eduardo Mondlane, fundador da FRELIMO, é assassinado, em Dar-es-Salam, Tanzânia, através de uma carta armadilhada. Samaora Machel será depois eleito como um dos três elementos da equipa (triunvirato) que passa a dirigir a FRELIMO.

8 - AS NT evacuam Madina do Boé, no sector sul, junto aor Rio Corubal e à fronteira com a Guiné-Conacri. Na travessia do Rio Corubal, há um grave incidente com a jangada que fazia o transporte de homens e equipamentos, provocando a morte de 47 militares. O aquartelamento é ocupado no dia seguinte pelo PAIGC.

9 - Forte ataque do PAIGC ao quartel de Cambaju, durante cerca de duas horas, com entrada no perímetro defensivo e várias mortes e feridos do lado das NT.

26 - O IN, sob o comando de Mário de Sousa Delgado e Mamadu Indjai, ataca duas lanchas no rio Buba.

Março

(i) Reactivação da guerrilha no chão fula (Mansoa, Bula)

6 - Início da Op Vulcano, no Sul da Guiné, na região de Quitafine/Cassebache. Grande resistência do IN à acção ofensiva dos paraquedistas contra as suas posições de artilharia.

7 - Escalada na guerra: o IN utiliza, no Sector Sul, uma metralhadora pesada antiaérea quádrupla 14.5 e seis simples de 12.7, atingindo dois Fiats G-91 e um DO-27.

8-19 - Op Lança Afiada > 1300 homens "varrem" a região compreendida entre a linha Xime-Xitole e a margem direita do Rio Corubal. Entrada das NT na mítica mata do Fiofioli.

Abril

(i) Operações da NT na região de Bula, com vários contactos com o IN.

8- Marcelo Caetano, o novo primero-ministro dá início inicia a sua visita à Guiné.

17 - O presidente da Associação Académica de Coimbra é impedido de falar, em cerimónia de inauguração de um novo edifício, com a presença do Chefe do Estado. Ocorrem então graves incidentes entre os estudantes e as autoridades. Início da grave crise académica de 1969.

21 - Marcelo Caetano regressa da sua visita oficial à Guiné, Angola e Moçambique. Em Lourenço Marques deixa a porta aberta à ideia de uma progressiva autonomia dos territórios ultramarinos.

Maio

(i) Utilização de mina aquática, por parte do PAIGC, no Rio Cobade, no sector sul.

14 - Reúne-se em Aveiro, até dia 16, o II Congresso Republicano, organizado pela oposição democrática.
31 - Ataque em força ao aquartelamento de Bambadinca. Pânico entre as nossas tropas. O comando do Batalhão, ali sedeado, é destituído por Spínola.

Junho

(i) Intensificação da guerrilha na região do Gabu (Piche / Zona de fronteira com o Senegal), obrigando a deslocações da população.

(ii) Resolução da Comissão de Descolonização da ONU, condenando a guerra colonial, levada a cabo poir Portugal, como crime contra a humaniddae e ameaça à paz e segurança.

21 - Kaúlza de Arriaga nomeado o comandante do Exército em Moçambique, na sequência da ocorrência do maior acidente da guerra colonial em África: 101 militares perdem a vida devido ao afundamento de uma batelão na travessia do Zambeze.

Guiné 63/74 - P75: Minas e armadilhas (David Guimarães)

Texto de David J. Guimarães, ex- furriel miliciano, de minas e armadilhas, da CART 2716, (Xitole, 1970/72):

Quando ocupámos o Xitole, em substituição da CART [2413 ] que lá se encontrava [1968/70], procedemos de imediato ao armadilhamento da zona limítrofe do quartel. Foram colocadas muitas minas anti-pessoais, de fabrico português, com espoletas de pressão, reforçadas com mais cargas explosivas ou não, conforme a maior ou menor importância do local. O objectivo era impedir a aproximação e a infiltração do IN, criando um zona de segurança à volta do quartel...

Também era frequente serem pendurados, no arame farpado, objectos diversos desde latas de coca-cola até garrafas de cerveja, que ao menor movimento tocariam umas nas outras, dando sinal pelo som de que o arame estava a ser mexido... Isto era importante especialmente de noite...

Este processo de alarme e prevenção efectivamente só ajudou a, de início, apanhar-se alguns sustos, pois que não funcionava na prática, como devia de ser. Enfim era a fé de cada um… Um sistema de segurança altamente falível, pois que todos os dias tínhamos barulhinhos esquisitos, o que era natural....

Quanto às minas e armadilhas, essas, sabíamos que estavam muito bem colocadas e, essas sim, davam uma certa segurança... Apesar de tudo eventualmente fazíamos armadilhamentos temporários, a mais longa distância, usando para isso a granada armadilha instantânea que qualquer combatente da Guiné conhecia.

Todas as granadas eram formadas por cápsula fulminante, 3 cm de cordão lento e um detonador que fazia explodir a carga base... Todos nós nos lembramos da mina defensiva, de composição B, e do seu uso, bem como das ofensivas, cilíndricas, de carga de trotil (TNT).

A que estou a referir era exactamente cilíndrica, como a ofensiva, só que enquanto as outras tinham a cor verde azeitona, esta era vermelha e mais de metade era envolta com espiral de metal. A maior diferença, e por isso se chamava instantânea, era não ter os três cm de cordão lento. O percutor, accionado, logo fazia explodir o detonador e a carga base. Esta mina era altamente mortífera devido ao seu poder de fragmentação, provocado pelas espiras em aço.

Bem, mas isto não é uma aula soibre minas e armadilhas. Serve apenas para contar uma estória, do início também da nossa comissão.... Uma estória de guerra ou uma contrariedade.

Um camarada nosso, o Quaresma, lá foi para o mato com um pelotão para colocar uma dessas granadas instantâneas num trilho. Tudo feito como devia ser, a mina colocada estrategicamente na base de uma árvore de copa frondosa e arame de tropeçar a atravessar o trilho. Era a assim que mandavam as regras aprendidas, teoricamente, em Tancos...

Bem, pelas 4 da manhã (e na Guiné, a essa hora, ouvia-se tudo), há um grande rebentamento para aqueles lados da armadilha... Não há dúvida, a guerra fez-nos ser tipo animais:
- Alto, alguém caiu, alto, alto!!!... - Já todos nos mordíamos para ir ver o sucedido.

Pela manhã, bem cedo, aí vai o pelotão de reconhecimento. Aproximação cautelosa ao local, sangue no chão...
- Boa, que isto funcionou! –

Mais sangue ali e acolá e eis que surge a vítima.... Um grande macaco, já morto... E não tinha camuflado!...
-Ora, foda-se!

A guerra tinha disto...

Em tempo: ironia do destino, o nosso camarada Quaresma acabou por morrer pela acção de uma granada dessas, a instantânea.. Explicarei mais tarde como foi.

David J. Guimarães


Notas de L.G.:

Sobre minas (usadas na guerra colonial, por um lado e outro), vd. os seguintes sítios:

Centro de Documentação 25 de Abril > Guerra Colonial > Armamento > Minas

Campanha Internacional para Banimento das Minas Antipessoais

Campanha Internacional para Banimento das Minas Antipessoais > Tipos de minas

Land Mine (LM) Reports > Portugal > 2000 e 2001 (em português).

Guiné 63/74 - P74: A nossa mobilização para o CTI da Guiné: CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71) (Luís Graça)

Extractos de: História da CCAÇ 12 (1969/71). Bambadinca: Companhia de Caçadores nº12. 1971. Capítulo I. 1-2.

Eis como era a máquina burocrática e totalitária que nos arrancou, meninos e moços, das nossas terras e nos levou para as bolanhas e matas da selvagem Guiné... Muitos dos combatentes da "guerra do ultramar" passaram por este percurso, aqui descrito ou advinhado, e nomeadamente os que foram parar ao CTI (Comando Territorial Independente) da Guiné: Campo Militar de Santa Margarida, viagem nocturna, de comboio, pela linha da Beira Baixa até ao Cais da Rocha de Conde de Óbidos, embarque no Niassa, adeus pai, adeus mãe, adeus amigos e companheiros, adeus minha terra que vou para longe, Tejo meu, Madeira, mar encapelado dos Açores e das Canárias, vómitos e saudades, África, Guiné, o insuportável calor de Bissau, LDG Rio Geba acima, Xime, Bambadinca, Bafatá, Contuboel...

Vale a pena conservar os tiques da linguagem castrense da época... Algumas siglas já não as sei descodificar... Era ainda o país de Suas Excelências. E do respeitinho. O país do Deus, Pátria e Família. Das missas campais e das paradas militares. Do patriotismo serôdio e decadente... Por muito estranho que pareça, era o nosso país, a nossa pátria, de há trinta e tal anos atrás...

Em 3 de Agosto de 1968, o velho abutre tinha caído da sua cadeira. Em 27 de Setembro o seu antigo delfim vem substituí-lo na Presidência do Conselho de Ministros. Em 1969 há ainda quem acredite, ao ler-se o Expresso, na "primavera marcelista"... Em Bambadinca, eu recebia o Comércio do Funchal... e creio que era o único da minha companhia, a par do capitão, que estava inscrito no recenseamento eleitoral, tendo votado nas fraudulentas eleições para a Assembleia Nacional em 26 de Outubro de 1969... Ou melhor: não sei se votei, se votei em branco ou se rasguei o boletim de voto... Creio que o candidato pelo círculo da Guiné era o Pinto Bull, acusado na época de ser um colaboraccionista... Morreu já em 2005, de certo modo injustiçado. Na época, acusei-o, apressadamente, de ser um Tchombé. L.G.


Mobilização para o CTI da Guiné

Pela nota-circular nº 00864/PM-Pº 18/2590 da Secção de Administração e Mobilização de Pessoal da 1ª Repartição do Estado-Maior do Exército, de 14 de Fevereiro de 1969, era dada ordem para se proceder a mobilização da Companhia de Caçadores 2590, destinada a reforço do Comando Territorial Independente (CTI) da Guiné, e tendo como Unidade Mobilizadora o RI [Regimento de Infantaria] 15.

A mesma nota determinava que os quadros da CCAÇ 2590 seriam do origem metropolitana, sendo o restante pessoal fornecido pelo recrutamento da PU [Província Ultramarina](89 praças, das quais 11 cabos).

A apresentação do pessoal mobilizado pela Metrópole fez-se no Campo Militar de Santa Margarida, de 3 a 8 de Março de 1969. Tirada a Escola Preparatória de Quadros e a Instrução de Aperfeiçoamento Operacional, os quadros da Companhia entravam de licença da NNAPU, de 31 de Março a 9 de Abril, ficando prontas para embarque a partir de 11.

A cerimónia de despedida realizou-se no átrio da Capela do CIM, com missa campal, bênção o e entrega dos guiões. 0 Exmº Comandante do RI 15 proferiu a alocução de despedida às tropas expedicionárias.

Tendo embarcado no Niassa a 24 de Maio, juntamente com outras Companhias independentes como a 2591 e 2592 (futuras CCAÇ 13 e 14), chegamos ao CTI da Guiné em 29, pelas 21 h, tendo desembarcado no dia seguinte de manhã.

A 31, no Depósito de Adidos, Sua Excia. o Comandante-Chefe das Forças Armadas, Brigadeiro Antonio de Spínola, passa revista às tropas em parada e dirige-lhes palavras de boas-vindas.

Colocados em Contuboel (Sector L2, Zona Leste) a fim de darmos a segunda fase de instrução ao nosso pessoal africano, embarcamos em LDG [Lancha de Desembarque Grande] para o Xime, a 2 de Junho, tendo seguido depois em coluna auto até ao local destinado.

Os quadros da CART 2479 (CART 11) já tinham dado, entretanto, a instrução básica àsas nossas pracas africanas, de 12 de Março a 24 de Maio, em Contuboel. A cerimónia do Juramento de Bandeira realizou-se em Bissau, a 26 de Abril, na presença de Sua Excia. o Comandante-Chefe.

A instrução da especialidade teve início imediatamente a seguir à nossa chegada a Contuboel. Ao longo de um mês e meio, em plena época das chuvas, os nossos graduados aprenderam a conhecer os elementos dos seus futuros grupos de combate.

Integrada na "nova força africana", a CCAÇ 12 receberia a visita, durante a semana de tiro, de Sua Excia. o Brigadeiro António de Spínola que se inteirou pessoalmente do nível de instrução ministrada as nos­sas praças africanas.

Os exercícios finais da especialidade efectuaram-se de 6 a 12 de Julho, a 10 km ao norte de Contuboel.

A 18 de Julho, finda a instrução, a CCAÇ 12 é dada como operacional, sendo colocada em Bambadinca (Sector L1, Zona Leste).



N/M Niassa

Niassa > Navio misto (carga e passageiros), de 1 hélice, construído em 1955, na Bélgica, rgistado no Porto de Lisboa, e abatido em 1979; comprimento: mais de 151 metros; arqueação bruta: c. 10.742 toneladas; potência: 6.800 cavalos ; velocidade normal: 16,2 nós; alojamentos para 22 em primeira classe, 300 em classe turistica, no total de 322 passageiros; nº de tripulantes: 132; armador; Companhia Nacional de Navegação - Lisboa.

Fonte: Navios Mercantes Portugueses (2004) (Com a devida vénia...)


Notas do autor (L.G.) desta história (não autorizada...) da CCAÇ 12:

1. Transporte marítimo de tropas para o Ultrmar:

"Em finais dos anos 50, depois de investimentos públicos de grande envergadura, a marinha mercante portuguesa teve o seu desenvolvimento máximo. Contava, nomeadamente, com 22 paquetes, no total de 167 000 toneladas. Entre eles estavam os quatro gigantes: Santa Maria, Vera Cruz, Príncipe Perfeito e Infante D. Henrique, com cerca de 30 000 toneladas cada, capazes de transportar mias de 1000 passageiros ou mais de 2000 soldados.

"Muitos destes paquetes foram requisitados em diversas ocasiões para transporte de tropas, muito especialmente na fase inicial da guerra, e as restantes unidades da marinha mercante seriam essenciais para manter o esforço em África. Os paquetes mais requisitados na ligação a África foram o Vera Cruz, o Niassa, o Lima, o Império e o Uíje.

"O Niassa foi o primeiro paquete afretado como transporte de tropas e de material de guerra, por portaria de 4 de Março de 1961, mas seria o Vera Cruz a fazer mais viagens, chegando a realizar 13 num ano. Em 1961, efectuaram-se 19 travessias por nove paquetes em missão militar e o ritmo aumentou à medida que a força expedicionária em África crescia: em 1963, tinham-se efectuado 27 viagens por oito paquetes e, em 1967, 33 por nove. Até 1974, o mar era a grande via de ligação ao império, tendo mais de 90 por cento da carga e de 80 por cento do pessoal metropolitano empenhado na guerra sido transportado em navios" (Fonte: Centro de Documentação 25 de Abril).


2. A presença de Spínola, ainda periquito e brigadeiro, na cerimónia de juramento da bandeira dos soldados da PU (província ultramarina) da Guiné não deixa de ser significativa do seu empenho pessoal no projecto de africanização ou, melhor, guineização da guerra. A CAÇ 12 é uma das primeiras unidades da "nova força africana". Spínola visitar-nos-ia várias vezes, incluindo na nossa semana de campo, em Contuboel. Tal gesto tinha um especial significado para as nossas praças africanas e para alguns de nós, quadros metropolitanos.

Confesso que nunca simpatizei com a personagem. Digo-o, sem com isso querer escamotear ou ignorar o seu papel nas mudanças operadas em Portugal com o 25 de Abril de 1974, nem muito menos ofender os seus admiradores. Para todos os efeitos, é uma figura de referência nacional, e como tal a sua memória deve ser respeitada. Competirá aos historiadores definir o seu papel da nossa história.

3. Na época em que demos a instrução de especialidade às nossas tropas africanas (de Junho a meados de Julho de 1969), Contuboel era, ainda era, um oásis de paz. Lá ainda se podia brincar às guerras num raio de alguns quilómetros, no meio de uma vegatação luxuriante. Lembro-me de haver lá uma serração de um tuga, o que indiciava abundância de madeiras exóticas.

Ao longo dessas curtas e rápidas semanas aprendemos a conviver com os nossos soldados fulas (e alguns futa-fulas, dois mandingas e um mancanhe, num total de cerca de 100 homens). A maior parte não falava o português, o que dá uma ideia do grau ou do esforço penetração da nossa cultura, no leste da Guiné, depois de "cinco séculos de missão civilizadora"...).

4. Nestas condições, a instrução de especialidade, como se deve imaginar, não foi nada famosa. Estávamos a milhares de quilómetros do nosso ponto de partida, o Campo Militar de Santa Margarida, onde, ainda me recordo, também brincámos às guerras, e fizemos os nosso roncos (no essencial, assalto aos acampamentos do IN a fingir, e pilhagem de tudo o que era bebível e comestível).

5. Em plena época das chuvas, ainda em fase de adaptação ao terrível clima da Guiné, hostil a qualquer tuga, em farda nº 3 , espingarda automática G3 ao ombro e cartuchos de salva nos bolsos (à cautela, não fosse o diabo tecê-las, os graduados, tugas, levavam alguns carregadores com bala real...)... Estão a imginar esta guerra-de-faz-se-conta ?

Era ainda a dolce vita da Guiné (como o autor escrevia no seu diário de um tuga), aqui e ali perturbada peals estórias que a velhice nos contava, a nós periquitos, de Madina do Boé e de Guilege, "lá longe no sul"...

A companhia de tugas aquartelada em Contuboel havia participado na dramática operação de retirada do campo fortificado de Madina do Boé, que custara a vida a mais de meia centenas de militares portugueses, em finais de 1968; e também na grande Op Lança Afiada, que durante uma semana, em março de 1969, varrera todo o triângulo Bambadinca-Xime-Xitole até ao Rio Corubal (efectivos das NT: 1300 homens...). Outra estória para contar...

6. A 18 de Julho de 1969 , a futura CCAÇ 12 (que, por enquanto, ainda era a CCAÇ 2590) é dada como operacional. Atendendo à origem étnico-geográfica dos seus nharros, por sugestão do Com-Chefe, ficamos radicados em chão fula, às ordens do Batalhão de Caçadores 2852 (1968/70), com sede em Bambadinca, esse mesmo, o batalhão do valoroso Ó-Pipas-Não-Tenhas-Medo! ... Outra estória para contar, com tempo e vagar.

7. A 21 de Julho, menos de dois meses depois da nossa chegada à Guiné, quando ainda nem sequer tinham sido distribuídos os camuflados à nossa tropa africana, temos a nossa primeira "saída para o mato" (sic) , seguida do nosso "baptismo de fogo"...

De facto, em Madina Xaquili, temos o nosso primeiro ferido grave, evaiuado para Bissau; e a 28, mais dois feridos graves, numa ataque nocturno àquela aldeia fula que será definitivamente abandonada pela sua popolução e, mais tarde (em Outubro), pelas NT.

Para três dos nossos soldados africanos, a guerra havia acabado, mal começara: ficarão definitivamente inoperacionais e/ou incapacitados, não sem que um deles tenha de passar, primeiro, por outro inferno, o do Hospital Militar da Estrela, em Lisboa...

Pergunto-me, com amargura, o que será feito de vocês, valemets soldados ? Tu, Sori Jau (3º Gr Combate, evacuado para o HM 241); tu, Braima Bá (inoperacional) e tu, Udi Baldé (evacuado para Lisboa e retornado a casa com 35% de incapacidade física), ambos do 2º Gr Comb ?

Madina Xaquili é uma estória para contar noutro dia. Mas já agora saibam onde fica(va): perto de Dulombi, no sub-sector de Galomaro que, se não me engano, foi depois transformado em Sector L5 da Zona Leste. Contuboel fazia parte do sector L2.

Guiné 63/74 - P73: Antologia (4): 'Homenagem aos mortos que tombaram pela pátria': Geba, 1995 (Marques Lopes)

Texto seleccionado e enviado por A. Marques Lopes, ex-alferes miliciano da CART 1690 (Geba, 1967):

A jornalista Diana Andringa esteve na Guiné em 1995, em trabalho profissional, e passou por Geba. Sobre essa passagem escreveu no jornal Público, de 10 de Junho de 1995, o texto que vos vou mostrar, com a sua autorização (até me pediu que lhe enviasse o cópia, que já não possui o original). Vai também um croqui do monumento a que ela se refere. Em 1998, quando lá estive também verifiquei que o monoumento estava destruído, com muita pena minha.


Geba, 1995, por Diana Adringa

Mortos. Estes nomes não podem ser senão de mortos. Guimarães, ...ndo Fernandes. Carlos A. Peixoto. ...ul C. Ferreira, ...ostinho Câmara, ...o Alves Aguiar, ...ime M.N. Estevão, ...sé A. V. Sousa, ...tónio D. Gomes.

Tudo em redor, aliás, fala de morte. As paredes em derrocada do que terá sido um quartel português. As viaturas a apodrecer sob o intenso sol africano. Os cacos de garrafas de cerveja. (Bebidas para enganar o medo? Suspensas por arame para, tinindo umas contra as outra, despertar os que dormissem ainda?).

E esta pedra caída, tumular.

Vivos, apenas os meninos que se cutucam, sorrindo, a olhar para nós, estranhos fotógrafos deste cemitério de metal e pedra.

A outra pedra, de pé, tem nomes de cidades, vilas, aldeias: Lisboa. S. Tirso. Moçâmedes. Alcobaça. Madeira. (Nas ilhas não haverá também povoações?) Ponte de Lima. Vila Nova de Ourem. Vila Pouca de Aguiar. Bissau. O tempo, ou a guerra, quebrou-lhe a parte de cima, e agora é uma pirâmide truncada, rasgada do lado direito, onde se inscrevem as primeiras letras dos postos, ou dos nomes, dos naturais dessas terras, que presumimos mortos.

De novo a primeira pedra, a que jaz por terra. A frente dos nomes dos que se presumem ter morrido, inscrevem-se o que supomos serem as datas dessas mortes: 1967, 1968. A última, na pedra, não em tempo, sobressalta-me: 21 de Agosto de 1967. Fiz vinte anos nesse dia. Nesse mesmo dia morreu António D. Gomes. Teria feito, sequer, os vinte anos?

Lembro-me de ter feito vinte anos. Das prendas dos meus pais. E pergunto-me como terão os pais do soldado António D. Gomes suportado a morte do seu filho. Se terão chegado um dia a conhecer este local onde uma pedra caída por terra assinala a data em que o perderam.

"Nós enterramos os nossos mortos nas nossas aldeias, ao lado das nossas casas... Os portugueses deveriam ter, também, um lugar para honrar os seus mortos, os que morreram aqui, durante a guerra", dissera-me, algumas horas antes, um antigo adversário. Aqui. Tão longe de casa, tão longe dos seus. Longe de mais para que possam trazer-lhes flores, arranjar-lhes as campas, preservar-lhes a memória.

Olho de novo as pedras, tentando compreender como se juntavam. Será a que jaz por terra a continuação da outra? Releio as terras e os nomes. Câmara pode ser da Madeira... Será mesmo? Sim. Lá estão em frente de Madeira o posto, sold., e as primeiras letras do seu nome: Ag...-

Agora cada morto tem o posto e a terra onde nasceu, excepto o primeiro, que parece ser de Lisboa, mas cujo posto e nome próprio se perderam, e João Alves Aguiar, de Ponte de Lima, a que o tempo corroeu o posto. Dois alferes, um furriel, sete soldados. Em cima, fragmentado, aquilo que parece a indicação do regimento a que pertenciam: ...RAL-1. ...Combate.

Postas assim as duas pedras em conjunto, apercebo-me de que o soldado que morreu no dia dos meus vinte anos era de Bissau, e de certa forma isso tranquiliza-me, porque não está, afinal, tão longe de casa- como se isso tivesse alguma importância depois de se estar morto, como se me tivesse contagiado essa lista de terras inscrita sobre a pedra, ou outras, sobre outras pedras encontradas ao longo da viagem, onde outros soldados, cabos, furriéis, escreveram como se a naturalidade fosse a sua primeira identificação e a mais forte, o nome da terra natal, primeiro, e só depois o posto, o nome, a data em que escreviam, por vezes uma frase de desesperança, algo como "até quando Deus quiser" — como que temendo que esse "até" fosse curtíssimo, coisa de poucas horas, minutos, talvez, e houvesse que inscrever urgentemente, sobre esses caminhos, placas, pontes, esse sinal de vida e de memória.

Parece estranho que alguém possa ter tido medo aqui, neste local tão calmo, com o tempo suspenso e o silêncio apenas cortado pelo ruído persistente das cigarras. É difícil imaginar, enquanto os meninos se agrupam à nossa volta, curiosos do que fazemos e olhamos, que em tempos houve aqui tiros e gemidos — e homens cumprindo a triste tarefa de escrever sobre estas pedras os nomes dos companheiros mortos.

Um pouco mais adiante, numa das paredes que ainda se mantêm de pé, alguém desenhou um rinoceronte e um leão. Tê-los-á visto realmente? Tê-los-á imaginado? Em frente, sobre uma paisagem aparentemente urbana de prédios e chaminés, voa uma ave. Uma gaivota? Uma pomba? Um símbolo de paz? Um piscar de olho a esse adversário que, a todo o momento, lembrava que a sua luta era "contra o colonialismo português e não contra o povo de Portugal"? E que, muito antes de disparar o primeiro tiro, advertira: "A via pela qual vai ser feita a liquidação total do colonialismo português na Guiné-Bissau e em Cabo Verde depende exclusivamente do colonialismo português. (...) Ainda não é tarde para proceder à liquidação pacífica da dominação colonial portuguesa nas nossas terras. A menos que o Governo português queira arrastar o povo de Portugal para o desastre de uma guerra colonial."

"O desastre de uma guerra colonial". Legenda para fotografia de pedras com listas de mortos, veículos destruídos, quartéis em derrocada — e, contrastando, os sorrisos dos meninos a dar-nos as boas-vindas.

Todos os anos, pelo 10 de Junho — esse dia que o regime colonial-fascista celebrava como Dia da Raça, e em que condecorava, no Terreiro do Paço, os pais, as viúvas e os órfãos dos militares caídos em combate —, ressuscitam algumas vozes saudosas do Império, a criticar a descolonizaçáo e a independência das ex-colónias portuguesas. Fazem-no, muitas vezes, usando a memória dos soldados mortos na guerra colonial. Escamoteando sempre que essas mortes se deveram, exclusivamente, à intransigência de um regime incapaz de compreender a inevitabilidade das independências, e à teimosia de um homem que, nunca tendo posto um pé em África, cuidava saber, bem melhor do que eles, o que melhor convinha aos africanos.

Releio a lista de mortos sobre a pedra e pergunto-me se, vinte anos depois, não será tempo de aceitar, claramente, que foram esses os únicos responsáveis dessas mortes... ».

Diana Andringa. Público. 10 e Junho de 1995.

quarta-feira, 22 de junho de 2005

Guiné 63/74 - P72: Contuboel, Sonaco, Gabu (Humberto Reis)

Diz-nos o Humberto Reis, em mensagem enviada hoje, e a propósito do texto que inserimos ontem sobre o fanado em Geba, nos finais do Séc. XIX:

"Existe, pelo menos em 1969, uma localidade chamada Sonaco, a leste de Contuboel. Era um local sem quaisquer problemas e onde fui 2, ou 3, vezes em passeio, no tempo em que a CCaç 12 esteve em Contuboel [de 2 de Junho a 18 de Julho de 1969, na fase de instrução de especialidade dos nossos soldados africanos].

"É mais perto de Bafatá do que de Nova Lamego (Gabu), a velha Lamego conheci eu em 68 [onde tirei a especialidade de operações especiais].

Um abraço a todos.
Humberto Reis


Notas de Luís Graça:

No mapa da Guiné-Bissau, da Travelpost.com, aparece Contuboel como Contuba El (julgo ser gralha). Sonaco não consegui descobrir neste mapa (não vem na lista das povoações da Guiné-Bissau, tal como não vem Geba).

No Multimap.com podem ver a localização de Nova Lamego (ou Gabu). Este mapa tem um zoom que vai até à escala de 1:200.000. Há diversos mapas locais da Guiné-Bissau disponíveis na página Luís Graça & Camaradas > Subsídios para a História da Guerra Colonial > Guiné (1). Entre eles está Contuba El (a nossa Contuboel).

A localização destas povoações, que formam um um triângulo (Contuboel, Sonaco, Gabu) está bem bem visível no mapa da Guiné-Bissau, que consta da página da OMS . Nesse mapa, também são bem visíveis outras localidades da Zona Leste, que temos aqui falado, ou onde estivemos, ou por onde passámos, tais como Bambadinca, Xime, Xitole, Galomaru, Geba, Bafatá, etc.

Quando estive em Contuboel, com o Humberto Reis e o resto da malta da CCAÇ 12, não cheguei ir a Sonaco. Tal como não fui mais longe. Pelo menos não tenho ideia.Contuboel era, isso, sim, uma região paradisíaca naquele tempo...

terça-feira, 21 de junho de 2005

Guiné 63/74 - P71: Antologia (3): Sócio-antropologia da família e da mulher em Geba, nos finais do Séc. XIX (Marques Lopes)

Textos seleccionado e enviados por Marques Lopes (que foi alferes miliciano da CART 1690, em 1967, em Geba):

1. A circuncisão e a família em Geba, por Marcelino Costa Ribeiro (1885)

Há um péssimo costume gentílico inveterado no povo do presídio de Geba, o qual consiste em determinado tempo aplicar a circuncisão a ambos os sexos, operação a que em Geba dão o nome de fanado.

Esta operação, apesar de ser simples, carece de algum cuidado, e não é só empregada pelos selvagens, mas também por muitos da praça de Geba, que infelizmente têm o nome de cristãos e civilizados.

Na actualidade aquele costume está mais em uso entre as supostas donzelas, vulgo bajudas, de 12 a 26 anos, do que entre os mancebos, devido talvez à luz da civilização, que vai pouco a pouco penetrando nas camadas sociais, e que se prega na boa escola confiada ao digno missionário e pároco distinto, o sr. Luiz Baptista do Rosário e Sousa.

Infelizmente as bajudas não têm quem lhes ensine as boas doutrinas, adoptadas na lei de 1809, porque as suas amas, vulgo mestral, passaram pelo mesmo caminho, e deixam que as suas educandas sigam à risca as leis gentílicas, adoptadas pela nobre universidade de Sonaco (1) , aonde vão instruir-se.

Quem conhece Geba a fundo, e está em dia com os péssimos costumes ali adoptados, sente logo a diferença no número da população que reside no presídio, sem que ninguém lhe diga nada; esta diferença é sempre notável nos princípios de Dezembro, época em que as supostas donzelas vão para diferentes povoados perto do presídio, sujeitarem-se à circuncisão.

Algumas a quem os pais impedem a ida, lamentam a sua sorte, metem empenhos, e quando não conseguem a licença de se irem circuncidar, fogem aos pais, e vão para o sítio aonde está constituída a liga, sujeitar-se à operação ; evitando por este modo que amanhã sejam consideradas na alta sociedade de Geba como olmo (não circuncidadas). Eis aí a maneira como são educadas em Geba muitas, a maior parte, das raparigas oriundas daquele presídio, e filhas de pais da classe de grumetes (2).

Agora direi alguma cousa acerca dos mesmos grumetes, explicando a maneira como eles adquirem numerosos filhos e constituem família, sem serem muitos deles verdadeiros pais. É costume e uso inveterado entre os grumetes no presídio de Geba, terem 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8 mulheres. A mais antiga em casa é sempre tida como dona da mesma, e poucas vezes se ausenta ; as outras quase nunca param em casa, vão para Fulacunda (3) (pequena povoação dos gentios fulas) fazer negócio, e aí se conservam.

Estas mulheres, chegando a Fulacunda ao mesmo tempo que se ocupam da venda de sal, tabaco e outros artigos que levam para os gentios, vendem-se também a si mesmas. No fim de alguns anos, algumas voltam à praça com 2 filhos, outras com 3, outras com 4, outras com 5, os quais, longe de serem mal recebidos em casa dos supostos pais, são tratados por estes como verdadeiros filhos!

Aqueles pequenos crescendo, começam a apelidar-se com o mesmo apelido; se os supostos pais se chamam Sambú, todos se apelidam Sambú, e se forem tio-Chico, todos seguem o mesmo, etc. No recenseamento que se fez em Geba no ano de 1882, notei na relação dos recenseados alguns grumetes com 15 filhos, outros com 19, outros com 21, etc. Explica-se pela circunstância que acima mencionei.

Marcelino da Costa Ribeiro (Geba—Guiné), in Novo Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro. 1885.277-278.


Notas de Marques Lopes:

(1) Será Sonaco na zona de Gabu? É que também há Sonaco, no Senegal, perto de Barro, e de que já vos falei (ML).

(2) Os grumetes eram africanos que, vivendo nas povoações luso-africanas e adoptando com grande liberdade os hábitos cristãos e os modos lusitanizados de ser, operavam como remadores, construtores e pilotos de barcos, carregadores e auxiliares no comércio. Como categoria sociológica, eles desempenhavam um papel chave no frágil compromisso em que a sociedade crioula se fundava, sendo os intermediários que faziam a delicada mediação nos relacionamentos entre a minoria de comerciantes europeus e luso-africanos e os régulos das sociedades tradicionais africanas que produziam bens para exportação (Wilson Trajano Filho, da Universidade de Brasília, in Outros Rumores de Identidade na Guiné-Bissau).

(3) Há uma tabanca Fulacunda, na zona de Geba; há outra Fulacunda na zona de Buba; e há também uma Fulacunda na Casamanse, Senegal (ML).


Observações de L.G.:

Sobre a polémica cerimónia do fanado, vd. o meu post, de 4 de Maio de 2005 >
Guiné 69/71 - XII: O silêncio dos tugas face à MGF (Mutilação Genital Feminina)


2. Beldades de Geba, por Costa Pessoa (1882)

Quando saí de Lisboa em Outubro de 1879 com direcção á Guiné portuguesa, julgava, senão impossível, pelo menos difícil encontrar indivíduos da raça preta que me parecessem bonitos; mas logo que cheguei a Bolama e Bissau desenganei-me e muito mais depois que, navegando no rio Geba, vim parar à povoação deste nome.

É realmente interessante ver chegar a este presídio todos os dias grandes ranchos de fulas, fulas-forras e mandigas (mouras) dentre as quais aparecem tipos tão bonitos e regulares, que muitas damas da nossa terra invejariam (salvo a cor).

Principalmente dentre as fulas-forras, tribo de cor bronzeada, aparecem raparigas de rosto comprido, nariz aquilino, pequeno, lábios delgados, olhos vivos, apresentando um conjunto agradável e simpático.

O seu vestuário é o mais simples possível, consiste unicamente em um pano de algodão de 0,5m de largura, algumas vezes enfeitado com contas, que passam à volta da cintura. No pescoço e tornozelos trazem também muitos fios de contas e nos pulsos quantidade de manilhas. Do cabelo fazem um penteado em forma de barco com a quilha para cima, que vai desde o alto da cabeça até à nuca, deixando áà volta na testa e nas fontes pequenas tranças a que prendem fios de comas com moedas de prata nas extremidades.

Deu-se um dia comigo um caso engraçado : Estando eu sentado à porta de um negociante deste presídio, vi chegar um rancho de fulas que vinham fazer o seu negócio. E entre elas havia uma que sobressaía mais do que qualquer outra por ser mais bela e vir mais enfeitada. Chamei-a : ela aproximou-se e comecei então a examiná-la sem que ela a isso se opusesse; porém uma rapariga cristã, que se achava entre elas, diz-lhe :
— Repara que isto não é homem, é um boneco de molas movido por aquele (designando o negociante).
A fula retorquiu-lhe :
— Não, ele fala, tem olhos e cabelo.
— Tudo é postiço, e não diz coisa que se entenda, respondeu a cristã. Tu percebes alguma cousa do que ele diz ? Já viste homem tão branco ? (Eu era o único europeu que então me adiava em Geba, mas em Portugal não passava por ser dos mais brancos).

A esta última quartada fugiu a rapariga. Não se aproximou mais de mim, e hoje seguem todas aquele exemplo.

Costa Pessoa (Geba — Guiné), in Novo Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro. 1882. 27/28

Guiné 63/74 - P70: Por uma boa causa, a Plataforma Bafatá... (David Guimarães)

1. 21 de Junho de 2005.

Meus caros senhores,

Sou jornalista e estou a preparar um trabalho sobre a arquitectura nos países lusófonos, incluindo a componente de restauração do património histórico e cultural, que está a ser feito ao abrigo da cooperação com Portugal. Este trabalho inclui a campanha da Plataforma Bafatá para a recuperação da cidade.

Tendo visto as vossas imagens venho por este pedir a permissão do autor David Guimarães para a sua publicação na revista Espaço África.

Aguardo a autorização do(s) autor(es) por esta via. Com os meus cumprimentos

João Carlos

2. A resposta do nosso David Guimarães não se fez esperar:

"Amigo João Carlos, esteja à vontade, pode utilizar as minhas fotigrafias. Querendo lhas enviarei.
Gostava de ter essa revista. Tenho mais fotografias de Bafatá" .

3. Como vêem, os nossos escritos e as nosssas fotos podem servir uma boa causa...

Guiné 63/74 - P69: Fotomemória(s) (A. Marques Lopes)

[O Alferes miliciano Lopes, da CCAÇ 3, em Barro, 1968, com o seu guarda-costas.© Marques Lopes]

Texto de A. Marques Lopes, ex-alferes miliciano da CART 1690 (Geba, 1967) e da CCAÇ 3 (Barro, 1968):

1. Caros amigos:

Tenho-vos enchido de imagens e fotografias, porque achei que são importantes para dizer da nossa história vivida. 

Mas também porque sinto alguma dificuldade em pôr por escrito essa vida. Por um lado, o receio de envolver nela os seus intervenientes de uma maneira que a forte impressão em mim existente possa retratar, se calhar, não da forma mais justa; por outro lado, e influenciando ainda o aspecto anterior, a perplexidade que esses acontecimentos tão próximos ainda (nunca despegaram...) e sempre presentes continuam a provocar no meu espírito. 

Durante muito tempo tenho hesitado entre a narrativa histórica dos acontecimentos que me atormentam e um qualquer tipo de alegoria, ou ficção, que deles poderia tirar.

Em qualquer dos casos, nunca foi minha intenção enveredar pelo tom épico, patrioteiro, ou pelo panegírico a oragos guerreiros. Os dados já estão lançados e a minha constante vivência dos factos permite-me avaliá-los com realismo, com prospectiva e com alguma contrição. A temeridade não me falta, mas tenho também um maior grau de experiência, o que me permite escolher melhor os modos de actuação.

Mas creio, ao mesmo tempo, que a verdade é, sem dúvida, mais forte que quaisquer algemas. Não há prisão nem violência que possam banir tudo o que de verdade existe; não há perseguição que apague a evidência; não há acção presente que possa negar existência à sua causa passada.

Bem, isto é conversa. O que vos quero efectivamente dizer é que mostrei as minhas fotografias de Barro, as que vocês conhecem, a uma amiga muito chegada e lhe pedi para fazer um comentário sobre elas. Ela esteve de acordo que eu vos desse conhecimento desse comentário e é este que eu peço que leiam. Ela não quis que eu dissesse o nome dela, porque é uma pessoa muito envergonhada. Ei-lo:

2. «Não se pode possuir a realidade, mas pode possuir-se (e ser-se possuído por) imagens" (Susan Sontag).

"Fotografar é o acto pelo qual o fotógrafo capta um momento. Neste caso, o fotógrafo que faz a fotografia (porque não a tira, não é roubada, ela é antes um acto de colaboração) foi-o a pedido dos fotografados. O seu objectivo era obter um registo duma vivência única e ao mesmo tempo diversa para cada um dos elementos do grupo. A vivência de uma presença na guerra, numa terra distante, na Guiné, com aquele grupo unido por secretos laços de camaradagem.

"E porque se trata de uma relação única, aquela fotografia é um marco e também uma marca. Ela está ali a consubstanciar todos as pormenores do momento: o número de pessoas, aqueles mesmos, não outros quaisquer, aquele lugar, as sensações, os sentimentos, as emoções, o silêncio.

"Ela está ali há mais de 30 anos, testemunho vivo, porque todos os testemunhos são vivos apesar daquelas imagens petrificadas pelo tempo, mas reveladoras, prenhes de uma vivência, uma voz que se agiganta quando se folheia o álbum:
- Este era um grupo muito especial. Éramos um alferes, dois furriéis, um cabo e seis soldados. Costumávamos fazer incursões no Senegal, para, nas aldeias, roubar vacas para comer.

"Havia essa necessidade, vital como a de comer, de, no futuro, disso fazer prova à memória, por vezes traiçoeira. Mas também de possuir, em substância, aqueles momentos fugazes, de secretos laços de camaradagem. É como olhar-se no espelho e observar-se ali com os outros. Ali estou eu. Ali, naquele lugar concreto, aquela figura. Eu que não me posso ver, que só me construo por e na relação com os outros, que só me observo de dentro para fora. A fotografia é o espelho, dá-me a minha imagem com os outros, reflecte-me, constrói-me uma figura. E ao vê-la, por alastramento, eu acrescento-lhe o conteúdo, impregno-a dos sentimentos e emoções que são o lastro da minha memória.

"É esta relação dialéctica entre a fotografia e o fotografado, mais tarde observador também, que dá significado à fotografia, que a faz pulsar, mesmo que aparentemente morta, num vaivém entre um passado que foi presente e um presente que foi futuro, numa atmosfera irreal.

"E ali estão todos, na pose que idealizaram para ficarem fixados naquele presente e serem transportados ao futuro. De acordo com a hierarquia, o alferes no eixo vertical central, em posição de destaque, em pé. Em volta, descendo na hierarquia, os furriéis e, alargando-se para o eixo horizontal, mais igualitário, os soldados, formando uma pirâmide de base alargada [refere-se à fotografia em que estou com os Jagudis]. O grupo ocupa toda a fotografia. É um grande plano. O que importa para a memória do futuro, lá longe, no continente, é o grupo, a sua ligação, as suas recordações. A fotografia é assim a reificação duma relação estatificada, com aquelas pessoas, num determinado tempo (1968) num determinado local, em Barro, quase esquecida no mato, na guerra colonial, na Guiné. Ao fixar aquele momento, o fotografado, por acção do fotógrafo, quis construir um monumento que vencesse o esquecimento.

"Na sociedade de consumo, as fotografias consubstanciam a massificação dos heróis: do herói individual, de cada momento, de cada vivência única, das vivências únicas que se multiplicam e que, por serem únicas, necessitam de registo. A sua multiplicação permanente toma-as fugidias e por isso urgentes de memória. Todo o acto na vida do indivíduo se inflaccionou em rito de passagem. É o nascimento, a saída da maternidade, a 1ª mamada, o 1º banho, a 1ª papa, o 1° mês o 2°mês, do 1º dente, o 1º passeio, o 1º brinquedo, o brinquedo preferido. São tantos os momentos a registar, são tantos os marcos a assinalar! Tudo se esvai a uma velocidade impossível de estancar. A falta de tempo para agarrar o momento erige um único em monumento. Agarra-se pela fotografia. Pretende arrumar-se a memória. Quando dele necessitarmos, está à nossa disposição, arquivado no álbum para nos aclarar a memória.

"A linha de montagem da produção não o é só para a mercadoria, é também para a memória. Por todo o lado, em qualquer ocasião, por mais banal que nos pareça, a câmara lá está, pronta a produzir memória. É só carregar no botão.

"Também aquele foi único. Único para cada um dos protagonistas. A câmara imortalizou-o. O futuro seria de ausência. É a nostalgia dessa ausência o que reúne aquele grupo de homens, com ar sério, solene, numa postura de alguma descontracção física, mas de preocupação interior. Nas suas mentes perpassam imagens de separação. Os olhares estão distantes, evitam o confronto com a câmara, como que a recusar um certo mergulhar no seu interior, o desvendar do que lhes vai na alma. Ou evitam o confronto com o futuro, consigo próprios, quando observadores da fotografia. A recusa é esquiva, fugidia. No entanto, ali ficou, consubstanciada. Só dois olhares enfrentam, com frontalidade, essa incógnita.

"No limite esquerdo, uma cabeça, quase invisível, espreita. O seu corpo, bem visível, parece nem lhe pertencer, tal é a preocupação de evitar o confronto com a câmara. Aliás, toda aquela área quase parece tentar escapar-se da fotografia. Os tronco que constituem a paliçada como que se sobrepõem aos soldados, tomado-os ainda mais reduzidos. No limite direito, pelo contrário, o alferes em pé, isolado, quase que constitui uma outra unidade significante. Há uma distância física que o separa dos restantes. Não é muita. Possivelmente a câmara não lhe deu tempo de ajustar a pose. Por outro lado sente-se um certo desprendimento, algum desinteresse. Este espaço visível poderá ser o reflexo duma demarcação territorial psíquica, de um menor envolvimento.

"Um outro elemento que nos salta à vista é o facto de os únicos três brancos do grupo, o alferes e os dois furriéis, se encontrarem todos em posição de destaque, o que corresponde à realidade hierárquica. A incorporação no exército traduzia-se num rendimento muito acima da média. Os autóctones, dada a situação de guerra, tinham poucas oportunidades de trabalho, ainda por cima bem remunerado, ali tão longe da capital, nas aldeias praticamente perdidas na mata. A guerrilha, bem armada, e também com o apoio da população e até de alguns militares incorporados, conseguia um equilíbrio de forças, muitas vezes instável, que levou ao reconhecimento, por parte das chefias portuguesas, de que aquela guerra era um beco sem saída.

"Quando, em 1998, o nosso fotógrafo volta à Guiné para agarrar um pouco dessa vida perdida no mato, aos 20 anos, e também para arrumar as ideias sobre o livro que iniciou sobre a sua experiência na guerra, lá estava o mesmo chefe de tabanca, agora com 80 anos, forte como um baluarte na sua coerência, outrora apoiante da guerrilha e do PAIGC, gerindo diplomaticamente a amizade com o militar para mais facilmente jogar o xadrez da revolução, agora o ancião, o conselheiro, o sábio, de alguma forma amargurado com os trilhos perdidos após a independência.
"E este encontro foi o reviver duma relação de amizade urdida em muitos meses de comunhão de um espaço, sedimentada por uma identidade de valores que, afinal, estavam dos dois lados naquela guerra, sem sentido também para muitos daqueles que a faziam.

"Guerra que está presente em todas as fotografias. Pressentimo-la pelas fardas, a paliçada, as armas. Mas neste caso a exibição da metralhadora e do morteiro é como que uma espécie de encenação. Ela não me puxa pelo fio das minhas lembranças. O ar despreocupado dos fotografados dá-nos a ideia de que tudo é uma brincadeira e possivelmente em muitos dos momentos assim teve que ser encarada aquela situação de pressão psicológica extrema. A brincadeira com a função de descomprimir, fazer esquecer, para se aguentar a tensão dos momentos de violentação que eram os ataques, e as mortes daí decorrentes.

"Fotografias que me despoletaram a recordação de guerra, a real, não a da História ou das histórias, a guerra dos homens concretos, aquela que nós sentimos, que conhecemos, quando para isso estamos maduros. Até lá, há todo um caminho a percorrer, de muita surdez, ou falta de vista, incompreensão. Porque compreender é ligar, envolver, tomar para nós. E só quando somos capazes de pegar nessa realidade do outro, amassá-la com a nossa, deixar levedar como o pão, é que então estamos capazes de entendimento, de compreensão. Processo difícil, longo, que necessita de um grande esforço de deslocação, de descentração, sem no entanto se perder o Norte, a nossa bússola, a nossa identidade, os princípios, os valores, corporizados fundamentalmente no respeito pelo Outro.

"A conjugação do olhar directo com a fuga do olhar, as fisionomias sérias, o olhar carregado, os traços bem marcados do soldado negro, sentado, são sinais de dúvida, de incerteza. As imagens da minha infância agigantam-se. Aos meus ouvidos, o ressoar de Angola é nossa ao som abafado de botas a marchar em sintonia.

"Guerra era aquele som, misturado com mensagens de Natal na rádio e na televisão, e os navios apinhados de homens a largar o cais e muitas mãos no ar a acenar, e o filho daquela vizinha da minha avó que veio fechado num caixão, tinha eu 15 anos. Ele que nunca tinha saído da aldeia, aos 20 anos atravessou o mar, cruzou os continentes, em busca da morte, lá tão longe. Veio fechado num caixão e nunca mais ninguém o pôde ver. Essa, a ideia que me ficou da morte. Um caixão fechado, misterioso, e a repetição até ao infinito daquele marchar de botas, acompanhado de Angola é nossa.

"Na minha cabeça as ideias misturavam-se e assentavam todas naquele bocadinho de mapa, com palmeiras, umas bolas maiores e outras mais pequenas a assinalar as cidades, com mulheres negras com os filhos às costas. E o meu receio era que a guerra saltasse daquele mapa para este outro mapa onde eu estava. Guerra era ainda aquela voz que mais tarde aprendi que era do Salazar. E era só a voz a encher a rádio, que as palavras não tinham para mim sentido.

"A guerra preencheu o imaginário da minha infância. Mas a guerra só a vi, alguns anos mais tarde. Já não era a guerra da minha infância, quase invisível, de palavras sem sentido. Era a guerra de corpos calcinados, ou feitos em pedaços, de olhos secos raiados de revolta, de silêncios perfurantes como lanças. Era mais uma guerra, absurda, devastadora, única, pelos meios cada vez mais refinados, sempre igual, repetida, pelos efeitos de aniquilação. A geografia desta guerra era outra, as razões sempre as mesmas: impedir que o Outro fosse Outro, cada um conjugando as suas razões.

"E a nossa guerra, aquela onde os mortos eram invisíveis, mostrou o seu rosto, pelas mãos da Liberdade. Nessa altura, as fotografias dos horrores deste povo de brandos costumes invadiram-me a retina: corpos despedaçados, cabeças penduradas em paus. Aquela guerra queria dar testemunho de que a morte se pode fazer com as próprias mãos, com prazer ou com raiva, ou com tudo à mistura. Porque a guerra é uma fábrica de morte. A sua essência é o paradoxo EU-VIDA, OUTRO-MORTE.

"Foi esse paradoxo que acompanhou o nosso herói nesta guerra. As recordações escorrem-lhe destas fotografias e à mente vêm as visões malditas, enterradas, bem fundo:
- Numa busca a uma escola, fui obrigado a matar a professora. Num gesto rápido apontou-me a metralhadora. Não tive outra alternativa [a minha amiga refere-se ao que lhe contei da Operação Inquietar II: vd. meu texto, de 7 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XLIX: Samba Culo II ]

"O silêncio pesou. A morte concreta, uma vontade que conjuga a morte porque quer conjugar a vida, a própria. No teatro de guerra, as cenas sucediam-se. A morte, sempre presente como ideia pairando, era uma realidade, mas aquela morte era um produto do seu disparo.

"E muitos mortos aconteceram, fruto de conjugações absurdas. Perdidos no mato, estão os espíritos dos que não queriam morrer, aos 20 anos, ou até mais novos, se pensarmos nos guerrilheiros, ou mais velhos, que importa. Fundo, nas consciências de cada um, continuam a fazer a guerra, a guerra mais difícil de vencer.

"É preciso não calar os espíritos, dar-lhes voz, ouvir as suas razões. É urgente pôr tudo no seu lugar. Fazer regressar os mortos à sua terra, num caixão selado, não dá aos mortos o seu lugar. O seu lugar é nas palavras. Escritas, sulcando o papel. É a catarse. Reproduzidas. Lidas. Regressando à consciência. É a renúncia. Derramada num livro que está em construção para que os mortos ocupem o seu devido lugar."


3. Já disse à minha amiga que me identifico completamente com a análise que ela fez. Os meus agradecimentos.

Um grande abraço para vocês do Marques Lopes.

segunda-feira, 20 de junho de 2005

Guiné 63/74 - P68: Convívios: Encontro do pessoal da CART 1690 (Geba, 1967/69) (Marques Lopes)

Texto do A. Marques Lopes:

No dia 18 de Junho, como já vos tinha anunciado, houve um encontro dos elementos que estiveram na Guiné integrando a CART1690, de 1967 a 1969. Para já, a referência ao sítio maravilhoso onde estivemos, na zona de Sever do Vouga, no restaurante O Júnior. Na ida para lá, a floresta circundante do rio Vouga fez-nos lembrar as matas da Guiné... Saudades!

Já não estiveram muitos: fomos 40, com os familiares estavam 92 pessoas. Estiveram os furriéis Silva, Vasconcelos, Salvado, Pombeiro... os furriéis Vitor e Bicho já morreram... o furriel Rafael, que já não estava bom da bola, não foi porque está pior... o furriel Marcelo também não foi, e tem ido poucas vezes, e falámos sobre isso... o furriel Ribeiro também não foi, mas nunca tem ido, e perguntámo-nos porquê (talvez vos conte, um dia)...

O segundo-sargento Bajouco morreu-lhe a mulher... o primeiro-sargento também lhe morreu a mulher (já é a terceira que lhe morre - nenhuma o aguenta, dissemos nós...)... os cabos Costa e Sousa também já morreram... esteve o cabo Castro, DFA, também por ser passado da bola. Estiveram os alferes Reis e Moreira, que estiveram na companhia até ao fim, e os alferes Lopes e Maçarico, que foram feridos e evacuados, mas que se mantêm em contacto com a companhia... não esteve o alferes Fernandes, que ainda está na Guiné, "desaparecido em campanha", nem o alferes Peixoto, que "apareceu" na metrópole metido num saco de plástico entre quatro tábuas.

Esteve o capitão Santos Luís (agora coronel, reformado), que veio do batalhão de Bafatá para substituir durante uns tempos o capitão Guimarães quando ele morreu na estrada para Banjara (vd meu texto, de 31 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXIII: A morte no caminho para Banjara) e esteve o capitão miliciano Carlos Manuel Ferreira que ficou, depois, até ao fim com a CART 1690.

Esteve o furriel Lume, que veio propositadamente da Madeira (pronunciem o "u" como deve ser, à madeirense) e que teceu elogios ao Alberto João... mas todos se riram ne mesma.
E esteve o Malan Baldé, que esteve na Companhia de Milícia 3 e foi ferido em Sinchã Jobel, em 19 de Dezembro de 1967, na operação Invisível (vd. o meu texto, de 7 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XLV: Sinchã Jobel VII ). Mora em S. Domingos de Rana, perto de Carcavelos... Perguntei-lhe:

-Malan, entraste no arrastão?...
- Eu?! Eu não, eu até trabalho numa empresa de segurança! - Conhece outros que moram naquelas zonas. Um dia qualquer vou aparecer po lá. E hei-de enviar-vos uma fotgrafia que tirámos.

O meu amigo alferes Reis, agora um fundamentalista médico veterinário,que me diz sempre, quando me vê comer um belo bife de vaca, que não toca na carne das vacas há muito tempo porque são umas malucas, deu-me mais alguma fotografias de Banjara, que também vos enviarei depois.

Falámos de nós todos, falámos de tudo aquilo que vos tenho contado, falei-lhes deste blogue, e garantimos que estaríamos novamente juntos no próximo ano. E que traríamos outros que não estiveram. Pessoalmente, vou-me empenhar em trazer o furriel Ribeiro.
Vou conseguir mais coisas da CART 1690. Depois digo-vos.

Abraço. Marques Lopes

Guiné 63/74 - P67: A vida dos prisioneiros portugueses em Conacri (Marques Lopes)

Texto do A. Marques Lopes:

Amigos e camaradas: Sobre a fotografia de prisioneiros a jogar à bola em Conacri [ver texto de Luís Graça > Guiné 69/71 - LXIV: Tão (ini)(a)migos que nós fomos! , com data de ontem] , é natural que algum seja da CART 1690, pois eram os que estavam lá em maior número. No entanto, é difícil distingui-los nessa fotografia.

Para saberem o que foi a vida deles em cativeiro leiam o livro Memórias de Um Prisioneiro de Guerra, publicado pela editora Campo das Letras, Porto, em Outubro de 2003 (é o número 9 da colecção Campo da Memória). O seu autor é o ex-alferes miliciano António Júlio Rosa (agora professor de Educação Física), que foi aprisionado pelo PAIGC na zona de Tite, no dia 1 de Fevereiro de 1968.

Lá esteve até ao dia da libertação, na sequência da Op Mar Verde. É um relato simples, sem literatura. Vale a pena ler, sobretudo nós que compreendemos tudo aquilo.

Abraços. Marques Lopes

Post scriptum - Sobre os motivos que o levaram a escrever o livro, diz o autor: "

"Os motivos que me levaram a escrever este livro foram, acima de tudo, transmitir as experiências e os factos vividos durante a minha juventude e, em particular, o sofrimento duma guerra colonial de má memória.

"É um livro que escrevo a partir do que a memória guardou para dá-lo a conhecer aos meus contemporâneos e vindouros. Foram momentos notoriamente difíceis que, muitas vezes, revivo quando encontro velhos amigos, ou me encontro só, ou mesmo antes de adormecer.

"Os factos que vou apresentar reportam-se ao período compreendido entre Janeiro de 1967 e o final de Dezembro de 1970 [Guiné-Bissau e Guiné Conakry]. António Júlio Rosa".

Guiné 63/74 - P66: Vasculhando os meus papéis (Marques Lopes)

Mensagem do A. Marques Lopes, ex-alferes miliciano da CART 1690 (Geba, 1967) e da CCAÇ 3 (Barro, 198):

Caros amigos:

Vasculhando os meus apontamentos, tirados sempre que me foi possível, tenho que:

1. Entre 24 de Dezembro de 1971 e 28 de Março de 1974, esteve em Barro a CCAÇ 3519 (a CCAÇ 3 já estava em Binta), da qual faziam parte: (i) o capitão miliciano Rui Fradique Ribeiro Rodrigues de Almeida, de Leiria; (ii) o furriel miliciano Alberto Sá Moreira, de Ermesinde; e (iii) o alferes miliciano José da Rocha Teixeira, de Castelo de Paiva.

2 - Em 26 de Outubro de 1971 houve um ataque a Cantacunda, tendo o IN ultrapassado a primeira fileira de arame farpado (já estava melhor pelos vistos...); tropa de Geba (não sei qual era a companhia) foi em auxílio e sofreu uma emboscada no caminho, com feridos; no dia seguinte, a 27 de Outubro, uma força de Bafatá, composta pelo EREC 2640 e elementos do BART2920, saíu para ajudar e foi também emboscada na estrada para Cantacunda, tendo sofrido 7 mortos e 14 feridos, entre eles o soldado Manuel de Oliveira Figueiras, de Barcelos.

Se alguém conhecer [ex-combatentes destas unidaes], ou tiver hipóteses de os contactar , seria óptimo, pois muita coisa terão também de contar.

Um abraço. Marques Lopes

domingo, 19 de junho de 2005

Guiné 63/74 - P65: Os momentos do fim (Junho de 1974)...

O Américo Marques, de Viana do Castelo, mandou-nos uma mensagem, tocante, sobre os "momentos do fim", quando a partir de Junho de 1974 os guerrilheiros do PAIGC começaram a aparecer no destacamento de Cansissé, oferecendo a paz... Não foi fácil para a população local (fulas e mandingas) e para alguns soldados como o Américo Marques. De repente, os inimigos de ontem, os turras, passavam a ser os amigos e até os irmãos de hoje.

Imagino que deve ter sido um momento muito difícil, daqueles em que a gente fica com um nó apertado na garganta… Vou publicar esta nota, no nosso blogue, mais as fotos, na esperança de que o Américo um dia destes arranje fôlego, coragem e inspiração para dar um testemunho mais extenso e profundo sobre o momento do hastear da bandeira da nova Guiné-Bissau a que ele assistiu… Enfim, se ele achar que vale a pena… Eu pessoalmente acho que vale a pena. O Américo, que regressou a Portugal em Stemebro de 1974, estava no sítio certo, no momento certo, para a nos dar conta do fim do império...

"Eu sou dos últimos guerreiros do Império. Meio guerreiro, pois não acabei a Comissão e ainda participei na troca de bandeiras. A minha ignorância e o meu patriotismo fizeram-me sentir uma tristeza... ainda mais triste.

"Era Transmissões de Infantaria, Formado no BC 5, Campolide [ Lisboa ]. Formei Batalhão em RAL 5, Penafiel. Embarquei no N/M Niassa em Junho de 1973, na companhia de um BCAÇ de Tomar, mais duas Companhias recebidas no Funchal. Pertenci à 3ª CART do BART 6523, aquartelado em Nova Lamego.

"Estive os 17 meses em Cansissé: um destacamento (com 25 soldados) que estava à distância de 1 hora, a pé (claro), da margem direita do Rio Corubal. Quem fosse de Bafatá para Nova Lamego, virava à direita por uma picada, situada mais ou menos a meio do trajecto.

"Sou de Viana do Castelo e amigão do Sousa Castro e do Luis Carvalhido que me recebeu no Xime, em trânsito para Nova Lamego [Gabu]. Era eu um coitado dum periquito; e o Luís não me ofereceu uma bazuca, levou-me a ver um buracão feito por uma. Perdi logo a sede. Espero que as fotos sejam mais um tijolo... para construir a historia das Dores e Agonias que estão aqui e agora. Sendo ao mesmos tempo Pedaços de Vida, que se me ofereceu (como se fossem mais uns Castelos) aquela Bandeira; muito amada e que aquece mais que mil vulcões. Um Alfa Bravo".