
Queridos amigos,
Há alguns anos, aqui escrevi, não escondendo o meu embevecimento, quanto me surpreenderam estes apontamentos inéditos de um general que finda uma carreira prestigiosa em Angola aceitara a sugestão de um nobre italiano para organizar com Vítor Cordon a Companhia de Comércio e Exploração da Guiné. É escusado dourar a pílula, no fim do século, e finalmente com as fronteiras da colónia definidas, estando em Mafra o processo de ocupação da Angola e Moçambique, discutia-se nos meios políticos intelectuais o que fazer das pequenas colónias, ainda por cima numa época de exaustão do erário público. Regressaram as propostas de criar companhias majestáticas, o velho general pôs-se a caminho e foi conhecer a Guiné. Deixou apontamentos, não são tão apurados como os que escreveu sobre a Lunda, é profundamente crítico no estado em que se encontrava a colónia, tece considerações de uma assombrosa modernidade, estava-se então a desflorestar o território porque parecia que se encaminhava perigosamente a agricultura para a monocultura da mancarra. Custa-me a entender o silêncio dos estudiosos acerca destes apontamentos e do olhar profundo do seu autor.
Um abraço do
Mário
Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné:
Na Terra do Novo Deus:
O general Henrique Dias de Carvalho na Guiné (1898-999) (5) – 1
Mário Beja Santos
O investigador vai debruçar-se numa obra intitulada Apontamentos Inéditos, doados pela família do general Henrique Dias de Carvalho e que a Agência Geral das Colónias publicou em 1944. Numa época em que houve a tentação de regressar às companhias majestáticas para a colónia da Guiné, este conceituado general cujo nome está historicamente associado ao que fez na Lunda (Angola), foi convidado em 1898 pelo Marquês de Liveri a organizar com Vítor Cordon a Companhia de Comércio e Exploração da Guiné. Desligou-se do projeto depois de dois anos de estadia na Guiné, recusou-se a aceitar que houvesse uma administração belga para a dita companhia. Como escreve Philip Havik, “Apesar de não ter a abrangência dos seus escritos sobre Angola, estes apontamentos revelam uma notável capacidade de observação de um militar bastante experimentado no reconhecimento do interior africano, ao tempo ainda pouco atravessado por viajantes Ocidentais.”
Não menos importante é o que o investigador escreve antes da apresentação da obra. A Guiné, na altura em que Dias de Carvalho lá permanece dois anos, não era uma colónia stritu sensu, dado que as autoridades portuguesas não controlavam a maior parte do território que foi atribuído a Portugal, em conformidade com a Convenção Luso-Francesa de 12 de maio de 1886. Era a presença limitada a alguns Presídios e Praças, caso de Bissau, Cacheu, Farim, Buba, Bolama e ainda de forma incipiente, Bafatá. Também na sequência da Conferência de Berlim, despertara um fervor nacionalista, nasciam sonhos de um “Novo Brasil”, desta feita no continente africano. Nos meios políticos intelectuais havia quem acha-se que as “colónias de pequena extensão” eram prejudiciais, salvo quando o seu solo encerrava “riquezas naturais”, o que não era o caso da Guiné. Havik elenca um conjunto de relatos que expunham a debilidade da presença portuguesa, as suas causas e propondo soluções. Portugal não ignorava os apetites dos colonizadores franceses, e convém não esquecer que a Grã-Bretanha se esforçara por deter Bolama, dava-lhe jeito, com a Serra Leoa ali ao lado. E havia hostilidade de chefaturas e senhores da guerra contra as praças. Nos seus apontamentos, Dias de Carvalho entra diretamente no debate, opõe-se à ideia de que a Guiné só podia servir como feitoria comercial ou feitoria-presídio. A resposta sustentável passaria pelo desenvolvimento da agricultura mediante as chamadas pontas, explorações agrícolas e comerciais, regra geral situadas à beira-rio, em ricos solos aluviais, neste tempo falava-se no amendoim, arroz e milho, virá depois o coconote e as matérias-primas das saboarias e só muito mais tarde o caju.
Como se processavam estes negócios? Havik responde:
“O negócio era feito com base em empréstimos, em espécie, de artigos europeus (como aguardente, armas de fogo, pólvora, barras de ferro, tecidos, etc.) emprestados pelas casas de comércio franceses para ser vir como base da troca com as culturas de renda, e principalmente mancarra ou amendoim, mas também coconote ou noz de palmeira. A exportação das culturas estava sujeita a vários condicionantes e riscos, por ex. climáticos, as técnicas de cultivo, a mão-de-obra nativa, o papel dos intermediários, a intervenção das autoridades africanas, e os conflitos na região que se intensificaram ao longo do século XIX. Estes, e a baixa das cotações no mercado internacional contribuíram decisivamente para interromper a expansão da cultura de amendoim nos meados dos anos 80, quando sofreu uma queda abrupta. Até este ponto, o cultivo de amendoim que se espalhou a partir da Gâmbia para o Senegal e a Guiné nos anos 30 do século XIX, tinha atraído um crescente número de ponteiros, na sua maioria de origem cabo-verdiana, emigrando das ilhas por causa das secas e fomes, empregando trabalhadores nativos que migraram sazonalmente para as áreas de produção. Estes últimos estavam, em princípio, obrigados a vender a sua produção ao proprietário das explorações que fixava os preços, criando neste modo práticas abusivas denunciadas por vários governadores e funcionários coloniais, que se queixavam da falta de desenvolvimento dos recursos da então província.”
Comprovadamente, Dias de Carvalho tinha estudado a história recente da região, vê-se que conhecia os problemas relacionados com as propriedades do Rio Grande de Buba, e quanto aos métodos agrícolas é crítico pela desarborização causada pelo corte de lenha para fogos e para a cultura da mancarra. Opina a favor da diversificação das culturas e o arroteamento das terras, é desfavorável à cultura da mancarra e sim a culturas mais demoradas. Outra observação de Havik a reter a propósito destes apontamentos:
“A sua abordagem é notável pela noção da modernização, pela defesa de uma política baseada em conceitos científicos e a sua aplicação no domínio do aproveitamento dos recursos naturais.”
E, mais adiante:
“A sua longa exposição sobre as várias espécies, do algodão ao tabaco, da borracha às palmeiras, e passando pelo arroz e a mandioca, demonstra a atenção dada à potencialidade de culturas. Além de referências a culturas de subsistência e principalmente cultivadas para consumo interno como o arroz, a mandioca e o milho, destacam-se aquelas viradas para renda e da exportação, como o algodão, a borracha, o cacau, o café, a cana-de-açúcar, o caju, a cola, a mancarra, a noz e azeite da palmeira e o tabaco.”
Dias de Carvalho tece uma crítica profunda à falta de bases sólidas para a propriedade agrícola, lamenta que as empresas que lá operavam limitavam-se a atividades de caráter exclusivamente comerciais. Voltemos a Havik:
“Ao referir-se ao comércio, o autor critica a tributação feita através dos direitos de importação e exportação, e as sucessivas alterações das pautas alfandegárias. O seu pleito pelo livre comércio, que o leva a apoiar algumas revindicações do comércio português e estrangeiro na Guiné, sublinhou os efeitos prejudiciais de certas tarifas (por ex. sobre a importação de tabaco e álcool), e os problemas que causou para a permuta em géneros com os nativos.”
Deixemos para o apontamento seguinte a apreciação que Havik faz do olhar antropológico, etnológico e etnográfico de Dias de Carvalho, é verdade que são meros apontamentos e que faltou vida ao seu autor para corporizar e substantivar o que aqui aparece resumido e por vezes escrito com caráter de urgência, são, contudo, registos que comprovam a sua argúcia e nos dão o conhecimento da Guiné, na passagem para o século XX.
A primeira central elétrica de Bissau em 1940 – ao lado do campo Lino Correia
Palmeira em Bolama
Bolama, 1900
(continua)
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Notas do editor:
Vd. post de 21 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26603: Notas de leitura (1782): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Negros e brancos na Guiné Portuguesa (1915-1935) (4) – 3 (Mário Beja Santos)
Último post da série de 24 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26611: Notas de leitura (1783): "Futuros Criativos"; edição da Associação para a Cooperação Entre os Povos, Fundação Portugal-África e Instituto Camões, 2019 (1) (Mário Beja Santos)