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sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26496: Notas de leitura (1772): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Uma mulher singularíssima, Bibiana Vaz, século XVII (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Novembro de 2024:

Queridos amigos,~

Philip Havik já com o estatuto de reformado, prestou e está a prestar um relevantíssimo trabalho em prol da cultura portuguesa, e em diferentes domínios. Recordo o trabalho que ele fez com o António Estácio, de saudosa memória, sobre os chineses em Catió; este nosso confrade António Estácio que escreveu sobre Nha Carlota e Nha Bijagó, duas senhoras de grande peso da sociedade guineense, crioulas muito apreciadas e com grande poder comercial. Achei por bem publicar aqui algumas intervenções que ele deixou em trabalhos e dizer que quando quiser intervir no nosso blogue é só bater à porta, não precisa de pedir licença, aqui a Guiné é soberana, pelo amor que lhe dedicamos.

Um abraço do
Mário



Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné:
Uma mulher singularíssima, Bibiana Vaz, século XVII (1)


Mário Beja Santos


Vamos a partir de hoje publicar um conjunto de trabalhos assinados por um distintíssimo investigador, há muito ligado a Portugal, com ênfase na medicina tropical e em estudos orientados para a Guiné colonial. 
Um pouco do seu currículo:

Philip J. Havik (doutorado em Ciências Sociais pela Universidade de Leiden, Países Baixos) foi investigador principal do Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade NOVA de Lisboa. 

Trabalhou como investigador na Research School for African, Asian and Amerindian Studies (Universidade de Leiden, Países Baixos) e no Instituto de Investigação Científica Tropical (IICT) em Lisboa. Ensinou antropologia colonial e pós-colonial na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa.

Foi Research Fellow no African Studies Centre (ASC) da Universidade de Leiden e investigador associado do Centro de Estudos de História Contemporânea (IHC) da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa. Autor/coautor de mais de 80 publicações, incluídas dezenas de artigos em revistas e capítulos de livros.

O trabalho a que hoje vamos fazer referências intitula-se Matronas e Manonas: Parentesco e Poder Feminino nos Rios da Guiné (Século XVII)

Começa por sumariamente historiar a condição da mulher, o seu escasso poder de decisão fora do meio doméstico e como a partir da abertura do espaço atlântico e com a presença de africanas ativas em todo o tipo de serviços em cidades como Lisboa e Sevilha, verdadeiras bestas de carga, se deu uma barafunda de géneros que foi aproveitada por mulheres que souberam criar espaços de manobra ao nível do trabalho, da religião e em rituais de toda a ordem. Seja como for, o desempenho da mulher nas sociedades africanas foi relegado para dois domínios fundamentais: a reprodução e a força de trabalho. Daí a herança e a identidade do grupo passarem geralmente pela linha feminina.

Quando a África Subsariana entrou no imaginário Ocidental, o comércio de escravos já era bem conhecido, mediado exclusivamente por berberes e árabes no espaço do Mediterrâneo. Deu-se depois a interação afro-atlântica, as notícias deste continente começaram progressivamente a ocupar um lugar na realidade em que as lendas de monstros e feras do Mar Ignoto se transformaram em ouro, marfim e outras preciosidades. 

Escravas africanas inundaram cidades europeias, no continente africano as relações afro-atlânticas produziram povoações mercantis, assistiu-se, mesmo que superficialmente, à cristianização dos quadros das redes comerciais, falava-se em cristãos e gentios. Estes cristianizados, descendentes afro-atlânticos, nascidos nas capitanias ou presídios, elevaram a importância da mulher, que nos chamados rios do Guiné do Cabo Verde, que passou a ter um papel chave nestes ambientes comerciais, assimilando diferentes papéis como curandeiras e conselheiras e mães dos “filhos espúrios”. 

A mulher passou a ser a garantia de sobrevivência em terras alheias, era um mundo com repartição de tarefas que se veio a estruturar nas redes comerciais da Costa Ocidental Africana a partir do século XVI e até fins do século XIX; e, claro está, veio a ter fortes incidências no século XX em que a Nhá ou Sinhara substituía, como Mindjer Garandi, o comerciante, por qualquer razão ausente.

 Philip Havik estuda a figura de Bibiana Vaz de França, nascida em Cacheu, membro de um clã poderoso da localidade. Ela é assumidamente uma das poucas vozes femininas que se fazem ouvir no universo limitado da palavra escrita. Cacheu era então um centro importante da rede comercial atlântica do tráfico de escravos, povoação elevada a vila em 1605; foi fundada por tangomaos, ou seja, aqueles que negociavam por conta própria, em colisão frontal com a política do monarca. Cacheu era um pequeníssimo entreposto de onde saiam aproximadamente 3 mil escravos por ano.

Um bom número de comerciantes tinha ascendência sefardita e cabo-verdiana, daí a designação pejorativa de tangomaos. Quando, por decisão régia, se criaram companhias de comércio com pretensões monopolistas, como a Companhia de Cacheu e Rios de Guiné, em 1676, o meio local recebe-o muito mal, os moradores iniciais denunciar os desvios e a prepotência de notáveis nomeados por Lisboa. 

O clã dos Vaz de França e dos Gomes eram muito influentes em Cacheu, de modo que o casamento de Bibiana com Ambrósio Gomes, este com ascendência sefardita e africana, trouxe vantagens mútuas. Ambrósio ocupara o lugar de capitão-mor durante alguns anos, e com o fim do contrato da companhia, Bibiana, um seu irmão e sobrinhos, constituíram um forte núcleo local, era uma rede de negócios que se estendia do Rio Gâmbia até à Serra Leoa. Quando o conselho Ultramarino deliberou que Bibiana devia fazer partilhas, ela já havia colocado maior parte dos bens fora do alcance do novo capitão-mor. Atenda-se agora a estas observações de Philip Havik:

“O novo comandante da praça de Cacheu, seguindo à letra o antigo contrato da companhia, proibiu a vinda de embarcações estrangeiras. A revolta do povo não tardou: em 25 de março de 1684, prenderam o dito capitão à saída do hospital enviando-o para Farim, para uma casa de Bibiana, onde permaneceu por espaço de 14 meses. Bibiana encabeçou o movimento de revolta, ela, seguida pelo povo ‘cristão’, decidiram não mais admitir capitães do reino nem das ilhas de Cabo Verde, nem portugueses negociando com o gentio, mas só com moradores da praça. Foi um duro golpe para os interesses dos portugueses; os moradores de Cacheu fizeram muitas petições contra os efeitos nefastos resultando-se da criação da comissão da companhia majestática, e passar a negociar n mato, esquivando-se a pagar direitos aos cofres reais – na realidade os bolsos dos capitães-mores e da companhia. Cacheu não era mais do que um entreposto empobrecido, desprovido de contribuintes e fontes de receita, cuja administração se encontrava no meio hostil, assolado, judeus, crioulos e gentios.”

Deu-se a reação das autoridades em Lisboa, Bibiana, o irmão e outro cúmplice no levantamento foram presos da cadeia da Ribeira Grande. O ponto curioso da historiografia anda à volta do facto de só muito tarde se ter vindo a conhecer os tramites desta sublevação. Presa em Cabo Verde, doente e iletrada, enquanto as autoridades procuravam secretariar e apreender os bens de Bibiana e família, ela e o irmão receberam um perdão real, a Corte, ciente da situação catastrófica do comércio português na costa receava perder ainda mais influencia. Daí a reabilitação de Bibiana. 

Mas havia outros pontos a favor dela. Depois de reabilitada, em sinal de agradecimento, ofereceu-se para construir um forte em Bolor, local estrategicamente situado na entrada do rio Cacheu, deu como garantia a sua pessoa e todos os seus bens.

Em jeito de conclusão, o investigador recorda o mundo de intriga que acompanhou o caso Bibiana Vaz, mulher africana, cristã, viúva, comerciante, armadora/parente de linhagens da terra dos donos di chon, ela liderou uma revolta contra uma autoridade alheia.

Enfatize-se um outro ponto que o autor chama a atenção: “Apesar das múltiplas petições feitas pelos moradores de Cacheu contra os efeitos nefastos resultantes da criação da companhia e contra e prepotência dos capitães-mores que chamaram todo o comércio para sim, não houve, por parte da Metrópole nem das ilhas, intervenção alguma. A resistência dos moradores ficou patente no facto da maioria andar a negociar e a morar no mato, esquivando-se de pagar direitos aos cofres reais.”

Voltando a comentários de Philip Havik:

“O governador de Cabo Verde e os capitães-mores saem-se mal desta história, muitas vezes agindo com base em raciocínios mesquinhos e vingativos. Cúmplices da crise em que mergulhou o tráfico português ao longo dos anos, as autoridades de Lisboa e da Ribeira Grandes, tinham perdido todo o controlo sobre a situação. A fraqueza da posição portuguesa no comércio da Costa da Guiné não permitia mais que o perdão de Bibiana".

Este artigo vem publicado em:
https://www.academia.edu/42757187/Matronas_e_Mandonas_parentesco_e_poder_feminino_nos_rios_de_Guin%C3%A9_s%C3%A9culo_XVII_

Nha Bijagó (1871-1959)
Nha Carlota (1889-1970)
Arredores de Cacheu, ida à fonte, 1900
O Forte de Cacheu e a estátua de Diogo Gomes, mutilada
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Nota do editor

Último post da série de 10 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26481: Notas de leitura (1771): A colonização portuguesa, um balanço de historiadores em livro editado em finais de 1975 (5) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 8 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26022: Lembrete (47): Sessão de apresentação do livro "O (Ainda) Enigma da Vida Intelectual e Científica de João Barreto", de Mário Beja Santos, a ter lugar no próximo dia 10 de Outubro de 2024, quinta-feira, pelas 16h00, na Sociedade de Geografia de Lisboa

C O N V I T E


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Setembro de 2024:

Meus caros,
Meti-me numa alhada que não sei como é que vai acabar, já gastei a ponta dos dedos a folhear Boletins Officiais de Cabo Verde e da Costa da Guiné e também da Província da Guiné, até já pedi ajuda ao Philip Havik por causa da Escola de Medicina Tropical, e tenho que saber o que é que este meco andou a fazer desde que se reformou (1931), a única coisa que sei é que viveu sempre em Lisboa até que partiu para as estrelas em 1 de dezembro de 1940. Não me podia ter metido noutra alhada maior, eu que andava com o Boletim Official da Província da Guiné à volta de 1890... Peço, pois, a amabilidade de fazerem a notícia nos próximos dias e um pouco antes do 10 de outubro. Grato.

Um abraço do
Mário



CONVITE

O que falta saber sobre a obra científica do autor da única História da Guiné, apresentação do livro na Sociedade de Geografia de Lisboa, 10 de outubro, pelas 16h00.

João Barreto (de seu nome João Vicente Sant’Ana Barreto) foi aluno distintíssimo da Escola Médico-Cirúrgica de Nova Goa, ali lecionou cerca de um ano, antes de partir para Lisboa apresentou um trabalho de estrutura invulgarmente moderna sobre a peste na Índia portuguesa. Continuará os seus estudos em Lisboa, parte em 1916 para Cabo Verde, onde permanecerá durante toda a Primeira Guerra Mundial. Segue depois para a Guiné, é louvado pelo seu desempenho no combate à peste em Cacheu, exerce outros cargos em Bafatá, em 1923 é nomeado delegado na Junta de Saúde de Bissau. Parte para a Índia, onde permanecerá cerca de meio ano. É no seu regresso à Guiné que os seus trabalhos científicos ganham reconhecimento. É então enviado para a Presidência da República uma proposta de condecoração como Cavaleiro da Ordem de Avis.

É uma parte deste percurso que este estudo aprecia, há ainda significativas lacunas a preencher, haverá que decifrar o que vai levar este notável epidemiologista a lançarse num empreendimento da única História da Guiné, que dará à estampa dois anos antes de falecer.

A pedido de um seu bisneto, lancei-me neste empreendimento, é empolgante tudo quanto escreveu (fora o que ainda não se conhece), incluindo os seus comentários quando foi delegado de saúde na Ilha do Fogo, no auge do conflito mundial.

A apresentação deste estudo será precedida, em homenagem à sua memória, a uma visita à Sala da Índia, seguindo-se uma passagem pela Sala de Portugal para visitar os tesouros artísticos da Índia portuguesa, visita que decorrerá entre as 15h30 e as 16h00.

A sessão de apresentação contará com Valentino Viegas, professor universitário aposentado, o autor e o comentário final de Aires Barreto, bisneto do biografado.

Seguir-se-á um Porto de Honra.

Por decisão do autor da edição, os participantes receberão gratuitamente um exemplar da obra.
Bolama no tempo em que lá viveu João Barreto, ali se tornou cidadão emérito
_______________

Notas do editor:

Vd. post de 19 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25958: Agenda cultural (859): Convite para a sessão de apresentação do livro "O (Ainda) Enigma da Vida Intelectual e Científica de João Barreto", de Mário Beja Santos, dia 10 de Outubro de 2024, pelas 16h00, na Sociedade de Geografia de Lisboa

Último post da série de 4 de julho de 2024 > Guiné 61/74 - P25713: Lembrete (46): Últimos dias! Viagem de grupo à China com o acompanhamento do Prof. Dr. António Graça de Abreu - 01 a 12 Setembro 2024

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25958: Agenda cultural (859): Convite para a sessão de apresentação do livro "O (Ainda) Enigma da Vida Intelectual e Científica de João Barreto", de Mário Beja Santos, dia 10 de Outubro de 2024, pelas 16h00, na Sociedade de Geografia de Lisboa

C O N V I T E


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Setembro de 2024:

Meus caros,
Meti-me numa alhada que não sei como é que vai acabar, já gastei a ponta dos dedos a folhear Boletins Officiais de Cabo Verde e da Costa da Guiné e também da Província da Guiné, até já pedi ajuda ao Philip Havik por causa da Escola de Medicina Tropical, e tenho que saber o que é que este meco andou a fazer desde que se reformou (1931), a única coisa que sei é que viveu sempre em Lisboa até que partiu para as estrelas em 1 de dezembro de 1940. Não me podia ter metido noutra alhada maior, eu que andava com o Boletim Official da Província da Guiné à volta de 1890... Peço, pois, a amabilidade de fazerem a notícia nos próximos dias e um pouco antes do 10 de outubro. Grato.

Um abraço do
Mário



CONVITE

O que falta saber sobre a obra científica do autor da única História da Guiné, apresentação do livro na Sociedade de Geografia de Lisboa, 10 de outubro, pelas 16h00.

João Barreto (de seu nome João Vicente Sant’Ana Barreto) foi aluno distintíssimo da Escola Médico-Cirúrgica de Nova Goa, ali lecionou cerca de um ano, antes de partir para Lisboa apresentou um trabalho de estrutura invulgarmente moderna sobre a peste na Índia portuguesa. Continuará os seus estudos em Lisboa, parte em 1916 para Cabo Verde, onde permanecerá durante toda a Primeira Guerra Mundial. Segue depois para a Guiné, é louvado pelo seu desempenho no combate à peste em Cacheu, exerce outros cargos em Bafatá, em 1923 é nomeado delegado na Junta de Saúde de Bissau. Parte para a Índia, onde permanecerá cerca de meio ano. É no seu regresso à Guiné que os seus trabalhos científicos ganham reconhecimento. É então enviado para a Presidência da República uma proposta de condecoração como Cavaleiro da Ordem de Avis.

É uma parte deste percurso que este estudo aprecia, há ainda significativas lacunas a preencher, haverá que decifrar o que vai levar este notável epidemiologista a lançarse num empreendimento da única História da Guiné, que dará à estampa dois anos antes de falecer.

A pedido de um seu bisneto, lancei-me neste empreendimento, é empolgante tudo quanto escreveu (fora o que ainda não se conhece), incluindo os seus comentários quando foi delegado de saúde na Ilha do Fogo, no auge do conflito mundial.

A apresentação deste estudo será precedida, em homenagem à sua memória, a uma visita à Sala da Índia, seguindo-se uma passagem pela Sala de Portugal para visitar os tesouros artísticos da Índia portuguesa, visita que decorrerá entre as 15h30 e as 16h00.

A sessão de apresentação contará com Valentino Viegas, professor universitário aposentado, o autor e o comentário final de Aires Barreto, bisneto do biografado.

Seguir-se-á um Porto de Honra.
Por decisão do autor da edição, os participantes receberão gratuitamente um exemplar da obra.
Bolama no tempo em que lá viveu João Barreto, ali se tornou cidadão emérito
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Nota do editor

Último post da série de 22 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25868: Agenda cultural (858): O nosso camarada Fernando de Jesus Sousa, (ex-1.º Cabo At Inf DFA da CCAÇ 6, Bedanda, 1970/71), vai estar presente no próximo dia 24 de Agosto, sábado, às 18 horas, na Feira do Livro do Porto, Jardins do Palácio de Cristal, para uma sessão de autógrafos no Pavilhão 118

quarta-feira, 24 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25440: Historiografia da presença portuguesa em África (420): Sim, Bissau teve uma capital de ficção antes de 1941 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Outubro de 2023:

Queridos amigos,
Desconhecia inteiramente a existência de Bissau como capital do distrito da Guiné em 1835. Rebusquei em autores da época, como Lopes de Lima, em historiadores como Veríssimo Serrão, nenhuma referência a Bissau capital, ainda por cima no ano seguinte ao fim da guerra civil. Mas os factos documentais comprovam a nomeação. Bastou-me ler a indispensável Memória de Honório Pereira Barreto que diz verdades com punhos, que fala de um governador que não governa, de uma capital reduzida a uma fortaleza sem o mínimo de condições e a um quadro administrativo caótico, e tudo o mais que se recolhe neste artigo, acrescendo que Cacheu não se conformou com a criação da capital em Bissau e viveu-se no enigmático território guineense com dois distritos, o de Bissau e o de Cacheu durante cerca de 10 anos. Esta é a verdade dos factos, tenho que agradecer a Philip Havik a iluminação que trouxe para esta questão que era dada como inexistente.

Um abraço do
Mário



Sim, Bissau teve uma capital de ficção antes de 1941

Mário Beja Santos

Até recentemente, dava como certo e seguro de que a Guiné portuguesa jamais tivera capital até ser desafetada de Cabo Verde, o que ocorreu em 1879. Ao longo dessa década resolvera-se a questão de Bolama, houvera o dramático desastre de Bolor, Lisboa tomou a decisão de dar autonomia a um território que não possuía fronteiras precisas, a Carta Constitucional não referia a Guiné, mas mencionava Cacheu e Bissau, porque havia o sobe e desce de Praças, Presídios e Feitorias. Num livro respeitante aos cadernos de campo do professor Orlando Ribeiro, um dos coordenadores, um investigador com créditos firmados, Philip J. Havik, assumiu que Bissau obtivera o estatuto de capital em 1835. Escrevi para o blogue um artigo “Será que Bissau foi capital da Guiné antes de 1941?”, vasculhei em obras da época qualquer referência à capital, nada encontrei até que se me deparou um despacho do Visconde Sá da Bandeira datado de 29 de abril de 1858 referindo Bissau como a capital da Guiné portuguesa e residência do respetivo governador, erguendo a povoação à categoria de vila com a denominação de vila de Bissau.

Estava armada a confusão, e na altura desafiei um conjunto de investigadores a pronunciarem-se sobre a questão. Philip Havik respondeu, e do modo seguinte:
“As reformas feitas na sequência da revolução liberal em Portugal foram decididas de aplicar a reorganização administrativa por decreto de 16 de maio de 1832 à Guiné em 1834, criando uma Prefeitura de Cabo Verde e a Guiné. Por conseguinte, o distrito da Guiné transformou-se numa comarca, ainda dependente de Cabo Verde, com a sua sede em Bissau, governado por um Subprefeito. Isto foi feito através do decreto de 30 de agosto de 1835. Bissau serviu como capital da Guiné até que se tornou uma província independente com um governo autónomo em 1879, com capital em Bolama através da lei de 18 de março de 1879.”

E o investigador recomendava referências na obra de João Barreto, A História da Guiné (1418-1918), Lisboa, 1938, e no artigo de Arnaldo Brasão, A Vida Administrativa da Colónia da Guiné, publicado no Boletim Cultural da Guiné portuguesa, volume II, n.º 7, 1947. Não posso esconder a minha surpresa, eu tinha lido a importante obra de Lopes de Lima, de 1844, e não se mencionava qualquer capital em Bissau. Um artigo publicado por Teixeira da Mota e Fausto Duarte sobre as efemérides da Guiné portuguesa referia a criação da comarca da Guiné, dirigida por um Subprefeito, mas nada se mencionava sobre a capital, uma comarca é só reorganização administrativa, vinha na sequência do ambicioso projeto de Mouzinho da Silveira de alterar em profundidade a administração do território, gerando municípios, comarcas e entidades apropriadas da administração, desde a justiça à atividade aduaneira. Lendo a História de Portugal de Veríssimo Serrão, encontrei a referência à criação do lugar do governador da Guiné, com residência em Bissau.

Impunha-se, pois, apurar a densidade e a operacionalidade desta capital de que desconhecia qualquer referência. Procurei um verdadeiro tira-teimas, Honório Pereira Barreto e a sua Memória sobre o estado atual da Senegâmbia portuguesa, causas da sua decadência e meios de a fazer prosperar, Lisboa, 1843. Lendo este importantíssimo texto, constata-se que o território desta Senegâmbia tinha uma dimensão fluida, a presença portuguesa era submetida a uma permanente hostilidade e os recursos escassíssimos, como Barreto logo abre a sua introdução: “Se nesta província houvesse um Boletim de Governo aonde se estampasse os ofícios e relatórios das diversas autoridades, não me veria obrigado a escrever esta Memória, cuja matéria é tão superior a minhas forças; porque então apareceria em público o verdadeiro estado destas Possessões.” É um discurso sempre franco, duro e doloroso: “Vive-se em Senegâmbia portuguesa sem segurança alguma; a todos os momentos seus habitantes são vexados pelo gentio, fere-se e assassina-se impunemente, e em Lisboa lê-se no Diário do Governo que as Possessões Portuguesa, nesta parte, estão em ordem, e vão florescendo.”

E a sua narrativa não esconde a inexistência de poder político, da vida das instituições, enfim, o caos reina por toda a parte: “Desgraçadamente se pode dizer que nestas Possessões há um governador e comandante; mas que não há governo. O país está inteiramente desorganizado. Todos os empregados, desde o primeiro até ao último, ignoram quais são as suas atribuições, e, por consequência, quais são os seus deveres: só tratam de seus negócios, pois são negociantes. Não há lei administrativa (nem outra) que vigore, e por isso é suprida pela vontade dos governadores. A vontade deles faz a lei; o capricho executa; as paixões julgam; os rogos dos Gentios, dos amigos fazem minorar, e perdoar as penas.”

É facto que falando do concelho de Bissau, Barreto dirá que é composto da Praça de Bissau, capital do governo, do presídio de Geba, do ponto de Fá, da ilha de Bolama e do Ilhéu do Rei. E apresenta Bissau deste modo: “É uma Praça situada na ilha deste nome, e construída segundo o sistema de Vauban; mas não foi acabada. Não tem obras algumas exteriores, à exceção dos fossos já quase entulhados, e aonde se planta algodão, milho e índigo. O quarto da tropa está quase a cair, e por isso a maior parte dos soldados moram em palhosas; o indecente quartel dos oficiais aonde chove como na rua; o arruinado armazém do governo; e a pequena e destelhada capela com invocação de S. José, que é o orago da praça. O governador mora no quartel dos oficiais em uns quartos pequenos e ridículos.” Há, pois, uma capital do distrito da Guiné portuguesa, da Guiné não se conhece bem a configuração e a importância da capital é dada pelo governador que anda a comprar parcelas do território de diferentes régulos, e em todas as direções. É vila, por despacho do Visconde Sá da Bandeira, será cidade em 1914 e terá mesmo o seu primeiro plano de urbanização concebido pelo engenheiro Guedes Quinhones; o governador Vellez Caroço dar-lhe-á em 1923 o seu primeiro foral.

Philip Havik refere João Barreto e Arnaldo Brasão. Para mim, continua a ser um mistério a data de 1835. João Barreto refere que em 1851 o Governador-geral de Cabo Verde, Fortunato José Barreiros, tomara a iniciativa de unificar o governo da Guiné fixando a sua sede na vila de Bissau e escreve que a partir de 1852 deixou de existir o governo autónomo de Cacheu, passando a existir um distrito único com sede em Bissau. Alegou o governador ter tomado esta resolução para dar unidade à ação governativa. Era nomeado interinamente governador da costa da Guiné (já ouvimos falar de Possessões, de Senegâmbia e de Guiné portuguesa…) o Tenente-Coronel Alois Dziezaski com algumas competências do governador-geral. Bissau é capital do Distrito da Guiné portuguesa.

Arnaldo Brasão, no seu artigo, chama a atenção para a Guiné constituída como uma unidade administrativa, em 1834, com atribuições conferidas por legislação de 1835, referindo igualmente o papel do governador, a quem ficavam sujeitos todos os serviços públicos. “Os governos inferiores, presídios, estabelecimentos marítimos ou do interior, formavam governos subalternos que se regulavam pelo que estava determinado para o governo das praças do reino.”

As lutas entre absolutistas e liberais refletiram-se nas colónias, e adianta Arnaldo Brasão: “Cacheu, que fora o primeiro núcleo de colonização e de povoamento não poderia conformar-se com uma situação de subalternidade em relação a Bissau, que passar a ser a capital desde 1835, e por isso solicitou a sua separação que o governo cartista se apressou a satisfazer em março de 1842, passando desde então o território guineense a ser constituído por dois distritos, mas subordinados ainda ao governo de Cabo-Verde. Esta situação durou perto de 10 anos, porque em setembro de 1851 procede-se à unificação administrativa, sendo escolhido novamente Bissau para sede do governo.”

Considero totalmente corretas as observações expendidas pelo investigador Philip J. Havik, em 1835 Bissau tornou-se a capital de distrito de um território com dimensões indefinidas e dentro de um quadro que um lídimo protagonista da época, Honório Pereira Barreto, mostrou que se tratava de uma capital de ficção. Um governador sem governo, uma capital reduzida a uma fortaleza sem o mínimo de comodidades e cercada por populações hostis.

Dou como esclarecida a existência de uma capital de ficção, numa província de ficção, que passou a uma realidade depois do sobressalto de Bolama e com contornes definidos depois de a França nos ter subtraído o Casamansa, as fronteiras ficaram parcialmente definidas em 12 de maio de 1886, o governador da Guiné terá a sua capital em Bolama.


Monumento a Honório Pereira Barreto, em Bissau, em tempos coloniais
O que resta da Bolama dos tempos áureos
Um pormenor da fortaleza de S. José da Amura na atualidade
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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25401: Historiografia da presença portuguesa em África (419): Será que Bissau foi capital da Guiné antes de 1941? O estado da questão (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25401: Historiografia da presença portuguesa em África (419): Será que Bissau foi capital da Guiné antes de 1941? O estado da questão (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Outubro de 2023:

Queridos amigos,
A questão é muito interessante mas não vislumbro documentação que sustente a existência de Bissau como capital da Guiné portuguesa, será efetivamente capital em 1941. A colónia não dispunha de superfície antes da Convenção Luso-Francesa de 12 de maio de 1886, como colónia era uma ficção territorial, tinha praças, feitorias e presídios, nunca encontrei qualquer documento que tratasse Bissau como capital. E depois temos toda aquela documentação da segunda metade do século XIX, caso de Travassos Valdez, onde se mostra Bissau como uma praça e uma povoação entregue a degredados, muitas vezes revoltando-se contra o governador e prendendo-o, sujeita a uma permanente hostilidade. Que capital era esta, podem ajudar-me a esclarecer a questão?

Um abraço do
Mário



Será que Bissau foi capital da Guiné antes de 1941? O estado da questão

Mário Beja Santos

Tenho como dado assente que a Guiné portuguesa jamais teve capital até 1879. É uma questão de lógica, a região dependia do governador de Cabo Verde e da Guiné, com a monarquia constitucional, a referência à Guiné como território não existe na Constituição, somente se menciona a existência da povoação de Cacheu e da Praça de Guerra de S. José de Bissau. É nisto que ao ler os cadernos de campo do professor Orlando Ribeiro, resultado da sua viagem à Guiné em 1947, que considero documento científico de leitura obrigatória, a edição foi coordenada por Philip J. Havik e Suzanne Daveau, investigadores experimentados, Edições Húmus, 2010, encontro na página 60 a seguinte nota:
“As origens de Bissau remontam ao século XVI, mas somente em 1692 é elevada a capitania. Com a construção da fortaleza no último quartel do século XVIII, Bissau começa a ultrapassar Cacheu – que foi um dos primeiros e principais portos na costa da Guiné – como entreposto comercial. A partir de 1835, Bissau obtém o estatuto de capital (em 1855 é criado o município) até 1879.”

Comecei a pesquisar no Boletim Cultural da Guiné portuguesa, número especial de outubro de 1947, há um título Efemérides da Guiné portuguesa, que tem por autores Teixeira da Mota, Fausto Duarte e outros, e procurei o que tinha acontecido em 1835. Em 30 de agosto é promulgado um decreto pelo Governo de Lisboa criando a Comarca da Guiné, dirigida por um Subprefeito, sujeita à prefeitura de Cabo Verde, nada mais. Consultei depois o n.º 32 da revista Ultramar, 1968, todo ele dedicado à Guiné e onde consta do historiador António Alberto Banha de Andrade um longo artigo intitulado História breve da Guiné portuguesa. O autor menciona a remodelação administrativa de 16 de maio de 1832. Na Guiné passou a haver uma subprefeitura em Bissau, ficando o Subprefeito com funções de intermediário entre a população e o Prefeito, colocando-se em 1834 a sede da administração em Bissau, nesse ano Honório Pereira Barreto foi nomeado provedor de Cacheu, não há qualquer referência a Bissau como capital.

Bom, o melhor era dirigir-me a um alfobre de documentação, a Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa. Comecei por ler a obra Ensaios sobre a statistica das possessões portuguezas, por José Joaquim Lopes de Lima, Lisboa, Imprensa Nacional, 1844. Sendo obra de referência e dedicada à Rainha, seria inevitável aludir a elementos essenciais. Pois o que encontrei no capítulo X, dedicado à Guiné de Cabo Verde, são digressões históricas da nossa presença na região e menção aos estabelecimentos existentes: praça de Cacheu, presídio de Farim, presídio de Ziguinchor, presídio de Bolor, praça de guerra de S. José de Bissau (esta apresentada como reduto quadrangular de boa cantaria, flanqueada por quatro baluartes, dentro da praça havia quartel para o governador), Ilhéu do Rei, Geba, ilha de Bolama e ilha das Galinhas. Estranhíssimo não se falar em capital, havia somente governador em Bissau como responsável da praça, desde finais do século XVIII.

Outra fonte consultada foi a História de Portugal, de Joaquim Veríssimo Serrão, Editorial Verbo, 1986, dois volumes. No volume VIII, referente a 1832-1851, refere o autor: “A reforma de 1832 mantinha a Comarca da Guiné na dependência ultramarina de Cabo Verde, criando uma Subprefeitura em Bissau e uma provedoria em Cacheu. O governador Manuel António Martins tomou medidas de proteção para com a Guiné, fazendo um novo regulamento para a alfândega e criando um hospital militar dirigido por uma comissão a que presidiu Honório Pereira Barreto.” No volume IX, alusivo ao período 1851-1890, observa o historiador: “Uma das primeiras medidas da Regeneração, no tocante à Guiné, foi a de criar um lugar de governador para todas as parcelas da mesma região, o qual ficaria sujeito ao governador-geral de Cabo Verde. Aquele funcionário teria residência em Bissau, cabendo-lhe também visitar a praça de Cacheu duas vezes por ano. O governador tinha igualmente poderes militares.” E depois faz-se uma alusão ao Visconde Sá da Bandeira: “A Sá da Bandeira se deve a elevação de Bissau a vila por considerar que a povoação tinha já um número suficiente de habitantes para dispor de instituições municipais. Justificava-se ainda a medida por ser a capital da Guiné portuguesa e a residência do respetivo governador.” Aonde o Visconde de Sá da Bandeira foi encontrar a capital da Guiné não se sabe, mas que o visconde refere a capital vem no Diário do Governo de 2 de maio de 1858.

A primeira referência a uma capital em documento autenticado com o nome do rei vem no suplemento ao n.º 15 do Boletim Oficial do Governo-Geral da Província de Cabo Verde, de 17 de abril de 1879, que reza o seguinte: “Dom Luíz, por graça de Deus, Rei de Portugal e dos Algarves, etc., fazemos saber a todos os nosso subditos, que as côrtes gerais decretaram e nós queremos a lei seguinte: art.1. – o território da Guiné portuguesa formará uma província independente de outra qualquer província portuguesa, terá a sua séde na ilha de Bolama.”

Isto o que consegui apurar na Biblioteca da Sociedade de Geografia, graças à total disponibilidade da sua bibliotecária. Mantém-se o mistério da data de 1835 para a capital de Bissau que os historiadores daquela época e posteriores jamais mencionam. Os coordenadores do trabalho de Orlando Ribeiro também não invocam a fonte. Chegou a vez de se submeter a questão a historiadores que possam ajudar a desenvencilhar este enigma de Bissau como capital como Bolama. Desconheço a fonte informativa do Visconde Sá da Bandeira, não será de estranhar que ele confunda o governador da Praça de S. José de Bissau como instalado numa capital. Acresce que nós temos relatos como o do governador Carlos Pereira, o primeiro nomeado com a implantação da República, que alude ao completo estado de degradação em que se encontrava a fortaleza e o povoado até ao Pidjiquiti, tudo numa imundície e desmazelo intoleráveis, uma estranhíssima capital permanentemente fustigada pelas hostilidades dos régulos da ilha, o quadro de Bissau estava cercado de muros altos para se proteger de permanentes agressões. Como é que era possível falar-se de Bissau como capital, somente mencionada esta como existente em 1835 e invocada com tal título em 1858, sem nenhum documento comprovativo, e, em completo contradição com o facto de que só perto da sua desvinculação de Cabo Verde nem o estatuto de distrito autónomo tinha.

É a questão que deixamos aos historiadores, oxalá possam clarificar este imbróglio, já que documentos históricos comprovativos de Bissau como capital só temos estas duas referências sem alusão a fontes. Vamos esperar.


Carta hidrográfica da Guiné portuguesa, 1844, anexo da importantíssima obra de Lopes de Lima
Referência de Sá da Bandeira a Bissau como capital da Guiné portuguesa, 1858
Fortaleza de Cacheu, imagem do século XIX
Imagem ao monumento do esforço da raça, havia quem lhe chamasse monumento à Maria da Fonte
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Nota do editor

Último post da série de 10 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25365: Historiografia da presença portuguesa em África (418): O Esmeraldo de Situ Orbis, de Duarte Pacheco Pereira, as suas referências à Guiné (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21734: Notas de leitura (1332): Espaço social e movimentos políticos na Guiné-Bissau (1910-1994), por Philip Havik, na Revista Internacional de Estudos Africanos, n.º 18-22, 1995-1999 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Abril de 2018:

Queridos amigos,
Desdobram-se os ensaios e estudos em torno das estruturas sociais, económicas, culturais e políticas guineenses, cada investigador escolhe os seus quadros de referência. Philip Havik considerou importante encetar o seu trabalho com a mudança social operada pela Liga Guineense que teve vida efémera (1911-1915) mas que o primeiro movimento de cariz nacionalista, estudou depois a ascensão dos movimentos nacionalistas a partir de finais de 1940, o que se passou na luta armada e no pós-independência, procurando um quadro explicativo para os sucessivos desaires com as políticas de Luís Cabral e Nino Vieira.
Como outros autores, Havik considera que a Guiné-Bissau é um Estado ‘fraco’ mas devido à particularidade notável da sua ágil sociedade civil mantém um facho de esperança aceso para melhores dias que virão.

Um abraço do
Mário


Mundasson i Kambansa:
Espaço social e movimentos políticos na Guiné Bissau (1910-1994) (2)


Beja Santos

Philip Havick
O
ensaio de Philip J. Havik publicado na Revista Internacional de Estudos Africanos nº18-22, 1995-1999 visa observar e comentar certos padrões de articulação política em termos sociais e geográficos na sociedade guineense, interpretando certos saltos qualitativos, entre 1910 e 1994.

O autor regista a composição da classe civilizada e assimilada dos núcleos urbanos. Conquistada a independência, o PAIGC fracassou nas cidades, isto quando, na luta armada recusou estrategicamente os núcleos urbanos e mudou-se para o mato onde organizou comités de tabanca e enveredou por um impulso democrático de participação popular. Amílcar Cabral sabia que a criação de um Estado dominado por um único partido pressupunha contrapesos como a consulta popular, todo esse esforço caiu por terra a seguir à independência, o PAIGC descurou o meio rural, congeminou grandes projetos económicos demonstradamente dispendiosos e ineficientes, cedo se esbarrondaram. Os movimentos em torno dos jovens, das mulheres e dos sindicatos também esfriando, a cúspide política foi-se divorciando das suas bases. Numa tentativa de retomar o poder local, retomaram-se as chefias tradicionais, houve um complexo processo de negociação entre certas linhagens, no caso dos Manjacos, tudo foi mais fácil com Mandingas, Fulas e Biafadas. Os produtores rurais começaram a resistir devido à política de controlo apertado, tanto administrativo como policial, sobre a economia. Por ironia do destino, era o reverso, ressalvadas as distâncias, da resistência dos agricultores à extorsão pelos preços, nomeadamente do coconote e da mancarra.

O PAIGC, no seu sonho de nacionalizar a economia, viu as companhias de comércio nacionalizadas falirem pela corrupção, pela inépcia e pela falta de articulação entre uma estratégia nacional e as redes de comercialização locais, voltaram os comerciantes ambulantes e as vendedeiras de mercado. Em meados da década de 1980, o Programa de Ajustamento Estrutural, que visava criar alavancas para o desenvolvimento acabou por ter efeitos contraditórios em termos sociais, ao criarem-se linhas de crédito para o desenvolvimento agrícola a clique do regime teve acesso a esses benefícios, criaram pontas para benefício próprio e, de um modo geral, não pagaram os seus empréstimos, o que se saldou no agravamento financeiro.

Nino Vieira
Assim se foi aprofundando o vazio político e emergiram aspirações de se constituir uma oposição política. Em 1986 criou-se o Partido da Resistência da Guiné-Bissau, vulgo ‘Movimento Bá-Fata’, cuja base de apoio social era constituída por meios ligados a antigos Comandos e tropas auxiliares africanas, sobretudo oriundos das zonas islamizadas, este partido defendia uma cooperação mais estreita entre a Guiné-Bissau e Portugal, irá denunciar o crescimento das pontas. Entretanto, agudizaram-se os conflitos no seio do PAIGC, tudo tinha a ver com o agravamento das condições de vida, soçobravam os regimes comunistas, o partido único era posto em causa. O regime ditatorial de Nino Vieira procura reagir em várias direções: patrocinar o regresso dos régulos, à procura de apoio político; repressão brutal na direção política e nas Forças Armadas, o tristemente célebre caso “Paulo Correia”, que deixou marcas insanáveis com a etnia Balanta; explodiu o comércio informal, as mulheres constituíram ‘mandjuandades’ (grupos etários de entreajuda), ao princípio ligadas ao PAIGC, mais tarde desfiliadas.

Assim se chegou ao II Congresso Extraordinário do PAIGC nos princípios de 1991 onde se decidiu uma abertura política com base nas ‘profundas mutações que se verificam na cena política internacional’ e ‘nas transformações operadas no tecido económico guineense’. Recomendava-se a eliminação de vários artigos da Constituição associados ao partido único e a introdução de sufrágio universal através de eleições livres e periódicas dos órgãos representativos do Estado, mais se sugeria a despartidarização das forças de defesa e segurança e a desvinculação dos sindicatos do PAIGC. Em consequência, aprovou-se a Lei Quadro dos Partidos Políticos, a Constituição passou a permitir a liberdade de associação partidária, surgiram outras leis como a Lei de Imprensa, Lei da Liberdade Sindical e a Lei da Greve; e apareceram sinais de contestação dentro das Forças Armadas, apelando-se à sua neutralidade.

Surgiram partidos em catadupa, Frente Democrática, Frente Democrática Social, Partido Unido Social Democrata, Partido da Convergência Democrática… Os seus dirigentes, regra geral, eram antigos ministros e antigos dirigentes do PAIGC, caso de Aristides Menezes, Vitor Mandinga, Rafael Barbosa e Vitor Saúde Maria; numa outra fase, apareceram o PRD, o MUDe, o PRS, a FLING, e outros mais. Constituiu-se com o PAIGC, em 1992, a Comissão Multipartidária de Transição, irá aparecer a Comissão Nacional das Eleições, completa-se a revisão constitucional em fevereiro de 1993, que confirma um regime presidencialista, e aprova-se uma nova lei eleitoral.

Philip Havik aprecia os resultados: uma maioria relativa para o PAIGC, que beneficiou do método de Hondt, que lhe assegurou uma maioria absoluta na nova Assembleia Nacional Popular, o movimento Bá-Fata e o PRS ficaram em segundo e terceiro lugares. Nas eleições presidenciais, Nino Vieira bateu Kumba Yala na segunda volta, a despeito deste último ter denunciado inúmeras irregularidades. Meses depois, Manuel Saturnino Costa era empossado como Primeiro-Ministro.

Nas conclusões, o investigador recorda que as mudanças políticas na África subsariana, com imposição de modelos democráticos nem sempre conhecedores da estrutura cultural das populações têm intervenções dos doadores e credores internacionais, da notória debilidade administrativa do Estado, da generalização de práticas de patrimonialismo, nepotismo e corrupção, faltam estruturas eficazes, recursos humanos ou até meios financeiros para cumprir as promessas com que os agentes políticos se apresentam perante os eleitores. E daí a facilidade com que medidas que tinham como objetivo reduzir a função pública tenham levado à paralisia do aparelho administrativo, causando uma deterioração das condições de vida para a maioria dos cidadãos.

No final das suas conclusões, vê-se que Philip Havik anda muito próximo de Joshua Forrest: existe um Estado ‘fraco’ na Guiné-Bissau, mas a sociedade civil permanece de pé, o partido foi-se diluindo, alienou o capital político granjeado na luta, irá continuar a manter uma confiança junto do eleitorado devido à incapacidade de todos os outros partidos de se dotarem de uma estratégia nacional mobilizadora que reinstale uma ampla confiança nacional. Philip Havik lembra igualmente que é da agricultura que a população resiste. Esse poder da sociedade civil continua a ser a alavanca da esperança democrática da Guiné-Bissau, a despeito de todos os impasses e da desqualificação da jovem classe política.

Presidente José Mário Vaz (Jomav)
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21701: Notas de leitura (1331): Espaço social e movimentos políticos na Guiné-Bissau (1910-1994), por Philip Havik, na Revista Internacional de Estudos Africanos, n.º 18-22, 1995-1999 (1) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21701: Notas de leitura (1331): Espaço social e movimentos políticos na Guiné-Bissau (1910-1994), por Philip Havik, na Revista Internacional de Estudos Africanos, n.º 18-22, 1995-1999 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Abril de 2018:

Queridos amigos,
É tempo de reconhecer o labor investigativo de Philip Havik nas coisas da Guiné. Este ensaio que o investigador publicou na Revista Internacional de Estudos Africanos fazia parte de um estudo de maior amplitude abrangendo a atividade política na Guiné tanto no período pré-colonial como no período colonial e na fase da Independência. Desconheço, por hora, se tal publicação já existe. A importância do ensaio é um modo singular como o investigador aborda e articula espaços sociais e movimentos políticos no período colonial e pós-colonial, entrelaça uma gama de diversidades que vão desde a religião às atitudes culturais de certas etnias, as mudanças económicas operadas pelas novas culturas e a confrontação entre as populações nativas e os representantes das empresas. E assim chegamos à génese dos nacionalismos, às mudanças que nessa fase o PAIGC prometia operar e tudo o mais que veio a acontecer até à sua influência política empalidecer, uma longa história que é de conhecimento obrigatório para quem quer saber porque é que a Guiné continua a viver em impasse.

Um abraço do
Mário


Mundasson i Kambansa:
Espaço social e movimentos políticos na Guiné-Bissau (1910-1994) (1)


Beja Santos

Mundasson, termo crioulo para mudança ou transformação; kambansa, termo crioulo para travessia ou passagem.

Philip Havik
O investigador Philip Havik dá-nos neste artigo publicado na Revista Internacional de Estudos Africanos, n.º 18-22, 1995-1999, uma leitura singular sobre a pluralidade política e social que marcou o território da Guiné durante o século XIX, é uma tessitura composta por termos sociais e geográficos, pela procura de defesa de interesses da região na alvorada republicana, pela ocupação militar, pela luta pela independência, a recriação de um regime monopartidário a que se seguiu a liberalização económica e uma caudalosa abertura política.

O autor recorda que a Guiné com as suas fronteiras traçadas na consequência da Conferência de Berlim vivia mergulhada numa guerra renhida pelo controlo dos “chãos”, espaços geográficos e sociais geridos por linhagens, intervinham nesses episódios bélicos sociedades nativas que se opunham a tropas auxiliares africanas e portuguesas, todos os pretextos eram bons para procurar sacudir o jogo colonial, tanto podiam ser o imposto de palhota como a política comercial da administração portuguesa. Philip Havik considera que no processo de criação de movimentos de caráter político se podem identificar três fases, o período entre 1910-1915, o período de 1955-1965 e de 1986 até às primeiras eleições multipartidárias de 1994.

A ocupação militar saldou-se na perda de controlo por parte dos povos do Litoral sobre os seus próprios “chãos” e a penetração progressiva do Litoral “animista” pelo Leste islamizado. Grupos crioulófonos oriundos dos antigos entrepostos como Cacheu ou Geba foram abrindo espaço em novos centros comerciais no Interior, assim se deu a abertura dos “chãos” e o crioulo tornou-se na língua franca. Os últimos 50 anos foram marcados pela luta anticolonial e o estabelecimento de um regime independente.

Uma lufada de ar fresco foi trazida pela constituição da Liga Guineense (1911), os seus membros iriam assumir um papel de mediadores em diferentes conflitos económicos e sociais no seio do pequeno e restrito meio administrativo e mercantil de Bissau e Bolama. Os estatutos eram claros: fazer propaganda da instrução, estabelecer escolas e empenhar-se no progresso e desenvolvimento da Guiné professando o ideal republicano. À sua testa, a Liga era dirigida por comerciantes das pequenas comunidades crioulófonas, em muitos casos com laços de parentesco em Cabo Verde, tinham também ligações aos deportados políticos, havia grumetes contratados por comerciantes e casas de comércio como intérpretes, pilotos e caixeiros. Cedo começaram a reivindicar a redução de impostos, a nacionalização do comércio para restringir o acesso de comerciantes estrangeiros, a denunciar casos de corrupção no aparelho administrativo e os excessos no plano militar. A Liga foi-se progressivamente politizando, denunciando o papel dos mercenários recrutados por Teixeira Pinto e as suas prepotências nas campanhas militares. Quando foi proibida em 1915 e a sua direção encarcerada, a Liga era uma organização autónoma reunindo pela primeira vez degredados políticos, comerciantes e diferentes estratos profissionais. Falhara a tentativa de reconciliação do projeto português de “nacionalização” da Guiné com o ideário republicano e liberal. O investigador observa que os grupos sociais ditos “civilizados” constituíram um nó de alianças entre comerciantes e proprietários (ponteiros) e trabalhadores dos portos e funcionários públicos. A repressão destes movimentos de contestação criou uma diáspora dos seus associados. Observa igualmente a importância do grande fluxo de imigrantes cabo-verdianos na Guiné, portugueses perante a lei, tal fluxo teve implicações para a vida política e associativa do território.

Os movimentos independentistas irão surgir em finais nos anos 1940, registam-se diferenças entre caminhos nacionalistas guineenses e posições pan-africanas. O grupo de civilizados tinha-se ampliado, recorde-se que era pelo comércio nos chamados centros comerciais mas sobretudo nas lojas de mato que se estabeleciam os contatos entre a população “civilizada” e a indígena, num contexto completamente distinto à situação vivida no tempo da Liga Guineense. Foram razões de ordem económica que ditaram mudanças, primeiro a mancarra e depois o arroz. As populações sentiram o peso desta política encetada a seguir à crise no mercado internacional das oleaginosas. As populações nativas não ficavam associadas às empresas constituídas pelos “civilizados”, exploravam as suas próprias culturas, negociavam depois os preços com os intermediários das grandes e pequenas casas, era uma economia de troca direta e sobressaiam práticas abusivas dos cipaios, agentes omnipotentes e despóticos. E cedo se desencadearam conflitos entre comerciantes e a população, a extorsão aos indígenas iria tornar-se num problema que encontrou por vezes políticos de envergadura pela frente, caso de Sarmento Rodrigues. Os movimentos independentistas atraíram sobretudo operários, artesãos e empregados do comércio, na sua maioria vindos de Bissau e de Bolama. Em 1948 surgiu o Partido Socialista da Guiné. A formação de organizações políticas de cariz nacionalista acontece em 1955 com a fundação do MING – Movimento para a Independência da Guiné, por Amílcar Cabral que no ano seguinte irá apoiar a criação do PAI – Partido Africano da Independência, posteriormente PAIGC, em 1960. Este surto independentista precisa de ser situado no contexto do nacionalismo pan-africano, fortemente inspirado por Kwame N’Krumah, as coligações de forças tiveram vida precária. A FLING – Frente para a Libertação e Independência da Guiné Portuguesa é criada em 1962 por grupos oposicionistas baseados no Senegal, integrava cinco partidos. E diz o investigador que neste ambiente extremamente divisionista reivindicava-se a herança política da Liga Guineense. Um dos maiores pontos de divergência entre movimentos – além da questão da autonomia versus independência total e a melhor forma de lá chegar – revelou-se a questão da ligação entre a luta anticolonial na Guiné e nas ilhas de Cabo Verde. Esta associação estratégica dos destinos da Guiné e Cabo Verde, protagonizada pelo PAIGC, provocaria várias cisões nos vários movimentos e coligações, tudo irá desaguar na secessão do PAICV – Partido Africano da Independência de Cabo Verde a seguir ao afastamento do primeiro presidente da Guiné independente através de um golpe de Estado.

(Continua)
Kumba Yala
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Nota do editor

Último poste da série de 21 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21670: Notas de leitura (1330): A Operação Tridente: Quando o delírio se disfarça de objetividade na reportagem (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Guiné 61/74 - P20320: Historiografia da presença portuguesa em África (184): O desenvovimento urbano de Bissau, no período em que viveu Leopodina Ferreira Pontes, "Nha Bijagó" (1871-1959)


Guiné > Bissau > C. 1870 > A Rua de S. José, considerada como a artéria mais importante. Ia do portão da Amura, que estava aberto das 8 às 21h00, ao baluarte da Bandeira. Após 5 de outubro de 1910, passou a designar-se como Rua do Advento da República; depois,  Rua Dr. Oliveira Salazar e, após a independência, mudoum  em 21 janeiro  de 1975,  Rua Guerra Mendes, um dos combatentes da liberdade da Pátria, mortos em combate.

 Fonte: António Estácio - "Nha Bijagó: respeitada personalidade da sociedade guineense (1871-1959)" (edição de autor, 2011, 159 pp., il,).




Guiné > Bissaau > Av República > Postal ilustrado > c. 1960/70 > : Av da República (Hoje, Av Amílcar Cabral) > Ao fundo, o Palácio do Governador, e a Praça do Império; do lado direito, a Catedral de Bissau (O postal era uma Edição Comer, Trav do Alecrim, 1 - Telef. 329775, Lisboa).

Foto (e legenda): © José Claudino da Silva (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



António Estácio, V Encontro Nacional
da Tabanca Grande, Monte Real, 2010. Foto; 
1. Já na altura demos o devido destaque a esta publicação do nosso camarada e amigo António Estácio (n. 1947, em Bissau, fez o serviço militar em Angola, em 1970/72),  que representou vários anos de pesquisa, com recurso a várias técnicas (entrevistas, análise documental, observação participante, viagem a Bissau e Bolama em 2006, etc. , tudo a expensas do autor.)


E a propósito das mudanças de toponimia de Bissau, fomos revisitar o livrinho "Nha Bijagó: respeitada personalidade da sociedade guineense (1871-1959)" (edição de autor, 2011, 159 pp., il,).  (**)

Do prefácio, escrito por Eduardo Ferreira, respigamos entretanto os seguntes excertos (*):

(...) Ao ler este livro  não podemos deixar de pensar nas grandes figuras femininas, que foram as “sinharas” e que tanta influência tiveram na costa ocidental africana, em particular nos Rios da Guiné, entre o século XVI e finais do século XIX. 

Essas mulheres que eram na sua maioria crioulas, geriam com enorme maestria os negócios dos seus maridos europeus ou eurodescendentes, resolvendo conflitos, realizando pactos com as autoridades locais, de modo a que as actividades comerciais decorressem sem delongas e fossem coroadas de êxito. A sua condição de crioula, dava à “sinhara” uma capacidade negocial ímpar, pois sendo detentora de uma dupla identidade cultural, era com facilidade que fazia a ponte entre as populações locais e os alógenos,  nomeadamente os europeus. 

Ficaram famosas na Guiné algumas dessas “sinharas”, como a Bibiana Vaz, a Aurélia Correia conhecida por “mamé Aurélia”, a Júlia Silva Cardoso também conhecida como “mamé Júlia” e a Rosa Carvalho Alvarenga, mãe de Honório Pereira Barreto, entre muitas outras. 

Leopoldina Ferreira, vulgo “Nha Bijagó”, é em meu entender uma das últimas grandes “sinharas” da Guiné, pois o seu perfil enquadra-se na perfeição no papel desempenhado por essas influentes mulheres africanas, referenciadas por diversos autores como foi o caso de André Álvares d’ Almada na sua obra “Tratado Breve dos Rios de Guiné do Cabo Verde” de 1594 ou de George E. Brooks com “Eurafricans in Western Africa” publicado em 2004 ou ainda Philip J. Havik com “Trade in the Guinea-Bissau Region: the role of african and luso-african women in the trade networks from early 16th to the mid 19th century” publicado em 1994, para apenas citar alguns.

(...) Um aspecto particularmente interessante nesta obra de A. J. Estácio, é a ligação cronológica que o mesmo faz, entre importantes acontecimentos políticos, administrativos e militares, que tiveram lugar na então Guiné Portuguesa, e as diversas fases etárias da biografada, ainda que esses factos não tenham qualquer ligação directa com a personagem tratada neste livro! 

O autor quis desse modo, dar-nos a conhecer alguns factos da história da então colónia/província da Guiné, que tiveram lugar entre 1870 e 1959, período que abarca a vida de “Nha Bijagó”  (...)

(...) Com esta publicação, António Júlio Estácio, revela-nos mais uma vez, o seu grande apego e dedicação às coisas e às gentes da terra que o viu nascer. (...)

Eduardo J. R. Fernandes, "Prefácio" (*)

[O Eduardo Fernandes, amigo e condiscípulo do autor no Liceu Honório Barreto, em Bissau, e na alt7ra, em 2011, comentador da RDP África].

Nha Bijagó (1871-1959)
Leopoldina Ferreira Pontes, "Nha Bijagó"  (Bissau, 1871 - Bissau, 1959) e a cronologia da cidade de Bissau

Aproveitando a vasta e valiosa pesquisa historiográfica do António Estácio, uma homem de várias pátrias (Guiné-Bissau, Portugal, Angola, Mavau...= vamos aqui recolher e sintetizar algumas datas marcantes do desenvolvimento urbano de Bissau, correspondente ao período em que viveu a "Nha Bijagó"(com a devida vénia ao autor...)


(i) Leopoldina Ferreira (Pontes, pelo primeiro casamento...) nasceu em Bissau em 4 de novembro de 1871. Era filha ("ilegítima", segundo a terminologia do Código Civil em vigor na época, o de 1866) de João Ferreira Crato (natural do Crato, Alto Alentejo, comerciante na Guiné) . Morreu aos 87 anos, em 26 de Maio de 1959. O nominho "Nha Bijagó" deve tê-lo recebido da mãe, Gertrudes da Cruz (de etnia bijagó, natural de Bissau).
(ii) Pouco antes de ela nascer, em 1871, o 18º Presidente dos Estados Unidos da América, Ulysses Simpson Grant , proferiu a sentença referente à posse da ilha de Bolama, pertencente ao, então, distrito da Guiné, favorável a Portugal o que pôs termo ao conflito se arrastava com os ingleses.

(iii) Nessa altura Bissau era uma povoação encravada entre a fortaleza de S. José e um muro, com 4 metros de altura. A igreja e o cemitério ficavam no interior da Amura. De entre as poucas ruas e ruelas, extra-muros, a Rua de S. José era considerada como a artéria mais importante. Ia do portão da Amura, que estava aberto das 8 às 21h00, ao baluarte da Bandeira. Após 5 de outubro de 1910, passou a Rua do Advento da República; depois, a Rua Dr. Oliveira Salazar e, após a independência e a 21 janeiro  de 1975 a Rua Guerra Mendes.

(iv) Em 1872, tinha ela cerca de um ano "quando as ruas de Bissau começaram a ser iluminadas a petróleo. Eram, todavia, poucos os candeeiros"...

(v) A 1877, foi criado o Concelho de Bissau, sendo de 573 habitantes a população na área murada, composta por 391 nativos, 166 oriundos de Cabo Verde e, apenas, 16 europeus.

(vi) Em 1879, ainda a "Nha Bijagó" não tinha completado os oito anos, foi “a sede do Governo transferida para Bolama.” 

(vii) No dia 3 de agosto do mesmo ano, assinou-se o tratado de cessão a Portugal do território de Jufunco, ocupado pelos Felupes.

(viii) Pouco antes de Leopoldina completar os 12 anos de idade, foi publicado o decreto que dividiu a província da Guiné  em quatro circunscriçõess, criando-se assim os concelhos de Bolama, Bissau, Cacheu e Bolola. 

(ix) Tinha ela 14 anos quando Portugal e a França celebraram [, em Paris, em 1886,] a convenção referente à delimitação das possessões dos 2 países na África Ocidental e que correspondem às atuais Repúblicas do Senegal, Guiné-Conacri e Guiné-Bissau.
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(x) As más condições climatéricas, agravadas pela insalubridade da região, dizimavam a população de tal modo que, em 1886, Bissau era o menos povoado de todos os aglomerados urbanos da Guiné.

(xi) Tinha “Nha Bijagó” já 18 anos quando foi, então, lançada, em 1889,  a primeira pedra para a tão almejada ponte-cais,( Foi designada  por ponte Correia e Lança, em homenagem a Joaquim da Graça Correia Lança  Governador da Guiné., de 1888 a 1890,)

(xii) Ano e meio depois, o chefe dos Serviços de Saúde defendia que a capital deveria regressar à ilha de Bissau, ainda que para local ligeiramente diferente, isto é, puxando-a para a zona de Bandim que se situava “em terreno suficientemente elevado e com vertentes para a praia arenosa.”, o que, em termos de drenagem e salubridade, era, indubitavelmente, vantajoso.

(xiii) À beira de completar 22 anos, registaram-se, no interior da fortaleza, dois incidentes graves, em 1893: o incênndio da da enfermaria militar e uma explosão;

(xiv) A 7/12/1893, a vila sofreu um grande cerco, movido por elementos da etnia Papel a que se juntaram os Balantas de Nhacra.

(xv) Em 1984, é demolida uma  parte do muro de 4 m. de altura que ia do Fortim Nozolini ao Baluarte da Balança, com o objetivo de se construir uma igreja católica.

(xvii) Por volta dos seus 25 anos, dada a elevada densidade populacional intramuros, o governador Pedro Inácio Gouveia autorizou “o aforamento de, terrenos no olhéu do Rei”m tendo, em 1900, ali, chegado a ser instalado um lazareto.

(xviii) A implantação da República em Portugal levou à mudança do Governador e, em 1912/13, o primeiro-tenente Carlos de Almeida Pereira manda demolir o muro que constrangia a expansão urbana.

Guiné > Bissau > s/d Av República (hoje Av Amílcar Cabral), com placa central guarnecia  com árvores, que nos anos 50 seria removida, dando lugar a uma ampla avenida, com duas faixas de laterais, arborizadas, destinadas a estacionamento e delas separadas por um passeio. Fonte: António Estácio (2011)
  

(xix) Com a República há mudanças na toponímia:

Rua de S. José > Rua do Advento da República
Rua do Baluarte da Bandeira > Rua Almirante Reis
Travessa Larga > Travessa do Dr. Bombarda
Travessa da Botica > Travessa 5 d’ Outubro
Travessa da Ferraria > Travessa Honório Barreto

(xx) Depois da "campanha de pacificação" do cap João Teixeira Pinto (1913/15),  Bissau é finalmente  objeto dum plano de urbanização que lhe permitiu crescer de forma disciplinada e segundo malha ortogonal bem definida. A autoria do plano é do tenente-coronel engenheiro José Guedes Viegas Quinhones de Matos Cabral que, no início da década de vinte, foi director das Obras Públicas na Guiné.

(xxi) Para além do Mercado Municipal e do Cemitério, por detrás do Hospital, etc., procedeu-se ao aterro e à regularização do molhe da rua marginal {, Rua Agostinho Coelho, numa evocação do primeiro governador da Guiné],  e à construção do edifício-sede da Alfândega.

(xxii) Ao completar 62 anos, teve lugar, em 1933, a transferência da sede da comarca judicial da Guiné, que passou de Bolama para Bissau.

(xxiii) Em 1934, procedeu-se ao lançamento da primeira pedra para a construção do monumento ao Esforço da Raça, da autoria do Arq Ponce de Castro. (. As pedras foram enviadas do Porto e o monumento foi inaugurado em 1941; o único monumento colonial que resistiu ao camartelo revolucionário.)

Fortaleza da Amura. Foto de Manuel Coelho (c. 1966/68)
(xxiv) Em 1936, a Associação Comercial e Industrial da Guiné cedeu ao Estado o terreno que lhe fora concedido, o qual se destinava à sua sede e ficava em frente ao  edifício do Banco Nacional Ultramarino, para no local se construir um grande edifício onde, a par do Tribunal, foram instalados os Serviços de Administração Civil, assim como os Serviços de Fazenda;

(xxv) Em 1939 foi a Fortaleza de S. José, vulgo Amura, classificada como Monumento Nacional.

(xxvi) Em finais da década de 30 foi celebrado o contrato para a realização dos estudos de abastecimento de água, melhoramento que só se viria a concretizar  na segunda metade da década  de 40.

(xxvii) Transferência da capital de Bolama para Bissau,  em 19 de Dezembro de 1941. Em 1945 tomna posse o novo governador, Sarmeno Rodrigues. (***)

 (xxviii) Em meados dos anos 40 efectua-se um novo projecto de urbanização, mudam de nome  as vilas de Canchungo (Teixeira Pinto) e Gabú (Nova Lamego), procede-se à construção do depósito de água no Alto de Intim, assim como do Palácio do Governador; constroem-se moradias no “Bairro Portugal” e surge o Bairro de Santa Luzia; Deu-se início à edificação da Catedral, do Museu e Biblioteca, etc.

Nova ponte-cais (1953) e estátua de Diogo Gomes.
Postal ilustrado, edição Foto Serra.
(xxix) Procedeu-se à colocação de estátuas como a do navegador Nuno Tristão, a de Teixeira Pinto, a do grande guineense Honório Pereira Barreto, etc.

(xxx) A Rua Honório Barreto foi, na Guiné, a primeira a ser asfaltada e reabriu em 6/4/1953.

(xxxi)  De tudo isto e a muito mais “Nha Bijagó” foi contemporânea, como da conclusão da nova ponte cais, inaugurada em 18/5/1953 pelo Subsecretário de Estado Raul Ventura, à construção do aeroporto em Brá e à sua transferência para Bissalanca; à visita do Presidente da República Craveiro Lopes; à inauguração do edifício situado na, então, Praça do Império, onde ficou a sede da Associação Comercial e Industrial da Guiné, etc. (****)

Fonte: Adapt. livre de António Estácio - "Nha Bijagó: respeitada personalidade da sociedade guineense (1871-1959)" (edição de autor, 2011, 159 pp., il,).

A aquisição do livro poderá ser feita diretamente com o autor, através de contacto telefónico:  fixo >  + 351 21 922 9058: telem > + 351  962 696 155.

[Selecão / revisão / fixação de texto para efeitos de edição no blogue: LG]

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 3 de outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8849: Notas de leitura (281): Nha Bijagó, de António Estácio. Prefácio de Eduardo J. R. Fernandes

Vd. também poste de 16 de setembro de  2011 > Guiné 63/74 - P8785: Notas de leitura (274): Nha Bijagó, de António Estácio (Mário Beja Santos)

(**) Vd. postes de:


4 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20311: Memória dos lugares (395): Roteiro de Bissau Velha: ruas antigas e ruas atuais, onde se localizavam algumas casas comerciais do nosso tempo: café Bento, Zé da Amura, Pintosinho, Pinto Grande / Henrique Carvalho, Taufik Saad, António Augusto Esteves, Farmácia Moderna...

(***) Vd. também > 18 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17877: Historiografia da presença portuguesa em África (98): Bissau, em 1947, ao tempo de Sarmento Rodrigues, revisitada por Norberto Lopes, o grande repórter da "terra ardente"

(****)  Último poste da série > 6 de novembro de  2019 > Guiné 61/74 - P20318: Historiografia da presença portuguesa em África (182): A eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (1) (Mário Beja Santos)